Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3718/20.8T8STB-A.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
FIADOR
SUB-ROGAÇÃO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Não existindo meios probatórios que imponham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente, impõe-se a confirmação do julgamento feito na primeira instância.
2 – A quem reclama um crédito compete fazer prova dos factos constitutivos do seu direito, e ao impugnante do mesmo crédito cabe o ónus de provar os factos extintivos, modificativos ou impeditivos dessa obrigação.
3 - O fiador que cumpre a obrigação perante o credor fica sub-rogado nos direitos deste, dando-se uma transferência do respectivo crédito, acompanhado da transmissão das respectivas garantias.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de reclamação de créditos, que correm por apenso à execução instaurada por Caixa Económica Montepio Geral contra AA (primeiro executado) e BB e CC (segundo e terceiros executados, na qualidade de devedores do primeiro), os referidos BB e CC (segundo e terceiro executados) vieram reclamar a verificação e graduação de um seu crédito contra o primeiro executado (AA), no montante global de €28.916,52.
Alegaram em resumo que, na qualidade de fiadores, desde 4 de Julho de 2012 até 22 de Maio de 2019, pagaram ao exequente a quantia de €28.916,52, ficando por isso subrogados nos direitos do credor nos termos do art. 644º do Código Civil.
O reclamado (o executado AA) deduziu oposição, defendendo que a reclamação deve ser indeferida e o crédito não reconhecido.
Alegou para tanto, em suma, que entre os reclamantes e ele próprio reclamado existia uma relação familiar, sendo aqueles seus ex-sogros, e foi com base nessa relação que assumiram a qualidade de fiadores, e os pagamentos realizados pelo fiador BB foram feitos com produto do rendimento do casal então composto pelo reclamado e filha dos reclamantes.
Mais concretamente, que os pagamentos efectuados pelo fiador, ora reclamante, foram feitos com o produto de uma renda de um imóvel do casal então formado pelo reclamado e pela filha dos reclamantes, e não com dinheiro dos próprios reclamantes.
A exequente Montepio Geral também deduziu oposição, impugnando a factualidade respeitante à proveniência do numerário depositado, por não ser facto pessoal ou do seu conhecimento.
Por seu lado os reclamantes responderam impugnando a matéria alegada pelo executado e pugnando pela procedência da reclamação.
Entretanto, na pendência desta reclamação de créditos, a execução foi declarada extinta por se encontrar integralmente paga a quantia exequenda.
Foi então proferido despacho que deferiu o requerimento de prosseguimento da execução apresentado pelos reclamantes ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 850 do CPC.
Interposto recurso desse despacho, foi o mesmo confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Évora já transitado em julgado, prosseguindo a execução, onde se encontra penhorado um imóvel pertencente ao executado, ocupando agora os reclamantes a posição da original exequente.
Prosseguindo esta reclamação de créditos, procedeu-se a audiência prévia, com prolação de despacho saneador, despacho que identificou o objecto do litígio e elencou os temas da prova, após o que veio a realizar-se audiência de julgamento.
Finalmente, foi proferida sentença que julgou procedente a reclamação de créditos apresentada por BB e CC, e reconheu o crédito pelos mesmos reclamado, a fim de ser pago pelo produto da venda do bem penhorado.
Contra o decidido reagiu o executado/reclamado, através do presente recurso de apelação.
*
II – O RECURSO
Os fundamentos do recurso foram sintetizados nas respectivas conclusões, que se transcrevem:
“1 - Andou mal o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, em julgar a reclamação totalmente procedente, dando como provados e não provados os factos descritos na sentença.
2 - Na verdade, quer dos documentos juntos quer do depoimento do Reclamante resulta que desde pelo menos abril de 2012 até à data da separação do casal (Reclamado e filha dos Reclamantes) era aquele que depositava de forma regular as prestações de crédito habitação do prédio objeto da execução.
3 - E fazia-o por conta das rendas que lhes eram entregues pela filha ou diretamente pelos arrendatários da filha duma fração que o reclamante lhe vendeu.
4 - A renda da referida fração tal como todos os outros rendimentos do casal eram colocados em economia doméstica e desse produto eram pagas todas as despesas do casal, incluindo as que constituíam bens próprios.
5 - As provas produzidas em audiência de julgamento bem como as carreadas para os autos são, em abstrato, livremente apreciadas pelo tribunal a quo.
6 - Porém, na valoração e apreciação da prova o tribunal tem que levar em conta as regras de experiência comum tais como seriam percetíveis pelo homem médio.
7 - Para além disso as mesmas devem ser dotadas de lógica e de razão.
8 - Da decisão que ora se recorre, salvo melhor entendimento, tais regras e lógica não foram levadas em consideração.
9 - Uma vez que, não é de esperar que o Reclamante aja pago prestações por conta de terceiro durante 82 meses sem questioná-lo por esse pagamento, ou
10 - Sem que aja com ele feito um acordo prévio.
11 - In caso e das declarações do próprio reclamante resulta que o pagamento das prestações ao credor exequente materialmente feito por ele emergia de rendas que recebia do rendimento do casal.
12 - Da mesma forma não é do senso comum que um pai venda uma casa a uma filha, onerando-a com um crédito para depois receber para si as rendas dessa mesma casa.
13 - Tanto mais que em momento algum justificou tal comportamento.
14 - Ficou provado que os reclamantes recebiam €1.300 das rendas provenientes da fração dada de arrendamento pela filha, parte do dinheiro que entregavam ao credor exequente nos presentes autos.
15 - Da douta sentença de que se recorre não resulta factos trazidos ao conhecimento do tribunal por via do depoimento de parte do reclamante marido.
16 - Factos que importam na medida em que provam a versão trazida pelo Reclamado.
17 - E que dessa forma conduziriam a uma decisão diferente tendo por base as referidas regras da experiência.
18 - Regras essas que “não sendo meios de prova permitem fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.” In acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 3612/07...., de 06/07/2011.
19 - Assim, deverá a decisão proferida na douta sentença ser substituída por outra que não dê como provado que os Reclamantes pagaram as prestações que reclamam, E
20 - Que o dinheiro pago ao Exequente no período de abril de 2012 a maio de 2022, consubstanciava rendimento do casal, proveniente das rendas, e cujo destino era precisamente o pagamento daquelas prestações. “
*
III – As alegações do recorrente não mereceram qualquer resposta, quer dos reclamantes quer da primitiva exequente.
*
IV - OS FACTOS
Na sentença recorrida foi declara provada a seguinte matéria de facto, considerada relevante para a decisão da causa:
“1 - Foi apresentado como título executivo uma escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança celebrada em 26.09.1997 com o 1º executado, de que foram fiadores os 2º e 3º executados.
2 - Consta do requerimento executivo que o devedor principal entrou em incumprimento no pagamento das prestações mensais em 26.06.2019, momento a partir do qual não mais procedeu à liquidação da prestação vencida nessa data, nem das subsequentes, estando então em dívida o montante de € 27.648,24.
3 - E que os fiadores foram notificados da resolução do contrato em 26.05.2020, sendo que, à data da entrada da execução em juízo, apesar de interpelados para tal, nenhum valor mais fora pago.
4 - Em 08.06.2021 foi penhorado o imóvel hipotecado - (fração autónoma designada pela letra "E" correspondente ao segundo andar direito destinado a habitação do prédio urbano sito na Urbanização ..., em ... (... e ...), descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º ...96 da freguesia ..., concelho de Setúbal e inscrito na respetiva matriz sob o n.º ...54 da União das Freguesias ... (... e ...) - pertencente ao executado AA.
5 - Foram citados (citação após penhora), os executados fiadores em 09/06/2021, e o devedor principal em 27.06.2021.
6 - A reclamação de créditos contra o executado devedor principal foi apresentada pelos reclamantes em 05.07.2021.
7 - Extinta a execução pelo pagamento da quantia exequenda, os credores reclamantes apresentaram requerimento de prosseguimento da execução sobre o qual recaiu o seguinte despacho:
«Determino a renovação da execução somente quanto ao bem sobre que incide a garantia real invocada pelos requerentes, que assumem a posição de exequentes, ao abrigo do disposto no art. 850º, nºs. 2 e 3 do CPC.
Notifique nos termos do n.º 4 do art. 850º».
8 - Através de depósitos efetuados no período que decorreu de 4 de julho de 2012 até 22 de maio de 2019, os reclamantes pagaram ao exequente a quantia de € 28.916,52.
9 - No dia .../.../1997, o reclamado contraiu casamento católico com DD, sem convenção antenupcial.
10 - O casamento do reclamado com DD foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 07.02.2019, transitada na mesma data, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores do Seixal - Juiz 1.
11 - No dia 25.10.2018, em conferência de pais, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores do Seixal - Juiz 1, homologou por sentença o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais estabelecido entre o reclamado e a sua mulher, DD, relativo aos filhos menores de ambos, prevendo-se além do mais o regime de visitas para quando os pais passassem a residir em casas distintas.
*
Na mesma sentença foram declarados não provados os seguintes factos, que tinham sido alegados pelo executado/reclamado e ora recorrente:
“1 - O reclamante procedeu aos depósitos a pedido do executado.
2 - Os depósitos foram efetuados com valores que o executado e a mulher deste lhe entregavam, provenientes dos rendimentos do casal.
3 - Durante alguns meses, o reclamante depositou o valor da prestação com as rendas que lhe eram entregues diretamente pelos inquilinos que habitavam o imóvel do casal.”
*
V – O OBJECTO DO RECURSO
Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do mesmo CPC).
Assim, no caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso traduzem-se essencialmente na reapreciação do julgamento da matéria de facto feito na primeira instância, pretendendo o apelante que seja dada como provada a factualidade dada como não provada, e daí resultando um diferente julgamento de Direito, não se reconhecendo o crédito reclamado.
*
VI – APRECIANDO E DECIDINDO
1 - Como se disse, e se constata das conclusões do recurso, acima transcritas, o apelante assenta a sua pretensão de inverter o decidido na sentença impugnada na requerida alteração da matéria de facto a considerar.
Com efeito, não manifesta discordância em relação à fundamentação jurídica da sentença em apreço, à aplicação do Direito aos factos tal como desta consta, simplesmente entende que os factos a ter em conta não devem ser aqueles que foram considerados, pelo que deve o tribunal de recurso proceder à alteração da matéria de facto – e uma vez alterada esta daí resultará decisão oposta à proferida.
Como é sabido, a impugnação da matéria de facto por via de recurso de apelação tem a sua previsão legal fundamentalmente no artº 640º do CPC.
A aludida norma legal dispõe, quanto a ónus a cargo do recorrente, e com interesse para o caso presente, o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. (...)
Em face do conteúdo das alegações apresentadas, e concretamente das conclusões, pode dizer-se que esta impugnação respeitante à matéria de facto não prima pelo rigor desejado pelo legislador.
Na realidade o recorrente não identifica, nomeadamente discriminando pelos números respectivos, quais os pontos da matéria de facto que pretende ver alterados, nem as correspondentes respostas, nem as passagens do depoimento em que se apoia que deveriam fundamentar a alteração desejada.
Assim, pode dizer-se que esse descuido no cumprimento dos ónus recursórios coloca a impugnação deduzida muito perto daquela imperfeição que justificaria a sua rejeição.
Todavia, em face do conteúdo das alegações é fácil descortinar qual a pretensão do recorrente, até por se centrar em matéria muito concreta: pretende que seja dada como provada a factualidade declarada como não provada, de modo a que seja aceite a sua versão de que os pagamentos feitos pelo reclamante foram na realidade feitos a pedido do reclamado e com dinheiro pertencente ao casal deste (permitindo abrir caminho à desejada conclusão jurídica de que o crédito reclamado não existe).
Tal matéria consta dos pontos 1, 2 e 3 da factualidade exposta como não provada.
Para determinar a alteração da resposta dada pelo tribunal, dando agora como provada tal factualidade, o recorrente procura basear-se no depoimento de parte do próprio reclamante, único meio de prova produzido em audiência, do qual faz larga transcrição nas suas alegações.
Tendo presentes estas observações, aceita-se que a impugnação deduzida, embora imperfeita, reuniu os requisitos mínimos que permitem o seu conhecimento.
Anotamos ainda de passagem que a factualidade que o recorrente pretende agora que seja dada como provada constitui matéria de excepção (são factos que obstariam à existência do crédito reclamado) pelo que nos termos do art. 342º do Código Civil o ónus da sua prova sempre recairia sobre o próprio recorrente (embora, obviamente, pudesse ser confessada pela parte contrária).
Todavia, o recorrente por vezes argumenta de forma que parece esquecer esta repartição do ónus probatório, ao referir insistentemente que o reclamante não conseguiu explicar devidamente as razões da sua actuação, não justificou o seu comportamento (pagar ao longo do tempo as prestações do crédito habitação em que o reclamado era devedor).
Ora a verdade é que foi o reclamado que alegou que esses pagamentos eram feitos com dinheiro pertencente ao seu casal e não pertencente ao autor material dos pagamentos à Caixa, pelo que lhe cabia a ele fazer a demonstração disso.
Lembramos a este respeito que o reclamante era fiador no empréstimo para habitação em que o reclamado era o devedor (por isso mesmo acabou mais tarde por ser ele próprio executado), e que a filha do reclamante era então casada com o mesmo reclamado; tais circunstâncias permitem afirmar com segurança que a actuação do reclamante em nada briga com regras da experiência comum, nem se apresenta ilógica e irrazoável, como se argumenta no recurso.
Em todo o caso, sempre se dirá que, atento o conteúdo do referido depoimento de parte, ele de modo algum permite sustentar a alteração pretendida pelo recorrente.
Como se diz na motivação de que o recorrente discorda:
“… o que estava em discussão era, não a realização dos pagamentos, mas antes a proveniência dos valores que eram depositados, alegando o reclamado que os depósitos foram feitos a seu pedido, com valores que ele, executado, e sua mulher entregavam ao reclamante, provenientes dos rendimentos do casal, sendo que, durante alguns meses, o reclamante depositou o valor da prestação com as rendas que lhe eram entregues directamente pelos inquilinos que habitavam o imóvel do casal.
Em audiência foi ouvido apenas o reclamante, em depoimento de parte, resultando do mesmo que o reclamante não confessou nenhum dos factos alegados pelo reclamante.
Na verdade, embora este tenha referido que vendeu à sua filha, em 1995, a casa onde aquela vive atualmente, e que nessa casa viveu um casal norueguês de quem recebeu rendas, a partir de 2011, o reclamante deixou claro que essas rendas constituíam um rendimento seu, não um rendimento da sua filha e do reclamado, e que nunca estiveram - nem tinham que estar - aquelas rendas afetas ao pagamento das prestações.
Na verdade, embora não tenham ficado perfeitamente esclarecidas as razões pelas quais foi feita a “venda” em 1995, o reclamante afirmou que era claro para todos que as rendas que recebia eram um rendimento seu, como se continuasse a ser o dono da casa; não se tratava de um rendimento da filha nem do marido, até porque a casa era apenas da filha (casou com o reclamado em 1997).
Como acrescentou, os reclamantes, que só pagavam as prestações quando sabiam que era necessário, queriam apenas ajudar a sua filha (tem quatro filhos), sobretudo financeiramente, o que não implicava a entrega regular de uma quantia certa, sendo neste contexto que deve ser avaliada a sua conduta.
Por tudo isto, não se podia dar por provado que os pagamentos foram efetuados com valores que o executado e a mulher deste lhe entregavam, provenientes dos rendimentos do casal, ou que durante alguns meses o reclamante depositou o valor da prestação com as rendas que lhe eram entregues diretamente pelos inquilinos que habitavam o imóvel do casal, ou que os depósitos tenham sido feitos a pedido do reclamado.”
Dito isto, diremos que verificada a fundamentação constante da sentença recorrida, e examinada a prova disponível, invocada pelo recorrente, afigura-se que a pretendida alteração da matéria de facto não é procedente.
Na verdade, a posição tomada pelo julgador, devidamente explicada na fundamentação, afigura-se aquela que resulta logicamente dos elementos de prova a considerar, e não é contrariada pelas razões invocadas no recurso, pelo que acompanhamos nesta instância de recurso a convicção afirmada no primeiro grau.
Aliás, a verdade é que, vista a argumentação do recurso, afigura-se que esta consiste sobretudo na afirmação de uma convicção oposta àquela que foi formulada pelo julgador, sem de modo algum apontar meios de prova que imponham resposta diversa daquela a que chegou o tribunal.
Ora o que a lei exige é precisamente a indicação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
O rigor da expressão legal “impunham” explica-se pelas vantagens que a imediação confere ao julgador da primeira instância: não havendo razões decisivas que emerjam da reapreciação da prova levada a cabo pelo tribunal superior deve dar-se posição de primazia, relativamente à apreciação da credibilidade dos depoimentos e dos outros elementos probatórios, ao julgador a quo, que deteve a possibilidade de ouvir, perante si, os relatos das pessoas inquiridas, de confrontar os seus depoimentos com os outros elementos existentes nos autos, isto não obstante a valoração diferente que possa ser dada aos mesmos por terceiros, nomeadamente pela recorrente, que lhes possibilita chegar a conclusões divergentes das do julgador a quo (cfr. Ac. do TRE de 23/09/2004 no processo 1027/04-2, disponível em www.dgsi.pt).
Como sublinha Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil II, Almedina, 4ª edição, 266: “Existem aspectos comportamentais ou reacções do depoente que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia”.
No caso concreto, nem sequer se descortina agora, na prova gravada, motivo para encontrar nela comprovação da versão factual pretendida pelo recorrente.
Em conclusão, e sem necessidade de outras considerações, julgamos improcedente a impugnação do julgamento da matéria de facto em apreciação, pelo que se mantém a mesma sem qualquer alteração.
*
2 – Passando agora à decisão sobre o mérito do decidido, atendendo ao Direito, diremos que, como resulta da apreciação inicial, o recurso dependia inteiramente do sucesso da impugnação da matéria de facto – já que em face dos factos provados não se encontrava discordância do recorrente na aplicação do Direito feita na sentença recorrida.
Estabilizada a matéria de facto a considerar, pela improcedência do pedido da sua alteração, ficou comprometida a pretensão de modificar também a decisão final objecto de impugnação.
Diremos, todavia, a este propósito, que acompanhamos inteiramente a fundamentação apresentada na douta sentença recorrida.
Assim, recordamos que na sequência do deferimento do requerimento de renovação da execução os credores reclamantes passaram a assumir a posição de exequentes.
O que estava em causa nestes autos de reclamação de créditos era a verificação do crédito que os mesmos reclamaram, para que o mesmo seja pago pelo produto do bem penhorado, crédito este que o recorrente contestou.
Como resulta do disposto no art. 342º, nºs. 1 e 2 do CC, conjugado com o preceituado no art. 789º, nºs. 2 e 4 do CPC, competia aos reclamantes fazer prova dos factos constitutivos do seu direito, e ao impugnante do mesmo crédito cabia o ónus de provar os factos extintivos, modificativos ou impeditivos dessa obrigação (cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2017, 2ª edição, Almedina, pág. 427).
Ficou provado que os reclamantes, através de depósitos efectuados no período que decorreu de 4 de Julho de 2012 até 22 de Maio de 2019, pagaram ao exequente, a quantia de € 28.916,52, substituindo-se ao executado aqui reclamado e ora recorrente.
Como se verifica da matéria de facto disponível, o reclamado não provou a factualidade que tinha alegado como fundamento da sua oposição (que o pagamento foi efectuado a seu pedido, ou com valores provenientes dos rendimentos do seu casal, ou que o reclamante depositou o valor da prestação com as rendas que lhe eram entregues directamente pelos inquilinos que habitavam o imóvel do seu casal). Era a ele que competia fazer essa prova.
Por conseguinte, ficou demonstrada a existência do crédito reclamado, o que determina o seu reconhecimento.
Não se colocam dúvidas sobre a existência da sub-rogação, que permite aos reclamantes exercer os direitos originariamente pertencentes ao credor a quem pagaram.
Transcrevemos o que consta a este respeito da sentença revidenda, e que perfilhamos inteiramente.
“Estabelece o art. 592º, n.º 1 do CC que “o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver diretamente interessado na satisfação do crédito”.
“O n.º 1 do art. 593º estatui que “O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.”
“Por sua vez, o art. 644º do dispõe que “O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.” (…)
“Opera-se a sub-rogação quando um terceiro, que cumpre uma dívida alheia ou que para tal empresta dinheiro ou outra coisa fungível, adquire os direitos do credor originário em relação ao respectivo devedor. (…)
“Temos, pois que, o fiador que cumpre a obrigação perante o credor fica sub-rogado nos direitos deste, dando-se uma transferência do respectivo crédito, acompanhado da transmissão das respectivas garantias, ficando a caber ao fiador o direito a obter a realização coactiva da prestação, ou seja, de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação e de executar o património do devedor (art. 817º do Código Civil), caso não o consiga extrajudicialmente. Tendo o fiador pago uma dívida vencida do afiançado perante o credor, a sub-rogação transmite-lhe um crédito igualmente vencido.”.
“É esta a situação dos autos: provado que está o pagamento por parte dos fiadores, ficaram estes investidos na posição jurídica até aí atribuída ao credor da relação obrigacional (AA e Costa, in Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 731, citado no aresto proferido no processo).
“Deste modo, além de estarem munidos de título exequível, os reclamantes beneficiam da penhora efetuada na execução, sendo assim titulares de um direito real de garantia. Como se assinala no acórdão a que vimos fazendo referência, “os fiadores reclamaram o seu crédito com base na sub-rogação legal que o (…) pagamento parcial da dívida lhes conferiu (…) beneficiando da garantia da penhora, cuja função em se tratando de penhora sobre um bem é idêntica à da garantia real (garantia real de natureza processual), uma vez que tem como consequência retirar ao executado o poder de livre disposição (poder de vender, doar ou onerar) do bem penhorado.”
“Nos presentes autos apenas podem ser reclamados créditos que gozem de garantia real referente ao bem penhorado, tendo a reclamação sempre por base um título exequível (art. 788º, n.ºs. 1 e 2, do CPC).”
“Como ambos os requisitos se verificam, nada obsta à procedência da reclamação, devendo ter-se assim por verificado o crédito reclamado.”
Não merecendo qualquer censura o decidido na sentença revidenda, aliás muito douta, julgamos improcedente o recurso em apreço, com as necessárias consequências em sede de tributação.
*
V - DECISÃO
Pelo exposto, julgamos improcedente a apelação, e, com os fundamentos que foram expostos, confirmamos a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, dado o seu decaimento (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
*
*
Évora, 2 de Março de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso