Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1482/15.1T8STR-0.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: CRÉDITOS GARANTIDOS
DÍVIDA DE TERCEIRO
HIPOTECA SOBRE BENS DA MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - Inclui-se na classe de créditos garantidos os créditos que beneficiam de garantia real incidente sobre os bens integrantes da massa insolvente embora o devedor não seja o insolvente.
II - O artigo 17.º-H do CIRE é aplicável mesmo que a garantia não tenha sido prestada pelo devedor/sujeito do PER mas por terceiro pois o que interessa é a ligação ao património do insolvente.
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.
O insolvente BB impugnou a lista apresentada pelo administrador de insolvência (AI) relativamente ao crédito reconhecido à ATA, no valor de € 20.402.485,02, porquanto:
1) Tal crédito não é exigível uma vez que não é um crédito sobre o insolvente, mas sobre a sociedade "CC", em cujo PER foram dados bens do insolvente como garantia de cumprimento de obrigações, sendo que a partir do momento em que a sociedade foi declarada insolvente, deixou de existir fundamento legal para a manutenção das hipotecas;
2) Como a dívida não é do insolvente, a mesma só pode ser reconhecida na medida do que valha o património do mesmo dado em garantia e não pela sua totalidade.
O Ministério Público impugnou a lista apresentada pelo AI relativamente ao crédito reconhecido à ATA, no valor de € 20.402.485,02, uma vez que o mesmo foi reconhecido como crédito sob condição, mas sobre tal crédito não impende qualquer condição.
Às impugnações apresentadas, o AI respondeu que “(...) mantém a posição anteriormente assumida, reconhecendo como condição o crédito hipotecário, constante na [alínea g) da Lista Definitiva de Credores] no valor global de € 20.402.485,02 (vinte milhões, quatrocentos e dois mil, quatrocentos e oitenta e cinco euros e dois cêntimos), classificando-o assim como crédito sob-condição, nos termos do Artigo 50º do CIRE, dado que, o valor que será reconhecido como crédito garantido nos termos dispostos na alínea a), nº 4 do Artigo 47º do C.I.R.E., será apenas o valor resultante do produto da venda das Verbas nº 2, 3 e 4 do Auto de Apreensão de Bens Imóveis - artigo 150º do CIRE e o valor remanescente do produto da venda do Prédio urbano descrito na CRP de Amora sob o nº …, sobre os quais a Fazenda Nacional detém a garantia hipotecária, não reconhecendo o valor remanescente.”
O parecer da comissão de credores foi no sentido de ser mantido o crédito da ATA tal como reconhecido pelo AI.
Foi proferida a seguinte decisão no saneador que julgou a impugnação do insolvente totalmente improcedente, e a impugnação do MP, em representação da ATA, procedente por provada.
Inconformado com a decisão, veio o insolvente interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes conclusões de recurso (transcrição):
“A- O insolvente impugnou a lista de créditos apresentada pelo Sr. Administrador quanto ao reconhecimento do crédito da AT, no montante de €.: 20.402.485,02.
B-Alegou para tanto o seguinte:
- Por um lado que não deve à AT o montante reclamado porquanto apenas deu os bens do seu património em garantia, no âmbito de um processo PER, a que se apresentou a sociedade DD, actualmente CC S.A., o que resulta dos documentos que instruíram a lista de créditos reconhecidos e a impugnação feita à mesma lista pelo ora recorrente.
C-Logo, no limite, e sem prescindir, a AT não detinha qualquer crédito sobre o insolvente mas tão só poderia executar os bens dados em garantia até ao valor dos mesmos.
D-Mais alegou que tendo a garantia sido prestada no âmbito de um processo PER a que se apresentou aquela sociedade, o qual veio a redundar na sua insolvência, nos termos do artigo 17º-H, nº 1 do CIRE, deixou de haver fundamento legal para a manutenção das referidas hipotecas e logo da reclamação da AT – com a impugnação também juntou documentação para prova do ora alegado.
E-Com efeito, resulta do artigo 17º-H, nº 1 do CIRE que apenas as garantias prestadas durante o PER pelo devedor com a finalidade de proporcionar meios financeiros para o desenvolvimento da sua actividade se mantêm mesmo que findo o processo venha a ser declara a sua insolvência; o que manifestamente não foi o caso. Por outro lado, por força do disposto no artigo 17º-F, nº 5, do CIRE, que prevê precisamente a aplicação ao PER das regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, e consequentemente também o artigo 218º, em caso de incumprimento do plano de pagamentos as moratórias e perdões concedidos pelos credores extinguem-se, como se o plano não tivesse existido, ora do mesmo modo extinguir-se-ão as garantias prestadas com vista unicamente à revitalização da devedora, como foi o caso.
F- A Mª. Juiz do Tribunal de Santarém entende que do artigo 17º-H, nº 1 do CIRE, se extrai conclusão inversa; conclusão com a qual não concordamos.
G- O artigo em causa refere-se às garantias convencionadas entre a empresa e os seus credores, o que sucedeu no caso em apreço foi que o devedor ora recorrente, enquanto terceiro, prestou uma garantia hipotecária aos créditos reclamados à empresa pela AT, para permitir a recuperação da mesma. A AT considerou essa garantia insuficiente e a empresa veio a ficar insolvente. Logo, com todo o respeito, entendemos desacertada a interpretação que é feita do artigo 17º-H, nº 1 do CIRE, no sentido de que a norma permite concluir que nesta concreta situação a garantia se mantém válida, e por consequência se reconheça o crédito reclamado pela AT, com base nela, agora na insolvência do devedor que ao tempo a prestou.
H- O que justifica e motiva o presente recurso, pedindo-se que o mesmo seja declarado procedente, e por consequência revogada a sentença que não atendeu a impugnação à lista de créditos efectuada pelo ora recorrente.
I – Mais se requer que o presente recurso seja instruído com certidão dos seguintes documentos:
a)- Lista de créditos reconhecidos
b)- Impugnação à mesma lista apresentada pelo ora recorrente com todos os documentos que instruíram a mesma.”
Nas contra-alegações, o MP conclui da seguinte forma (transcrição):
”A Temos, portanto, que nos termos do artigo 129.° do CIRE a Autoridade Tributária (AT) apresentou a sua reclamação de créditos, contemplando dois tipos de créditos:
A - Créditos próprios e provenientes de dívidas pessoais do insolvente para com a Fazenda Pública, no valor de € 124.131,64; e
B - Créditos garantidos pelo produto da venda de bens certos e determinados em duas escrituras de hipoteca:
Hipoteca 1 - Datada de 08-02-2013, que garante dívidas da DD, S.A, ora CC, S.A., até ao valor máximo de € 4.340.908,60; e
Hipoteca 2 - Datada de 13-01-2014, que garante igualmente dívidas da DD, S.A, ora CC, S.A., até ao valor máximo de € 24.434.538,70.
B o recorrente defende que não existe fundamento legal para a manutenção desta segunda hipoteca, por ter esta sido outorgada no âmbito de um processo especial de revitalização (PER) para efeitos de garantia de créditos da sociedade DD, S.A, ora CC, S.A.
C Assim, relativamente à lista de créditos reconhecidos, alega o recorrente que inexiste fundamento legal para o AI ter reconhecido o crédito de € 20.402.485,02.
D Ora, o reconhecimento concretizado pelo AI não merece juízo de censura na medida em que enquadrou devidamente a hipoteca outorgada pelo ora recorrente, enquadramento que, de resto, a douta decisão recorrida também acolhe.
E na verdade, importa atentar no artigo 17. ° - H/1 do ClRE, o qual dispõe que «As garantias convencionadas entre a empresa e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquela os necessários meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a sua insolvência.».
F Ora, em 16-12-2013 foi proferido despacho de homologação do PER da CC, S.A. no PER nº 876/13.1 TYLSB, tendo, na sequência do incumprimento deste plano, a sociedade sido declarada insolvente em 18-11-2014, estando, portanto, respeitado o período de dois anos previsto no artigo 17.º-H/1 para a manutenção das garantias convencionadas.
G Nestes termos, bem decidiu o Tribunal ao entender que não obstante a sociedade revitalizanda, devedora da AT, ter sido depois declarada insolvente, tal situação não afecta as garantias de pagamento concedidas pelo recorrente no âmbito do PER.
H No que respeita ao limite da responsabilidade do insolvente, tendo em conta que o mesmo responde por uma dívida de € 20.402.485,02 da qual não é devedor, mas garante do seu pagamento em virtude de hipoteca constituída sobre os seus bens, importa atentar no artigo 47.°/1 do CIRE, nos termos do qual «Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.».
I Deste modo, não sendo a AT, relativamente a esta dívida de € 20.402.485,02, titular de um direito de crédito sobre o recorrente, mas beneficiando a mesma de hipotecas sobre bens do aqui insolvente para garantia de dívidas de terceiro, tem a pleno direito de reclamar o seu crédito nos autos.
J De resto, como bem se refere na douta decisão recorrida, de acordo com a alínea a) do n.º 4 do artigo 47.° do CIRE «Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são: a) 'Garantidos' e 'privilegiados' os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes.».
Resultando, assim, que o crédito da AT, beneficiando de hipotecas sobre as Verbas n.ºs 2, 3 e 4 do Auto de Apreensão de Bens Imóveis, e o valor remanescente do produto da venda do prédio urbano descrito na CRP de Amora sob o n.º …, deve este crédito ser classificado como garantido sobre estes bens.
L Quanto à sua classificação como crédito sob condição, importa atentar no que dispõe o artigo 50.° do CIRE, como bem se refere na douta decisão judicial ora recorrida.
M À luz desta norma, resulta que o crédito da AT sobre a CC, S.A., garantido por hipoteca registada sobre bens do insolvente, já existe. Destarte, a sua constituição ou subsistência não estão sujeitas à verificação de qualquer acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.
N Todavia, a medida do que pode ser pago através deste processo é que é incerta, pois depende naturalmente do valor que se consiga obter com a venda dos bens objecto da hipoteca. A satisfação do crédito está, portanto, dependente do resultado da liquidação de tais bens.
Por conseguinte, o crédito de € 20.402.485,02 não está sujeito a qualquer condição.
IV - Em suma, não se vislumbra, portanto, que a douta decisão recorrida padeça de qualquer dos vícios que o recorrente lhe aponta.
Assim sendo, por não ter sido violada qualquer norma jurídica, deve o recurso interposto ser rejeitado, mantendo-se a douta decisão recorrida.”
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos com relevância para a decisão do recurso são os que constam deste relatório.

2 – Objecto do recurso.
Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC:
Saber se as garantias de pagamento concedidas num contexto de processo negocial do plano de revitalização, por um terceiro, se mantêm nos autos de insolvência desse terceiro que as prestou, sobre bens que integram a massa insolvente, nos termos e durante o prazo do artigo 17.º-H, n.º 1 do CIRE.

3 - Análise do recurso.
A decisão recorrida entendeu que em 16.12.2013 foi proferido despacho de homologação do PER da "CC, S.A." no PER 876/13.1 TYLSB, e que na sequência do incumprimento deste plano, a sociedade foi declarada insolvente em 18.11.2014, está cumprida a moldura temporal prevista no art.º 17.°-H, n.º 1 do CIRE para a manutenção das garantias convencionadas.
Conclui assim o tribunal a quo que o facto da sociedade revitalizanda, devedora da ATA, ter sido depois declarada insolvente, não afecta as garantias de pagamento concedidas por BB no contexto do PER.
O recorrente discorda e defende que não existe fundamento legal para a manutenção da segunda hipoteca, por ter esta sido outorgada no âmbito de um processo especial de revitalização (PER) para efeitos de garantia de créditos da sociedade DD, S.A, ora CC, S.A. ou seja que a hipoteca foi registada num contexto de processo negocial do plano de revitalização e, tendo a ATA inviabilizado o sucesso do PER ao determinar o prosseguimento duma execução fiscal pré-existente, não pode aproveitar as garantias prestadas por terceiro, pois que a CC, S.A. foi declarada insolvente em 18-11-2014, deixando de existir fundamento legal para a manutenção das hipotecas.
Defende que resulta do artigo 17.º-H, n.º 1 do CIRE que apenas as garantias prestadas durante o PER pelo devedor com a finalidade de proporcionar meios financeiros para o desenvolvimento da sua actividade, se mantêm mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada a sua insolvência e não é o caso.
E defende que, por força do artigo 17.º-F, n.º 5 do CIRE, que prevê precisamente a aplicação ao PER das regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º do CIRE e, consequentemente, também o artigo 218.º, em caso de incumprimento do plano de pagamentos, as moratórias e perdões concedidos pelos credores extinguem-se, como se o plano não tivesse existido, o que significa, do mesmo modo, que se extinguirão as garantias prestadas com vista unicamente à revitalização da devedora, como foi o caso.
Conclui que inexiste fundamento legal para o AI ter reconhecido o crédito de € 20.402.485,02.
Vejamos:
Embora a decisão não tenha consignado matéria de facto relevante, extrai-se dos autos que:
Nos autos de Revitalização (PER) da sociedade "CC", foram dados bens do aqui insolvente BB – aí terceiro – como garantia de cumprimento de obrigações, a favor da Autoridade Tributária (AT) para possibilitar essa revitalização.
Nessa sede, o aqui insolvente BB garantiu através do património, o cumprimento de um plano de pagamentos em prestações da dívida da sociedade "CC" para com a Autoridade Tributária.
O PER foi homologado em 16.12.2013, mas a partir de certa altura a devedora incumpriu o mesmo.
Acabou por ser decretada a insolvência da sociedade "CC".
Nos presentes autos, o insolvente é BB e, aqui, veio a Autoridade Tributária reclamar créditos, com base naquela garantia prestada no outro processo – O PER da DD – a seu favor, sobre bens que integram esta massa insolvente.
Sabemos que a hipoteca é uma garantia especial, real, acessória de um crédito, ao qual a lei confere um direito de preferência no pagamento a efectuar-se através da liquidação do bem afecto à hipoteca.
Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência reclamar a verificação dos seus créditos – art.º 128.º, n.ºs 1 e 3 do CIRE.
A primeira questão que se coloca é saber se, não sendo credor de BB mas sim da “DD”, a AT deve ser considerada credora por ser titular de créditos de natureza patrimonial (não do insolvente) mas garantidos por bens integrantes da massa insolvente.
E a resposta é afirmativa.
Sob a epígrafe «Conceito de credores da insolvência e classes de créditos sobre a insolvência», preceitua o art.º 47.º do CIRE que:
«1 - Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
2 - Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.
3 - São equiparados aos titulares de créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decorrer do processo.
4 - Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:
a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes;
b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;
c) ‘Comuns’ os demais créditos.»
Assim, os credores da insolvência são todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente (art.º 47.º, n.º 1 do CIRE).
São créditos garantidos aqueles cujos titulares beneficiam de garantias reais sobre determinados bens que integram a massa insolvente, incluindo os privilégios creditórios especiais, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes (art.º 47.º, n.º 4, al. a) do CIRE).
A doutrina inclui na classe de créditos garantidos os créditos que, quer seja o devedor o insolvente, quer seja um terceiro, beneficiam de garantia real incidente sobre os bens integrantes da massa insolvente.
A propósito do art.º 47.º do CIRE, anotam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (in «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado», Almedina, 2015, Quid Juris, 3.ª edição, página 226, nota 3): “Quanto ao n.º 1, há a natural consideração de que, uma vez proferida a decisão declaratória da insolvência, todos os credores do devedor passam a ser havidos como credores da insolvência, com a particularidade de fazer abranger nesse universo também aqueles que não sendo, em rigor, titulares de créditos sobre o insolvente, dispõem, todavia de garantias constituídas sobre bens seus para segurança de dívidas de terceiros”.
Mais adiante (página 295), a respeito da definição dos créditos garantidos, destacam os citados autores, em ”atenção ao estatuído no artigo anterior, que também devem ser considerados garantidos os créditos que, embora não tenham em rigor, o insolvente por devedor, são, no entanto, beneficiários de garantia real incidente sobre bens da massa”.
Em sentido convergente, Alexandre de Soveral Martins (in “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2017, 2.ª edição, Almedina, página 276) escreve que “são também credores da insolvência os titulares de créditos de natureza patrimonial garantidos por bens integrantes da massa insolvente cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência. Esses credores, mesmo não sendo credores do insolvente, serão titulares de créditos garantidos.”
No mesmo sentido escreve Maria do Rosário Epifânio (in “Manual de Direito da Insolvência”, 2016, 6.ª edição, página 239) que a doutrina tem incluído na categoria de créditos garantidos os créditos que beneficiam de garantia real sobre os bens integrantes da massa insolvente, seja o devedor o insolvente, ou seja o devedor um terceiro.
Os créditos garantidos são os que beneficiam de uma garantia real sobre o seu cumprimento quanto a determinados bens, considerando-se como tal também os privilégios creditórios especiais (cfr. art.º 47.º, n.º 4, al. a) do CIRE). Abrangem assim, além destes, a consignação de rendimentos (art.º 656.º e ss do CC), o penhor (art.º 666.º e ss do CC), a hipoteca (art.º 686.º e ss do CC) e o direito de retenção (art.º 754.º e ss do CC).
Assim, no nosso caso, embora a hipoteca tenha sido registada num contexto de processo negocial do plano de revitalização, beneficia de garantia real incidente sobre os bens integrantes desta massa insolvente.
Por outro lado, coloca-se a questão de saber se por a garantia não ter sido prestada pelo devedor/sujeito do PER mas por terceiro, é afastada, ao atrigo 17.º-H do CIRE.
Nos termos do art.º 17.°-H, n.º 1 do CIRE essa garantia ainda se mantêm, pois:
“1 - As garantias convencionadas entre a empresa e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquela os necessários meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a sua insolvência.».
O artigo não é claro, pois faz referência a “garantias convencionadas […] durante o processo especial de revitalização”, de financiamento no decurso do processo mas não esclarece o que deve entender-se por durante e no decurso e se abrange as garantias prestadas a terceiros que financiem o devedor.
Entendemos que a proteção conferida pelo preceito abrange as situações em que a garantia é prestada por um terceiro, pois a situação é a mesma: a garantia acordada para financiar a atividade do devedor justifica a proteção dos que participam nas negociações.
Luís Miguel Pestana (Il risanamento pre-insolvenziale del debitore nel diritto portoghese: la (nuova) procedura speciale di rivitalizzazione - P.E.R - in Diritto Fallimentare e delle Società Commerciali, vol. 88, n.º 5, pp. 726, ss.) chama a atenção para o facto de que, pese embora a lei se refira exclusivamente às garantias convencionadas entre o devedor e os respetivos credores, deverão ser também incluídas as garantias prestadas a terceiros que financiem o devedor, desde que haja acordo entre este e os credores pré-existentes nesse sentido.
No nosso caso, o que interessa é a ligação ao património do insolvente, que se vincula por ter prestado a garantia.
Finalmente, contrapõe o recorrente que a garantia prestada só o foi porque tinha como pressuposto a viabilização da revitalização, o que não aconteceu por causa imputável à própria AT.
Quid juris?
De facto, a ideia da lei é dar alguma proteção aos credores que participam nas negociações e acordaram financiar a atividade do devedor, (aliviar o seu passivo) com quem são convencionadas garantias com vista a proporcionar ao devedor meios financeiros necessários para a sua atividade, durante o PER, privilegiando e potenciando a entrada de fresh money.
O recorrente argumenta que, neste caso, tal não chegou a acontecer, pois a AT é que considerou a garantia insuficiente e conduziu a empresa à insolvência, não podendo por isso aproveitar-se da mesma.
Porém, o que aconteceu foi que o PER foi homologado mas a devedora incumpriu o mesmo e acabou por ser decretada a insolvência da sociedade e a lei estabelece que a garantia se mantém, pelo que se verificam os pressupostos de aplicação do art.º 17.°-H, n.º 1 do CIRE como concluiu a decisão recorrida.
Em suma:
Improcede, por conseguinte, in totum, a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Sumário:
I - Inclui-se na classe de créditos garantidos os créditos que beneficiam de garantia real incidente sobre os bens integrantes da massa insolvente embora o devedor não seja o insolvente.
II - O artigo 17.º-H do CIRE é aplicável mesmo que a garantia não tenha sido prestada pelo devedor/sujeito do PER mas por terceiro pois o que interessa é a ligação ao património do insolvente.

4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto e manter a decisão recorrida.
Custas pela massa.
Évora, 28.02.2019
Elisabete de Jesus Santos Oliveira Valente
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita