Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
550/21.5T8PTG.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: REMUNERAÇÃO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
PRESCRIÇÃO
RENÚNCIA DE DIREITOS
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A inobservância, nas conclusões do recurso, do estipulado nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, origina a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
II - O ónus da prova de que o sistema remuneratório praticado pela empresa é mais favorável para o trabalhador do que o previsto em instrumento de regulamentação coletiva, recai sobre o empregador, como facto impeditivo do direito de que o autor se arroga titular – artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
III - Os recursos constituem meios de impugnação e de correção de decisões judiciais. Está vedada ao tribunal de recurso a possibilidade de se pronunciar sobre questões novas, não suscitadas no tribunal recorrido e que não são de conhecimento oficioso.
IV - Atento o disposto no artigo 337.º, n.º 1 do Código do Trabalho, qualquer uma das partes outorgantes de um contrato de trabalho sabe que até um ano após o dia que se sucede à cessação do vínculo laboral podem ser reclamados créditos laborais.
V - O decurso do tempo sobre a relação laboral não permite ser interpretado como renúncia à reclamação de eventuais créditos laborais.
VI - A propositura de uma ação judicial dentro do quadro legal, na qual o trabalhador de arroga titular de créditos laborais vencidos durante a execução do contrato de trabalho terminado, não constitui abuso de direito.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
Na presente ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, que H… instaurou contra Transportes Amadeu Ramos Unipessoal, Lda., foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
« Pelo exposto, e nos termos das disposições legais supra mencionadas, o tribunal julga a ação totalmente procedente por provada e, em consequência, condena o Réu Transportes Amadeu Ramos, Unipessoal, Ldª:
a) no pagamento ao Autor da quantia de 34.533,85 € (trinta e quatro mil, quinhentos e trinta e três euros e oitenta e cinco cêntimos), sendo 30.552,18 € (trinta mil quinhentos e cinquenta e dois euros e dezoito cêntimos) a título de capital, e 3.981,67 € (três mil novecentos e oitenta e um mil e sessenta e sete cêntimos) a título de juros de mora vencidos.
b) No pagamento ao Autor dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento à taxa legal em vigor.
c) Nas custas do processo.».
Não se conformando com o decidido, veio a Ré interpor recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«1. Tendo o A. sido admitido ao serviço da R. no ano de 2014, o regime regra em matéria de descanso semanal era o constante da Cláusula 20ª, do CCT publicado no BTE 16/1982 e que se manteve na Cláusula 27ª do CCT publicado no BTE E 34/2018, e no BTE 45/2019, isto é, o dia de descanso semanal obrigatório era ao Domingo e o dia de descanso complementar era no dia imediatamente anterior ( Sábado ), ou imediatamente seguinte ( Segunda – Feira );
2. Ou seja, muito embora o A. na petição inicial tenha mencionado que o dia de descanso complementar era ao Sábado e a R. tenha aceite esse fato na contestação, essa situação tinha que ser enquadrada no regime regra previsto nos CCT citados, isto é, nada impedia que as partes no âmbito do contrato individual de trabalho estabelecessem caso a caso se o dia de descanso complementar iria ser gozado ao Sábado ou na Segunda – feira seguinte;
3. Deste modo, muito embora as partes tivessem aceite que o regime regra era o do gozo do dia de descanso complementar ao Sábado, tal não impedia que fosse gozado à Segunda – feira, como estava aliás previsto no contrato de trabalho celebrado entre as partes;
4. Na verdade, no caso dos autos, as partes celebraram um contrato de trabalho ( Ver Doc. 1 oferecido com a contestação ) onde, na Cláusula 14ª, se veio a estabelecer que a marcação dos dois dias de descanso semanal era feita pelo empregador com o respeito do que se mostrasse em vigor na legislação aplicável e na Regulamentação Coletiva em vigor, e, como consta dessa mesma Cláusula o horário de trabalho do A. era um horário flexível fixado pelo empregador desde que fossem respeitados os limites legais;
5. Assim, o fato de as partes estarem de acordo em que, normalmente o dia de descanso complementar era ao Sábado, não impedia que o mesmo tivesse sido modificado de acordo com as exigências do trabalho para a Segunda – feira;
6. O A., na petição inicial procede à indicação de 29 dias em que o A. Alegadamente prestara o seu trabalho aos Sábados, Domingos e Feriados, fatos esses que a douta sentença deu como provados sob o nº 15;
7. Sobre esta matéria mal andou a sentença recorrida em dois aspetos, quais sejam o da valoração da quantidade do trabalho alegadamente prestado nesses dias, o que necessariamente terá que ser apreciado em sede de aplicação do direito e o da verificação dos dias invocados pelo A. para se poder constatar que verdadeira era a indicação dos dias efetuada pelo A. no art. 43º da petição inicial;
8. A douta sentença recorrida na fundamentação da decisão quanto à matéria de fato dada como provada sob o nº 15, esclarece, que a prova dos fatos vertidas neste número foi corroborada pelos depoimentos prestados em audiência de julgamento, quer pelo A. quer pelos restantes intervenientes, dos documentos de fls. 103 dos autos, e decorria à saciedade dos registos do tacógrafo juntos aos autos e do cartão, pessoal e intransmissível do A., no entanto, ao contrário do que consta desta fundamentação, não existem nos autos registos decorrentes do “cartão pessoal e intransmissível” do A., e não existia esse cartão individual, pois, como decorre dos “discos” juntos aos autos o tacógrafo utilizado pelo A. era um tacógrafo analógico;
9. Há na verdade que esclarecer que existem dois tipos de tacógrafos que são os analógicos e os digitais, pois nos tacógrafos analógicos existe a inserção de um disco em cartão onde são registados os tempos de circulação do veiculo e as paragens e onde o condutor tem de preencher manualmente a sua identidade, o local de saída e o local de chegada, a data de utilização, a identificação da viatura e os quilómetros registados no veículo à saída e à chegada e, no caso dos tacógrafos digitais o condutor do veiculo tem que inserir o seu cartão de identificação digital e todo o restante processamento se opera de modo automático e sem intervenção do condutor, sendo os dados constantes dos registos do tacógrafo extraídos através de equipamento computadorizado que permite a leitura dos dados registados;
10. No caso dos autos estamos perante tacógrafos analógicos onde, ao contrário do que vem dito na sentença recorrida, não existe o “cartão pessoal e intransmissível” do A. e os tempos de circulação e paragens são “geríveis” pelo próprio condutor e, como tem sido entendimento uniforme na Jurisprudência ( Ver por todos o Acórdão do STJ de 10 de Novembro de 2021 ) os dados constantes dos tacógrafos analógicos são meios de prova idóneos para comprovar os registos automatizados gerados pelo próprio tacógrafo, mas não quanto aos elementos preenchidos pelo próprio motorista, e que não são só por si elementos idóneos de prova;
11. Dito isto compreende – se que os fatos dados por provados “à saciedade” como considera a sentença recorrida para dar por provada a matéria vertida no nº 15 estão longe de poder contribuir para a prova dos fatos alegados, e muito menos serão completados em termos probatórios pelos registos manualmente efetuados pelo próprio A., como sucede com o Doc. de fls. 103 dos autos e a que a decisão sobre a prova dos fatos faz referência, sendo certo que nenhuma das partes ou das testemunhas foi confrontada com quaisquer elementos probatórios constantes dos ditos “discos”;
12. Temos pois que, ao contrário do que vem dito na sentença recorrida, nenhuma prova resultava à saciedade dos registos constantes dos “discos”;
13. E, verificando os dias dos meses e anos indicados na petição inicial constata – se que, não eram Sábados, nem Domingos nem feriados, os dias 5 de Março e 8 de Julho de 2019, e os dias 25 de Fevereiro, 6 e 7 de Julho de 2020, razão porque a douta sentença recorrida não podia ter considerado que aqueles dias eram Sábados, Domingos ou feriados, como o fez na resposta dada aos fastos dados por provados no nº 16;
14. E, assim sendo, como é, não podia ter dado como provado que a R. não concedera dias de descanso compensatório devidos por o A. ter trabalhado nos dias 5 de Março e 8 de Julho de 2019 e 25 de Fevereiro, 5 e 7 de Julho de 2020.
15. Nesta sede a douta sentença recorrida apreciou o alegado pela R. na sua contestação no que refere ao contrato de trabalho assinado entre o A. e a R. quando o A. Foi admitido ao serviço da R., e, citando a Jurisprudência existente sobre essa matéria sufragou o entendimento pacifico de que as convenções coletivas só podem ser afastadas por contrato individual de trabalho se este for globalmente mais favorável para o trabalhador, tratando – se pois da aplicação do previsto de forma clara no art. 476º, do Código do Trabalho;
16. E, no seguimento da previsão desse normativo, a sentença vem considerar que, na parte do contrato de trabalho que afasta a aplicabilidade da Cláusula 74º e do regime das ajudas de custo TIR previstas no CCT, o contrato era ilegal, ao substituir os regimes remuneratórios e aplicabilidade de outras Cláusulas do CCT, por um regime remuneratório em vigor na R. e que regulava o pagamento de ajudas de custo nacionais e internacionais, tendo a douta sentença, considerado devidos os acréscimos retributivos peticionados pelo A. a titulo da Cláusula 74º, nº 7, do CCT publicado no BTE nº 16/1982, e às ajudas de custo TIR introduzidas no Anexo III do BTE nº 34/2018;
17. No contrato de trabalho celebrado entre o A. e a R. e através do qual o A. passou a trabalhar para a R. ( Doc. 1 oferecido com a contestação ) estabeleceu – se na Cláusula 3ª que o A. renunciava à aplicação da Cláusula 74º do CCT e ao subsidio TIR previsto no Anexo III do CCT, vigorando antes as “ajudas de custo nacionais” ou as “internacionais” de acordo com a prática retributiva vigente na R. e remetendo – se no mais para as tabelas salariais previstas na Regulamentação Coletiva de Trabalho que estivesse em vigor ( Ver a Cláusula 1ª, nº 1, do Contrato celebrado ), sendo o contrato celebrado claro na sua redação e não suscitando dúvidas;
18. E a maior favorabilidade decorre da aplicação prática do que estava contratado, pois o A., logo no inicio da execução do contrato, o A. deveria ter tido o cuidado de verificar como é que se processava a relação de trabalho, e quais as remunerações auferidas que integravam o que constava do contrato celebrado, tanto mais quando é certo que da Cláusula 18ª, constava que o contrato estava sujeito a período experimental e, se duvidas existissem sobre a matéria retributiva deveria o trabalhador esclarecê–las junto da R.;
19. Dos Docs. 1 a 84 juntos aos autos pela R. em 12 de Janeiro de 2022 consta a demonstração de que a prática retributiva utilizada pela R. era bem mais favorável para o A. em termos das quantias líquidas pagas mensalmente pela R. ao A., em detrimento da aplicabilidade do regime constante do CCT, e nem se objete que os pagamentos a que aqueles documentos se referem só eram feitos no final da cada mês e que, por essa razão, era o A. que tinha que adiantar as despesas tidas com a alimentação e dormidas, pois tal situação só poderia traduzir–se num atraso de pagamento das “ajudas de custo” no mês inicial de execução do contrato, excedendo os benefícios ocorridos nos meses seguintes aquela “perda” inicial;
20. As condições remuneratórias praticadas pela R. e acordadas contratualmente com o A. eram para este francamente mais favoráveis, e tinham incidência também mais favorável para o A. pois tal forma de contabilização da retribuição evitava que as perdas de retribuição que o A. tinha que suportar pela execução coerciva para pagamento de dividas contraídas pelo A. atingissem um montante superior;
21. Deste modo e ao contrário do que veio a ser decidido na sentença recorrida a maior favorabilidade para o A. do contrato celebrado entre as partes era pois inegável, não decorrendo do contrato celebrado qualquer violação do art. 476º, do CCT;
22. A douta sentença recorrida após ter concluído que o Contrato de Trabalho celebrado entre as partes não era válido, extraiu dessa conclusão que seria aplicável ao contrato vigente entre as partes a Cláusula 74º introduzida no CCT aplicável no BTE nº do CCT 16/1982;
23. A aplicabilidade da citada Cláusula 74º, com a criação de uma retribuição especifica prevista no seu nº 7, faz nascer um acréscimo retributivo correspondente à prestação de duas horas diárias de trabalho suplementar, prescindindo os trabalhadores da retribuição por prestação de trabalho noturno ou por trabalho extraordinário prestado ( Ver o nº 8 da citada Cláusula );
24. Tal norma é claramente estabelecida em benefício do empregador e por essa razão ilícita por violação do art. 3º, nº 3, j), do Código do Trabalho, pois a sua razão de ser é a de conferir maior segurança nos custos do empregador em detrimento das retribuições devidas aos trabalhadores;
25. Na verdade, a prestação de trabalho suplementar nos transportes internacionais é uma inevitabilidade e com frequência por períodos superiores a duas horas diárias e à prestação de trabalho noturno e através desta cláusula procurou – se privilegiar uma certeza de custos do empregador em prejuízo dos trabalhadores, os quais excedem com inegável frequência as duas horas de trabalho suplementar e acabam por ter de prestar trabalho noturno por força das distâncias percorridas e dos períodos de “não trabalho” que lhes são impostos;
26. E talvez por essa razão, se fez consignar no nº 3, que o regime especial remuneratório estabelecido na Cláusula 74º, nº 7, dependia de “acordo prévio”, isto é, os motoristas internacionais ( como era o caso do A. ) só se sujeitariam ao recebimento de um acréscimo retributivo correspondente a duas horas diárias de prestação de trabalho suplementar com renuncia à retribuição do trabalho noturno ou extraordinário se houvesse acordo prévio como consta do nº 8 da Cláusula;
27. Caso não aceitassem tal acordo prévio, a Cláusula 74º, nºs 7 e 8, não lhes seria aplicável, como sucede no caso dos autos em que A. e R. não só não estabeleceram qualquer “acordo prévio”, mas antes recusaram por escrito através do Contrato de Trabalho entre eles celebrado, a aplicabilidade da citada Cláusula 74º;
28. A douta sentença ao considerar a Cláusula 74º citada como válida violou pois o art. 3º, nº 3, j), do Código do Trabalho e, quando assim se não entenda, violou o nº 3, da mencionada Cláusula 74º;
29. A citada cláusula 74º, que numa das soluções alternativas claramente favorece o empregador quando fixa o suplemento remuneratório por equiparação ao valor de duas horas de trabalho suplementar ( e que na prática são facilmente excedidas ) e dispensando – o também do pagamento das horas noturnas, vem estabelecer uma “confusão indesejável” com o regime de pagamento do trabalho suplementar, e, a ser assim, cai sob a alçada do art. 337º, nº 2, do Código do Trabalho, fazendo com que o acordo e os pagamentos dele decorrentes só possam ser provados através de “documento idóneo” ( “é aquele que se basta sem necessidade de qualquer outro meio de prova” ) quando tiverem sido excedidos cinco anos desde a data em que eram devidos;
30. Tendo a ação dado entrada em Juízo no dia 21 de Junho de 2022, caem na alçada de tal preceito normativo todos os pedidos formulados pelo A. que se relacionem com os créditos vencidos antes de 21 de Junho de 2016;
30. É inegável que o trabalho prestado em dias de descanso semanal ou complementar ou feriados é trabalho suplementar embora sejam conferidos acréscimos retributivos superiores aos que surgem nos dias normais de trabalho e até o direito a dias de descanso compensatório;
31. E, nesta matéria, a citada Cláusula 74ª, é clara e coloca duas situações em alternativa quais sejam as do trabalhador ter acordado com a aplicabilidade do regime especial previsto nos nºs 3 e 7, da Cláusula, perdendo direito ao pagamento do trabalho noturno ou suplementar mas renunciando ao trabalho noturno e suplementar ou a de ter recusado a aplicação especial prevista no nº 7 da Cláusula 74º, tendo então direito ao pagamento do trabalho suplementar prestado incluindo também o trabalho prestado em dias de descanso semanal ou complementar ou feriados;
32. Mas as duas situações não se podem cumular, isto é, a douta sentença ao condenar a R. a pagar ao A. os créditos decorrentes da aplicação da Cláusula 74º, nº 7, do CCT, não pode vir a condenar a R. por não ter pago trabalho suplementar;
33. E assim não o tendo feito a douta sentença recorrida violou a Cláusula 74º citada;
34. Os horários de trabalho dos trabalhadores móveis tem suscitado acesa controvérsia em sede do direito comunitário, particularmente nas situações em que o trabalhador está sujeito aos condicionalismos de terceiros para recolha ou entrega da carga que transporta- Ver a Comunicação 2017/C 165/01, de 24 de Maio, interpretativa da Diretiva 2003/88/ CE, transcrita em sede de alegações e que se aplica aos Estados Membros na ponderação da regulamentação existente no Direito Interno e colide frontalmente com um regime fixado em Convenção Coletiva que crie tempos de trabalho ficcionados através de um alargamento inusitado da aplicabilidade ao trabalho prestado parcialmente em dias de descanso semanal e que passa a contar – se como tempo ficcionadamente considerado como se houvesse efetiva prestação de trabalho e remunerado como tal.”;
35. E é esta a situação a que assistimos nos autos em que o A. ficava condicionado nas suas cargas e descargas de mercadorias pelos clientes em Espanha e que o obrigavam a esperar pelo final do dia para o transporte das cargas que tinha de fazer, condicionando irremediavelmente a chegada à sede da R. a horas em que já deveria ter iniciado o dia de descanso complementar, como de modo uniforme depuseram as testemunhas da R. (…) e (…);
36. Sendo a petição inicial completamente omissa sobre a medida temporal em que o A. prestou trabalho em dias de descanso semanal e complementar tal inviabiliza a possibilidade de contestação pela R.;
37. E nem se argumente com o previsto na Cláusula 51º, nº 1, do CCT publicado no BTE nº 34/2018 e 50º do BTE nº 45/2019, porquanto tais cláusulas não existiam nos períodos reclamados a esse título pelo A. na ação antes da entrada daqueles CCT e tais previsões colidem frontalmente com a Diretiva Comunitária sobre essa matéria – Diretiva 89/391/CE – e que o Tribunal de Justiça tem interpretado como condicionando os ordenamentos jurídicos que regem os tempos de trabalho e definindo a sua prevalência também no caso das Convenções Coletivas de Trabalho;
38. Deve pois ser anulada a douta sentença recorrida na parte em que condenou a R. no pagamento ao A. de trabalho suplementar, trabalho noturno, trabalho prestado em dias de descanso semanal, de compensação e feriados, porquanto a prova produzida nos autos não consente as conclusões constantes dos factos dados por provados e por incorreta aplicação do direito aos factos dados ( incorretamente ) por provados;
39. A douta sentença recorrida para decidir como decidiu baseou – se na prova decorrente essencialmente dos registos no tacógrafo e que se mostram juntos aos autos e nem o A. nem o representante legal da R. nem as testemunhas que depuseram nos autos foram confrontados com esses documentos;
40. Esses registos em tacógrafos analógicos não são elementos seguros probatórios atento o fato de poderem deturpar a realidade neles contida pois são suscetíveis de inclusão/alteração de dados pelo próprio condutor;
41. E, como se pode ler no Acórdão do STJ de 1/2/1995, transcrito em sede de alegações, aqueles documentos não são fatos quando desacompanhados de outros meios de prova;
42. A douta sentença recorrida apreciando a existência do abuso do Direito invocada pela R. na Contestação, entende que o comportamento do A. ao intentar esta ação não integra essa situação porquanto, como este afirmara em audiência, não lhe fora dada a oportunidade de esclarecer o que constava do contrato de trabalho assinado, não se tendo apercebido de que o mesmo implicava a não aplicabilidade de Cláusulas do CCT e nomeadamente a não aplicabilidade da Cláusula 74º do CCT e, nestas circunstâncias o A. optara por não perder o emprego e foi aceitando a situação;
43. O Contrato de Trabalho celebrado e que constas dos autos é perfeitamente claro sobre essa matéria bem como claros são os recibos referentes às “ajudas de custo” que o R. não ignorava a que se referiam pois erram – lhe dados para assinatura, como deles consta e a relação contratual não durou somente umas semanas ou meses e perdurou antes por mais de 6 anos, não merecendo pois qualquer credibilidade aquelas afirmações;
44. E o que sucedeu foi que o A. foi “deixando andar” até que resolveu deixar de trabalhar para a R. e só então passou a perceber o que estava no contrato e aquilo a que se achava com direito, ou seja, durante mais de 6 anos tudo estava bem mas depois mostrou que afinal queria que a R. lhe pagasse quantias a que se julgava com direito;
45. Atuou o A. com manifesto abuso do direito, mostrando – se preenchidos todos os requisitos para esse enquadramento, - Ver o Acórdão do STJ de 16 de Novembro de 2011, transcrito em sede de alegações;
46. Em suma a douta sentença recorrida ao decidir como decidiu quer em sede de matéria de fato quer de direito fazendo incorreta valoração da prova e da aplicação do direito devendo ser por essa razão anulada absolvendo – se a R. do peticionado pelo A. nos autos.»
Contra-alegou o Autor, pugnando pela improcedência do recurso.
A 1.ª instância admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
Tendo o processo subido ao Tribunal da Relação, deu-se cumprimento ao disposto no artigo 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Procuradora-Geral Ajunta emitiu parecer favorável à confirmação da sentença recorrida.
O Apelante respondeu.
Mantido o recurso nos seus precisos termos, foram dispensados os vistos legais, com a anuência dos Exmos. Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
- Existência de um regime remuneratório mais favorável para o trabalhador.
- Invalidade da cláusula 74.ª do CCT e impossibilidade de cumular o acréscimo remuneratório na mesma previsto com a remuneração correspondente a trabalho suplementar prestado em dias de descanso semanal, descanso compensatório e feriados.
- Existência de abuso de direito com a instauração da ação.
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III. Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1º A Ré dedica-se ao Transporte Público Rodoviário de Mercadorias.
2º O Autor foi admitido ao seu serviço em 11/09/2014 como motorista de pesados, desempenhando as funções de motorista dos Transportes Ibéricos Rodoviários de Mercadorias, conduzindo veículos pesados de mercadorias até 44 Toneladas entre Portugal e a Espanha, trabalhando sob as ordens, direção e fiscalização da Ré.
3º O horário do Autor era de 40 horas semanais, sendo 8 horas por dia útil de 2ª a 6ª feira, sendo os sábados e os domingos os dias de descanso complementar e obrigatório respetivamente.
4º Em carta registada datada de 01/03/2021 o Autor cessou o contrato de trabalho com efeitos a partir do dia 1/05/2021.
5º A Ré não pagava ao Autor as refeições à fatura, não lhe fazendo quaisquer adiantamentos antes de cada viagem.
6º A Ré pagava ao Autor, a título de ajudas de custo, 0,06 € por quilómetro percorrido.
7º O Autor não entregava à Ré faturas relativas às suas despesas de alimentação.
8º Entre Setembro de 2014 e Setembro de 2018, o Autor recebia, a título de remuneração base, a quantia mensal de 583,00 €.
9º Entre Outubro de 2018 e Dezembro de 2019, o Autor recebia, a título de remuneração base, a quantia mensal de 630,00 €.
10º Entre Janeiro de 2020 e Dezembro de 2020, o Autor recebia, a título de remuneração base, a quantia mensal de 700,00 €.
11º Entre Janeiro de 2021 e Maio de 2021, o Autor recebia, a título de remuneração base, a quantia mensal de 733,07 €.
12º A Ré não entregou ao Autor os recibos de vencimentos relativos aos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2021.
13º Relativamente aos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2021, a Ré pagou ao Autor, por duas ocasiões, a quantia total de 1.140,00 €.
14º O Autor gozou as férias vencidas em Janeiro de 2021 no mês de Abril de 2021.
15º O Autor trabalhou ao serviço da Ré em viagens por esta determinadas, os dias 10 de Junho e 2 de Julho de 2017, 13 de Maio, 8 e 28 de Julho e 5 de Agosto de 2018, 13 e 27 de Janeiro, 23 de Fevereiro, 5 de Março, 1 de Maio, 8 e 20 de Junho, 6 e 13 de Julho, 15 e 24 de Agosto, 1 e 23 de Novembro e 25 de Dezembro de 2019, 25 de Fevereiro, 14 de Março, 6 e 7 de Junho, 26 de Julho, 5 de Outubro, 7, 15 e 29 de Novembro e 8 de Dezembro de 2020, 23 de Janeiro de 2021, num total de 29 dias de descanso (sábados, domingos e feriados).
16º A Ré não deu a descansar ao Autor os descansos compensatórios relativos aos domingos e feriados trabalhados, num total de 18 dias entre Junho de 2017 e Dezembro de 2020 (10 de Junho, 2 de Julho de 2017, 13 de Maio, 28 de Julho, 5 de Agosto de 2018, 13 e 27 de Janeiro, 5 de Março, 1 de Maio, 20 de Junho, 15 de Agosto, 1 de Novembro e 25 de Dezembro de 2019, 25 de Fevereiro, 7 de Junho, 26 de Julho, 5 de Outubro, 15 e 29 de Novembro e 8 de Dezembro de 2020).
17º No dia 17 de Maio de 2021, a Ré pagou ao Autor, através de transferência bancária, a quantia de 630,00 €.
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E considerou que não se provaram os seguintes factos:
A – Que o Autor tenha optado pelo modo de pagamento de ajudas de custo a 0,06 €/km percorrido e que tal se afigurasse, em concreto, mais favorável para o Autor.
B – Que, enquanto perdurou o contrato, o Autor nunca tenha colocado em causa o método de cálculo das ajudas de custo.
C – Que o Autor tenha recebido, a título de quilómetros percorridos, a quantia total de 22.050,00 € e que tal quantia se destinasse a substituir o valor devido através da cláusula 74º e prémio TIR.
D – Que a Ré tenha pago ao Autor a quantia de 29.441,14 € a título de compensação calculada através da cláusula 74º, nº 7, prémio TIR, diuturnidades e subsídios de férias no período compreendido entre Setembro de 2014 e Dezembro de 2019 e Fevereiro, Março e Abril de 2021, nem os respetivos juros de mora, no valor de 3.981,67 €.
E – Que a Ré tenha pago ao Autor a quantia de 1.354,87 € a título de 29 dias de trabalho suplementar prestado relativo aos anos 2017 a 2021.
F – Que a Ré tenha pago ao Autor a quantia de 386,17 € relativa aos descansos compensatórios devidos pelos domingos e feriados trabalhados e não gozados, num total de 18 dias entre Junho de 2017 e Dezembro de 2020 (10 de Junho, 2 de Julho de 2017, 13 de Maio, 28 de Julho, 5 de Agosto de 2018, 13 e 27 de Janeiro, 5 de Março, 1 de Maio, 20 de Junho, 15 de Agosto, 1 de Novembro e 25 de Dezembro de 2019, 25 de Fevereiro, 7 de Junho, 26 de Julho, 5 de Outubro, 15 e 29 de Novembro e 8 de Dezembro de 2020).
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IV. Impugnação da decisão factual
Conjugando as alegações e as conclusões do recurso, infere-se que a recorrente pretende impugnar a decisão factual respeitante aos pontos 3, 15 e 16 do elenco dos factos provados.
Dispõe o artigo 640.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[2], temos entendido que o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto, deve indicar, nas conclusões do recurso, os concretos pontos de facto que pretende ver alterados, propondo o sentido da decisão a proferir quanto aos mesmos, sob pena de rejeição do recurso quanto à impugnação.
No vertente caso, afigura-se-nos que o ónus de impugnação que recaía sobre a recorrente não foi totalmente observado.
Desde logo, nas conclusões do recurso, a recorrente não indica qual o sentido da decisão a proferir quanto ao ponto factual 3, que, aliás, também não é especificado (vejam-se as conclusões 1 a 5).
Relativamente aos especificados pontos 15 e 16, o único sentido da decisão a proferir que se consegue extrair das conclusões 6 a 14, é que não deverá ser considerado provado, no ponto 15, que os dias:
-5 de março e 8 de julho de 2019;
- 25 de fevereiro de 2020;
- 6 e 7 de julho de 2020,
eram sábados, domingos ou feriados.
E que, no ponto 16, também não deve ser considerado provado que a Ré não concedeu os dias de descanso compensatório devidos, por o Autor ter trabalho nos referidos dias.
Nada mais se consegue extrair, das aludidas conclusões, sobre a decisão que a recorrente entende que deveria ser proferida quanto a estes pontos factuais.
Por conseguinte, a impugnação do ponto 3 tem de ser rejeitada por falta de observância do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º, e a impugnação dos pontos 15 e 16 ficará restringida à matéria que a recorrente indicou que deveria ser alterada, pois só, nesta parte, foi observado o ónus de impugnação.
Na sequência, eis o que importa ter em consideração:
- O dia 5 de março de 2019, correspondeu ao dia de carnaval, que é considerado dia de feriado pela cláusula 28.º, n.º 3 do CCT aplicável[3], na versão publicada no BTE n.º 34/2018;
- O dia 8 de julho de 2019, não consta do ponto factual 15.
O que consta deste ponto é o dia 8 de junho que foi um sábado e o dia 6 de julho, que também foi um sábado.
- O dia 25 de fevereiro de 2020, correspondeu ao dia de carnaval, que é considerado feriado pela cláusula 28.º, n.º 3 do CCT aplicável, na versão publicada no BTE n.º 45/2019;
- Os dias 6 e 7 de julho de 2020, não constam mencionados no ponto factual 15.
Neste ponto são mencionados os dias 6 e 7 de junho, que foram, respetivamente sábado e domingo.
Perante o exposto, inexiste qualquer fundamento para alterar o impugnado ponto 15.
Quanto ao ponto 16, verifica-se que as únicas datas mencionadas pela recorrente que constam deste ponto factual são os dias 5 de março de 2019 e 25 de fevereiro de 2020, que correspondem a feriados.
Consequentemente, também não há fundamento para alterar o mencionado ponto 16.
Concluindo, a impugnação da decisão fáctica improcede na totalidade.
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V. Sobre o regime remuneratório mais favorável ao trabalhador
Alega a recorrente que o regime remuneratório praticado era globalmente mais favorável ao trabalhador do que o regime resultante do CCT aplicável.
No acórdão desta Secção Social, proferido em 30-03-2017[4], sumariou-se o seguinte:
«I - Nada impede que o sistema retributivo do CCTV celebrado entre a ANTRAM - Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias e a FESTRU - Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários Urbanos (publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 9, de 8 de Março de 1980, com a revisão publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 16, de 29 de Abril de 1982) seja alterado por acordo entre as partes contratantes, ou mesmo unilateralmente, através de um compromisso vinculativo para a entidade empregadora, desde que daí resulte um regime mais favorável para o trabalhador;
II – Compete à entidade empregadora provar que o sistema remuneratório estabelecido é mais vantajoso para o trabalhador do que o estabelecido no CCTV (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil);
III – Não tendo sido feita tal prova, deve declarar-se nulo o sistema remuneratório praticado por aquela, a qual deverá, em consequência, ser condenada no pagamento ao trabalhador das quantias devidas por força das rubricas previstas no CCTV e peticionadas na ação, devendo, por sua vez e por força do estatuído no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, o trabalhador restituir as importâncias que recebeu a tal título em consequência do regime remuneratório praticado.»[5]
Tal como resulta do acórdão citado, o ónus da prova de que o sistema remuneratório aplicado pela empresa é mais favorável para o trabalhador recai sobre o empregador, como facto impeditivo do direito de que o autor se arroga titular – artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
No vertente caso, com relevância, resultou provado:
- Entre 11/09/2014 e 01/05/2021, o recorrido exerceu as funções de motorista de transporte internacional de mercadorias, sob as ordens, direção e fiscalização da recorrente.
- A recorrente não pagava as refeições à fatura, nem fazia quaisquer adiantamentos antes de qualquer viagem.
- A recorrente pagava ao trabalhador, a título de ajudas de custo, 0,06 € por quilómetro percorrido.
- A recorrente pagou ao recorrido as seguintes remunerações base: € 583,00 (entre setembro de 2014 e setembro de 2018); € 630,00 (entre outubro de 2018 e dezembro de 2019); € 700,00 (entre janeiro de 2020 e dezembro de 2020); € 733,07 (entre janeiro de 2021 e maio de 2021).
- Relativamente aos meses de fevereiro, março e abril de 2021, a recorrente pagou ao recorrido, por duas ocasiões, a quantia total de € 1.140,00.
- No dia 17 de maio de 2021, a recorrente pagou, através de transferência bancária a quantia de € 630,00.
Ora, com arrimo nos factos assentes, não é possível inferir que o regime remuneratório praticado pela recorrente era mais favorável ao trabalhador, comparado com o montante que seria devido de acordo com os instrumentos de regulamentação coletiva, sucessivamente aplicáveis.
Destarte, não logrou a recorrente demonstrar, como lhe competia, que o esquema remuneratório aplicado era mais vantajoso para o trabalhador.
Tendo a 1ª instância assim decidido, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, neste aspeto.
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VI. Invalidade da cláusula 74.ª do CCT e impossibilidade de cumular o acréscimo remuneratório na mesma previsto com a remuneração correspondente a trabalho suplementar prestado em dias de descanso semanal, descanso compensatório e feriados.
No recurso interposto, suscitam-se as questões em epígrafe.
Sucede que estas questões são, pela primeira vez, introduzidas no processo.
As mesmas não foram colocadas à apreciação do tribunal de 1.ª instância.
É consabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões formuladas pela recorrente. Todavia, existe um natural limite às questões suscitadas nas conclusões: a decisão recorrida.
Os recursos visam o reexame de uma decisão proferida pelo tribunal a quo, de forma a possibilitar, se houver fundamento para tanto, a correção de tal decisão.
Os recursos são, assim, meios de impugnação e de correção de decisões judiciais.
Está vedada ao tribunal de recurso a possibilidade de se pronunciar sobre questões novas, não suscitadas no tribunal recorrido, salvo se forem de conhecimento oficioso.
Tem sido este o entendimento unânime da nossa Jurisprudência[6].
Consequentemente, estando em causa novas questões, que não são de conhecimento oficioso, não pode este tribunal conhecer das mesmas.
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VII. Abuso de direito
Sustenta a recorrente que tendo a relação laboral que vigorou entre as partes processuais durado mais de seis anos, sem que o recorrido tenha reclamado os direitos de que se arroga agora titular, a propositura da presente ação constitui um manifesto abuso de direito.
Também nesta questão, não assiste razão à recorrente.
Apreciemos.
A figura do abuso de direito consagrada no nosso ordenamento jurídico emerge essencialmente de um valor fundamental para a vida social, juridicamente organizada – a boa-fé.
«É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.» - artigo 334.º do Código Civil.
Sobre a norma citada, escreveu António Menezes Cordeiro[7]:
«No direito português, a base jurídico-positiva do abuso de direito reside no artigo 334.º e, dentro deste, na boa-fé. Para além de todo o desenvolvimento histórico e dogmático do instituto, que aponta nesse sentido, chamamos ainda a atenção para a inantendibilidade, em termos de abuso, dos bons costumes e da função económica e social do direito.
Os bons costumes remetem para regras de comportamento sexual e familiar que, por tradição, não são explicitadas pelo Direito Civil, mas que este reconhece como próprias. E eles remetem, também, para certos códigos deontológicos reconhecidos pelo Direito. Nestes termos, os bons costumes traduzem regras que, tal como muitas outras, delimitam o exercício dos direitos e que são perfeitamente capazes de uma formulação genérica. Não há, aqui, qualquer especificidade.
Quanto ao fim económico e social dos direitos: a sua ponderação obriga, simplesmente, a melhor interpretar as normas instituidoras dos direitos, para verificar em que termos e em que contexto se deve proceder ao exercício. Também aqui falta um instituto autónomo, já que tal interpretação é sempre necessária.»
Quanto à boa-fé, refere especificamente:
«A boa-fé, em homenagem a uma tradição bimilenária, exprime os valores fundamentais do sistema. Trata-se de uma visão que, aplicada ao abuso de direito, dá precisamente a imagem propugnada. Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vetores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa».
Salienta ainda o autor que o abuso de direito se revela nos seguintes grupos típicos de atuações abusivas (sem prejuízo de se manter sempre a mente aberta para comportamentos abusivos não enquadráveis nesta tipologia típica):
- o venire contra factum proprium;
- a inalegabilidade;
- a suppressio;
- o tu quoque;
- o desequilíbrio no exercício.
Em breve síntese:
Sob o chamado venire contra factum proprium, tem-se entendido que se trata de uma conduta contraditória, cuja proibição está contida no segmento da norma contida no artigo. 334.º do Código Civil, que alude aos limites impostos pela boa-fé.[8]
Alguém assume uma conduta que é contraditória com outra conduta que já havia assumido, e que leva à violação da confiança que se havia instalado quanto ao comportamento inicialmente assumido.
Por isso o venire contra factum proprium, na sua apreciação, combina-se com o princípio da tutela da confiança.
A inalegabilidade formal ou, simplesmente inalegabilidade, ocorre quando alguém se aproveita da invalidade formal do negócio jurídico, em termos contrários à boa-fé.
Num primeiro momento o agente dá azo à nulidade formal de determinado negócio jurídico dele se prevalecendo e mantendo-o enquanto lhe seja conveniente, para quando lhe deixar de convir vir invocar a sua nulidade, libertando-se de tal negócio. Ora, o sistema não poderia permitir tal violação da confiança.[9]
A suppressio (supressão) abrange situações de não exercício prolongado de um direito que, em certas circunstâncias, deixa de ser poder exercer, por tal exercício contrariar a boa-fé.[10]
Distingue-se do venire contra factum proprium por o exercício retardado do direito consubstanciar, à luz do sistema, uma situação de injustiça para a parte contrária e violar a tutela da confiança/boa-fé.[11]
O tu quoque (também tu!) abrange situações em que uma pessoa que viola uma norma jurídica não pode, depois, vir invocar essa mesma norma a seu favor.[12]
Analisando agora o caso concreto, o que resulta dos factos provados é que durante mais de seis anos de vigência do contrato de trabalho, a recorrente aplicou um determinado regime remuneratório que o trabalhador veio pôr em causa através da propositura da presente ação judicial e, na sequência, veio reclamar direitos que considera ser titular por força do CCT aplicável.
Ora, atento o disposto no artigo 337.º, n.º 1 do Código do Trabalho, qualquer uma das partes outorgantes de um contrato de trabalho sabe que até um ano após o dia que se sucede à cessação do vínculo laboral podem ser reclamados créditos laborais.
É, aliás, vulgar que os trabalhadores só venham reclamar créditos, que consideram serem devidos, após a cessação da relação laboral.
Tal é explicável pelo receio que, muitas vezes, sentem em sofrer represálias (máxime, o despedimento), se reclamarem tais créditos durante a vigência do contrato.
Escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, P. 2/08.9TTLMG.P1.S1[13]:
« A relação laboral é uma relação de natureza duradoura, que está sujeita ao longo da sua existência a ser questionada quanto ao imperfeito cumprimento pelas partes outorgantes.
Mas se constitui tarefa nada dificultosa para a entidade empregadora interpelar o trabalhador, no momento que lhe aprouver, quanto ao defeituoso desempenho da sua função, outro tanto se não verifica por parte do trabalhador, quando o incumprimento se verifica do lado da primeira.
Precisamente porque nessa relação não se verifica um equilíbrio de forças quanto à exigência da respetiva contraprestação.
O trabalhador representa indubitavelmente a parte mais débil da relação de trabalho porque, por regra, é a que dela mais carece e, por isso, é humano e compreensível que não reclame de direitos que lhe assistam enquanto tenha interesse na manutenção dessa relação e não a queira colocar em risco com a reclamação de contraprestações não satisfeitas, sobretudo através de demanda judicial.
Por tal motivo é que os créditos emergentes da relação laboral não prescrevem enquanto o contrato se mantiver em vigor, dando-se oportunidade ao trabalhador [e também ao empregador] de os poder reclamar durante o ano seguinte ao termo do contrato (art. 381.º, n.º do CT).
E o facto de o trabalhador vir a exigir do empregador prestações salariais que há longos anos lhe eram devidas, prestações que na altura podia ter exigido, mas que não exigiu, qualquer que tenha sido o motivo — imperfeito conhecimento dos seus direitos, receio de perda do emprego, expectativa de reparação do incumprimento do empregador, etc. — não integra, por princípio, uma atuação com abuso do direito, mas antes um exercício incensurável do mesmo direito.
É que a não reclamação na altura própria de direitos que assistam ao trabalhador não comporta o significado, atenta a natureza e posição das partes no contrato, que o mesmo deles tivesse pretendido abdicar, tanto mais tratando-se de direitos indisponíveis, para mais tarde assumir uma conduta antagónica e surpreender o empregador com um pedido inesperado.
A relação laboral está concebida na lei em termos de ambas as partes poderem reclamar uma da outra créditos que lhes assistam, quer durante a vigência do contrato quer durante o ano seguinte ao seu termo, enquanto tais créditos se não mostrem prescritos. E, assim sendo, cada uma delas, tem de estar consciente e prevenida para a eventualidade de uma petição reclamadora de direitos, tanto mais nas situações em que não possam ignorar a falta de cumprimento da sua parte, por longínqua que ela já se mostre.»
Destarte, o decurso do tempo sobre a relação laboral não permite ser interpretado como renúncia à reclamação de eventuais créditos laborais.
Logo, a propositura da presente ação e a formulação da pretensão deduzida não assumem qualquer uma das atuações possíveis de abuso de direito identificadas supra, nomeadamente o venire contra factum proprium.
Bem pelo contrário, o trabalhador exerceu um direito que lhe assistia, dentro do quadro legal, em absoluto respeito pelo princípio da boa-fé em que se funda o ordenamento jurídico.
Concluindo, sufragamos a decisão recorrida, na parte em que decidiu que ao interpor a presente ação o recorrido não agiu com abuso de direito.

Em suma, o recurso mostra-se totalmente improcedente.
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VIII. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
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Évora, 27 de outubro de 2022

Paula do Paço (Relatora)
Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Moisés Silva (2.º Adjunto)

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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Emília Ramos Costa; 2.ª Adjunto: Moisés Silva
[2] V.g. Revista n.º 8670/14.6T8LSB.L2.S1, de 16/06/2020 e Revista n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, de 07/07/2016.
[3] CCT celebrado entre a ANTRAM e a FECTRANS.
[4] Processo n.º 345/16.8T8EVR.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] O apreciado neste acórdão, ainda que se refira apenas ao CCT celebrado entre a ANTRAM e a FESTRU mostra-se relevante, não só porque este CCT foi aplicável à relação laboral dos autos até setembro de 2018, como o raciocínio exposto se aplica ao CCT celebrado entre a ANTRAM e a FECTRANS, que passou a ser aplicável a partir de outubro de 2018.
[6] Neste sentido, a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/2009, P. 09P0308 e de 18/06/2006, P. 06P2536; e Acórdãos da Relação de Évora, de 31/05/2012, P. 245/08.5T8STC.E2 e de 08/05/2012, P. 595/09.3TTFAR.E1.
[7] In “Litigância de Má-fé, Abuso do Direito de Ação e culpa ‘In Agendo’”, 3.ª edição, Almedina, pág. 131.
[8] V.g. Acórdão da relação do Porto de 11/05/1989, CJ, 1989, 3.º, pág. 192.
[9] V.g. Acórdão da relação de Lisboa de 24/04/2008, P.2889/2008.6, publicado em www.dgsi.pt.
[10] Cf. portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/
[11] V.g. Acórdão da Relação do Porto de 15/12/2005, P.0535984, consultável em www.dgsi.pt.
[12] V.g. Acórdãos do Supremo tribunal de Justiça de 12/01/2002, P. 02B4734 e da Relação de Lisboa de 24/04/2008, P. 2889/2008.6, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Consultável em www.dgsi.pt.