Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
103/14.4T9LLE.E1
Relator: JOSÉ PROENÇA DA COSTA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – A ilicitude do crime de abuso de confiança contra a segurança social está restringida ao incumprimento de um dever - o dever de entregar as prestações contributivas deduzidas pelas entidades empregadoras ao valor das remunerações pagas aos trabalhadores.
II – O referido crime consuma-se quando deduzido o valor das remunerações devidas aos trabalhadores sem a correspondente entrega (total ou parcial), dolosa, às instituições de segurança social, cujo momento corresponde ao termo do prazo legal para cumprimento, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do RGIT.
III – A apropriação das prestações contributivas não é elemento objectivo do tipo, optando o legislador por punir a mera não entrega das prestações contributivas independentemente da prova de que tais valores foram efetivamente apropriados pelo agente.
IV – A obrigação de pagamento dos salários aos trabalhadores da empresa é hierarquicamente inferior ao dever legal de entregar à Segurança Social a contribuição descontada no salário dos mesmos trabalhadores, a qual visa satisfazer bens coletivos essenciais á existência e funcionamento do Estado Social de Direito (art.ºs 1º e 63º CRP).
V – O pagamento dos salários aos trabalhadores da empresa não constitui causa de exclusão da culpa nem da ilicitude quanto ao crime de abuso de confiança á Segurança Social.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 103/14.4T9LLE.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos Autos de Processo Comum Singular, com o n.º 103/14.4T9LLE, a correrem termos pela Comarca de Faro - Secção Criminal - Juiz 3, foram Pronunciados os arguidos:
1. BB, Lda., com sede em Avenida …, em Quarteira;
2. CC, filho de …, residente na Rua …, Porto;
Imputando-lhes a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, 7.º, n.ºs 1 e 3, 107.º, e 105.º, n.ºs 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, e ainda do artigo 30.º, n.º 2, e 79.º, do Código Penal.

Os arguidos não apresentaram contestação nem arrolaram testemunhas.

Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, vindo-se, no seu seguimento, prolatar pertinente Sentença, onde se Decidiu:
a) Condenar a arguida BB, Lda., pela prática, sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos art.ºs 107.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias e ainda pelo art.º 30.º, n.º 2, do Cód. Penal, numa pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 5, 00 Euros;
b) Condenar o arguido CC pela prática, sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos arts. 107.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias e ainda pelo art.º 30.º, n.º 2, do Cód. Penal, numa pena de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de 5, 50 Euros.

Inconformada com o assim decidido traz a arguida BB, Lda., o presente recurso onde formula as seguintes conclusões:
1 - A arguida foi condenada pela prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, na pena de multa 160 dias à taxa diária de 5,00 €, p.p. pelos artigos 107º nº 1 e 105º nº 1, ambos do RGIT.
2 - A conduta típica do nº 1 do art. 105º do RGIT, reconduz-se agora à não entrega à administração tributária, no prazo legalmente previsto, de prestação tributária deduzida, o certo é que a "apropriação", pese embora tenha sido eliminada do texto da lei, está nele implícita, pelo que continua a fazer parte do tipo legal do crime de abuso de confiança.
3 - A arguida não se apropriou da prestação tributária, nem a utilizou em benefício próprio.
4 - A sentença ora recorrida não precisou o modo de aferição do elemento volitivo, não se sabendo de onde pode assacar o grau de culpa da arguida, o qual, a ser assim, ex vi o princípio constitucional do in dúbio pro reu, teria atuado com base numa mera negligencia e, daí, desembocando a situação em mérito numa mera contra ordenação fiscal, p. e p, pelo artigo 114.º, do RGITA.
5 - Não resultou prova produzida, nem sequer meros indícios da sua utilização em benefício próprio.
6 - O crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, é necessário que o agente tenha representado a violação da relação de confiança que consiste no dever de entregar a prestação tributária deduzida e não a queira entregar.
7 - A arguida não criou voluntariamente a situação de não entrega das prestações tributárias, mas sim as condições de mercado que ao provocarem quebra nos proventos da sociedade arguida, aquele teve a necessidade de afetar os recursos para a sobrevivência da empresa e postos de trabalho, criando-se um verdadeiro direito de necessidade.
8- A acusação omite qualquer fundamento relevante que corporize substantivamente os pressupostos vertidos no artigo 24º da LGT.
9 - Os elementos subjetivos e objetivos tipificados no dito preceito legal não se encontram preenchidos.
Termos em que e nos melhores de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a Douta Sentença, e por conseguinte, a arguida absolvida, tudo com as legais consequências.

Respondeu ao recurso o Magistrado do Ministério Público, Dizendo:
1. A primeira questão a decidir no presente recurso é saber houve uma incorrecta interpretação, por parte do Tribunal a quo dos elementos objectivos e subjectivos do tipo plasmado nos artigos 107º nº 1 e 105º nº 1 do RGIT, uma vez que a afectação das quantias destinadas à segurança social foi feita para pagamento de salários dos trabalhadores, havendo um direito de necessidade e conflito de deveres, o que excluiria a ilicitude da conduta da recorrente.
2. Sendo certo que o dolo consiste no conhecimento e vontade de realização dos elementos do tipo incriminador imputado, pela acusação ao arguido, dúvidas não restam que o arguido CC, enquanto legal representante da recorrente, sabia que tinha de entregar as cotizações à Segurança Social, e que em representação da recorrente, tomou livremente a decisão de as não entregar e as canalizar para outros fins – pagamento de salários e a outros credores -, quando podia e devia ter canalizado esses montantes para a Segurança Social, uma vez que em relação às cotizações devidas à Segurança Social, tratava-se de um mero depositário dessas quantias.
3. Portanto, a recorrente, representada legalmente pelo arguido não recorrente, actuou com dolo.
4. Embora a recorrente tenha afecto as cotizações que deduziu dos salários que pagou aos trabalhadores, a outros fins, como o pagamento de salários a trabalhadores e a outros credores, o mesmo apropriou-se contabilisticamente desses valores e omitindo a sua entrega, porquanto é um mero depositário de quantias pertencentes contabilisticamente à Segurança Social, incorreu, efectivamente, no crime de abuso de confiança contra a segurança social;
5. Uma vez que no momento do pagamento dos salários aos trabalhadores, tal montante, do qual são deduzidas as cotizações devidas à segurança social, tal capital deixa de pertencer à recorrente e sendo capital alheio não o pode canalizar para outros fins, pelo que ao fazê-lo está a inverter o título de posse, e portanto, não agiu sob os auspícios de causas de exclusão da ilicitude como as previstas nos artigos 36º, 34 e 35º do Código Penal.
Termos em que não deve ser dado provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a douta sentença a quo.

Nesta Instância, a Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu entendimento no sentido de o recurso não merecer provimento.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Factos Provados:
1. BB, Lda. é uma sociedade comercial por quotas, com sede em Avenida …, em Quarteira, que tem por objecto a formação profissional, recursos e serviços pessoais à comunidade, e prestação de serviços informáticos.
2. Desde a constituição da sociedade, foi o arguido CC quem exerceu a gerência efectiva daquela sociedade, administrando-a em nome e no interesse da mesma, e decidindo da afectação dos meios financeiros da empresa, designadamente no respeitante aos pagamentos a fornecedores e trabalhadores, bem como ao cumprimento das obrigações tributárias e relativas à Segurança Social.
3. Durante aquele período, a sociedade arguida, através do seu gerente, procedeu ao desconto, no salário dos seus trabalhadores, das cotizações devidas à Segurança Social, entregando as respectivas declarações.
4. Contudo, nos meses de Junho a Dezembro de 2010, e Março de 201 1 a Maio de 2012, os arguidos decidiram não entregar à Segurança Social as cotizações em causa, que montavam nos seguintes valores:
Cotizações Retidas e Não Entregues
(…)

TOTAL 10.836,95 €.
5. Estes valores não foram entregues no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes, e continuam em dívida à presente data.
6. Apesar de os arguidos terem sido notificados, a 2 e a 4 de Outubro de 2013, respectivamente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.º 2, e 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, para em 30 dias procederem ao pagamento das quantias em dívida acrescidas de juros de mora e da respectiva coima.
7. Os arguidos agiram livre, voluntária, e conscientemente, actuando o arguido CC em nome e no interesse da sociedade de que era legal representante, e bem assim no seu próprio interesse, com o propósito conseguido de não entregarem à Segurança Social os valores que havia descontado nas remunerações dos trabalhadores, a título de cotizações para a Segurança Social.
8. Bem sabiam que aqueles valores não pertenciam à sociedade, mas à Segurança Social, e que estavam obrigados a entregá-los por força das disposições aplicáveis, sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9. Actuaram de forma essencialmente homogénea, renovando a resolução criminosa sempre que a ocasião se proporcionou, num contexto de dificuldades económicas da sociedade e de inércia por parte das entidades fiscalizadoras.

Mais se provou que:
10. O arguido CC confessou parcialmente os factos, designadamente a omitida entrega das cotizações devidas à Segurança Social, nos períodos acima indicados.
11. Tal factualidade foi praticada pelos arguidos, num contexto de ruptura financeira da sociedade arguida, para a qual contribuiu o corte dos financiamentos ao grupo empresarial no qual a mesma estava inserida.
12. Entre 29.06.2016 e 8.08.2017, no âmbito de execução fiscal instaurada para cobrança das cotizações acima descritas, a Segurança Social penhorou uma conta bancária titulada pelo arguido CC.
13. No entanto, os valores das cotizações em análise não se mostram, ainda, pagos.
14. O arguido vive em união de facto com a sua companheira em casa própria desta.
15. Recebe, de reforma, a quantia de € 900, 00.
16. Tem filhos já maiores de idade, sendo um deles ainda dependente financeiramente do arguido.
17. Como habilitações literárias, tem a frequência do 3.º ano do Ensino Universitário.
18. A sociedade arguida não regista antecedentes criminais.
(…)
Factos não Provados:
Da discussão da causa não resultaram factos não provados.

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
(…)


Como consabido, são as conclusões retiradas pelos recorrentes da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Face ao modo como se mostram formuladas as conclusões retiradas pela recorrente da sua motivação, importa descortinar se pode, ou não, subsistir a sua condenação nos moldes patenteados na Sentença revidenda – prática, sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos art.ºs 107.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias e ainda pelo art.º 30.º, n.º 2, do Cód. Penal.
O art.º 107.º, do RGTI trata do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Dizendo-se no seu n.º 1 que as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º.
E no seu n.º 2 que é aplicável o disposto nos n.os 4 e 7 do artigo 105.º
Desde logo se dirá que se trata de um crime próprio ou específico das entidades empregadoras. Como decorre do seu n.º 1.
Crime que tem por objecto necessário as contribuições para a segurança social deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores ou dos membros dos órgãos sociais, excluindo todas as demais- designadamente as da responsabilidade da própria entidade empregadora.[1]
Tutelando-se com o crime em apreço o património tributário do Estado, sancionando-se criminalmente o incumprimento do dever de entrega de prestação tributária que o agente detém por força dos deveres de colaboração impostos pelas leis fiscais, com base numa relação de confiança; daí ser de caracterizar como crime de dano.
Porquanto se pretende assegurar a recepção atempada das prestações parafiscais e, consequentemente, garantir a suficiência das receitas do Estado para a realização de uma diversidade de tarefas de interesse coletivo que lhe estão cometidas no sentido da elevação dos níveis de bem-estar social, como incumbência do Estado, no seguimento do que se diz na Lei Fundamental, no seu art.º 63.º, n.º 2.[2]
Crime em que a ilicitude está restringida ao incumprimento de um dever - o dever de entregar as prestações contributivas deduzidas pelas entidades empregadoras ao valor das remunerações pagas aos trabalhadores., daí tratar-se de um crime de omissão pura.
Detendo a entidade empregadora tais prestações contributivas, na qualidade de depositário, possuindo-as e detendo-as licitamente, se bem que a título precário e temporário. Com a sua não entrega ao Estado, o agente altera o título da posse ou detenção, passando a dispor da coisa, como se a mesma estivesse sob seu domínio, na sua disponibilidade.
Consumando-se o crime quando deduzido o valor das remunerações devidas aos trabalhadores sem a correspondente entrega (total ou parcial), dolosa, às instituições de segurança social, cujo momento corresponde ao termo do prazo legal para cumprimento, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do RGIT.[3]
Importa descortinar se no crime em presença a apropriação faz, ou não, parte do tipo legal de crime.
Na óptica da aqui impetrante a apropriação das prestações contributivas faz parte do tipo e não se tendo apropriado das mesmas e sendo distinta da não entrega, não se mostra verificado um dos elementos objectivos do tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Como se vem entendendo o art.º 107.º, do RGIT filia-se directamente no art.º 27.º B, do RJINA, aditado ao diploma pelo Decreto- Lei n.º 140/95, de 14 de Julho.
No citado normativo estruía-se que as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24.º.
Basta atentar no elemento literal dos normativos em presença para se concluir que a apropriação das prestações contributivas não é elemento objectivo do tipo.
Optando o legislador por punir a mera não entrega das prestações contributivas independentemente da prova de que tais valores foram efetivamente apropriados pelo agente. Sem alterar de modo significativo o universo material das condutas puníveis, uma vez que na generalidade dos casos à não entrega corresponde a apropriação das importâncias deduzidas, o legislador acaba por simplificar o julgamento e prova do crime, de acordo com o programa político criminal de reforço da eficácia penal na prevenção e repressão da fuga e evasão ao cumprimento dos deveres para com a segurança social, tal como se verifica relativamente à fuga e evasão ao fisco com a alteração similar introduzida no crime de abuso de confiança fiscal, como se deu nota no Acórdão desta Relação datado de 29-10-2013, no Processo n.º 933/08.6TALLE.E1.
Pelo que é indiferente para o preenchimento do tipo legal que o agente se aproprie para si ou para outrem das prestações contributivas. Ao invés, necessário se torna que o agente não faça entrega da mesma à segurança social.
Porquanto, as das prestações contributivas que descontou não lhe pertenciam, apenas lhe estavam confiadas para serem entregues à segurança social, não lhe cabendo decidir qual a melhor maneira de as aplicar.[4]
Ora, tendo a aqui recorrente procedido, através do seu gerente, ao desconto, no salário dos seus trabalhadores, das cotizações devidas à Segurança Social, referentes aos meses de Junho a Dezembro de 2010, e Março de 201 1 a Maio de 2012, vindo, porém, a decidir não entregar à Segurança Social as cotizações em causa, verificado se mostra um dos elementos objectivos d tipo legal de crime, sendo indiferente o destino dado às preditas cotizações.

Mais importa decidir se se verifica, ou não, in casu o elemento subjectivo do tipo legal de crime.
Ao nivel do elemento subjectivo vem-se exigindo o dolo em qualquer das suas modalidades – art.º 14.º, do Cód. Pen., – traduzido no conhecimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito (elemento intelectual) por parte do agente, que actua com vontade de realização do facto típico (elemento volitivo).
O mesmo é dizer que, para efeitos de preenchimento do tipo, exige-se que o agente tenha previsto e querido não entregar as prestações a que sabia estar obrigado, não obstante estar ciente que tal conduta é punida pela lei penal.
Basta atentar no teor dos factos dados como assentes sob os pontos 7. e 8., para se concluir pela verificação do elemento subjectivo do tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Não se entendendo todo o seu argumentário sob a conclusão 4-, quanto à não prova do elemento volitivo do dolo e muito menos querer ver a sua conduta punida como contra-ordenação, nos termos do art.º 114.º, do RGIT.
Entre o mais, por o citado inciso normativo não ser aplicável à segurança social, como refere Isabel Marques da Silva, in Regime Geral das Infracções Tributárias, págs. 175.

Entende a recorrente que a sua conduta não poderá ser considerada ilícita, em virtude de ter sido praticada em exercício do direito de necessidade, art.ºs 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 34.º, do Cód. Pen.
Diz-se no art.º 31.º, n.º 1, do Cód. Pen., que o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
E no seu n.º 2, al.ª b), refere-se que não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
No art.º 34.º, do mesmo diploma substantivo – sob a epígrafe direito de necessidade estatui-se que não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.
Como consabido, enuncia-se no normativo em análise uma causa de exclusão da ilicitude do facto punível, assentando o seu fundamento numa ideia de ponderação de interesses entre o bem jurídico ou interesse ameaçado por um perigo e o bem jurídico ou interesse que se sacrifica para afastar esse perigo, sendo que, como resulta do próprio texto legal, o interesse ou bem jurídico cujo perigo se afasta tem de ser superior ao interesse sacrificado.[5]
Para a sua verificação exige-se que haja sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, e que seja razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado, para além de não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo no caso de proteção de interesse de terceiro.
Para a determinação da superioridade do interesse sacrificado, o critério a adoptar não passa exclusivamente na medida das punições abstractas das duas condutas ilícitas consideradas, pois haverá sempre que atender às escalas de valores dos bens juridicamente protegidos estabelecidas pela lei.[6]
O que se quer significar com esta causa de exclusão é a de que uma conduta tipicamente descrita não deverá ser considerada ilícita sempre que represente o justo ou adequado meio para alcançar um fim reconhecido pela ordem jurídica, como ensina o Prof.º Eduardo Correia, in Direito Criminal, Vol. II, págs 9 e 10.
Para fundar a aplicação da predita causa de exclusão da ilicitude, entende a recorrente que não criou voluntariamente a situação de não entrega das prestações tributárias, mas sim as condições de mercado que ao provocarem quebra nos proventos da sociedade arguida, aquele teve a necessidade de afetar os recursos para a sobrevivência da empresa e postos de trabalho, criando-se um verdadeiro direito de necessidade.
Na Decisão revidenda deu-se como provado que:
10. O arguido CC confessou parcialmente os factos, designadamente a omitida entrega das cotizações devidas à Segurança Social, nos períodos acima indicados.
11. Tal factualidade foi praticada pelos arguidos, num contexto de ruptura financeira da sociedade arguida, para a qual contribuiu o corte dos financiamentos ao grupo empresarial no qual a mesma estava inserida.
É que importa reter que as situações que podem desencadear o mecanismo ínsito no normativo em apreço- art.º 34.º, do Cód. Pen.,- terão de ser muito específicas e pontuais e devidamente caracterizadas.
Ora, olhando à facticidade dada como provada, dela não decorre que o valor das cotizações devidas à Segurança Social tenha sido afectada, foi afectada, a recursos tendentes a salvar a empresa e postos de trabalho, como alega a aqui impetrante. Apenas se sabe o que consta do ponto 11., dos factos provados.
O que quer significar que face à facticidade dada como assente não é possível fazer funcionar o estatuído no art.º 34.º, do Cód. Pen., como almejado, e, dessa feita, ter por lícita a conduta do aqui impetrante.
Para lá de que somos a entender que mesmo que o destino do montante das cotizações para a segurança social tivesse sido para pagamento dos salários dos trabalhadores, mesmo assim se não poderia fazer funcionar o mecanismo ínsito no predito art.º 34.º, do Cód. Pen. Porquanto, a obrigação de pagamento dos salários aos trabalhadores da empresa é hierarquicamente inferior ao dever legal de entregar à Segurança Social a contribuição descontada no salário dos mesmos trabalhadores, a qual visa satisfazer bens coletivos essenciais á existência e funcionamento do Estado Social de Direito (art.ºs 1º e 63º CRP).
Não constituindo o pagamento dos salários causa de exclusão da culpa nem da ilicitude quanto ao crime de abuso de confiança á Segurança Social.[7]

Por fim, não se entende o alegado na conclusão 8).
Ademais, só em sede de conclusão – e não em sede de motivação - tratou a predita matéria.
Como se sabe, as conclusões devem ser um resumo explícito e claro da fundamentação das questões suscitadas pelo recorrente na motivação. Daí que se as questões contidas nas conclusões não foram objecto de tratamento na motivação, delas o tribunal de recurso não pode conhecer.
Razão pela qual, e sem curar de outras delongas, se não conheça da predita questão.

Sendo nestes vectores que a recorrente funda o seu recurso, importa concluir pela sua improcedência.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a Sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça devida.


(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 20 de Dezembro de 2018
José Proença da Costa (relator)
Alberto Borges

__________________________________________________
[1] Ver, Isabel Marques da Silva, in Regime Geral das Infracções Tributárias, págs. 174-175.
[2] Ver, Acórdão do STJ, de 18.12.2008, no Processo n.º 07P020 e Acórdão da Relação do Porto, de 11.05.2016, no Processo n.º 417/09.5TAVFR.P1.
[3] Ver voto de vencido de Helena Moniz no AFJ n.º 2/2015, no DR I.ª Série de 19.02.2015.
[4] Ver, Acórdão da Relação de Lisboa, de 20-03-2012, no Processo n.º 5209/04.5TDLSB.L1-5.
[5] Ver, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 10.07.2013, no Processo n.º 254/12.0TTCTB.C1.
[6] Ver, Acórdão do STJ, de 28.04.1993, no Processo n.º 043245.
[7] Ver, Acórdão da Relação do Porto, de 9.10.2013, no Processo n.º 1033/10.4TAVFR.P1.