Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
231/21.0T8SSB.E2
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: HIERARQUIA DOS TRIBUNAIS
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DE HIERARQUIA
PROCESSO EQUITATIVO
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei, não estando sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.
II. Esta estruturação hierárquica, estabelecida na Constituição e nas leis de organização judicial é essencial ao funcionamento harmónico do sistema, assegurando o direito ao recurso e, por esta via, o processo equitativo.

III. Daí que se um tribunal de 1.ª instância desobedece a uma decisão de um Tribunal da Relação, proferida no mesmo processo, em sede de recurso de primitiva decisão revogada, tal desobediência afronta não apenas o acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação, mas também a própria Constituição da República, as leis de organização judicial e o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

IV. Tal sentença, proferida contra a decisão do Tribunal da Relação, padece de nulidade insanável, por violação das regras da competência hierárquica do tribunal, tipificada no artigo 119.°, al. e) do CPP, sendo inválida, em conformidade com o preceituado no artigo 122.º, § 1.º CPP.

Decisão Texto Integral: 1. Relatório
A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) aplicou à sociedade denominada AA, S. A., com os sinais dos autos, a coima única de 9 000€, pela prática de duas contraordenações:

a) pelo incumprimento dos requisitos gerais de higiene, cuja coima fixou em 8 5000€; e

b) falta de documentos que evidenciam o cumprimento dos processos de controlo baseados nos princípios do HACCP, uma coima de 500€.

Inconformada com tal decisão a arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa.

Recebidos os autos em juízo veio a ser proferida sentença, na qual se considerou que a decisão administrativa recorrida não continha factos relativos ao elemento subjetivo do tipo contraordenacional e também padecia de vício de falta de fundamentação, por ausência de indicação dos fundamentos factuais e jurídicos determinantes da fixação da coima, em consequência do que se declarou nula tal decisão.

A sentença que assim decidiu foi alvo de recurso por banda do Ministério Público, vindo este Tribunal da Relação de Évora a conceder provimento ao mesmo, revogando a sentença recorrida, determinando que se não verificavam os fundamentos da assinalada nulidade da decisão administrativa impugnada.

Baixaram os autos e veio a ser proferida nova sentença, cujo dipositivo é o seguinte:

«decide-se conceder provimento ao recurso interposto por AA, S.A., declarando nula a decisão final condenatória proferida pela autoridade administrativa, a ASAE, e decide-se absolver a recorrente/arguida da prática das contraordenações (…)»

Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs o presente recurso, rematando a respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O presente recurso tem por objeto a douta sentença depositada no dia 23-05-2022, pelo Juízo de Competência Genérica de … – J…, do Tribunal da Comarca de …, que absolveu a arguida AA, S.A., por considerar que a decisão administrativa era nula;

2. Nula, porque, não continha a descrição do elemento subjetivo do tipo.

3. Não pode o Ministério Público concordar com tal decisão.

4. De facto, a decisão da Autoridade Administrativa explica de forma suficiente o elemento subjetivo do tipo, fazendo-o no ponto V daquela decisão.

5. É sabido que, no âmbito do Direito Contraordenacional, as decisões das Autoridades Administrativas não têm de apresentar o rigor de uma acusação criminal. Importa, isso sim, que contenha os elementos previstos no Artº. 58º, nº.1, do RGCO.

6. E a decisão em análise contém todos esses elementos.

7. Aliás, o próprio Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 11-01-2022 (relator Edgar Valente), processo nº. 231/21.0T8SSB.E1, proferido no âmbito do presente processo, decidiu isso mesmo;

8. Ou seja, decidiu que a decisão da autoridade administrativa contém o elemento subjetivo, não obstante estar descrito, apenas, na determinação da medida da coima, ponto epigrafado “2. Da culpa do agente”;

9. Tendo, inclusive, referido que “É de um rigor excessivo (e sem qualquer justificação legal) afirmar um vício omissivo apenas porque determinado elemento da decisão condenatória em contraordenação não se encontra descrito no ponto da fundamentação de facto, sendo apenas descrito mais à frente num ponto posterior ao juízo subsuntivo.”;

10. Ou seja, esta situação já havia sido analisada e decidida, não podendo o Tribunal a quo vir lançar mão, novamente, do mesmo fundamento e fulminar de nulidade a decisão da Autoridade Administrativa;

11. Assim, tendo a Autoridade Administrativa incluído o elemento subjetivo do tipo na sua decisão, como o Tribunal da Relação de Évora já decidiu, então, não há lugar a nulidade;

12. Devendo o elemento subjetivo da contraordenação ser considerado como constante na decisão e dado como provado e, consequentemente, ser a arguida condenada;

13. Pelo exposto, deverá a douta sentença ser revogada e condenar-se a arguida pela prática de uma contraordenação, por incumprimento dos requisitos gerais de higiene, prevista no artigo 124.º, n.º 1, al. a) do RJACRS, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16.01. em conjugação com os artigos 3.º e 4.º, n.º 2 e Anexo II (Cap. I, V e IX), todos do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, e punível pela al. b) do n.º 2 do artigo 143.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 124º, ambos do referido diploma.»

Admitido o recurso, a sociedade comercial arguida respondeu pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese (transcrição):

«a) As alegações – e conclusões – do Recurso interposto pelo M.º P.º não beliscam o excerto decisório da decisão recorrida que decidiu anular a decisão administrativa da ASAE, com fundamento no facto de «nada se referindo quanto ao enquadramento jurídico concretamente aplicado, como devia a ASAE ter escrito no dispositivo», ou seja, «sem fazer qualquer alusão às disposições normativas que preveem as contraordenações em causa e a que punem a prática da recorrente pelas mesmas.», fundamento de anulação, pelo Tribunal a quo, da decisão administrativa, que aliás se reporta a ambas as contraordenações,

b) Delimitado o respetivo objeto pelas suas conclusões, o recurso sub judicio está, assim, fatalmente vaticinado ao insucesso, na medida em que apenas ataca um dos fundamentos que levaram à anulação da decisão da ASAE e consequente absolvição da Arguida.

c) Por outro lado, ao contrário do que se pretende fazer valer nas alegações de Recurso apresentadas pelo M.ºP.º, a decisão recorrida não considerou a decisão da autoridade administrativa nula, por omissão da descrição dos factos integradores do elemento subjetivo, nem tal poderia ocorrer, atento o anterior Acórdão desta Relação, proferido nos presentes autos, seria «de um rigor excessivo (e sem qualquer justificação legal) afirmar um vício omissivo apenas porque determinado elemento não se encontra descrito no ponto da fundamentação de facto, sendo apenas descrito mais à frente num ponto posterior ao juízo subsuntivo», contando «que a “descrição dos factos imputados” (art.º 58.º, n.º 1, b) do RGCO) conste da decisão condenatória».

d) Na realidade, o Tribunal a quo não anulou a decisão administrativa, tão só porque os factos relativos ao tipo subjetivo estejam erradamente “arrumados” nessa decisão na parte subsuntiva, mas sim – ao invés - considerou que «não está preenchido o respetivo elemento subjetivo», ou seja, o Tribunal a quo, considerou que não foram demonstrados os factos relativos ao tipo subjetivo, sendo consequentemente impossível imputá-los a título culposo.

e) Bem vistas as coisas, o Recurso interposto pelo M.º P.º é um recurso sobre a matéria de facto, e constituindo os presentes autos a natureza de contraordenação, não sendo possível o recurso da matéria de facto nos termos do art.º 412º nº 3 e 4 do CPC, tenta “fazer entrar pela janela o que não passa pela porta”.

f) Na verdade, em causa não está, apenas, a omissão de indicação de factos suscetíveis de enquadrar o tipo subjetivo da norma incriminadora, mas sim o facto de a decisão administrativa ter imputado a Contraordenação à Arguida a título doloso, sem para tanto dar como provado qualquer facto.

g) Sendo certo a menor a exigência de rigor formal das decisões da autoridade administrativa, em relação às decisões proferidas em processo penal, tal não justifica simplesmente obliterar toda e qualquer referência, nos factos provados, a tal elemento subjetivo, podendo tal acarretar, como consequência prático processual – como ocorreu – a inviabilização da prova desse elemento subjetivo.

h) É que, as infrações em causa foram imputadas, não a título de negligência, mas sim a título de dolo eventual, sem que da decisão administrativa conste, por um lado, que o Agente conhecia a obrigação que sobre si impendia; e por outro, que se conformou com o resultado de uma conduta (por ação ou omissão), aceitando a verificação do resultado típico (no caso do dolo eventual).

i) Para tanto, bastou-se a decisão administrativa com um juízo tabelar e conclusivo, segundo o qual «[…] o(a) Arguido(a) sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigado(a) a cumprir os requisitos gerais de higiene e a implementar um processo permanente baseado nos princípios do HACCP no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se como resultado daí adveniente, pelo que se considera que agiu com dolo eventual».

j) Os factos imputados na acusação (e consequentemente na sentença) não podem traduzir-se numa mera descrição de conceitos vagos, imprecisos, genéricos e conclusivos, sob pena de ficar prejudicado o contraditório e, consequentemente, o direito de defesa da Arguida impedida de se pronunciar sobre os dois referidos requisitos, relativos à imputação dos factos a título de dolo eventual, com clara e fontal violação dos seus direitos de defesa, constitucionalmente consagrados;

k) E ficou também assim, em rigor, o próprio Tribunal, impedido de averiguar os factos suficientes para uma decisão conscienciosa sobre o elemento subjetivo, em termos que não são sequer susceptíveis de integrar o vício do art.410, nº2, al. a), CPP, caso em que o tribunal recorrido podia tê-la sanado, o que só é possível quando para isso tenha elementos (art.426, nº1, CPP).

Termos em que deverá o Recurso improceder, confirmando-se a decisão recorrida e consequentemente, a absolvição da Arguida pela contraordenação que lhe foi imputada»

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, secundou integralmente a posição do recorrente.

No exercício do direito de contraditório nada se acrescentou.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

2. Fundamentação

Na sua integralidade a sentença ora sob recurso tem o seguinte forma e teor:

«I. Relatório.

AA, S.A., a recorrente no presente processo de contraordenação interpôs recurso da decisão condenatória proferida pela ASAE alegando e pediu, em síntese, a nulidade da decisão administrativa por falta de factos respeitantes ao elemento subjetivo das contraordenações que lhe são imputadas, a absolvição das contraordenações em que foi condenada e, em caso de condenação, a aplicação de uma simples admoestação.

A recorrente foi condenada na coima única de 9.000,00 euros (nove mil euros), em cúmulo das coimas, os termos do artigo 19.º, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, pela prática das seguintes infrações:

- Incumprimento dos requisitos gerais de higiene, à qual corresponde o pagamento de uma coima de 8.5000,00 euros,

- Falta de Documentos que evidenciam o cumprimento dos processos de controlo baseados nos princípios do HACCP, à qual corresponde o pagamento de uma coima de 500,00 euros.

A autoridade administrativa proferiu parecer negativo ao conteúdo e pedido do recurso.

O Tribunal é absolutamente competente.

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II. Da Nulidade da Decisão Administrativa.

A recorrente vem condenada na coima de 9.000,00 euros (nove mil euros) pela prática das seguintes contraordenações:

- Incumprimento dos requisitos gerais de higiene, à qual corresponde o pagamento de uma coima de 8.5000,00 euros,

- Falta de Documentos que evidenciam o cumprimento dos processos de controlo baseados nos princípios do HACCP, à qual corresponde o pagamento de uma coima de 500,00 euros.

Na decisão administrativa condenatória, na parte sob o título “II. – Matéria de Facto”, inexistem factos respeitantes ao elemento subjetivo do tipo de ambas as contraordenações.

Tal decisão administrativa e na referida parte, define o objeto do processo de contraordenação.

Nem constam, portanto, factualidade que se possa subsumir a conduta negligente ou dolosa praticada pela recorrente.

O Acórdão do STJ nº 1/2015, publicado no DR 1ª série, nº 18, d 27 de janeiro de 2015, fixou jurisprudência no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento. representação ou revisão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal».

Esta jurisprudência aplica-se por força do disposto no artigo 41º, nº 1, do Regime Geral das Contraordenações.

Ora, a ausência de previsão expressa em sede de Regime Geral das Contraordenações da consequência legal para a decisão que não preencha os requisitos previstos no artigo 58º do RGCO impõe-se aplicar o disposto nos artigos 374º, nºs 2 e 3 e 379º, nº 1, alínea a), ambos do CPP, aplicáveis ex vi do artigo 41º, n.º 1 do RGCO.

Deve, pois, ser declarada nula a decisão condenatória por não conter todos os factos relativos ao elemento subjetivo do tipo contraordenacional.

Termos em que, deve proceder o pedido principal do recurso, ou seja, a nulidade da decisão condenatória por dela não constarem todos os elementos essenciais ao exercício do Direito de defesa pela recorrente/arguida e/ou por vício de falta de fundamentação.

*

Inexistem outras nulidades e não existem questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer e obste ao conhecimento do mérito da causa.

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III. Fundamentação de Facto.

Factos Provados.

Com interesse para a decisão da causa resultou provado que:

1. No dia 4 de julho de 2018, pela 12h05m, no empreendimento turístico de hotel, denominado BB, sito na Rua …, em …, e explorado pela recorrente AA, S.A., tinha falta de documentos;

2. Existia sujidade acumulada sob bancadas e equipamentos d difícil acesso;

3. Existia sujidade nas caleiras da rede de esgoto;

4. Existiam falhas ao nível do revestimento do pavimento, levando à acumulação de resíduos e de água de limpeza;

5. Os equipamentos de lava mãos encontravam-se obstruídos, por outros equipamentos o que inviabilizava o seu uso;

6. As chapas de grelha estavam em mau estado de conservação;

7. Na sala verificou-se a existência de uma zona inativa, na qual faltava limpeza, falta de arrumação e falta de organização do espaço;

8. Encontrava-se implementado nas instalações da sociedade recorrente, em particular na zona de preparação/manipulação de alimentos, o sistema de HACCP;

9. No âmbito do sistema HACCP, os serviços de formação e auditoria eram prestados à recorrente, desde 15.12.2016., pela CC;

10. Nas auditorias realizadas, em 2018, às instalações da sociedade recorrente, no âmbito do sistema HACCP, foi-lhe atribuída a pontuação de 83%;

11. Após a 04.07.2018. foram retiradas bancadas da zona de difícil acesso, tendo sido alterada a frequência da limpeza das restantes;

12. A cozinha tem várias grelhas de escoamento;

13. Em 04.07.20218., duas grelhas à volta da ilha central apesentavam dificuldades de escoamento;

14. Situação que foi resolvida na semana de 04.07.2018, mas após esta data;

15. Na intervenção realizada às caleiras ainda durante aquela semana, aproveitou a recorrente para introduzir alguns melhoramentos no seu interior, tendo aplicado inox nas grelhas;

16. Após 04.07.2018., mas ainda na respetiva semana, foram substituídos os módulos de cerâmica mais deteriorados e reparadas pequenas falhas no piso da cozinha;

17. Na intervenção realizada às caleiras ainda durante aquela semana, de 04.07.2028., a recorrente introduziu alguns melhoramentos no seu interior, tendo aplicado inox nas grelhas;

18. E foram reparadas pequenas falhas no piso da cozinha;

19. A recorrente remodelou totalmente a cozinha em 2020, sendo que iniciou os pedidos de orçamentos no ano de 2019 e a obra ficou concluída em 28.02.2020.;

20. Para o que investiu cerca de 60.000,00 euros;

21. Logo após 04.07.2018., o lava mãos foram desobstruídos;

22. Após 04.07.2018., a referida chapa de grelha foi forrada em inox por forma a servir como bancada, tendo sido objeto de intervenção aquando da remodelação da cozinha;

23. A referida zona inativa da sala era objeto de limpeza diária, pelas 14h00;

24. As operações de limpeza, quer da cozinha, quer dos espaços adjacentes e sala restaurante, onde não eram servidos almoços, ocorriam por volta das 14h00;

25. Logo após a ação inspetiva, foram retiradas as grelhas colocada uma chapa de inox, e uma placa a informar que se trata de uma zona inativa;

26. A tábua de preparação ou bancada foi retirada após 04.07.2018.;

27. Os frascos de álcool correspondentes aos não alimentares encontrados em 04.07.2028., destinavam-se a auxiliar a higienização de algumas bancadas no decorrer de operações de manutenção extraordinária

28. Da omissão da recorrente não resultou concreta afetação para a segurança e saúde dos seus clientes consumidores da área da restauração;

29. A recorrente emprega de dez a cinquenta trabalhadores;

30. Passou pelas restrições e limitações da sua atividade impostas pelos períodos dos Estados de Emergência devido à Pandemia Covid-19, em 2020 e 2021;

31. Tendo sofrido uma diminuição de taxa de ocupação que se repercutiu na redução da faturação na ordem dos 49,90%;

32. Recorreu ao Lay-off simplificado;

33. Foi-lhe diferida a candidatura à Medida de Incentivo Extraordinário à Normalização da Atividade Empresarial;

34. Em novembro de 2020 e março de 2021, recorreu ao Apoio Extraordinário à Retoma Progressiva de Atividade;

35. A atividade do referido hotel é sazonal.

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Factos Não Provados.

Com interesse para a decisão da causa, nomeadamente que venha narrado na decisão administrativa, nenhum facto resultou não provado.

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Motivação.

Os factos provados decorreram do depoimento da Sra. Inspetora da ASAE, DD, que foi quem chefiou a ação inspetiva à cozinha e restaurante do referido hotel e fotografias juntas com a decisão administrativa. Esta testemunha foi credível por que presenciou os factos e foi imparcial porquanto atuou no exercício das suas mencionadas funções profissionais. A testemunha relatou os factos constantes de 1. a 7. da factualidade dada como provada.

Também se teve em consideração o depoimento do Diretor do hotel, EE, e as fotografias juntas com o recurso de contraordenação. A testemunha relatou os factos constantes de 8. a 35. da factualidade dada como provada. A testemunha apresentou-se imparcial na medida em que admitiu que tudo o que não estava em conformidade com a inspeção foi reparada após 04.07.2018.

Mais, se tiveram em conta os documentos juntos com o recurso os quais foram confirmados por EE e pela testemunha, FF, que tem conhecimento direto dos factos correspondentes ao conteúdo da documentação emitida pela empresa CC que é a prestadora de serviços de auditoria em higiene alimentar da arguida/recorrente.

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IV. Fundamentação de Direito.

A recorrente vem condenada na coima única de 9.000,00 euros (nove mil euros), em cúmulo das coimas parcelares, pelas seguintes infrações:

- Incumprimento dos requisitos gerais de higiene, à qual corresponde o pagamento de uma coima de 8.5000,00 euros,

- Falta de Documentos que evidenciam o cumprimento dos processos de controlo baseados nos princípios do HACCP, à qual corresponde o pagamento de uma coima de 500,00 euros.

É o que consta da parte da decisão administrativa condenatória sob o título “VI- Decisão”, nada se referindo quanto ao enquadramento jurídico concretamente aplicado, como devia a ASAE ter escrito no dispositivo.

A autoridade administrativa limita-se, no dispositivo da decisão, a enquadra juridicamente a condenação comos artigos previstos no Regime Geral de Contraordenações e Coimas, sem fazer qualquer alusão às disposições normativas que preveem as contraordenações em causa e a que punem a prática da recorrente pelas mesmas.

No título “IV- Fundamentação da Matéria de Facto e de Direito” a autoridade administrativa faz referência à prática das seguintes contraordenações:

- Incumprimento dos requisitos gerais de higiene, prevista no artigo 124.º, n.º 1, al. a) do RJACRS, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16.01. em conjugação com os artigos 3.º e 4.º, n.º 2 e Anexo II (Cap. I, V e IX), todos do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, e punível pela al. b) do n.º 2 do artigo 143.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 124º, ambos do referido diploma, com coima mínima de 8.200,00 e máxima de 16.000,00, por se tratar de pequena empresa;

- Falta de documentos que evidenciem o cumprimento dos processos de controlo baseados nos princípios do HACCP, prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, e punível pela alínea c) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-lei n.º 113/2006, de 12 de junho, com coima mínima de 500,00 e máxima de 44.890,00, por se tratar de pessoa coletiva.

Ora e desde logo, não se mostra verificado o elemento objetivo desta última referida contraordenação insuficiência de factos provados, aliás, desde logo não descritos na decisão final da ASAE.

Na verdade, apenas se provou a existência de falta de documentos.

Escrever-se que tal falta de documentos evidencia o cumprimento dos processos de controlo baseados nos princípios do HACCP é meramente conclusivo desprovido de factualidade concreta designadamente de que documentação se tratava e se não foi exibida pela arguida/recorrente no momento da ação inspetiva aos Inspetores da ASAE.

Também, não se verifica o elemento subjetivo desta contraordenação em face da ausência de factos que conduza à conclusão de que a arguida/recorrente agiu com violação os deveres de cuidado ou com conhecimento e vontade de praticar a infração em apreço.

Pelo que, deve a recorrente/arguida ser absolvida da prática da infração prevista e punida pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, e pela alínea c) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-lei n.º 113/2006, de 12 de junho.

No que tange à outra contraordenação, por incumprimento dos requisitos gerais de higiene, não está preenchido o respetivo elemento subjetivo do tipo dada a ausência dos factos sobre a conduta negligente ou dolosa da arguida/recorrente.

Termos em que, deve, igualmente, ser a arguida/recorrente absolvida da prática da contraordenação p. e p. artigo 124.º, n.º 1, al. a) do RJACRS, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16.01. em conjugação com os artigos 3.º e 4.º, n.º 2 e Anexo II (Cap. I, V e IX), todos do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, e pela al. b) do n.º 2 do artigo 143.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 124º, ambos do referido diploma.

Em virtude de a arguida/recorrente ir absolvida da prática das sobreditas contraordenações, não há lugar à determinação concreta da coima a aplicar.

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V. Decisão

Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso interposto por AA, S.A., declarando nula a decisão final condenatória proferida pela autoridade administrativa, a ASAE, e decide-se absolver a recorrente/arguida da prática das contraordenações p. e p. nos artigos artigo 124.º, n.º 1, al. a) do RJACRS, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16.01. em conjugação com os artigos 3.º e 4.º, n.º 2 e Anexo II (Cap. I, V e IX), todos do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, e punível pela al. b) do n.º 2 do artigo 143.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 124º; e artigo 124.º, n.º 1, al. a) do RJACRS, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16.01. em conjugação com os artigos 3.º e 4.º, n.º 2 e Anexo II (Cap. I, V e IX), todos do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, e pela al. b) do n.º 2 do artigo 143.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 124º, ambos do referido diploma. Sem custas.»

3. Conhecendo dos fundamentos do recurso

O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância relativas a processos de contraordenação, consta dos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC). Daí decorre que nos processos de contraordenação o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, § 1.º e 74.º, § 4.º do RGC, e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito, podendo alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo tribunal.

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, que delimitam o seu âmbito, verifica-se haver duas questões a conhecer: i. Se a sentença recorrida contraria o decidido no anterior acórdão deste Tribunal da Relação, que revogou a sentença anterior; ii. Se, no mais, a sentença recorrida se deverá manter.

3.1 Da violação das regras de competência funcional

Importa começar por verificar se a sentença recorrida contraria a decisão do anterior acórdão deste Tribunal da Relação, conforme assinala o recorrente. Na primeira sentença proferida pelo tribunal recorrido considerou-se que a decisão administrativa não continha factos relativos ao elemento subjetivo do tipo contraordenacional e também padecia de vício de falta de fundamentação, por ausência de indicação dos fundamentos factuais e jurídicos determinantes da fixação da coima, em consequência do que declarou nula tal decisão.

No recurso dela interposto pelo Ministério Público, este Tribunal da Relação de Évora, concedendo-lhe provimento, revogou-a, determinando que contrariamente ao que ali se decidira, não se verificavam os fundamentos da assinalada nulidade da decisão administrativa impugnada. Na sequência desse acórdão o tribunal de 1.ª instância tinha de proferir nova sentença, acomodando a decisão deste Tribunal da Relação quanto à questão de a decisão administrativa conter os elementos factuais necessários e suficientes para a aferição de todos os elementos objetivos e subjetivos dos ilícitos imputados (foi essa parte da sentença respeitante aos elementos subjetivos - que foi expressamente revogada). Ao invés disso, depois de baixarem os autos, o tribunal de 1.ª instância na nova sentença (ora sob recurso), reiterou toda a argumentação anterior e, com esse fundamento, decidiu: «conceder provimento ao recurso interposto por AA, S.A., declarando nula a decisão final condenatória proferida pela autoridade administrativa, a ASAE» (como refere o dispositivo). Nas considerações subsequentes, relativamente às questões suscitadas por este primeiro segmento da sentença recorrida, seguimos de perto a Decisão Sumária deste Tribunal da Relação, proferida no dia 7abr2022, no proc. 305/21.7T9STR.E2 (1), com a qual concordamos integralmente.

A Constituição da República e as leis de organização judicial estabelecem que os tribunais se organizam segundo uma estrutura hierarquizada, sendo a mesma integrada por tribunais de 1.ª Instância, de 2.ª Instância (os tribunais da Relação) e pelo Supremo Tribunal de Justiça (2). Mais daí decorrendo que «os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores». (3) A decisão de tribunal superior vincula o tribunal hierarquicamente inferior, impendendo sobre o(s) seu(s) titular(es) o dever de acatar e de cumprir essa decisão. Esta estruturação hierárquica mostra-se essencial ao funcionamento harmónico do sistema judicial, de molde a, entre o mais, assegurar o direito ao recurso (artigo 32.º, § 1.º da Constituição). Daí que se um tribunal de 1.ª instância desobedece a uma decisão de um Tribunal da Relação, proferida no mesmo processo, em sede de recurso de primitiva decisão revogada, como é notoriamente o caso dos autos, tal desobediência afronta não apenas o acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação, mas também a própria Constituição da República, as leis de organização judicial e o Estatuto dos Magistrados Judiciais (4).

Do mesmo passo vulnerando a garantia fundamental do processo equitativo (5) e se compromete a realização da justiça talqualmente estabelece e preconiza a lei. A sentença recorrida estrutura-se em dois vetores, bem identificados: um deles fundado nos vícios formais apontados à decisão administrativa impugnada; alicerçando-se o outro no mérito das questões de fundo, decorrentes da alteração do quadro factológico, em sequência da prova produzida na audiência. No concernente àquele primeiro vetor a sentença recorrida mostra-se frontalmente contrária ao que foi decidido no acórdão anteriormente proferido nos presentes nestes autos, no âmbito de recurso interposto pelo Ministério Público, padecendo por isso de nulidade insanável por violação das regras da competência hierárquica do tribunal, tipificada no artigo 119.°, al. e) do CPP (6), aplicável ex vi dos artigos 41.º, § 1.º e 74.º, § 4.º do Regime Geral das Contraordenações (7) (RGC). Daqui decorrendo a invalidade da sentença recorrida, em conformidade com o preceituado no artigo 122.º, § 1.º CPP (ex vi artigos 41.º, § 1.º e 74.º, § 4.º RGC), o que determinaria a baixa dos autos ao tribunal de 1.º instância para ser proferida nova sentença com integral respeito da anterior decisão deste Tribunal da Relação.

Sucede, porém, que ao contrário do que sucedeu na 1.ª sentença (revogada por este Tribunal da Relação), que se cingia às questões formais concernentes à decisão administrativa; a sentença ora sob recurso alicerça-se também (sendo este o segundo vetor a que atrás nos referimos) em questões substantivas, decorrentes da produção de prova realizada na audiência realizada a 13/7/2021, por via do que se alterou o quadro fáctico provindo da fase administrativa (artigos 65.º e 66.º RGC). Daí que os efeitos que se produziriam com a baixa dos autos à 1.ª instância, em consequência da assinalada invalidade da decisão recorrida, mostram-se já realizados, na medida em que a sentença ora sob recurso se pronunciou (se pronunciou-se também) sobre as questões materiais de fundo.

3.2 Do mérito do recurso

Conforme se deixou dito, a sentença recorrida integra também decisão sobre as questões substantivas emergentes da valoração da prova produzida na audiência (realizada a 13/7/2021), por via do que se alterou o quadro fáctico proveniente da fase administrativa do processo (artigos 65.º, 66.º e 72.º, § 2.º RGC). Foi na base deste novo quadro factológico que se fez (que se fez também) um juízo de mérito relativamente aos pressupostos de facto e de direito concernentes aos elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícito em referência (correspetivos às coimas aplicadas à arguida pela autoridade administrativa). Mas sobre isto o recorrente refere apenas (na motivação de recurso) que: «quanto à decisão referente à contraordenação por falta de documentos que evidenciem o cumprimento dos processos de controlo baseados nos princípios do HACCP (...) concordamos com a absolvição, porque da decisão da Autoridade Administrativa não se retira que tipo de documentos se encontravam em falta, sendo sabido que, no ramo da hotelaria, é necessária muita documentação, pelo que, não se concretizando aquela que, efetivamente, se encontrava em falta, terá de se considerar como faltando um dos elementos objetivos e, como tal, decidir-se pela absolvição»! Isto é, o recorrente manifestou aceitar sem reserva as alterações feitas ao quadro factológico provindo da decisão administrativa, decorrente da prova produzida em audiência, relativamente aos elementos constitutivos de um dos ilícitos. Mas relativamente ao outro nada diz, cingindo-se à matéria das questões formais! Ora, esta segunda parte da sentença, que designámos de «segundo vetor» apresenta-se estruturada em «III. Fundamentação de Facto» (onde se fixa o quadro fáctico de referência) e nos quatro parágrafos que antecedem o dispositivo da sentença recorrida. E depois também, no dispositivo, na parte sequente à conjunção copulativa «e», dizendo-se que: «decide-se absolver a recorrente/arguida da prática das contraordenações (…)», em óbvia referência ao mérito da causa. A motivação de facto e de direito da sentença torna claro o que turvo ainda pudesse parecer, sendo compreensível o percurso lógico seguido pelo tribunal recorrido, pelo que se não vislumbra razão justificativa para alterar esta parte da decisão (que aliás não vem reclamada).

Termos em que apesar da nulidade assinalada (cingida ao crismado «primeiro vetor»), por elementares razões de economia processual, se deverá confirmar a sentença recorrida (na parte correspondente ao segundo assinalado vetor).

5. Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:

a) declarar a nulidade da sentença na parte em que ilegalmente reitera o teor de sentença anteriormente revogada por este Tribunal da Relação (concernente a questões formais da decisão administrativa impugnada);

b) Confirmando no demais a sentença recorrida.

b) Sem custas (artigos 522.º, § 1.º CPP e 94.º, § 4.º RGC).

Évora, 18 de abril de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 Proferida pela Desemb. Maria Clara Figueiredo (que no presente acórdão é adjunta).

2 Cf. artigo 210.º da Constituição e artigos 31.º, 32.º e 33.º da Lei Organização Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ).

3 Artigos 4.º, § 1.º e 42.º da LOSJ e 4.º, § 1.º do Estatuto do Magistrados Judiciais.

4 Sendo concretamente vulnerado o estabelecido nos artigos 20.º, § 1.º, 4.º e 5.º, 32.º, § 1.º, 202.º, § 2.º, 205.º, § 2.º, 209.º, § 1.º, al. a) e e 210.º, § 2.º e 4.º da Constituição e nos artigos 2.º, § 1.º, 4.º § 1.º e 42.º da LOSJ e 4.º, § 1.º do Estatuto do Magistrados Judiciais.

5 Artigos 20.º, § 4.º da Constituição da República; 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem).

6 Neste sentido se pronunciou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 28nov2017, Cons. Pereira Madeira; bem assim como os acórdãos do TRPorto, de 30out2014, Desemb. Carlos Portela; e de 18mar2009 mencionado e transcrito no acórdão de 30out2014 acima referido.

7 Decreto-Lei n.º 433/83, de 27 de outubro.