Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
210/15.6T8CSC.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: COMPETÊNCIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: São os tribunais administrativos - e não os tribunais comuns - os competentes para julgar uma ação na qual se pede a condenação da sociedade concessionária da exploração e conservação de uma autoestrada em determinada quantia, por danos resultantes de um acidente de viação ocorrido nessa via, alegadamente provocado pelo embate num animal, causados pela omissão de cumprimento das regras de manutenção, vigilância e segurança que incumbiam à cessionária nos termos do contrato de concessão com o Estado.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Em 19.01.2015, no Tribunal Judicial da Comarca «AA Lda.» instaurou acção declarativa sob forma ordinária contra «BB Sa», pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe € 2.885,38, pelos danos verificados na sequência do embate ocorrido na auto-estrada, onde circulava um animal de grande porte.
Foi proferida a seguinte decisão:
«Notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem relativamente à eventual exceção de incompetência deste tribunal, em razão da matéria, ambas se pronunciaram no sentido de ser esta Instância Local Cível a competente.
Nos termos do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, os Tribunais Administrativos e Fiscais são competentes para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, constituindo-se, assim, como os tribunais comuns ou ordinários em matéria administrativa. Por conseguinte, o conhecimento de uma questão de natureza administrativa pertence aos tribunais da ordem administrativa, se não estiver expressamente atribuída a nenhuma outra jurisdição (1).
Definindo o âmbito da jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o artigo 4.º, n.º 1, al. i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, prevê que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.
Para determinação do tribunal competente em razão da matéria (assim como a verificação dos demais pressupostos processuais) deverá atender-se ao pedido formulado pelo autor, assim como à causa de pedir que lhe está subjacente, tal como o autor a configura (2).
No caso em apreço, a autora pede a condenação da ré no pagamento de uma indemnização, alegando os danos sofridos pelo embate de uma viatura num animal que se encontrava na autoestrada A1, que se encontrava concessionada à ré.
Atendendo aos termos em que o autor configurou a causa de pedir e o pedido, constata-se que, estando em causa a obtenção do pagamento de uma indemnização com fundamento na responsabilidade extracontratual de empresa concessionária de autoestrada, na sequência desta alegadamente não ter assegurado a segurança da circulação na via, deve a sua responsabilidade ser aferida nos termos do artigo 1.º, n.º 5 da n.º Lei 67/2007 de 31 de dezembro, sendo os Tribunais Administrativos os competentes para conhecer da ação respetiva, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1 al. i) do ETAF (3 ).
Nestes termos, considera-se este Tribunal Judicial absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer e julgar a causa e, em consequência, ao abrigo do disposto nos artigos 64.º, a contrário, 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 98.º e 99.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, absolve-se a ré da instância.
Custas pela autora (artigo 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil).
1 Cf. VIEIRA ANDRADE, “A Justiça Administrativa” 4ª ed., pág. 112
2 Cf., a título exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/03/2004, proc. 04B873, de 13/05/2004, proc. 04A1213 e de 10/04/2008, proc. 08B845 e do Tribunal da Relação de Coimbra 25/10/2005, proc. 2471/05, www.dgsi.pt
3 Cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/04/2012 (proc. 1181/10.0TBCVL-A.C1), de 21/05/2013 (proc. 2073/09.1TBCTB-K.C1) e de 08/04/2014 (proc. 1158/13.4TBLRA.C1), do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/12/2014 (proc. 808/14.0TBFAF.G1) e de 19/03/2015 (proc. 119/14.0TBMDLA.G1), do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/06/2011 (proc. 1394/10.5YXLSB-7) e de 28/05/2015 (proc. 9839/13.6TCLRS.L1-6), do Tribunal da Relação do Porto de 16/10/2012 (proc. 244/11.0TBVPA.P1), de 18/04/2013 (proc. 342/12.2TJPRT.P1), de 14/01/2014 (proc. 316/13.6TBVRL.P1), de 30/06/2014 (proc. 140/14.9YRPRT) de 09/07/2014 (proc. 643/13.2TBCHV.P1) e de 10/03/2015 (proc. 528/10.4TBVPA.P1) e do Tribunal de Conflitos de 27/03/2014 (proc. 046/13) e de 07/05/2015 (proc. 010/15), disponíveis em www.dgsi.pt.»
Desta decisão, recorreu a Autora e formulou as seguintes conclusões (transcrição):
«De todo o supra exposto, resulta claro que ocorreu violação das regras de competência em razão da matéria por parte do douto tribunal a Quo;
2 – O Tribunal a Quo pronunciou-se quanto à incompetência material, não tendo nem levando em consideração o facto de tanto o requerimento apresentado pela aqui Autora bem como pela Ré, se pronunciaram no sentido da efectiva competência do presente tribunal da comarca de Santarém para apreciar e julgar a presente causa;
3 – O objecto da presente acção é o pedido da responsabilização extracontratual da Ré, ficando obrigada a indemnizar a Autora pelos danos ocorridos e por esta sofridos (nos termos do Código Civil).
4 - Desse modo, constata-se que não deveria ter sido considerada a incompetência do tribunal a quo em razão da matéria, devendo por conseguinte a presente acção ser julgada no tribunal de que ora se recorre;
Nestes termos e nos demais de direito e com o mui Douto suprimento de V. Exa, deve ser concedido provimento ao recurso interposto, revogando a Douta decisão recorrida a fim de que os autos prossigam a sua normal tramitação processual.»
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos relevantes para a decisão são os que constam do relatório supra.


2 – Objecto do recurso.

Questão a decidir, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
Saber se é o tribunal comum ou o administrativo o materialmente competente para julgar a acção onde é pedida uma indemnização contra a BB Sa, na sequência de um embate de uma viatura num animal na auto-estrada, por alegado incumprimento dos deveres da concessionária.


3 - Análise do recurso.

O recorrente insurge-se contra o entendimento da decisão que julgou incompetente em razão da matéria o tribunal comum para apreciar uma acção contra a BB Sa, onde é pedida uma indemnização, na sequência de um embate de uma viatura num animal que se encontrava na auto-estrada.
Mas sem razão, no nosso entender.
Sabemos que a competência em razão da matéria deve ser aferida pelo pedido em articulação com a causa de pedir.
Para determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, tem de se atentar, sobretudo, na alegação do autor e no efeito jurídico pretendido.
O litígio discutido nos autos refere-se ao exercício de um poder público pela concessionária, que está vinculada ao dever de manutenção e de vigilância das auto-estradas, as quais integram o domínio público do Estado.
A Base XLIII, sobre a epígrafe “Manutenção das Auto-Estradas”, estabelece o seguinte:
«1 - A Concessionária deverá manter as Auto-Estradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam.
2 - A Concessionária é responsável pela manutenção em bom estado de conservação e funcionamento do equipamento de monitorização ambiental, dos dispositivos de conservação da natureza e dos sistemas de protecção contra o ruído.
3 - Constitui ainda responsabilidade da Concessionária a conservação e manutenção dos sistemas de contagem e classificação de tráfego, incluindo o respectivo centro de controlo e ainda os sistemas de iluminação, de sinalização e de segurança nos troços das vias nacionais ou urbanas que contactam com os nós de ligação, até aos limites estabelecidos na base IV.
4 - A Concessionária deverá respeitar padrões mínimos de qualidade, designadamente para a regularidade e aderência do pavimento, conservação da sinalização e do equipamento de segurança e apoio aos utentes, nos termos a fixar no manual de operação e manutenção e no plano de controlo de qualidade».
Na Base LI, n.ºs 2 e 3, “Manutenção e Disciplina de Tráfego”, determina-se que
2 - A Concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente em boas condições de segurança e comodidade a circulação nas Auto-Estradas.
3 - A Concessionária deverá estudar e implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a detecção de acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente, no âmbito da rede concessionada(…)».
Na Base LII “Assistência aos Utentes” estabelece-se que:
«1 - A Concessionária é obrigada a assegurar a assistência aos utentes das Auto-Estradas, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que respeita à sua fiscalização e à prevenção do acidente.
2 - A assistência a prestar aos utentes nos termos do número antecedente consiste no auxílio sanitário e mecânico, devendo a Concessionária instalar para o efeito uma rede de telecomunicações ao longo de todo o traçado das Auto-Estradas, organizar um serviço destinado a chamar do exterior os meios de socorro sanitário em caso de acidente e a promover a prestação de assistência mecânica».
Daqui se conclui que a natureza dos poderes públicos atribuídos à concessionária, pelo contrato de concessão celebrado com o Estado, a «lei geral» para a qual remete o contrato de concessão é a lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro), já que a recorrente, por força do contrato de concessão, colabora com o Estado, no exercício de funções administrativas ou de poderes/deveres públicos e está assim sujeita a normas de direito público, pelo que, são materialmente competentes os tribunais administrativos para julgar a acção onde se discute o incumprimento dos seus deveres de concessionária.
Seguimos de perto o recente Ac. do STJ de 8.10.2015, proc. nº 1085/14.8TBCTB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, para cujos argumentos remetemos e onde se pode ler o seguinte:
«Com a reforma do contencioso administrativo, a pedra de toque para a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais deixou de ser a distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada, para passar a ser o conceito de relação jurídica administrativa, considerado um conceito quadro muito mais amplo do que o de gestão pública. A jurisdição administrativa para além de abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado, passou também a abarcar a responsabilidade das pessoas coletivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público».
Também neste sentido já se pronunciou recentemente esta Relação de Évora (em Ac. subscritos também pela relatora) de 17.12.2015, proc. nº 1968/12.0TBSTR.E1 e de 21.04.2016, proc. nº 906/15.2T8STR-E1, para cuja argumentação se remete.
E ainda neste sentido, Acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 20-01-2010, proc. n.º 025/09; de 30-05-2013, proc. n.º 017/13; de 27-02-2014, proc. n.º 048/13.
Em suma.
Acompanhamos deste modo a decisão recorrida, ao concluir que os tribunais comuns são incompetentes, em razão da matéria, para o julgamento da presente ação, cabendo aquela competência aos tribunais administrativos.
Improcedem assim todas as conclusões em sentido contrário da recorrente, sendo de manter a decisão recorrida.


Sumário:
São os tribunais administrativos - e não os tribunais comuns - os competentes para julgar uma ação na qual se pede a condenação da sociedade concessionária da exploração e conservação de uma autoestrada em determinada quantia, por danos resultantes de um acidente de viação ocorrido nessa via, alegadamente provocado pelo embate num animal, causados pela omissão de cumprimento das regras de manutenção, vigilância e segurança que incumbiam à cessionária nos termos do contrato de concessão com o Estado.


4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


Évora, 16.06.2016

Elisabete Valente


Bernardo Domingos


Silva Rato