Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
49/15.9GDEVR.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: DESISTÊNCIA DA QUEIXA
MANDATÁRIO JUDICIAL
PODERES ESPECIAIS
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: A queixa (ou desistência correspectiva) pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais». De onde se retira que o mandatáro judicial do titular do direito não necessita de dispor de poderes especiais, só o mandatário não judicial, regime que se entende pois que o mandato judicial está revestido de maiores cautelas individuais e institucionais.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 49/15.9GDEVR.E1

Relatório:

Nestes autos de processo comum perante tribunal singular supra numerado que corre termos no Tribunal Judicial de Évora – Juízo 2 - por despacho lavrado em acta de leitura de sentença de 14 de Dezembro de 2017, a Mmª. Juíza não homologou a desistência de queixa que teria sido apresentada pelo assistente e prosseguiu para a leitura da sentença condenatória.

É arguido BB, (…), a quem foi imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153.°, do Código Penal.

De sua banda o assistente CC acusação particular contra o arguido imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181.°, do Código Penal.

Deduziu igualmente pedido de indemnização civil contra o arguido com fundamento nos factos vertidos nas acusações pública e particular, peticionando a condenação daquele no pagamento da quantia de 1.500 € a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da notificação do pedido ao arguido e até efectivo e integral pagamento.


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Por sentença de 14-12-2017 o tribunal recorrido julgou procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e a acusação particular e, consequentemente:

A) Condenou o arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.°, do Código Penal, numa pena de 4 (quatro) meses de prisão.

B) Condenou o arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.°, do Código Penal, numa pena de 2 (dois) meses de prisão.

C) Em cúmulo jurídico das penas referidas em A) e B), condeno o arguido BB numa pena única de 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, subordinada a regime de prova.

D) Condenou o arguido BB no pagamento das custas processuais criminais, fixando-se a taxa de justiça em duas unidades de conta.


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Inconformado com aquela decisão dela interpôs recurso o arguido, suscitando as seguintes questões:

§ - se há desistência de queixa – conclusões A a H;

§ - se há valoração de prova proibida (sistema “alta voz”) – conclusões I a K;

§ - se é proporcional a opção pela pena de prisão – conclusões L a N.


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O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu secundando o decidido.

Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

Cumpre conhecer.

1) - A ponderação de valores efectivada pelo legislador entre a área de actuação do interesse público ou o reconhecimento da individualidade do cidadão para gerir os seus interesses de acordo com o seu próprio juízo conduziu à consagração de crimes de três diferentes naturezas: particular, semi-pública e pública.

Essa vontade legislativa é expressa de três formas consabidas e, como já afirmámos no acórdão desta Relação de 20-11-2012 (proc. 1.831/10.9TAPTM.E1 na proposição 4), «A diversa natureza dos crimes na nossa ordem penal é uma forma de o legislador regular e equilibrar interesses e bens jurídicos sem recorrer ao princípio da oportunidade … ». Daí que a interpretação dos tipos penais e dos institutos que com eles se relacionam, aqui o da legitimidade para prosseguir a acção penal, deva ser realizada cautelosamente no intuito de obter a real vontade dos intervenientes no processo, evitando excessos de formalismo e radicais interpretações da real vontade expressa numa declaração, mesmo que ela não tenha troante significado.

Em boa verdade o direito penal e o direito processual penal, fora da área de intenso interesse público na tutela de bens jurídicos, são meros instrumentos que permitem alcançar uma vivência em sociedade que se pretende apaziguada após cada conflito entre os seus membros. Se não isso, ao menos que se evite sejam instrumentos de acirramento entre cidadãos e o perpetuar de relações de conflito. Se um conflito se mostra apaziguado só faz sentido interpretar as normas tendo esse princípio em mente.

Mas não o princípio in dubio pro reo, como pretende o arguido. Esse serve em exclusivo como instrumento corrector da apreciação da prova em caso de dúvida do julgador. Aqui exige-se mais uma interpretação «in neutram partem» («nem para o bem nem para o mal») da real vontade das “partes”.

Que é lícito fazer interpretação da vontade do declarante, aqui assistente, na definição da natureza da sua declaração é insofismável. Que com essa suposta interpretação se altere a vontade do declarante para se atingir objectivo que ele declara pretender não seja atingido é que não é aceitável.


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Queixa, é consabido, “… é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (Prof. Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime – Aequitas, Editorial Notícias, 1993, & 1063, pag. 665).

Naturalmente que o inverso segue o mesmo regime. Isto é, a desistência de queixa segue o mesmíssimo regime formal e de interpretação linguística da queixa, com a vantagem de poder ser expressa a todo o tempo e apenas ter como limite temporal a data da leitura da sentença em 1ª instância – artigo 116º, nº 2 do C.P..


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2) – Pelos intervenientes, assistente e arguido, foi junto aos autos requerimento antes da audiência em que se procedeu à leitura da sentença. Aí o assistente, titular do direito de queixa (e seu mandatário), bem como o arguido (e seu defensor nomeado), subscreveram documento em que declararam ter transacionado quanto ao pedido cível e pediram a homologação da desistência da queixa, da seguinte forma:

«(…) relativamente ao objecto dos presentes autos transaccionar nos termos das cláusulas seguintes que reciprocamente aceitam:

1ª)…

2ª)…

3ª)…

Nestes termos, requerem a V.Exa. se digne homologar a desistência de queixa, por ser válida juridico-penalmente eficaz e em consequência se declare extinto o procedimento criminal, e relativamente ao acordado quanto ao pedido cível formulado se digne homologar por sentença a transacção efectuada, condenando as partes a cumpri-la nos seus precisos termos.»

E, é certo, o tribunal recorrido aceitou a transacção quanto à parte civil da dissensão apenas discordando de que a vontade dos intercveniesntes estivesse bem expressa quanto à parte crime. Ou seja, aceitou que o documento tivesse sido assinado por assistente e arguido e não pôs em dúvida nenhuma das quatro assinaturas apostas. O que quer significar a existência dos requisitos formal, temporal e substancial das pretensões apresentadas, falhando em seu entender a vontade expressa quanto à desistência da queixa-crime.

Convém ter bem presente que não há qualquer forma sacrossanta de apresentar uma queixa ou a sua correspectiva figura, a desistência da queixa. Recordemos o Prof. Figueiredo Dias quando afirmava (ob. citada, pag. 675): «No que toca à forma da queixa, tanto o Código Penal como o Código de Processo Penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona».

Sendo a desistência de queixa uma expressão de vontade do titular do direito, será essa vontade que se impõe saber se está minimamente expressa e não apurar se foi usada uma frase que corresponda àquilo que seria de esperar de uma “desistência de queixa”, expressa em termos inequívocos na motivação do requerimento a terminar em pedido formal do mesmo jaez.

Parece-nos evidente que dimana com suficiente clareza que os intervenientes pretendem duas coisas: que se homologue a transacção quanto ao objecto civil do dissídio; que se homologue a desistência da queixa-crime.

Aliás, o requerimento é nisso expresso quando no pedido «requerem a V.Exa. se digne homologar a desistência de queixa», sendo que a circunstância de antes disso – na motivação requerimental - não haver uma “declaração” de que o assisntente desiste da queixa não é impeditiva de se lhe atribuir relevância jurídica por ser clara a intenção.

Aliás, a prévia transacção quanto ao objecto civil do litígio é disso indubitável sinal pois que ela só faz sentido como contrapartida da desistência da parte crime.

De notar também que estamos em sede de apuramento da vontade de um declarante sem forma legal, declaração que é recipienda sob a forma prevista no artigo 51º, n. 3 do C.P.P.. E recipienda da forma mais favorável à desistência pois que do silêncio do beneficiado (arguido) se presume a validade da desistência da queixa.

E o requerimento apresentado continha ambas as declarações através da sua subscrição por assistente e arguido. E no despacho do tribunal recorrido pode surpreender-se a ideia de que a declaração de aceitação do arguido é aceite como existente. Ora, estando pedida a homologação da desistência da queixa a assinatura do arguido nesse documento só faz sentido como aceitação dessa mesma desistência.

Há, pois, desistência da queixa expressa de forma suficientemente clara e que é confirmada pela envolvência supra referida. Assim como existe a sua aceitação.

Mas mais!

3) - Tal queixa (ou desistência correspectiva) pode ser apresentada pelo próprio mas aqui impõe-se recordar que três são as hipóteses colocadas pelo legislador quanto à capacidade declarativa.

De facto, dispõe o nº 3 do artigo 49º do C.P.P. que “A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais». São, portanto, três as hipóteses: o titular do direito, o seu mandatário judicial e um mandatário com poderes especiais. De onde se retira que o mandatáro judicial do titular do direito não necessita de dispor de poderes especiais, só o mandatário não judicial, regime que se entende pois que o mandato judicial está revestido de maiores cautelas individuais e institucionais.

Daí que o despacho lavrado em acta de audiência a fls. 186 – que não homologou a desistência de queixa – assente em equívoco nos fundamentos formais quando afirma que a vontade do titular do direito de queixa não estava presente nem se fazia representar com mandatário com poderes especiais. Não necessitava nem de uma coisa, nem de outra já que se fazia representar por mandatário judicial que podia, na audiência, formalizar e/ou confirmar a desistência.

Assim, dois são os momentos em que houve declaração expressa de desistência de queixa. Um no requerimento junto aos autos antes da audiência em que se procedeu à leitura da sentença. Outro em audiência e antes da leitura da sentença.

Desta forma, mesmo que se não considerasse válida a desistência de queixa apresentada pelo requerimento junto aos autos antes da audiência de julgamento, em acta dever-se-ia ter considerado que aquela desistência estava – no momento – a ser confirmada ou afirmada pelo mandatário judicial do assistente, do titular do direito de queixa. E impor-se-ia, então, dar cumprimento ao disposto no artigo 51º, n. 3 do C.P.P..

Mas tal não seria necessária apenas na medida em que o requerimento apresentado continha uma válida expressão da vontade de desistir da queixa apresentada e sua aceitação pelo arguido.

Desistência que deveria ter sido homologada com os seus consequentes efeitos. Por isso que, a partir desse momento, faltasse ao Ministério Público legitimidade para prosseguir a acção penal tendo presente a natureza dos crimes imputados e que os actos posteriores praticados pelo tribunal fiquem absolutamente afectados pelo regime de extensão – “efeito à distância” - do acto nulo.

Destarte o recurso procede na totalidade com a revogação, por nulidade, do despacho lavrado em acta e que não homologou a desistência de queixa, nulidade que inquina a totalidade dos actos posteriormente praticados.


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Dispositivo:

Em face do exposto decide-se conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência:

- declara-se nulo o despacho que não homologou a desistência de queixa;

- declara-se validamente expressa a desistência de queixa, que vai homologada;

- declara-se a nulidade dos actos posteriores, nestes se incluindo a sentença condenatória lavrada.

Notifique. Sem custas.

Évora, 08-05-2018

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa