Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
165/16.0PBBJA.E1
Relator: ANA BACELAR CRUZ
Descritores: DECLARAÇÔES PRESTADAS PERANTE OPC
LEITURA NÃO CONSENTIDA DE AUTO DE DECLARAÇÕES
Data do Acordão: 12/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A leitura não consentida, no decurso da audiência de julgamento, de declarações prestadas por testemunha, durante o inquérito, a órgão de polícia criminal, não constitui causa de nulidade da sentença; A valoração de declarações prestadas em audiência de julgamento na sequência de leitura não consentida, no decurso da audiência de julgamento, de declarações prestadas por testemunha, durante o inquérito, a órgão de polícia criminal, não constitui causa de nulidade da sentença.

II - Porque a nulidade prevenida no n.º 9 do artigo 356.º do Código de Processo Penal não integra o elenco das nulidades consagradas no artigo 119.º do Código de Processo Penal – nulidades insanáveis -, deveria ter sido invocada antes de terminada a sessão de julgamento em que ocorreu.

III - Todavia, face ao disposto no artigo 356.º do Código de Processo Penal, não podia o Tribunal de 1.ª Instância ter proporcionado à testemunha a leitura das declarações que anteriormente havia prestado no decurso do inquérito. E porque as declarações da mencionada testemunha foram consideradas pelo Tribunal de 1.ª Instância para a fixação dos factos a que procedeu, a violação da proibição de prova daí decorrente deve ser ponderada no momento em que se avaliar a forma como o Tribunal de 1.ª Instância valorou a prova produzida em julgamento.

Sumariado pela relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 165/16.0PBBJA do Juízo Local Criminal de Beja da Comarca de Beja, o Ministério Público acusou

MLC, viúva, reformada, nascida a 29 de novembro de 1939, em Nossa Senhora da Torega, Évora, filha de …, residente na Rua …, em Beja

pela prática
- de um crime de injúria agravado, previsto e punível pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência à alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal;

- de um crime de ameaça agravado, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.

ALF, devidamente identificada nos autos, pediu a condenação da Arguida a pagar-lhe, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 2 000,00 (dois mil euros), acrescida de juros de mora, desde a ocasião da notificação até integral pagamento

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada em 3 de maio de 2017, foi decidido:

«A) Julgo parcialmente procedente a acusação pública e, em consequência:

A1.) Absolvo a arguida MLC da autoria material de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;

A2.) Condeno a arguida MLC, como autora material de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de € 585,00 (quinhentos e oitenta e cinco euros);

A3.) Condeno a arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça individual em três unidades de conta - artigos 513.º e 514.º do GP.P. -, bem como nos demais encargos a que tenha dado azo, sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário de possa beneficiar.
***
B) Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por ALF e, em consequência, condeno a arguida/demandada MLC no pagamento de € 1.000,00 (mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, valor a que deverão acrescer juros de mora calculados desde a data da notificação do pedido e vincendos até efetivo e integral pagamento, a calcular às taxas legais supletivas e sucessivamente em vigor.

Sem custas cíveis, por o valor do pedido de indemnização civil não exceder vinte unidades de conta, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea n) do Regulamento das Custas Processuais.»

Inconformada com tal decisão, a Arguida dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:

«1ª - É nula, por violação do disposto nos artigos 355º, n.º 1, e 356º, n.ºs 1, aI. b), 2, aI. b), 3 e 5, do CPP, a sentença que fundamenta a decisão condenatória em de­poimento prestado por testemunha - presente em audiência - perante órgão de polícia criminal e lido em audiência sem o consentimento/acordo do arguido.

2ª - O princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP não fica preenchido por uma convicção que assente em subjetivismos, estados emocio­nais, impressões e/ou ideias, sob pena de traduzir uma decisão arbitrária; sem fac­tos concretos que corporizem logicamente essa convicção, a decisão condenatória que assim é proferida viola o princípio geral inscrito na norma, tornando a conde­nação carecida de fundamentação.

3ª - Apresenta-se ferida dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão - CPP, artigo 410º, n.º 2, als. c) e b), normativos que assim resultam violados - a sentença que, não obstan­te afirmar "que se verificou a impossibilidade de articulação ou concatenação de toda a prova indicada na acusação com as testemunhas inquiridas", ainda assim, condena a arguida como autora do crime por cuja prática vinha acusada.

4ª - É nula, por falta de fundamentação - CPP, artigos 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, aI. a) -, a sentença que, na questão civil, condena a demandada a pagar à demandan­te uma indemnização, fundamentando-se numa "perturbação emocional" desta sem qualquer facto provado que tanto concretize.

5ª - Não tendo sido validamente produzida em audiência de julgamento prova al­guma de que a recorrente praticou os factos por cuja prática foi acusada, deve a sentença condenatória, na parte penal e na parte civil, ser revogada e substituída por decisão absolutória.

Termos em que, concedendo provimento ao recurso, farão V. Ex.ªs, senhores Desembargadores, Justiça!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

1º - Inconformada com a douta sentença proferida nos presentes autos e que a condenou pela prática de um crime de Injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, nº 1 e 184º, por referência ao disposto no artº 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal, vem a arguida dela interpor o presente recurso pugnando pela sua absolvição alegando, em síntese, que a douta sentença recorrida sofre dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vícios que entende preencherem o previsto no artº 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Código Penal.

2º - A matéria de facto dada como provada na douta sentença e que conduziu à condenação da arguida resultou da ponderação, avaliação e análise crítica de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como da prova documental junta aos autos, e que o Tribunal de acordo com a sua livre convicção e as regras de experiência comum, tal como impõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal, tarefa essa que lhe permitiu concluir pela credibilidade dos relatos da ofendida e das testemunhas produzidos em audiência de discussão e julgamento.

3º - A recorrente alega que a convicção do Tribunal não se mostra firmada em nenhum facto concreto o que é manifestamente falso se atentarmos na matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 5 da douta sentença recorrida e que a recorrente transcreve no texto do seu recurso.

4º - O que parece resultar das alegações da recorrente no ponto II, alíneas a., b. e c. é uma notória confusão entre os elementos objetivos do tipo de crime de Injúria, por cuja prática a recorrente foi condenada e os elementos objetivos do crime de Difamação.

5º - Na verdade, a recorrente insiste que resultou dos depoimentos das testemunhas ouvidas que ninguém, para além da ofendida/assistente, ouviu as expressões que a recorrente terá proferido e, como tal, a conduta da arguida/recorrente não integra a prática do crime.

6º - Ora, como é consabido, para o preenchimento do tipo legal do crime de Injúria basta que o agente dirija à vítima expressões idóneas a ofender a sua honra ou consideração, pessoal ou profissional, não exigindo o tipo de crime que tais expressões sejam ouvidas por terceiros.

7º - Aliás, no art.º 183º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal está prevista agravação da moldura penal estatuída no art.º 180º para as situações em que as expressões sejam divulgadas ou publicitadas o que significa que tal circunstância é agravante mas não faz parte do tipo legal.

8º - Se é verdade que nenhuma das testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento ouviu as concretas expressões proferidas também é verdade que todas ouviram os gritos da arguida no interior do gabinete médico da ofendida e já no seu exterior e, atento o local - gabinete da ofendida que é médica e no interior do qual atende os seus doentes - tal facto corrobora a versão apresentada pela ofendida e retira toda a credibilidade às declarações da arguida que negou perentoriamente ter sequer falado alto naquele local.

9º - A douta sentença considerou, a nosso ver bem, que as declarações da assistente eram consistentes e mereciam credibilidade.

10º - Não é verdade que tenha sido violado o disposto no art.º 356º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal quanto à leitura das declarações da testemunha ET em sede de inquérito pois a mandatária da arguida não se opôs a tal leitura e houve consentimento por parte do Ministério Público e da mandatária da assistente... E se não é audível na gravação áudio da audiência o exprimir de tal consentimento é certamente porque tal foi expresso por um simples acenar de cabeça, como é frequente, e as audiências ainda não são sujeitas a vídeo gravação...

11º - Além disso, ao contrário do que a recorrente alega, a douta sentença não fundamentou a matéria que considerou como provada exclusivamente no depoimento da testemunha ET.

12º - Assim sendo, não tem qualquer fundamento o alegado na petição de recurso quanto à violação do disposto no artº 356º do Código de processo Penal.

Por todo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida na íntegra a duta sentença recorrida.

Assim se fazendo
JUSTIÇA!»

Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta, manifestando adesão aos fundamentos de facto e de direito constantes da sentença recorrida e acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1.ª Instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito –, por obstativas da apreciação de mérito, como são os vícios da sentença previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal[[2]].

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões:

- da nulidade da sentença, por violação do disposto nos artigos 355.º, n.º 1, e 356.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea b), e n.ºs 3 e 5 do Código de Processo Penal;
- da incorreta valoração da prova produzida em julgamento;
- do erro notório na apreciação da prova;
- da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
- da nulidade da sentença por falta de fundamentação.
¯
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:

«1. No dia 25 de Maio de 2016, pelas 10h30, no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, a arguida dirigiu-se ao gabinete de ALF, médica naquele Hospital, e que aí se encontrava a dar consultas.

2. Aí chegada, a arguida abriu a porta do gabinete e perguntou a ALF se poderia observar o resultado das análises clínicas referentes ao marido daquela, que já estariam disponíveis, de acordo com a informação do laboratório do hospital.

3. Em resposta, ALF disse à arguida que não podia entrar no seu gabinete daquela forma, nem exigir que a mesma fosse ver umas análises de um paciente que não estava presente, nem tinha agendada consulta para aquele dia, para além de que tinha várias pessoas para serem atendidas e não podia, sem mais, passar à frente delas.

4. Por tal resposta não ser do agrado da arguida, esta dirigiu à ofendida, entre outras palavras: "Estás com sorte de não levares já uma bofetada, és uma incompetente, comes as minhas custas, a senhora é louca".

5. A arguida ao proferir as expressões narradas sabia que as mesmas eram idóneas a ofender a honra, a dignidade e a consideração da médica ofendida a quem as dirigiu, o que logrou e, não obstante, agiu com esse propósito.

6. ALF solicitou, então à arguida que saísse imediatamente do seu gabinete e, em momento contínuo, deslocou-se para junto desta para abrir a porta.

7. A arguida, apesar da sua idade (76 anos) é pessoa de porte físico superior à média do sexo feminino.

8. Esta, na troca de palavras mantida com a assistente, interpôs-se entre esta e a porta do gabinete, tentando impedir que ALF alcançasse a porta.

9. A demandante sentiu-se envergonhada pelas expressões proferidas pela arguida e, bem assim, por as mesmas terem sido proferidas no seu local de trabalho, onde colegas, enfermeiras e pacientes as podiam ouvir.

10. A demandante sentiu-se igualmente receosa que a arguida atentasse contra a sua integridade física.

11. A arguida agiu de forma livre deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

12. O marido da arguida veio a falecer, vítima de doença prolongada, em 14/6/2016.

13. A arguida goza de boa imagem social, sendo considerada pelos seus vizinhos e amigos como uma pessoa educada e correta para com os demais.

14. Aufere uma pensão de reforma de cerca de 600,00 euros/mês e uma pensão de viuvez estimada em 300,00 euros/mês.

15. Suporta o pagamento de uma renda de casa de 400,00 euros/mês

16. Tem, como habilitações literárias, o 4.° ano de escolaridade.

17. A arguida para além de ter revelado uma personalidade emotiva, com traços marcados de impulsividade e de baixa tolerância à frustração, não evidenciou quaisquer sinais de arrependimento pela sua demonstrada conduta.

18. A arguida não tem qualquer condenação judicial averbada no seu certificado de registo criminal.»

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:

«Dos factos narrados na acusação não se provou que:
A) Ao dizer a expressão "Estás com sorte de não levares já uma bofetada" a arguida quis causar medo e receio quanto à integridade física da médica

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:

«A fundamentação da matéria de facto, por parte do tribunal consiste na "exposição quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” exigida pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP.

Uma vez que a audiência decorreu com o registo da prova nela produzida, o que nesta fase se deve revestir de utilidade, será dispensado o relatório detalhado das declarações e depoimentos nela prestados, apenas sendo dado maior destaque aos meios probatórios que maior importância vieram a assumir no apuramento dos factos.

Cumpre frisar que o tribunal analisou criticamente todo conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, de acordo com a sua livre convicção e as regras de experiência comum, tal como impõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal, tarefa essa que lhe permitiu concluir pela credibilidade de alguns relatos produzidos em detrimento de outros, porquanto se verificou a impossibilidade de articulação ou concatenação de toda a prova indicada pela acusação com as testemunhas inquiridas, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal.

Foram, assim, valoradas:
- As declarações prestadas pela arguida, mas unicamente no que tange às suas condições económicas e pessoais, motivo que a fez abordar a médica ALF (com o intuito de lhe exibir as análises clinicas do seu marido) e a data em que este veio a falecer. Já quanto à versão que optou por veicular relativamente aos factos que lhe eram imputados (negando-os perentoriamente), esta não veio a ser acolhida pelo Tribunal, por manifestamente incompatível com as declarações prestadas pela pela assistente que, nesse particular, mereceram maior credibilidade (e inclusivamente por terem sido parcialmente corroboradas pelo relato de outras testemunhas ouvidas), tal como adiante será alvo de desenvolvimento. De todo o modo, importa salientar que a análise do comportamento postural e verbal que a arguida assumiu na audiência de julgamento conduziu à conclusão firmada quanto aos seus traços de personalidade, até pela tese de vitimização que procurou transmitir ser alvo, bem como da total ausência de arrependimento;

- A assistente ALF, descreveu de forma serena, com um discurso escorreito e lógico (e que desde logo contrastou com aquele feito pela arguida), os factos, nos moldes em que vieram a dar como provados. Frisou a sua surpresa/estupefação pelo comportamento assumido pela arguida, o descontrolo e exaltação que esta evidenciou, as concretas expressões que proferiu e seu contexto, o elevadíssimo tom de voz que a arguida usou para as propalar, vem como o modo como se sentiu após, vexada e receosa.

De destacar que a testemunha MI (médica que se encontrava a dois gabinetes de distância do da assistente, a dar consulta e com a porta desse espaço fechada) disse ter ouvido gritos (embora não tenha conseguido descortinar as expressões que em concreto estavam a ser ditas) e que pensou que seriam provenientes do corredor ou de outro gabinete próximo.

A enfermeira LC afirmou que ao regressar da sala de tratamentos de quimioterapia e à medida que se aproximava do corredor de espera das consultas viu a arguida muito exaltada, aos gritos, no corredor e que, após ser alertada de que deveria acalmar-se, devido ao local onde estava, teria, em resposta dito "eu tenho que gritar".

ET pese embora tenha evidenciado não se recordar de grande parte dos factos, tratando de pessoa com 77 anos de idade, acabou por reconhecer ter ideia que a arguida terá dito que a assistente era "incompetente" e "não és médica", numa discussão que terá ocorrido após a primeira ter entrado no gabinete onde a segunda estava a dar consultas.

Ora, se dúvidas existissem quanto à credibilidade das declarações da assistente (o que não ocorreu), a verdade é que a conjugação dos depoimentos das referidas três testemunhas de acusação permite concluir que os factos ocorreram precisamente do modo como ALF narrou, e não como a arguida tentou fazer crer. Atrevemo-nos ainda acrescentar que a postura que a arguida ensaiou na audiência de julgamento permite até reforçar esse juízo.

Por fim, e no que tange às testemunhas arroladas pela arguida, abonatórias (MP, VC e JC, estas embora tenham referido a forma como a arguida é vista pelos seus vizinhos, família e pares, não tem obviamente a virtualidade de conduzir à convicção de que a MLC fosse incapaz de praticar (como o fez), os factos supra relatados.

A ausência de antecedentes criminais da arguida resulta do teor do certificado de registo criminal junto aos autos.

No que tange à factualidade atinente aos elementos intelectual e volitivo do dolo, respeitante às expressões "és uma incompetente, comes as minhas custas, a senhora é louca", a mesma foi julgada assente a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo, ao invés, da materialidade dos factos apreciados à luz das regras de experiência comum.

De todo o modo, urge salientar que a experiência e razoabilidade vivencial demonstram que qualquer pessoa tem a plena consciência de que proferindo-as, está a ofender a honra, brio e consideração pessoais da visada ALF e que tal comportamento constitui ilícito criminal, sendo evidente ter sido esse o desiderato querido pela arguida. Foi ainda mediante a análise objetiva do comportamento da arguida que se concluiu pela não verificação do facto indicado em A).»
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Conhecendo.

(i) Questão prévia
Invoca a Recorrente a nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Vício que identifica como sendo o prevenido nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e que reporta ao pedido de indemnização civil formulado por ALF – a sentença condena ao pagamento de indemnização, que fundamenta em perturbação emocional, mas sem qualquer facto provado que a concretize.

Do exame dos autos resulta que ALF, a 3 de fevereiro de 2017, deduziu pedido de indemnização civil contra a ora Recorrente, com o propósito de obter desta a quantia de a quantia de € 2 000,00 (dois mil euros), acrescida de juros de mora, desde a ocasião da notificação até integral pagamento, que considerou adequada ao ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial que suportou.

Realizado o julgamento, veio a Recorrente a ser condenada, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, no pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), acrescida de juros de mora calculados desde a data da notificação do pedido e vincendos até efetivo e integral pagamento, a calcular às taxas legais supletivas e sucessivamente em vigor.

Para que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil seja admissível, exige a lei, no n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, o preenchimento de dois requisitos cumulativos:

- que o valor do pedido seja superior à alçada do Tribunal recorrido;
- que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal recorrido.

À data em que o pedido de indemnização foi formulado, a alçada dos Tribunais de 1ª Instância era já, e continua a ser, de € 5 000,00 (cinco mil euros) – artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na redação que lhe foi dada pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, em vigor desde dia 1 de Janeiro de 2008 [artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto].

Assim sendo, por ser manifesto que ambos os requisitos mencionados não se mostram preenchidos, o recurso, nesta parte, não é admissível.

Por isso, não se conhecerá da questão suscita a propósito do pedido de indemnização civil, sendo certo que a inadmissibilidade do recurso, nesta parte, conduz à sua rejeição – artigos 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

(ii) Da nulidade da sentença, por violação do disposto nos artigos 355.º, n.º 1, e 356.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea b), e n.ºs 3 e 5 do Código de Processo Penal

Invoca a Recorrente a nulidade da sentença por violação do disposto nos artigos 355.º, n.º 1, e 356.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea b), n.º 3 e n.º 5 do Código de Processo Penal.

Para tanto, afirma não ter consentido na leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pela testemunha EC no decurso do inquérito.

A imperfeição do ato processual pode apresentar cambiantes diversas consoante a gravidade do vício que lhe está na génese e que se poderá situar entre a irregularidade e a inexistência.

Entre estes dois extremos, encontram-se os vícios que dão lugar à nulidade. Esta, por sua vez, subdivide-se em nulidade insanável e nulidade dependente de arguição.

O nosso Código de Processo Penal veio consagrar um sistema de nulidades taxativas – de forma inequívoca no seu artigo 118.º e que é complementado por uma rigorosa delimitação geral e especial das causas de nulidade, sejam elas insanáveis ou dependentes de arguição.

E as irregularidades são tratadas, também na lei processual penal, como uma subespécie das nulidades, fazendo-lhes corresponder um vício de menor gravidade e submetendo-as a um regime de arguição limitado.

Mas o “retrato” nítido das irregularidades apenas se consegue por contraposição com o regime das nulidades propriamente ditas, sendo tendencialmente correto afirmar que constitui irregularidade aquele defeito que não é causa de nulidade. E dizemos “tendencialmente” porque o legislador, associando às irregularidades os defeitos que não são causa de nulidade, acaba por lhes atribuir – contra o que seria de esperar – efeitos invalidantes próprios das nulidades [algumas irregularidades determinam a invalidade do ato a que se referem e dos termos subsequentes que aqueles possam afetar, acabando por produzir os mesmos efeitos das nulidades].

Por outro lado, em matéria de irregularidades consagrou-se uma “válvula de segurança”, no n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal, quando se permite ordenar oficiosamente a reparação daquelas que possam afetar o valor do ato praticado.

Dito de outra forma, quando na génese da irregularidade está uma omissão, pode ordenar-se a reparação oficiosa desse vício quando o ato omitido, podendo ainda ser praticado, afete o valor dos atos subsequentes.

Compulsados os autos, constatamos que a testemunha EC, quando prestou declarações na sessão da audiência de julgamento que decorreu no dia 26 de abril de 2017, «foi confrontada com fls. 54 junto aos autos

A fls. 54 do processo constam as declarações prestadas pela testemunha EC, no decurso do inquérito, no Posto Territorial de Aljustrel da Guarda Nacional Republicana.

As declarações da testemunha EC foram consideradas pelo Tribunal de 1.ª Instância para a fixação dos factos a que procedeu.

Compete ao Juiz que preside à audiência de julgamento ordenar oficiosamente, deferir ou indeferir a leitura, audição ou visualização de provas contidas em atos processuais anteriores à audiência de julgamento – artigo 323.º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Semelhante decisão carece de fundamentação [artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal] e deve constar da ata da audiência de julgamento, sob pena de nulidade [artigo 356.º, n.º 9, do Código de Processo Penal].

A leitura, no decurso da audiência de julgamento, de declarações prestadas por testemunhas perante órgãos de polícia criminal só é permitida se nisso estiverem de acordo o Ministério Público, o arguido e o assistente – artigo 356.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

Às nulidades da sentença reporta-se o artigo 379.º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:

«1 – É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória u absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)»

Isto posto, podemos desde já concluir:

- que a leitura não consentida, no decurso da audiência de julgamento, de declarações prestadas por testemunha, durante o inquérito, a órgão de polícia criminal, não constitui causa de nulidade da sentença;

- que a valoração de declarações prestadas em audiência de julgamento na sequência de leitura não consentida, no decurso da audiência de julgamento, de declarações prestadas por testemunha, durante o inquérito, a órgão de polícia criminal, não constitui causa de nulidade da sentença.

E porque a nulidade prevenida no n.º 9 do artigo 356.º do Código de Processo Penal não integra o elenco das nulidades consagradas no artigo 119.º do Código de Processo Penal – nulidades insanáveis -, deveria ter sido invocada antes de terminada a sessão de julgamento que decorreu no dia 26 de abril de 2017, para poder ser conhecida – cfr. artigo 120.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal.

Ou seja, porque intempestivamente invocado, não pode agora ser conhecido o vício decorrente da ausência de decisão registada em ata da permissão de leitura de declarações da testemunha EC prestadas em momento anterior ao do julgamento.

Não está, pois, em causa, a nulidade da sentença, nem a nulidade decorrente da ausência de decisão registada em ata da permissão de leitura de declarações de testemunha prestadas em momento anterior ao do julgamento.

Todavia, face ao disposto no artigo 356.º do Código de Processo Penal, não podia o Tribunal de 1.ª Instância ter proporcionado à testemunha EC a leitura das declarações que anteriormente havia prestado no decurso do inquérito, no Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de Aljustrel.

E porque as declarações da mencionada testemunha foram consideradas pelo Tribunal de 1.ª Instância para a fixação dos factos a que procedeu, a violação da proibição de prova daí decorrente deve ser ponderada no momento em que se avaliar a forma como o Tribunal de 1.ª Instância valorou a prova produzida em julgamento.

Assim, o recurso, no segmento em exame, não procede.

(iii) Da incorreta valoração da prova produzida em julgamento

Dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal

1. A argumentação da Recorrente, no domínio em que nos encontramos, é pouco elucidativa.

Convoca as regras gerais que permitem concluir pela ausência de fundamentação da decisão, sem nunca as referir a qualquer situação concreta dos presentes autos.

Afirma o erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão por referência à sentença, à afirmação dela constante de «que se verificou a impossibilidade de articulação ou concatenação de toda a prova indicada na acusação com as testemunhas inquiridas.».

Conclui de forma genérica, com a afirmação de que não foi validamente produzida, em julgamento, prova alguma de que praticou os factos por que se encontra acusada.

Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso:

«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)»
Tais vícios, que se encontram taxativamente enumerados no preceito legal acabado de mencionar, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.

Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[[3]]

A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.» [[4]]

O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.» [[5]]

Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.

Mas tal valoração é, também, sindicável.

O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Neste preceito legal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante[[6]], pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84.º (caso julgado), 163.º (valor da prova pericial), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal] e o do “in dubio pro reo” [artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa].[[7]]

Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.

E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.

«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.

Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

- a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;

- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;

- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana;

- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.

Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis).

Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).

A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova.

A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.

A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..

A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.

É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova.

A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão [[8]]

E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.

De regresso ao processo, afigura-se-nos notória a completude da parte da sentença que se dedica a explicitar o que motivou a seleção factual.

O Senhor Juiz que proferiu a sentença sumariou o que foi dito pela Arguida e pelas Testemunhas e indicou, com clareza e precisão, o que determinou as razões para a seleção dos factos a que procedeu – como provados e não provados. Deu prevalência às palavras da Ofendida, porque a versão dos acontecimentos pela mesma relatada encontrou confirmação em outros meios de prova.

Não se deteta, pois, ausência ou insuficiência de fundamentação da decisão de facto.

A afirmação genérica que consta da sentença de «que se verificou a impossibilidade de articulação ou concatenação de toda a prova indicada na acusação com as testemunhas inquiridas.» corresponde a um entendimento das aptidões da prova produzida em julgamento pelo Senhor Juiz que presidiu a essa diligência, não pondo em causa a avaliação detalhada que dela, depois, levou a cabo, nem constituindo erro notório na apreciação da prova, nem contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, conforme acima se deixaram definidos estes vícios.

O entendimento da Recorrente de que não foi validamente produzida, em julgamento, prova alguma de que praticou os factos por que se encontra acusada é uma conclusão alicerçada em premissas que não se detetam na sentença recorrida.

É, ao cabo e ao resto, a leitura que a Recorrente faz da prova produzida em julgamento, uma leitura “truncada” porque que se alheia de tudo quanto lhe seja desfavorável.

Leitura que, evidentemente, não pode aceitar-se.

2. Como decorre do que acima se deixou dito, na 1.ª Instância, no decurso da audiência de julgamento, foi desrespeitado o disposto no artigo 355.º do Código de Processo Penal. Porque o Tribunal fez uso de declarações prestadas pela testemunha EC em momento anterior ao do julgamento, sem cuidar de garantir o consentimento dos intervenientes processuais no uso dessas declarações.

A esta prova inquinada deve ser aplicado o regime consagrado no artigo 122.º do Código de Processo Penal.

Porque, segundo Costa Andrade e Germano Marques da Silva, «na falta de consagração de um regime das proibições de prova que regulasse, com autonomia, as diversas questões suscitadas pelas proibições de prova, existe uma imbricação estreita entre os efeitos das proibições de prova e as nulidades insanáveis, máxime no que respeita à aplicação da regra geral contida no art. 122.º do CPP, que apenas determina a invalidade do ato em que se verificarem, bem como dos que dele dependerem, na medida em que sejam afetados por aquela mesma invalidade.

Isto é, quando aplicado às proibições de prova, o regime consagrado no art. 122.º do CPP não dita inevitavelmente a inutilização total e definitiva da prova inquinada. Máxime quando esteja em causa proibição de valoração da prova por violação de regras processuais. Impõe antes que se decida em cada situação concreta quais os efeitos ou consequências processuais daquela valoração na decisão proferida sobre a matéria de facto e, concomitantemente, qual a via processual adequada a essas mesmas consequências ou efeitos, de modo a definir-se os termos a seguir no processo em resultado da procedência do recurso e que tanto podem consistir na modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do artigo 431.º do CPP, como no reenvio do processo para repetição total ou parcial do julgamento ou na repetição da sentença pelo tribunal recorrido, sem ponderação da prova proibida, dependendo da situação processual concretamente verificada.»[[9]]

Não sendo permitido o acesso da testemunha EC às declarações que havia prestado em momento anterior ao do julgamento – porque não consentido pelos intervenientes processuais –, não podem valorar-se as declarações que prestou após esse acontecimento.

E assim sendo, do depoimento da testemunha EC, suscetível de valoração, resulta, apenas, a falta de memória relativamente ao que a Arguida, ora Recorrente, possa ter dito à Assistente no dia 25 de maio de 2016, nas instalações do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja.

Isto posto, importa agora determinar se a prova produzida em julgamento basta para afirmar os factos que se consideraram provados.

E entendemos que sim.

Porque o depoimento da Assistente – coincidente com a factualidade em questão – se revelou consistente e credível e encontrou confirmação nas palavras das testemunhas MI e LC.

A testemunha MI, que se encontrava num gabinete médico a pouca distância daquele onde se encontrava a Assistente, ouviu gritos. A testemunha LC, ao aproximar-se do corredor onde se situam as salas de espera das consultas, deparou-se com a Arguida muito exaltada e aos gritos.

E estes relatos apenas se compatibilizam com a descrição dos acontecimentos apresentada pela Assistente.

Não pode, por isso, deixar de se dar prevalência ao depoimento da Assistente sobre as declarações da Arguida.

Resta deixar expresso que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.

E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

E o recurso, neste segmento, também não procede.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se
- rejeitar o recurso relativo à parte civil da sentença;

- consignar ter sido desrespeitado, no decurso da audiência de julgamento, o disposto no artigo 355.º do Código de Processo Penal;

- consignar que das declarações das testemunha EC resulta, apenas, a falta de memória relativamente ao que a Arguida, ora Recorrente, possa ter dito à Assistente no dia 25 de maio de 2016, nas instalações do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja,

- no mais, negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, a sentença recorrida.

Custas a cargo do(a) Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s

Évora, 2017 dezembro 21
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
______________________________________________
(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)
______________________________________________
(Renato Amorim Damas Barroso)
__________________________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].

[3] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.

[4] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 75.

[5] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.

[6] O julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.

[7] O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal. Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

[8] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, relatado pelo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos - acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.

[9] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 2411/09.7GBABF.E1, em 30 de outubro de 2012 e acessível em www.dgsi.pt