Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
73/18.0T8ETZ.E1
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
MORTE
CADUCIDADE
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FORMA ESCRITA
NULIDADE
PROVA DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I.O regime transitório consagrado no art.º 57.º do NRAU, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, prevê apenas uma transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário;
II. Tendo falecido a mãe da R., em Abril de 2016, a quem havia, por morte do primitivo arrendatário sido já transmitido o direito ao arrendamento, o decesso da mãe da R. extinguiu o contrato de arrendamento, por caducidade (art.º 1051.º, al. d) do Cod. Civil), não obstante a R. residir com aquela, há mais de um ano, porquanto a R. não alegou e, por maioria de razão não provou, ser portadora de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, em consonância com o preceituado no art.º 57.º, n.º 1 do NRAU.
III. A um contrato de arrendamento habitacional que tenha sido celebrado em 2016, é aplicável o art.º 1069.º, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 12 de Dezembro.
IV. Dado que a lei sujeita o contrato de arrendamento a forma escrita (contrato formal), quando seja celebrado sem que a forma escrita tenha sido observada, tal acarretará a nulidade do contrato, nos termos do art.º 220.º do Cod. Civil, visto que o legislador não consagrou qualquer meio através do qual o vício pudesse ser suprido, nomeadamente pelo mecanismo de exibição do recibo de renda que já ia fazendo tradição no direito anterior. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I.Relatório
F… propôs a presente acção contra M…, pedindo que seja declarada extinta a relação locatícia do contrato de arrendamento, por caducidade, e ordenada a entrega da fracção em causa, devendo ainda a R. ser condenada a pagar a quantia de € 3.400,51, desde 11 de Outubro de 2016 até à presente data, correspondente a uma indemnização devida pela ocupação do locado, acrescida da quantia mensal de €: 300,00 por cada mês de utilização do imóvel, até à data da entrega efectiva à A., e acrescida de juros vincendos à taxa supletiva legal, até persistir a fruição do locado.
Para tanto invocou, em suma, que, por contrato datado de 23 de Junho de 1956, o anterior proprietário, Ma…, deu de arrendamento ao pai da ora R. o referido rés-do-chão com entrada pelo n.º … da Rua de …, em Estremoz. Em consequência do óbito do anterior arrendatário, o arrendamento transmitiu-se para o cônjuge sobrevivo, A…, mãe da ora R.
Por carta registada com A/R, datada de 11 de Março de 2013, a A. comunicou à arrendatária A…, e de acordo com o previsto no art.º 30.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, a intenção de que o identificado contrato transitasse para o regime do NRAU, propondo o aumento da renda para €: 131,00 e comunicando a avaliação do locado nos termos do art.º 38º do CIMI.
A anterior arrendatária, mãe da R., respondeu por cartas datadas de 15 de Março de 2013 e 29 de Agosto de 2013, resultando, em suma, a actualização da renda para € 99,97, com inicio em Setembro de 2013 e a oposição à submissão do contrato ao regime do NRAU, permanecendo o arrendamento como um contrato para fins habitacionais, por tempo indeterminado.
Por carta datada de 27 de Maio de 2016, a R. comunicou à A. o falecimento de sua mãe, anterior arrendatária, invocando a transmissão do arrendamento.
A A. respondeu por carta registada c/ A.R., datada de 18 de Julho de 2016, opondo-se à transmissão do arrendamento.
Pese embora, a inexistência de título para ocupação do imóvel por parte da R., esta permanece no imóvel, apesar de ter sido interpelada para o entregar até ao dia 11 de Outubro de 2016.
A R., regularmente citada, apresentou contestação, defendendo-se por impugnação e por excepção, alegando, em suma, que:
- No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao referido locado, habitação da Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária;
- No mesmo momento, a Ré pagou à A., em dinheiro, o valor acordado como sendo o valor da renda (99,97€), solicitando o respectivo recibo;
- A A. não passou o recibo, nem esclareceu a R., sobre se, e, quando o faria, dizendo-lhe apenas e só, que estava com problemas com as Finanças;
- No mês de Julho, a R. fez a transferência bancária do valor da renda, para o número de conta que a A. lhe havia comunicado;
- Nunca a R. deixou de pagar a renda, no entanto, nunca a A. lhe passou recibo dos valores efectivamente pagos, como é sua obrigação legal;
- A última comunicação escrita que foi feita à R. por carta registada com A/R é datada de 18 de Julho de 2016, tendo, após essa data, a A. ido ao referido locado receber a renda do mês correspondente e comunicado à R. a sua intenção de manter o contrato de arrendamento, só alterando o modo de pagamento da renda, que passaria a ser feito por transferência bancária.
- A R. continuou a viver no locado, confiando na palavra dada pela A. de que tinha assumido a posição de arrendatária e, como tal, cumprindo com todas as obrigações adjacentes a esta qualidade.
- Confiando na palavra da A., a R. nunca procurou outra habitação, julgando que a sua posição de arrendatária estava garantida até ao dia do seu falecimento, como tinha acontecido com os seus pais, e nunca seria posta em causa.
- Ademais, se a R. cumpria as suas obrigações legais, esperava que a A. também o estivesse a fazer, nomeadamente passando os correspondentes recibos de renda, pensando até que, só não teria acesso aos mesmos porque estes seriam electrónicos.
Concluiu, pedindo que seja julgada procedente a exceção peremptória, absolvendo-se a R. do pedido, sendo a acção julgada improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da R. dos pedidos formulados pela A.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, que não mereceram reclamação.
Realizada audiência final, foi proferida sentença, cujo dispositivo é o seguinte: ” Face ao que precede e com os fundamentos expostos, julgo procedente por provada a ação e em consequência:
1. Declaro a caducidade do contrato de arrendamento mencionado em 3. dos factos provados;
2. Condeno a R. M… a restituir à A. F… a fração autónoma designada pela Letra B do prédio urbano sito na Rua de …, da União das freguesias de Estremoz (Santa Maria e Santo André), concelho de Estremoz, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Estremoz sob o n.º …;
3. Condeno a R. M… a pagar à A. F… a quantia de € 2.550,51, acrescida da quantia mensal de € 250,00 por cada mês de utilização do imóvel desde abril de 2018 até entrega efetiva do mesmo, acrescida de juros vincendos até cumprimento integral.
4. Absolvo a A. F… do pedido de condenação como litigante de má-fé.
5. Absolvo a R. M… do demais peticionado.
(…)”
A R. não se conformando com a sentença prolatada, dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
“1.ª – O presente recurso incide sobre a sentença de 11 de Abril de 2019, proferida nos autos à margem referenciados, dirigindo-se à reapreciação da prova gravada, bem como à errada aplicação das normas jurídicas em função dos factos provados e por deficiente e excesso de pronúncia, em situações diversas, por ter omitido e excedido os poderes cognitivos que a lei lhe atribui, na qual declarou a caducidade do contrato de arrendamento controvertido nos autos e se condenou a Ré, ora Recorrente, a restituir à A., ora Recorrida, F… a fração autónoma designada pela letra B do prédio urbano sito na Rua de Santo André n.ºs …União das freguesias de Estremoz (Santa Maria e Santo André), bem como se condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 2.550,51 acrescida da quantia mensal de € 250,00 por cada mês de utilização do imóvel desde Abril de 2018 até à entrega efetiva do mesmo, acrescida de juros vincendos até cumprimento integral.
2.ª - Não pode a ora Apelante conformar-se com a parte da sentença em que esta considerou como não provado o facto de, no mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela Ré, e questionada sobre a situação do arrendamento transmitiu-lhe a sua vontade de manter a R. como atual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária (1. dos factos não provados);
3.ª – Ao invés, deveria ter sido dado como provado o seguinte facto: no mês de Junho de 2016, em data anterior à emissão da carta de 18.07.2017, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela R., e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a R. como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária:
4.ª – Primeiro, porque quanto à realização dessa reunião, em Junho de 2016 e na casa habitada pela Ré, esta está claramente demonstrada, porque os depoimentos da A. e da R. não encerram nenhuma divergência quanto a esse facto, bem pelo contrário, afirmam a sua realização nesse preciso local e nessa data (cf. declarações de parte da A. e R., respectivamente, prestado em 13.03.2019, com início às 10h52m55s, com a duração de 30m34s, sendo a passagem referida constante dessa prova gravada entre o minuto 30:10 e 30.30 e depoimento prestado em 13.03.2019, com início às 11h24m56s, com a duração de 33m32s, sendo a passagem referida constante dessa prova gravada entre o minuto 04:34 e 05.02);
5.ª - Para dilucidar se a R. terá interpelado a A., nessa visita, sobre a questão do arrendamento, releva o senso comum, que nos leva a considerar como crível que a R., tendo alguns dias antes expressado, por escrito dirigido à A, a sua vontade de assumir o arrendamento do locado, naturalmente lhe tenha colocado essa questão a propósito da sua visita e a tivesse questionado a esse propósito;
6.ª – E sobre a vontade da senhoria em manter o arrendamento, não obstante a A não ter reconhecido expressamente essa anuência, atendendo que na sentença o “Tribunal ficou com a nítida sensação que a A. se expressa de forma humilde, mostrando, igualmente, ter alguma dificuldade de compreensão quanto a matérias complexas, mormente as matérias jurídicas que perpassam os presentes autos”, os actos praticados por esta contrariam tal afirmação da A.. Na realidade, não é de admitir que, caso tivesse expressado tal recusa, aceitasse ainda assim o pagamento que lhe foi efectuado e procedesse, alguns dias depois, à emissão do respectivo recibo indicando como locatária a R.;
7.ª –Aliás sempre se teria de equacionar porque motivo foi emitido um recibo de renda em nome da então R., com data de 14 de Junho de 2016, em data posterior à carta enviada pela R. à A., (27.05.2016) em que esta propunha a manutenção da situação de arrendamento vigente, apenas se mudando o nome da arrendatária, que passaria a ser em nome próprio da R.;
8.ª – Como se terá ainda de atender ao facto de só em 18.07.2016 ter sido enviada, pela A. à R., a carta que consta dos autos, mais de um mês depois de ter emitido um recibo de renda em nome da R., carta essa fabricada pelo filho da A., que divergia da declaração anterior, como resulta do depoimento prestado por esse e gravado em 13.03.2019, com início às 12h27m01s, com a duração de 22m19s;
9.ª –Mas todos estes factos foram omitidos na apreciação do tribunal ad quo, omitindo o seu dever de julgar todas as questões que contribuíssem para a descoberta da verdade material;
10.ª – Ao contrário, veio a considerar a emissão desse recibo, que foi posteriormente anulado, como um lapso, ignorando todas as normas jurídicas que versam sobre a validade e eficácia das declarações negociais, nomeadamente as que constam do Código Civil;
11.ª – Isto porque, conforme se encontra provado nos autos, a carta datada de 27 de Maio de 2016, dirigida pela R. à A., consubstancia uma proposta de celebração de contrato de arrendamento, porque, para além de dar conhecimento do falecimento da sua Mãe, anterior arrendatária, propõe a manutenção da situação de arrendamento do imóvel, solicitando que os próximos recibos passem a ser emitidos em seu nome, fornecendo, para o efeito, o seu número de identificação fiscal, sem fixar qualquer prazo para a sua aceitação;
12.ª – Sendo certo que a A. emitiu em 14.06.2016, um recibo de renda em favor da R., referente ao locado, no valor de € 99,97, sendo forçoso concluir que essa conduta da A., livremente expressa, equivale à aceitação da proposta formulada pela proponente à destinatária.
13.ª - Neste sentido, com a devida vénia, nos socorremos da jurisprudência vertida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (Acórdão de 29/11/2011, no processo n.º 3210.0T2AVR.C1), quando nele se afirma o seguinte: o artigo 234º do C. Civil admite que, nos casos em que a proposta, a própria natureza ou circunstâncias do negócio, ou os usos tornem dispensável a declaração de aceitação, se tenha o contrato por concluído logo que a conduta da outra parte mostre a intenção de aceitar a proposta;
14.ª – Acrescentando, ainda o mesmo aresto, neste artigo consagra-se a possibilidade de, em certas situações, se antecipar o momento da conclusão do contrato para o instante em que a conduta do destinatário da proposta revele a intenção de a aceitar, independentemente do seu conhecimento pelo proponente. Não está aqui em causa a admissibilidade das aceitações tácitas, a qual resulta, em termos genéricos, do art.º 217º do C. Civil, nem a concessão de qualquer valor especial ao silêncio, mas sim a desnecessidade duma comunicação ao proponente da aceitação da proposta pelo seu destinatário;
15.ª – Vem provado nos autos que a A., após a recepção da proposta, emitiu o recibo de renda, em 14.06.2016, em nome da nova arrendatária, nos termos em que esta lhe o houvera proposto;
16.ª – Pese embora a A. tenha remetido à R., em 18.07.2016 - decorrido um mês sobre a aceitação da proposta da R., o que configurou um novo contrato de arrendamento - uma contra-proposta em que vinha arguir a caducidade do arrendamento, a aceitação da proposta de contrato é irrevogável – art.º 230º, do C. Civil –, pelo que esta segunda declaração não invalida a primeira;
17.ª - Seguindo na esteira do Acórdão a que nos vimos reportando, afirma-se: “A anulação de um negócio ou acto jurídico não se dá com a simples declaração duma parte à outra nesse sentido, sendo necessário a propositura duma acção judicial, pedindo que se declare tal invalidade. O art.º 287º, n.º 2, do C. Civil, permite que a anulabilidade possa ser arguida por via de excepção quando o negócio ainda não se encontra cumprido, na acção destinada a exigir esse cumprimento, relevando e apreciando o tribunal essa invocação”;
18.ª - Ora, da leitura da petição inicial, apresentada pela A., constata-se que nada se diz sobre esse recibo, embora a questão tenha sido referida por diversas testemunhas, tendo concluído a sentença que os motivos para esse lapso estavam justificados pelo testemunho prestado pelo filho da A. dizendo que esse recibo fora, posteriormente, anulado a conselho de funcionários da Autoridade Tributária e Aduaneira;
19.ª – Mas em bom rigor, na sentença sub judice, o Tribunal excedeu os seus poderes cognitivos, nos termos estabelecidos no n.º 2 do artigo 608.º do Código do Processo Civil;
20.ª - Na verdade, a A. nunca mencionou esse facto, como resulta da sua douta p.i. e, por maioria de razão, nunca requereu a anulabilidade de tal contrato, pelo que não podia o Tribunal, oficiosamente, conhecer da anulabilidade desse, embora de forma enviesada ao reconhecer que a emissão desse recibo resultara de um lapso;
21.ª – Assim, de uma assentada, a sentença ora sob recurso, não só não se pronunciou sobre a proposta da R. feita à A., nem sobre quais os efeitos decorrentes da aceitação desta última, consubstanciada na emissão de recibo a favor da R. datado de 14.06.2016, como ainda se pronunciou indirectamente sobre a anulabilidade desse contrato, embora de forma enviesada, ao reconhecer que a emissão desse recibo resultara de um lapso, ocupando-se de questão que não foi suscitada pelas partes, tanto na p.i. como na contestação;
22.ª – Pelo que as referências feitas na sentença à aplicação das normas transitórias constantes do Novo Regime do Arrendamento Urbano, em concreto aos artigos 26.º e seguintes, não se adequam aos factos constantes dos autos, porque houve, independentemente do nomem iuris, a celebração de um novo contrato de arrendamento, pela verificação conjugada das declarações negociais da A. e da R.;
23.ª - Assim, em face da matéria de facto dada como assente, bem como da interpretação que se faz daquela, nos termos expostos nas conclusões precedentes, atendendo ao conteúdo do pedido e às questões de Direito que aquele suscita, jamais a acção poderia ser julgada procedente, nem sequer a título parcial, não podendo assim subsistir o conteúdo decisório da sentença ora impugnada.
Termos em que deve a Douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente o pedido da ora Recorrida, só assim se fazendo Justiça!”
Foi apresentada resposta às alegações, pugnando a apelada pela confirmação da sentença recorrida.
Foram providenciados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
II. Objecto do Recurso
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), importar decidir:
- Nulidade da sentença apelada por omissão e excesso de pronúncia;
- Modificação da matéria de facto;
- Da caducidade do celebrado contrato de arrendamento e se a R. tem direito a manter-se no imóvel por se lhe ter transmitido a posição de arrendatária;
- Do reconhecimento pela A. da qualidade de arrendatária da R.
III. Fundamentação
1.De Facto
Na sentença recorrida foram julgados:
Provados os seguintes factos:
1. A A. é dona e legitima proprietária da fração autónoma designada pela Letra B do prédio urbano sito na Rua de …da União das freguesias de Estremoz (Santa Maria e Santo André), concelho de Estremoz, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Estremoz sob o nº ….
2. A referida fração autónoma B corresponde ao rés-do-chão com entrada pelo n.º ….
3. Por contrato datado de 23 de Junho de 1956, o anterior proprietário M… deu de arrendamento ao pai da ora R. o referido rés-do-chão com entrada pelo n.º ….
4. Em consequência do óbito do anterior arrendatário, o arrendamento transmitiu-se para o cônjuge sobrevivo, A…, mãe da ora R.
5. Em 11.03.2013, a A. enviou à mãe da ora R. a seguinte missiva. “(…) venho comunicar-lhe: a) ser minha intenção que o identificado contrato transite para o regime do NRAU; b) propor-lhe que o mesmo contrato passe a ser do tipo prazo certo com a duração de cinco anos; c) propor-lhe que a renda mensal, actualmente de € 10,00 (dez euros), passe para 131,00 (cento e trinta e um euros) mensais. (…)”.
6. Em 15.03.2013, a mãe da ora R. enviou à A. a seguinte missiva “(…) informo não estar de acordo com o valor da renda proposta por V. Exa., pois a actualização da renda em apreço deverá ser feita segundo o disposto nos artigos 35.º e 36.º da mencionada Lei, uma vez que possuo um Rendimento Anual Bruto Corrigido (RABC) inferior a cinco Retribuições Mínimas Nacionais Anuais (RMNA) e idade superior a 65 anos. Oponho-me, também, a que o contrato passe a ter uma duração limitada de cinco anos, devendo o mesmo manter-se como contrato para fins habitacionais, por tempo indeterminado, bem como me oponho a que o contrato de arrendamento fique submetido ao NRAU. (…).
7. Em virtude das negociações mencionadas em 5. e 6., a renda fixou-se em € 99,97.
8. Por carta datada de 27 de Maio de 2016, a R. comunicou à A. o falecimento de sua mãe, anterior arrendatária, invocando a transmissão do arrendamento.
9. Em Junho de 2016, a R. pagou à A., em dinheiro, a quantia de 99,97€.
10. Em 14.06.2016, a A. emitiu recibo em nome da R., que foi, posteriormente, anulado e dado sem efeito.
11. Nessa sequência, a A. enviou à R., em 18.07.2016, a seguinte missiva: “(…) Ora, não se inserindo V. Exa. em nenhuma das situações prevista neste preceito legal, ocorreu a caducidade do arrendamento, devendo V. Exa. entregar o locado livre de pessoas e bens pelo prazo de 6 (seis) meses após a verificação do óbito, ou seja, até ao próximo dia 11 de Outubro de 2016.
Para efeitos de emissão de recibo deverá V. Exa. informar o número fiscal da Herança, informando desde já que o recibo emitido foi anulado uma vez que por lapso V. Exa. foi indicada como inquilina, pelo que será emitido novo recibo assim que indicar o NIF da herança.
Desde já informo que caso V. Exa. pretenda celebrar contrato de arrendamento estarei disponível para eventualmente acertarmos as condições de tal contrato, o qual ficará submetido ao NRAU, mediante prazo certo, pelo período de 2 anos.
Mais comunico que a partir da presente data as rendas deverão ser pagas por transferência bancária para o IBAN (…)”.
12. No dia 22.07.2016, a R. transferiu para a conta bancária indicada pela A. a quantia de € 99,97.
13. A R. tem vindo a liquidar a renda de € 99,97 mensalmente.
14. A R. nunca entregou o imóvel à A.
15. O valor de mercado do imóvel cifra-se entre os 250,00 € e 275,00 € mensais.
16. A R. sofre de problemas de coluna e é reformada por invalidez.
E Não Provados:
1. No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária.
2. Que, por referência ao facto n.º 9 provado, a R. solicitou recibo.
3. Que, após 18.07.2016, a A. foi ao imóvel receber a renda do mês correspondente e comunicado à R., a sua intenção de manter o contrato de arrendamento, só alterando o modo de pagamento da renda, que passaria a ser feito por transferência bancária.
4. No ano de 2017, a R. fez benfeitorias no locado.
5. A R. nunca procurou outra habitação, julgando que a sua posição de arrendatária estava garantida até ao dia do seu falecimento, como tinha acontecido com os seus pais, e que nunca seria posta em causa.
6. O valor no mercado de arrendamento do imóvel mencionado em 1. provado é de € 300,00.
2. O Direito
1.ª Questão
Entende a R., se bem entendemos, que a sentença é nula, por omissão e excesso de pronúncia, porquanto, “(…) da leitura da petição inicial, apresentada pela A., constata-se que nada se diz sobre esse recibo, embora a questão tenha sido referida por diversas testemunhas, tendo concluído a sentença que os motivos para esse lapso estavam justificados pelo testemunho prestado pelo filho da A. dizendo que esse recibo fora, posteriormente, anulado a conselho de funcionários da Autoridade Tributária e Aduaneira;
Mas em bom rigor, na sentença sub judice, o Tribunal excedeu os seus poderes cognitivos, nos termos estabelecidos no n.º 2 do artigo 608.º do Código do Processo Civil;
Na verdade, a A. nunca mencionou esse facto, como resulta da sua douta p.i. e por maioria de razão, nunca requereu a anulabilidade de tal contrato, pelo que não podia o Tribunal, oficiosamente, conhecer da anulabilidade desse, embora de forma enviesada ao reconhecer que a emissão desse recibo resultara de um lapso;
Assim, de uma assentada, a sentença ora sob recurso, não só não se pronunciou sobre a proposta da R. feita à A., nem sobre quais os efeitos decorrentes da aceitação desta última, consubstanciada na emissão de recibo a favor da R. datado de 14.06.2016, como ainda se pronunciou indirectamente sobre a anulabilidade desse contrato embora de forma enviesada, ao reconhecer que a emissão desse recibo resultara de um lapso, ocupando-se de questão que não foi suscitada pelas partes, tanto na p.i. como na contestação”.
Vejamos.
Lê-se na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC (ex vi n.º 1 do art.º 666.º do mesmo diploma) que: “É nula a sentença quando: (…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A causa da nulidade a que se refere este preceito relaciona-se com a inobservância do disposto na segunda parte do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo diploma (onde consta que o juiz não “(…) pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. (…)”).
Este último preceito postula o conhecimento, na sentença, de todas as questões juridicamente relevantes que a apreciação do pedido e causa de pedir apresentadas pelo Autor ou as excepções deduzidas pelo Réu suscitem e, por outro, confina a estas a actividade judicativa.
A nulidade por omissão de pronúncia está relacionada, pois, com o dever de cognição estabelecido no art.º 608.º, n.º 2 do CPC, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras..
É consabido que os fundamentos (de facto ou direito) apresentados pelas partes para defender a sua posição, os raciocínios, argumentos, razões, considerações ou pressupostos - que, podem, na terminologia corrente, ser tidos como “questões” - não integram matéria que deva ser objecto de pronúncia judicial.
A nulidade prevenida na parte final da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC visa sancionar o desrespeito, pelo julgador, do comando contido na parte final do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo diploma, nos termos da qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Emerge desse preceito que a actividade judicativa (com excepção, naturalmente, das questões que o julgador deva conhecer oficiosamente) se mostra confinada ao objecto do litígio. A nulidade em causa encontra-se assim em estrita relação com o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objecto do litígio, o qual constitui uma emanação do princípio dispositivo (n.º 1 do art.º 3.º do CPC).
Em regra, o objecto do processo é integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo Autor, abarcando também e eventualmente, a matéria exceptiva aduzida pelo Réu em sua defesa e a reconvenção.
Por isso, é entendimento pacífico, tanto a nível doutrinário como a nível jurisprudencial, que a noção de “questões” à volta das quais gravita a referida infracção processual reporta-se aos fundamentos convocados pelas partes na enunciação da causa de pedir e/ou nas excepções e, bem assim, aos pedidos formulados.
Desta simples interpretação dos preceitos legais decorre que a alegação de que, na sentença impugnada, se consideraram factos não invocados pelas partes poderá ser reconduzível à incursão em erros de julgamento, mas nunca à nulidade por excesso de pronúncia.
Na verdade, a indevida delimitação do âmbito da alegação factual não é passível de ser confundida com o conhecimento indevido de uma questão, na acepção de que supra demos conta[1].
Na espécie a A. pede que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento, por morte da arrendatária, a quem havia sido transmitido por morte do primitivo arrendatário e, inexistindo título para a ocupação do imóvel, peticionou, ainda, que a R. fosse condenada a desocupar o imóvel de que a A. é proprietária e a pagar-lhe os valores devidos pela ocupação do imóvel.
A R. apresentou contestação, alegando, nomeadamente, que “no mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao referido locado, habitação da Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária”, que nunca deixou de pagar a renda e que, “nunca a A. lhe passou recibo dos valores efectivamente pagos, como é sua obrigação legal.”
A A., alega na p.i. que a R. lhe enviou uma carta comunicando o falecimento de sua mãe, arrendatária, e que o arrendamento não caducava por morte daquela, tendo a A. respondido a essa carta, por carta registada com A/R, datada de 18 de Julho de 2016, opondo-se à transmissão do arrendamento, tendo feito a junção aos autos dessa carta e do recibo anulado, referido nessa mesma carta.
Ora, tendo sido junta a carta de 18.07.2016 e o recibo, obviamente, que tais documentos foram considerados pelo tribunal (art.º 413.º do CPC).
No que tange à referência “ao lapso”, tal apenas consta da motivação da decisão de facto, por altura da análise crítica da prova e não mais. Ora, as causas de nulidade da sentença estão taxativamente inscritas no n.º 1 do art.º 615.º do CPC e entre elas não figura tal situação, que é comandada pelo n.º 4 do art.º 607.º do mesmo diploma.
Aliás, apenas a talhe de foice, diga-se que mal se entende a invocação da R., entendendo, por um lado, que em momento algum da p.i. a A. fez menção ao recibo e depois venha a sustentar o seu recurso na existência desse mesmo recibo.
No que respeita à nulidade por excesso de pronúncia, no que concerne à questão da anulabilidade, e compulsada a sentença apelada, não se divisa que, em qualquer segmento, o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre a anulabilidade do alegado contrato de arrendamento que teria celebrado entre a A. e R. e/ou a tenha declarado.
No caso vertente, não se antolha que o tribunal a quo tenha decidido questão que não foi oportunamente requerida por qualquer uma das partes, já que, repete-se, em momento algum, se pronuncia sobre anulabilidade, não fazendo, tão-pouco, qualquer menção a esse vício.
Assim, impõe-se, desde já, concluir que a sentença não padece de nulidade por excesso de pronúncia.
No que tange, por fim, à arguida omissão de pronúncia, importa referir que a R. na sua contestação alega que “no mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao locado, habitação da Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária”.
Ora, tal factualidade foi julgada não provada, pelo que o tribunal se limitou, embora com fundamentação insuficiente, pode-se admitir, a referir “Acresce que, nada foi provado quanto a uma eventual existência de direitos conflituantes que pudessem ter a virtualidade de impedir o efeito jurídico peticionado pela A., pelo que há que deixar proceder o pedido formulado pela A. Destarte, há que concluir que a R. deverá devolver o imóvel ocupado livre de pessoas e bens.”
Tanto basta para se concluir que não houve omissão de pronúncia
Com efeito, a eventual incompletude ou deficiência da fundamentação empregue afectará o valor intrínseco da decisão mas não é reconduzível à nulidade em causa, cuja arguição, por esse motivo, se desatende.
Assim, sem necessidade de outros considerandos, indefere-se a arguição da nulidade da sentença.
2.ª Questão
Como se colhe das conclusões do recurso interposto, a recorrente manifesta a sua discordância relativamente à decisão da matéria de facto e impetra a modificação do decidido quanto a esse aspecto.
Com efeito, o recurso interposto pelo R. tem por objecto, para além do mais, a impugnação da decisão de facto, relativamente à matéria vertida sob o ponto factual 1. do quadro fáctico não provado [No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária], entendendo a R. que deverá ser julgado provado.
A Mm.ª Juíza a quo fundamentou a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“Quanto aos factos n.ºs 1 a 8, 11 e 14, resultaram os mesmos da confissão ficta produzida em sede de articulados.
Quanto aos referidos factos os tribunal tomou em consideração, ainda, os seguintes documentos: caderneta predial urbana, de fls. 6v e 7, contrato de arrendamento de fls. 8 e ss., missivas de fls. 9 e ss.
Antes de nos pronunciarmos acerca da prova produzida e sua relevância quanto aos factos dados como provados e não provados, há que deixar expresso que este Tribunal ficou com a nítida sensação que a A. se expressa de forma humilde, mostrando, igualmente, ter alguma dificuldade de compreensão quanto a matérias complexas, mormente as matérias jurídicas que perpassam os presentes autos.
Assim, é neste contexto que devem ser analisadas as suas declarações, sendo certo que o filho da A. J…, afirmou que a mãe tem apenas a 4.ª classe e que sempre foi ele a tratar de assuntos complexos da vida da sua mãe.
Neste contexto, ficou patente que, aquando do conhecimento do falecimento da mãe da R., a A. pouco ou nada sabia acerca das consequências de tal falecimento no contrato então existente, tendo necessitado de recorrer a apoio jurídico prestado por advogada.
Assim, dito isto,
Quanto ao facto n.º 9 provado, o tribunal considerou o teor das declarações de parte da A. que admitiu que tomou conhecimento do falecimento da mãe da ora R. em maio de 2016 e que, em junho de 2016, se deslocou ao imóvel, tendo recebido a renda referente a junho de 2016.
Quanto ao facto n.º 10, o tribunal considerou o recibo de fls. 17 conjugado com o teor das declarações sérias e credíveis de J….
Relativamente ao facto n.ºs 12 e 13 o tribunal considerou os documentos de fls. 86 e ss., conjugados com o teor das declarações de parte da A. e da R.
Quanto à versão dos factos apresentada pela R. no sentido de que a A. aceitou manter a situação de arrendamento, o Tribunal considera que não foi produzida prova cabal nesse sentido.
Em sede de declarações de parte, a R., como é natural, apresentou a versão dos factos que, no seu entendimento, seria mais conforme ao seu interesse. Contudo, tal versão dos factos não surgiu corroborada por nenhum outro meio de prova.
Desde logo, cumpre salientar que a missiva enviada a 18.07.2016 é expressa quanto à vontade da A., resultando da mesma que aquela i) considerava que o contrato de arrendamento tinha caducado por morte da mãe da R., ii) aceitava celebrar novo contrato, com outras condições e iii) caso tal não fosse possível, concedia à R. um prazo de seis meses para abandonar o imóvel.
O teor da referida missiva foi, integralmente, confirmado pela A. e pela testemunha José Caeiro (filho da A.).
Ora, o teor da referida missiva, atenta a sua clareza, determinou a formação da convicção deste Tribunal no sentido de que a R. não tinha quaisquer motivos válidos para confiar que a A. aceitava a sua manutenção no locado, mediante o pagamento da renda de € 99,97.
Contudo, ainda que se admitisse como possível a criação de uma “situação de confiança” nas circunstâncias a que se aludiu supra, há que deixar expresso que, em face da prova produzida, ficou este Tribunal convicto de que a R. sabia qual a intenção da A., não tendo, em momento algum, confiado que esta a deixaria permanecer no locado naquelas condições.
Vejamos.
A…, prima da R., foi essencial para que se compreendesse o sucedido entre A. e R., tendo do seu depoimento resultado claro e evidente que, na sequência do recebimento da missiva de 18.07.2016, tentou contactar a A. no sentido de procurar uma solução para o caso concreto, viabilizando a continuação da R. no imóvel e que, perante a inexistência de acordo no âmbito das referidas negociações, diligenciou no sentido de obter apoio junto de entidade públicas no sentido de procurar e obter outra habitação.
Ora, o que ficou dito apenas é compatível com o conhecimento integral da pretensão da A., pois que, caso contrário, que sentido faria procurar outra habitação ou tentar obter apoios públicos? Não se alcança.
Cumpre, ainda, salientar que decorreu da prova produzida que a R. continuou a transferir para a conta bancária da A. a conselho do seu advogado (marido da testemunha A…), sendo certo que, até então, a A. sempre se havia deslocado ao imóvel mencionado em 1. a receber, em mão, a renda, circunstância que, após junho de 2016, nunca mais voltou a suceder. Ora, a alteração de conduta por parte da A. deixa, igualmente, manifesto que a sua intenção foi sempre a mesma e foi sempre conhecida pela R., pois que, se assim não fosse, certamente a A. teria continuado a deslocar-se a Estremoz para recolher a renda, o que não sucedeu.
Ora, tudo visto, ficou o tribunal convicto de que a R. conhecia a intenção da A. e que inexistiu qualquer situação de confiança criada pela A., no sentido de transmitir a ideia de que a R. poderia permanecer no imóvel pagando a mesma renda, sendo que tal intenção resulta evidente da missiva enviada a 18.07.2016.
A R., em sede de declarações de parte, prestou um depoimento titubeante, hesitante, numa clara tentativa de escamotear o que resultou óbvio da prova produzida.
No que concerne à emissão de recibo, o tribunal considerou o teor das declarações de J…, já mencionado, que prestou um depoimento muito sério, coerente e credível, tendo afirmado que, na sequência do conhecimento do falecimento da anterior arrendatária, emitiu por lapso um recibo em nome da R., que foi, posteriormente, anulado a conselho dos funcionários da Autoridade Tributária e Aduaneira. De facto, a justificação dada pela testemunha quanto aos motivos pelos quais foi emitido recibo pareceu a este tribunal credível e verosímil. Ainda a este propósito explicou a referida testemunha que emitiu o recibo porque não lhe pareceu curial emitir recibo em nome da falecida arrendatária e desconhecia o número de contribuinte da herança, o que é consentâneo com o pedido realizado na carta de 18.07.2016 no sentido de ser disponibilizado o número contribuinte da herança.
No que concerne ao valor de mercado do imóvel, o tribunal considerou as declarações sérias e credíveis de Jo….
Quanto ao facto n.º 16 provado, o tribunal considerou o teor dos documentos n.ºs 30 e 31 juntos com a contestação.
O que fica dito redundou, pois, na ausência de prova quanto aos factos n.ºs 1 e 3.
Os factos não provados n.ºs 2 e 4 resultaram a total ausência de prova nesse sentido.
Os factos não provados n.ºs 5 e 6 resultaram da prova do seu contrário.”
Ingressemos agora na reapreciação da matéria de facto pretendida pela apelante, não sem antes atentarmos primeiramente no seguinte:
“Como é consabido, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Assim, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância. (…)
Como ensina Miguel Teixeira de Sousa, “[a]lgumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal(…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 347).
Deste modo, a Relação aprecia livremente as provas, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (n.º 5 do art.º 607.º do CPC) e sem limitação – à excepção da prova vinculada -, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido.
Por outro lado, não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.
Não se pode, porém, esquecer que nesta sua tarefa a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.”[2], “sendo inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência. (…) no processo de formação da sua [do tribunal de recurso] convicção deverá ter-se em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível – reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões – na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1.ª instância”. [3]
Feito este enquadramento legal e considerações gerais de apreciação do recurso da matéria de facto, e pese embora estas limitações, vejamos, pois, o caso dos autos, tendo em conta que, como impressivamente se escreveu no citado Ac. STJ “(…) a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.
Também nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida.
O nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure. (…)”.
Tenha-se primeiramente em conta que, apesar de caber à Relação proceder à efectiva reponderação das provas indicadas pelos recorrentes e proceder à sua análise crítica e, nessa sequência, formular a sua própria convicção a qual terá de passar pela análise crítica desses meios probatórios, há que não esquecer que não tem o beneplácito da imediação com a prova testemunhal.
A R. impugnou a matéria de facto atinente ao facto não provado 1., pretendendo que ele passe a provado, pelas razões e fundamentos probatórios alinhados nas suas conclusões, estribando-se, assim, nos depoimentos prestados por A. e R. e pelas testemunhas J… e A… e, se bem entendemos, no recibo electrónico, relativo ao mês de Junho de 2016, que foi anulado, junto pela A. na p.i.
Embora, entendamos, sem quebra do sempre devido respeito por opinião contrária, que a matéria de facto impugnada se mostra irrelevante para a decisão da causa, por se mostrar incapaz de alcançar a pretensão jurídica almejada pela R., a alteração do julgado, tendo em conta o direito aplicável ao caso sujeito, como melhor se explicitará por altura da reapreciação jurídica da causa, ainda assim, entendemos conhecer daquela impugnação e apreciar aquele concreto ponto factual.
Ora, ouvidos os depoimentos de A. e R e das testemunhas J… e A…, é manifesto que não colhe a pretensão da R..
Vejamos.
A A., F…, no seu depoimento referiu que no dia 6 de Maio (recordava-se da data exacta, porquanto é o dia do seu aniversário) foi ao locado, a fim de receber a renda. Soube que a arrendatária, a mãe da R., tinha falecido em Abril e disse à R. que como não sabia do falecimento tinha trazido o recibo em nome de sua mãe.
Posteriormente a R. enviou-lhe uma carta, a comunicar o falecimento de sua mãe.
No mês de Junho, em dia que não pode precisar, voltou ao imóvel, tendo nessa altura a R. referido que precisava de ficar na casa e que não podia pagar mais do que a renda que estava a ser paga, tendo a A. respondido que “até poderia ficar com a casa, mas tinha que ser com outros contratos, com outros arrendamentos” e que tinha que ir saber “as minhas condições”. Em Julho enviou uma carta, “a explicar a situação”
Mais disse que a pessoa que passou o recibo enganou-se e que como a R. não informou o NIF da herança de sua mãe, não passou recibos, estando a R. a depositar o “dinheiro”.
A última vez que foi ao imóvel, foi em Junho de 2016.
Mais disse que nunca aceitou que a R. fosse sua inquilina. Só aceitava se fizessem um contrato de arrendamento com outra renda. Nunca aceitou que a R. ficasse com inquilina e com a mesma renda.
Até Outubro de 2016, se a R. não saísse antes ou não fizesse um contrato de arrendamento, os recibos iam ser emitidos em nome da herança.
Nunca mais voltou à casa. Em Junho de 2016 foi a última vez que foi à casa. Nunca mais falou com a R.
Nunca mais a R. a contactou nem recebeu qualquer carta dela.
Através da advogada e de um representante da R. tentaram negociar, mas a R. nunca quis celebrar contrato e pagar outra renda e como não chegaram a acordo pôs a acção.
Já a R., M…, depôs que enviou uma carta à A. a participar o falecimento da mãe, que ocorrera, segundo o seu depoimento, no dia 11 de Maio de 2016 e nesse mesmo mês participou à A. o falecimento de sua mãe
Mais disse que em Maio, a A. levou o recibo em nome da mãe, porque não sabia que tinha falecido, tendo dito à A. “que não fazia mal”, e que a A. lhe perguntou se queria ficar com a casa. Respondeu que sim, mas com a mesma renda. A A. disse-lhe, então, “que não estava a pedir aumentos de renda, que só queria saber se queria ficar com a casa”, e que no próximo mês já traria o recibo em nome da R.
Mais disse que no mês de Junho pagou a renda e que a A. emitiu o recibo em seu nome da R. e que lho entregou em mão.
Depôs, ainda, que a A. voltou à casa em Julho, mas como não levava recibo não lhe pagou a renda, porque aquela não tinha recibo ou comprovativo desse pagamento.
Entretanto recebeu uma carta da A. em que queria que saísse da casa até 11.10.2016 e informava um IBAN para pagar a renda, o que tem feito.
A partir daí nunca mais teve contacto com a A. “Ela nunca mais foi lá a casa”.
Mais referiu que a A. nunca lhe disse que tinham que celebrar um novo contrato e com uma renda mais alta. “Nunca disse que queria fazer contrato comigo. Na altura que foi lá a casa, nunca disse que queria fazer um contrato de arrendamento e que queria outra renda”.
Mais tarde, na carta, é que a A. lhe deu a saber que queria fazer um contrato de 2 anos com outra renda.
Por essa altura a R. “arranjou um advogado que contactou com a advogada da A.”.
Reiterou que recebeu a carta e percebeu que a A. queria um celebrar um contrato com renda mais alta, mas que “a A. nunca fez nada, não voltou à casa”, nem lhe disse mais nada. “Não fez mais nada”.
J…, inspector de veículos automóveis, filho da A.
Conheceu a arrendatária A…, mãe da R. Teve conhecimento do falecimento da A…, através da mãe, a A. Pensa que em 2016. A mãe tem a 4.ª classe e muitas vezes dá-lhe as cartas para ler. Geralmente dá apoio à mãe, nomeadamente nos recibos elctrónicos. Sabe que a mãe recebeu uma carta da R. a comunicar o falecimento da mãe da R.
Mais depôs que a mãe dirigiu-se à casa para falar com a R., que lhe manifestou interesse em continuar a residir a casa, tendo a mãe dito que tinha de ir ver como é que seria. Consultaram as finanças e a advogada.
A mãe solicitou o NIF da herança.
Nas finanças disseram que os recibos tinham que ser passados em nome da herança.
A R. ou fazia um novo contrato ou saía até Outubro de 2016, devendo, até Outubro informar o NIF da herança para que fossem emitidos os recibos. Como o período foi excedido e não informou o NIF da herança não foram emitidos mais recibos.
Mais esclareceu que depois do falecimento da mãe da R., emitiu um recibo em nome da R., porque entendeu que não podia emitir o recibo em nome da pessoa falecida. Achou que não tinha lógica emitir o recibo em nome da pessoa falecida.
Como tinha o NIF (para a emissão dos recibos electrónicos é necessária o NIF do “locatário”) emitiu o recibo em nome dela. E quando se apercebeu, pela informação ds Finanças, que não o devia ter feito, do lapso, o recibo foi anulado.
A R. ainda não saiu do imóvel.
Em Julho (de 2016) a mãe foi interpelada por um representante da R. que queria saber o que queria fazer com o imóvel. A irmã da testemunha também foi contactada para falar com a mãe, A. Os advogados falaram entre eles, no sentido da R. sair do imóvel ou renegociarem o contrato. Foram falados os valores de rendas.
A A. pediu ajuda para tentar perceber como é que funcionava o processo. A mãe não pretendia que a R. continuasse com o contrato da mãe da R. A mãe queria um contrato, com um outro valor de renda.
A ideia era a celebração de um contrato com uma outra renda, com uma duração limitada.
A mãe fez grandes obras, onde gastou bastante dinheiro, em 2014, e tinha a preocupação da manutenção da casa.
A…, prima da R. Não conhece a A.
Após a morte da mãe da R., em Abril de 2016, e das cartas foram feitos alguns telefonemas e contactos com a A.
Após a morte da mãe, tal como era habitual, em Maio a senhoria veio receber a renda. Trazia um recibo em nome da mãe da R. Tinha conhecimento da morte da mesma. Perguntou-lhe se estava interessada em ficar com a casa. Ela disse que sim.
Em Junho voltou à casa e trazia já um recibo com o mesmo valor da renda e em nome da R.
Em Julho, a senhoria não trazia recibo e disse à R. que não lhe podia dar recibo porque tinha um problema com as finanças. Não apareceu mais para ir buscar a renda.
A R. recebeu então uma carta, a dizer que devia deixar a casa em Novembro desse ano.
Houve um contacto com a senhoria e com a advogada. Não foi possível chegar a aum acordo. A R. continuou a depositar a renda no IBAN respectivo.
Em Junho, quando a A. recebe a carta e depois passa o recibo em nome da R. partiram do princípio que a tinha considerado como arrendatária.
Até receberem a carta de Julho sempre acharam que a R. era arrendatária.
Pensa que a senhoria mudou de ideias e que anulou o recibo e depois enviou a carta em Julho.
Não houve mais nenhum contacto entre a senhoria e a R.
Foi tentado encontrar um defensor oficioso.
A R. tem uma pensão de reforma de pouco mais de 200 euros.
Tentaram arranjar casa de junta de freguesia, da Misericórdia, mas não existem. Os familiares ajudam pontualmente, mas a R. está numa situação débil.
Pediu à R. o n.º de telefone da A. Pensa que falou com uma filha, mas não chegou à fala com a senhoria.
O marido da testemunha é advogado e chegou a trocar e-mails com a advogada da R. e falou com ela. Não havia abertura para qualquer negociação. Na sua opinião, a A. aceitou a situação, passou o recibo. Depois mudou de opinião e escreveu uma carta. Foi essa carta que levou a tentar esse contacto.
Apreciemos.
Tenhamos em conta que o facto que a apelante pretende que seja julgado provado é o seguinte: “No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária”.
Ora, quando a esta concreta matéria, as testemunhas J… e A…, apenas sabem o que lhes foi contado por A. e R., respectivamente, já que não estavam presentes, aquando do dito encontro, tendo ainda a R. A… expressado a leitura que fez, a sua opinião, sobre os factos que relatou.
Por seu turno, o que se conclui das declarações de A. e R. é que “No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela R., tendo sido questionada por esta sobre a situação do arrendamento”. Nada mais se provou.
As declarações de parte da R., neste conspecto, não mereceram qualquer credibilidade por parte deste tribunal ad quem, tanto mais que contrariou a sua própria versão expressa na contestação, quando declarou que foi a A. quem a questionou sobre o arrendamento, perguntando-lhe se queria ficar com a casa. E disse mais: Respondeu à A. que sim, mas com a mesma renda. A A. disse-lhe, então, “que não estava a pedir de aumentos de renda, que só queria saber se queria ficar com a casa”, e que no próximo mês já traria o recibo em nome da R.
As declarações prestadas pela R. foram hesitantes, evasivas, pouco consistentes, sendo que ao longo do seu depoimento a R. evitou responder directamente às perguntas que lhe eram feitas, fazendo declarações sobre matérias que não lhe tinham sido perguntadas e, após insistência, acabava por responder, embora nem sempre directamente à questão que lhe era colocada. Ademais, importa referir, a respeito do meio de prova em análise, previsto no art.º 466.º do CPC, que “não existe qualquer fundamento epistemológico para não se reconhecer nas declarações favoráveis ao depoente um meio válido de formação da convicção e racional do julgador, isto, é, uma fonte válida de convencimento racional do juiz.
Questão diferente é a da suficiência das declarações favoráveis ao depoente para a formação desta convicção. A experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente. Já integrado num acervo probatório mais vasto, poderá mesmo ser decisivo na prova desse facto, pois proporciona um material probatório necessário à prova do facto.”[4]
Com efeito, “[a]s declarações de parte […] – que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos”[5].
Da declaração da parte importa que o seu relato esteja espontaneamente contextualizado e seja coerente, quer em termos temporais, espaciais e emocionais e que seja credenciado por outros meios de prova, designadamente que as declarações da parte sejam confirmadas, por outros dados, que, ainda indirectamente, demonstrem a veracidade da declaração. Caso contrário a declaração revelará força probatória de tal forma débil que não deve ser tida em conta[6].
Com efeito, as declarações de parte, tal como os depoimentos testemunhais, são de livre apreciação, excepto na parte em que consistam em confissão (art.º 466.º, n.º 3, do CPC). Daí que o tribunal não tem que acreditar, necessariamente, em tudo ou nada do que o declarante refere na sua prestação probatória. Esta releva na medida em que convencer, sendo o convencimento tanto maior quanto mais justificado estiver e se aproximar da prova credível fornecida por outros meios, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica da vida. Pode uma parte das declarações convencer e outra parte não convencer. O tribunal não pode olvidar que o declarante tem interesse directo na sorte da acção[7].
Importa, no entanto, ressalvar que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objecto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, em situações particulares de difícil prova de factos ou de impossibilidade de prova por outros meios, é de admitir a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz, sem recurso a outros meios de prova[8].
No caso dos autos, seria essencial que o teor das declarações de parte da recorrente se mostrasse corroborado, secundado ou suportado por outros meios de prova credíveis que, de um modo objectivo e lógico, habilitassem o Tribunal a formar uma convicção minimamente segura no tocante à matéria de facto em discussão.
Não poderíamos, por isso, com um mínimo de segurança concluir pela verificação da factualidade em causa, nomeadamente que “a A. transmitiu à R. a sua vontade de a manter como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária”, pelo que na dúvida subsistente, que, na espécie, nem existe, quanto à verificação desse factualismo, sempre se imporia que não se desse o mesmo como não provado (art.º 414.º do CPC). Aliás, na espécie, as declarações de parte da R. mostram-se infirmadas pelo depoimento da A., que se nos revelou verdadeiro e coerente.
Também o “recibo (electrónico) anulado”, junto pela A. não tem a virtualidade de corroborar o depoimento da R., que aliás, até chegou a referir que a A. lhe entregou o recibo de Junho de 2016, em mão (antes de ser anulado, certamente), quando na sua contestação afirma que apesar de ter pago as rendas, a A. nunca lhe passou, nunca lhe entregou qualquer recibo. Não só as declarações prestadas pela R. são contraditórias com a sua defesa, expressa na contestação, como nem mesmo, em momento posterior, a ter na sua posse o recibo, como depôs, em momento algum requereu a sua junção aos autos.
Ademais, sobre a emissão do recibo electrónico em nome da R., e secundando o tribunal a quo, o depoimento da testemunha J… revelou-se credível, coerente, em consonância com as regras da experiência corrente.
Com efeito, o recibo electrónico em causa é emitido em Junho de 2016, quando a arrendatária havia já falecido, estando pois a decorrer o prazo de seis meses, a que alude o art.º 1053.º do Cod. Civil, sendo que era a R. quem habitava o imóvel. J…, filho da A. e quem emite os recibos electrónicos, entendendo que não poderia emitir o recibo em nome de uma pessoa falecida e porque para a emissão do recibo electrónico, a aplicação exige o NIF, conhecendo o NIF da R. emitiu o recibo com esse NIF e com o seu nome. Posteriormente anulou esse recibo, porque nas Finanças lhe disseram que o recibo tinha que ser emitido com o NIF da herança da arrendatária.
Daqui, neste contexto, é manifesto que não se pode concluir que ao emitir esse recibo electrónico, nas circunstâncias e momento temporal em que o fez (e que nem chegou a ser entregue à R., pelo menos que se mostre provado nos autos) a A. estava a reconhecer a R. como arrendatária, quando até da prova produzida, nomeadamente do depoimento da A., resultou o contrário.
Destarte, e pese embora, a matéria provada, seja, de todo irrelevante, adita-se ao elenco factual provado, o ponto 8A, com a seguinte redacção:
“No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela R., tendo sido questionada por esta sobre a situação do arrendamento.”, passando o ponto 1. do quadro fáctico não provado a ter a seguinte redacção: “Com referência ao ponto 8A do quadro fáctico provado, a A. transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como atual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária”.
Destarte, à excepção do que acima se decidiu, é de meridiana clareza, que nenhuma censura merece a decisão da matéria de facto.
Dos depoimentos prestados por A. e R. e do depoimento das testemunhas J… e A…, não se antolha que a decisão do tribunal a quo, quanto aquele concreto segmento daquele ponto factual não provado, mereça censura.
Não se vislumbra como da prova (ou não) produzida em audiência, que acima referimos, se pudesse concluir pela demonstração do referido segmento do ponto factual 1., devendo, por isso, ser julgado não provado, como foi.
É certo que a R. se esforçou para apresentar-se como arrendatária do imóvel em causa, por virtude da emissão do recibo electrónico, mas que não convenceu o tribunal a quo nem convence este tribunal ad quem.
“(…)
Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
(…)”[9]
A alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição da prova gravada e analisados a demais prova, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, não só apontam em direcção diversa, como impõem decisão diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Assim, a impugnação da decisão de facto procederá apenas, quando a convicção formulada pelo Tribunal a quo não tiver qualquer razoabilidade em face dos meios de prova que suportam a sua decisão, verificando-se nesse caso erro de julgamento.
Ouvida a prova gravada e analisados os documentos juntos aos autos, nenhuma censura merece a decisão de facto quanto aquele concreto segmento do ponto factual 1 do elenco factual não provado. Do quadro fáctico não provado, que se mostra correcto e concordante com a prova produzida, não se pode deixar de concluir que a valoração efectuada pelo tribunal recorrido não se revela arbitrária ou falaciosa, pelo que, prima facie, não se verifica que se justifique a intervenção correctiva desta Relação nesse conspecto.
Assim, face à audição da prova e à análise dos documentos juntos autos somos a concluir que a motivação avançada pela apelante, quanto ao facto impugnado naquele concreto segmento, com vista à pretendida alteração, não tinha suficiente sustento na prova produzida
Nessa medida, conclui-se que a valoração desses meios de prova – os únicos que foram concretamente concitados pela apelante – não impõem, naquele conspecto, decisão diversa daquela que foi tomada pelo tribunal a quo, não se divisando quaisquer outros cuja valoração viabilizasse a pretendida modificação.
*
Sendo certo que ao Tribunal da Relação é legítimo extrair do processo factos que se mostrem provados: por documento com força probatória plena; em consequência de revelia (art.º 567.º, n.º 1) ou de acordo expresso ou tácito das partes que sejam legalmente relevantes, o que pode decorrer do confronto entre os articulados e que tem apoio directo na norma do art.º 607.º, n.ºs 4 e 5, sobre a elaboração da sentença, a qual é aplicável aos Tribunais da Relação, ex vi art.º 663.º, n.º 2 do CPC, entende este tribunal ad quem, com base no assento de óbito, anexo ao doc. n.º 7, junto com a p.i., aditar ao quadro fáctico provado o ponto 7A, com a seguinte redacção: “Atália Nogueira Ramos faleceu no dia 11 de Abril de 2016”.
Destarte, mostra-se consolidado o elenco factual nos seguintes termos:
Factos Provados
1. A A. é dona e legitima proprietária da fração autónoma designada pela Letra B do prédio urbano sito na Rua de Santo André, n.ºs … da União das freguesias de Estremoz (Santa Maria e Santo André), concelho de Estremoz, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Estremoz sob o n.º ….
2. A referida fração autónoma B corresponde ao rés-do-chão com entrada pelo n.º ….
3. Por contrato datado de 23 de Junho de 1956, o anterior proprietário M… deu de arrendamento ao pai da ora R. o referido rés-do-chão com entrada pelo n.º ….
4. Em consequência do óbito do anterior arrendatário, o arrendamento transmitiu-se para o cônjuge sobrevivo, A…, mãe da ora R.
5. Em 11.03.2013, a A. enviou à mãe da ora R. a seguinte missiva. “(…) venho comunicar-lhe: a) ser minha intenção que o identificado contrato transite para o regime do NRAU; b) propor-lhe que o mesmo contrato passe a ser do tipo prazo certo com a duração de cinco anos; c) propor-lhe que a renda mensal, actualmente de € 10,00 (dez euros), passe para € 131,00 (cento e trinta e um euros) mensais. (…)”.
6. Em 15.03.2013, a mãe da ora R. enviou à A. a seguinte missiva “(…) informo não estar de acordo com o valor da renda proposta por V. Exa., pois a actualização da renda em apreço deverá ser feita segundo o disposto nos artigos 35.º e 36.º da mencionada Lei, uma vez que possuo um Rendimento Anual Bruto Corrigido (RABC) inferior a cinco Retribuições Mínimas Nacionais Anuais (RMNA) e idade superior a 65 anos. Oponho-me, também, a que o contrato passe a ter uma duração limitada de cinco anos, devendo o mesmo manter-se como contrato para fins habitacionais, por tempo indeterminado, bem como me oponho a que o contrato de arrendamento fique submetido ao NRAU. (…).
7. Em virtude das negociações mencionadas em 5. e 6., a renda fixou-se em € 99,97.
7A. “A… faleceu no dia 11 de Abril de 2016”
8. Por carta datada de 27 de Maio de 2016, a R. comunicou à A. o falecimento de sua mãe, anterior arrendatária, invocando a transmissão do arrendamento.
8A. No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao imóvel dos autos, habitado pela R., tendo sido questionada por esta sobre a situação do arrendamento.
9. Em Junho de 2016, a R. pagou à A., em dinheiro, a quantia de 99,97€.
10. Em 14.06.2016, a A. emitiu recibo em nome da R., que foi, posteriormente, anulado e dado sem efeito.
11. Nessa sequência, a A. enviou à R., em 18.07.2016, a seguinte missiva: “(…) Ora, não se inserindo V. Exa. em nenhuma das situações prevista neste preceito legal, ocorreu a caducidade do arrendamento, devendo V. Exa. entregar o locado livre de pessoas e bens pelo prazo de 6 (seis) meses após a verificação do óbito, ou seja, até ao próximo dia 11 de Outubro de 2016.
Para efeitos de emissão de recibo deverá V. Exa. informar o número fiscal da Herança, informando desde já que o recibo emitido foi anulado uma vez que por lapso V. Exa. foi indicada como inquilina, pelo que será emitido novo recibo assim que indicar o NIF da herança.
Desde já informo que caso V. Exa. pretenda celebrar contrato de arrendamento estarei disponível para eventualmente acertarmos as condições de tal contrato, o qual ficará submetido ao NRAU, mediante prazo certo, pelo período de 2 anos.
Mais comunico que a partir da presente data as rendas deverão ser pagas por transferência bancária para o IBAN (…)”.
12. No dia 22.07.2016, a R. transferiu para a conta bancária indicada pela A. a quantia de € 99,97.
13. A R. tem vindo a liquidar a renda de € 99,97 mensalmente.
14. A R. nunca entregou o imóvel à A.
15. O valor de mercado do imóvel cifra-se entre os 250,00 € e 275,00 € mensais.
16. A R. sofre de problemas de coluna e é reformada por invalidez.
E Não Provados:
1. “Com referência ao ponto 8A do quadro fáctico provado, a A. transmitiu à R. a sua vontade de manter como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária”.
2. Que, por referência ao facto n.º 9 provado, a R. solicitou recibo.
3. Que, após 18.07.2016, a A. foi ao imóvel receber a renda do mês correspondente e comunicado à R., a sua intenção de manter o contrato de arrendamento, só alterando o modo de pagamento da renda, que passaria a ser feito por transferência bancária.
4. No ano de 2017, a R. fez benfeitorias no locado.
5. A R., nunca procurou outra habitação, julgando que a sua posição de arrendatária estava garantida até ao dia do seu falecimento, como tinha acontecido com os seus pais, e que nunca seria posta em causa.
6. O valor no mercado de arrendamento do imóvel mencionado em 1. provado é de € 300,00.
3.ª Questão
Delimitada a matéria de facto, interessa agora apreciar a 1.ª questão substantiva, nomeadamente se se verifica a caducidade do arrendamento, não se transmitindo, por morte da arrendatária, à R., filha daquela.
Resulta da factualidade provada que por contrato datado de 23 de Junho de 1956, o anterior proprietário M… deu de arrendamento ao pai da ora R. o referido rés-do-chão, com entrada pelo n.º …, o qual se transmitiu, por óbito do primitivo arrendatário, para o cônjuge sobrevivo, A…, mãe da ora R., fixando-se a renda em € 99,97.
A…, mãe da R., faleceu no dia 11 de Abril de 2016, tendo a R., por carta datada de 27 de Maio de 2016, comunicado à A. o falecimento de sua mãe, anterior arrendatária, invocando a transmissão para si do arrendamento.
Ora, a arrendatária, mãe da R., faleceu quando já vigorava o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, sendo que por altura do decesso daquela, aquela lei havia sido já alterada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto e pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, dela constando normas de direito transitório, tendo em vista os contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU.
Destarte, a transmissão do contrato de arrendamento em litígio, por morte da arrendatária rege-se pelas disposições conjugadas dos art.ºs 26.º, n.º 2, 27.º, 28.º e 57.º, n.ºs 1 a 4 do NRAU.
Com efeito, nos termos conjugados dos art.ºs 59.º n.º 1, 26.º n.º 1 e 27.º do NRAU, a todos os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU - contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15.10 e aqueles que foram celebrados durante a vigência do RAU - aplica-se, em matéria de transmissão por morte no arrendamento para habitação, o disposto no art.º 57.º do NRAU, no caso sujeito, na redacção introduzida pelas Leis n.º 31/2012, de 14 de Agosto e n.º 79/2014, de 19 de Dezembro. Com efeito, tendo presente o disposto no art.º 12.º do Cod. Civil, o regime de transmissão do arrendamento para habitação, não obstante o contrato de arrendamento ter sido celebrado em 1956, é o regime vigente à data do facto potencialmente idóneo a determiná-la, i.e., no caso presente, a data do decesso da mãe da R. (11.04.2016), então arrendatária (a quem havia sido transmitido o arrendamento por morte do pai da R., primitivo arrendatário), e em plena vigência do NRAU.[10].
O normativo aqui aplicável, art.º 57.º do NRAU, apenas admite a transmissão do arrendamento para os descendentes do anterior arrendatário em relação a filho ou enteado com menos de um ano de idade ou que convivesse com o arrendatário há mais de um ano e fosse menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequentasse o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior (alínea d) do n.º 1 do art.º 57.º), ou a filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %. (alínea e) do n.º 1 do art.º 57.º do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro)
Com efeito, a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto suprimiu a regra do “duplo grau de transmissibilidade do direito ao arrendamento” para os descendentes que anteriormente era estabelecido no n.º 4 do art.º 57.º do NRAU, sendo actualmente tal regra só aplicável aos ascendentes sobrevivos.
E, não obstante a Lei n.º 79/2014 de 19 de Dezembro ter alterado, de novo, o citado art.º 57.º, manteve intocada a supressão da segunda transmissão do arrendamento.
De resto, a problemática da constitucionalidade do art.º 57.º do NRAU foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, em diversos arestos, que concluíram pela sua constitucionalidade, como sucedeu, exemplificativamente, com o Acórdão n.º 581/11, de 29.11.2011, que reafirmou a jurisprudência dos anteriores Acórdãos n.ºs 385/2010, 346/2011, 196/2010[11] esclarecendo que a norma transitória do art.º 57.º, n.º 1, alíneas d) e e) do NRAU, é aplicável, quer enquanto norma aplicável aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, quer enquanto norma aplicável aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU, por força do disposto nos art.ºs 27.º e 28.º e 26.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Destarte, conclui-se que por efeito do falecimento da mãe da R. a posição de arrendatária não se transmitiu para esta porque, desde logo, a falecida já tinha sucedido naquela posição ao primitivo arrendatário, seu marido, inexistindo à data do decesso da mãe da R. qualquer disposição legal que previsse uma segunda transmissão do contrato, não tendo resultado demonstrado que a R. preenchesse qualquer dos supra enunciados requisitos, nem por ela tal foi alegado, pelo que face ao direito ordinário aplicável, o referido contrato de arrendamento caducou em 11.04.2016, por morte da arrendatária, a quem fora transmitido o arrendamento por morte do primitivo arrendatário, como decorre da alínea d) do art.º 1051.º do Cod. Civil, na redacção dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, tal como foi decidido – e bem – na sentença recorrida, pelo que improcede o que, a este propósito, consta da alegação de recurso do apelante.
4.ª Questão
Insurge-se igualmente a recorrente contra a sentença recorrida, por entender que se deverá considerar que foi reconhecida como inquilina.
Na contestação, invoca a R. que:
- No mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao referido locado, habitação da Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária.
- Ora, no mesmo momento, a Ré pagou à A., em dinheiro, o valor acordado como sendo o valor da renda (99,97€ - noventa e nove euros e noventa e sete cêntimos), solicitando o respectivo recibo.
- A A. não passou o recibo, nem esclareceu a R., sobre se, e, quando o faria, dizendo-lhe apenas e só, que estava com problemas com as Finanças.
- Desta feita, no mês de Julho, a R. fez a transferência bancária do valor da renda, para o número de conta que a A. lhe havia comunicado.
- Nunca a R. deixou de pagar a renda, no entanto, nunca a A. lhe passou recibo dos valores efectivamente pagos, como é sua obrigação legal.
- Efectivamente, a última comunicação escrita que terá sido feita à R. por carta registada c/ A.R. é datada de 18 de Julho de 2016, tendo após essa data, a A., ido ao referido locado receber a renda do mês correspondente e comunicado à R., a sua intenção de manter o contrato de arrendamento, só alterando o modo de pagamento da renda, que passaria a ser feito por transferência bancária.
- Desta feita, a R., continuou a viver no locado, confiando na palavra dada pela A. de que tinha assumido a posição de arrendatária, e como tal, cumprindo com todas as obrigações adjacentes a esta qualidade.
- Ademais, se a R. cumpria as suas obrigações legais, esperava que a A. também o estivesse a fazer, nomeadamente passando os correspondentes recibos de renda, pensando até que, só não teria acesso aos mesmos porque estes seriam electrónicos.
Questão que importa ora decidir é se entre A. e R. foi celebrado um contrato de arrendamento, pela circunstância, como defende a R., de ter “proposto” à A. ser arrendatária do imóvel e a A. ter emitido um recibo electrónico, em nome daquela, em 14.06.2016, o qual veio a ser anulado, o que demonstra, segundo a apelante, a aceitação da “proposta” da R., sendo certo, por um lado, que a R. não logrou provar, como lhe incumbia que, no mês de Junho de 2016, a A. dirigiu-se ao referido locado, habitação da Ré, e questionada por esta sobre a situação do arrendamento, “transmitiu-lhe a sua vontade de manter a Ré como actual arrendatária, devendo a mesma, somente, passar a pagar a renda através de transferência bancária”, embora irrelevante para a decisão da causa, como veremos, e por outro, que, em 17.07.2016, a A. enviou uma carta à R. dando-lhe conta que ocorrera a caducidade do arrendamento e, por isso, devia. entregar o locado livre de pessoas e bens pelo prazo de 6 (seis) meses após a verificação do óbito, ou seja, até ao próximo dia 11 de Outubro de 2016, devendo, ainda, para efeitos de emissão de recibo deverá V. Exa. informar o número fiscal da Herança e informando que o recibo emitido foi anulado uma vez que por lapso fora a R. indicada como inquilina, pelo que seria emitido novo recibo assim que fosse indicado o NIF da herança, devendo as rendas ser pagas por transferência bancária para o IBAN que comunicou.
Mais informou que estaria disponível, caso a R. pretendesse celebrar contrato de arrendamento, para acertarem as condições de tal contrato, que ficaria submetido ao NRAU, mediante prazo certo, pelo período de 2 anos.
Apreciemos
Da factualidade provada resulta que em Junho de 2016, a R. pagou à A., em dinheiro, a quantia de 99,97€ e que, em 14.06.2016, a A. emitiu recibo em nome da R., que foi, posteriormente, anulado e dado sem efeito, tendo a A. enviado à R., em 18.07.2016, a seguinte missiva: “(…) Ora, não se inserindo V. Exa. em nenhuma das situações prevista neste preceito legal, ocorreu a caducidade do arrendamento, devendo V. Exa. entregar o locado livre de pessoas e bens pelo prazo de 6 (seis) meses após a verificação do óbito, ou seja, até ao próximo dia 11 de Outubro de 2016.
Para efeitos de emissão de recibo deverá V. Exa. informar o número fiscal da Herança, informando desde já que o recibo emitido foi anulado uma vez que por lapso V. Exa. foi indicada como inquilina, pelo que será emitido novo recibo assim que indicar o NIF da herança.
Desde já informo que caso V. Exa. pretenda celebrar contrato de arrendamento estarei disponível para eventualmente acertarmos as condições de tal contrato, o qual ficará submetido ao NRAU, mediante prazo certo, pelo período de 2 anos.
Mais comunico que a partir da presente data as rendas deverão ser pagas por transferência bancária para o IBAN (…)”.
Mais se provou que no dia 22.07.2016, a R. transferiu para a conta bancária indicada pela A. a quantia de € 99,97, tendo vindo a liquidar essa importância de € 99,97 mensalmente, não tendo procedido à entrega do imóvel à A.
Não resulta da factualidade provada que a A. entregou à R. qualquer recibo. Aliás, em momento algum da contestação a R. faz tal afirmação, antes referindo sempre que a A. jamais lhe entregou qualquer recibo.
Sem embargo, como vimos, sustenta a R. que entre si e a A. foi celebrado um contrato de arrendamento, porquanto esta emitiu um recibo (electrónico) em Junho de 2016, em seu nome.
É manifesto que não assiste razão à R.
Como é sabido, o consentimento do senhorio com relação a uma alteração da posição de arrendatário implica a realização de uma conduta activa de concordância anterior, contemporânea ou posterior a essa alteração.
É, portanto, necessário, não só que o senhorio tenha conhecimento dessa alteração da posição de arrendatário, mas que aceite o novo arrendatário.
O reconhecimento que é, no fundo, a manifestação do consentimento pode ser feito por palavras, por escrito ou por factos donde ele se deduza necessariamente, conforme decorre dos art.ºs 217.º e 218.º, ambos do Cod. Civil.
O simples conhecimento que determinada pessoa habita no arrendado, substituindo-se ao arrendatário, não satisfaz só por si, as condições de reconhecimento, podendo apenas significar uma mera tolerância, não equivalendo necessariamente à aceitação daquele como arrendatário. Implica, em suma, que do comportamento do locador se conclua inequivocamente ter havido reconhecimento em termos definitivos e totais.
Ora, na espécie, é por demais evidente que a senhoria, a A., se opôs à utilização do locado pela R., a partir de 11.10.2016, a menos que celebrassem contrato de arrendamento, já que o contrato de arrendamento transmitido à mãe da R. havia caducado por morte desta. Destarte, não tendo sido celebrado contrato de arrendamento com a R. e perante a oposição da A. é manifesto que o pagamento de rendas por depósito não releva, tanto mais que a A. jamais emitiu, com excepção do recibo electrónico, de Junho de 2016, que foi anulado, qualquer outro recibo em nome da R. bem demonstrando quer pela carta remetida em 17.07.2016 quer pelo seu comportamento que não reconhecera a R. como locatária. Aliás, a R. nem mesmo exibiu qualquer recibo de renda.
Acresce que o argumentário jurídico deduzido pela R. nas alegações não colhe, pelas razões expostas. Aliás, diga-se, ainda, apenas a talhe de foice que a carta que a R. enviou à A. no dia 27 de Maio de 2016 não consubstancia qualquer proposta, antes arroga-se um direito (à transmissão do arrendamento), que vimos já dele não ser titular. Também a alegada “conversa” com a A., em Junho de 2016, que não logrou provar, mas ainda que se provasse, tão-pouco, temos para nós, que consubstanciaria uma proposta de arrendamento, com aceitação por parte da A., por aquela haver emitido um recibo electrónico em nome da R. (nem se mostrando tão-pouco alegado – logo não foi objecto de prova - que o havia entregue à R.), quando estava em curso o prazo a que alude o art.º 1053.º do Cod. Civil, o que permite contextualizar a emissão do recibo, que depois, veio a ser anulado, sendo que não mais foram emitidos recibos, em virtude da R. nunca ter informado à A. o NIF da herança, o que bem demonstra que a A. não reconheceu a R. como arrendatária.
Sucede que, dos factos dados como provados, inexiste qualquer comportamento da autora, na qualidade de locadora, do qual se possa deduza necessariamente, conforme decorre dos citados art.ºs 217.º e 218.º do Cod. Civil, a aceitação da R., enquanto arrendatária.
Para mais, a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei (art.º 220.º do Cod. Civil).
Importa, ainda, ter em conta que nos termos do disposto no art.º 1053.º do Cod. Civil, “Em qualquer dos casos de caducidade previstos nas alíneas b) e seguintes do artigo 1051.º, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade ou, sendo o arrendamento rural, no fim do ano agrícola em curso no termo do referido prazo.”
A significar, pois, que, tendo a arrendatária – mãe da R. – falecido em 11.04.2016, teria a R. direito a permanecer no arrendado durante os seis meses subsequentes (pagando, obviamente, a competente contrapartida), já que a restituição do imóvel apenas poderia ser exigida pela senhoria, como foi, a partir de Outubro de 2016.
A verdade é que não se provou que a R. haja sido reconhecida enquanto arrendatária, por parte da A., na qualidade de senhoria, seja no sentido de admitir que o arrendamento se havia transmitido à R., seja no sentido de com ela haver celebrado “novo” contrato de arrendamento, pelo que improcede, também nesta parte, a alegação de recurso da apelante.
Contudo, há a observar, independentemente da prova que se fizesse sobre o reconhecimento da R. como arrendatária por parte da A., que dispunha o n.º 1 do art.º 7.º do RAU, na redacção do Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito, prevendo, contudo o n.º 3 do mesmo normativo que a inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda e determina a aplicação do regime de renda condicionada, sem que daí possa resultar aumento de renda.
Pelo Dec- Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, que introduziu alterações no referido Dec.-Lei n.º 321-B/90, a inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda e determina a aplicação do regime de renda condicionada, sem que daí possa resultar aumento de renda (n.º 2 do art.º 7.º)
Contudo, o Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro foi revogado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, passando a dispor sobre a forma do contrato de arrendamento o art.º 1069.º do Cod. Civil, nos termos do qual se estatuía que “O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito desde que tenha duração superior a seis meses.”
Tal normativo veio a ser alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, passando a dispor que “O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito”.
Destarte, atendendo à data dos alegados factos em apreço, Junho de 2016, na espécie seria aplicável o art.º 1069.º, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 12 de Dezembro[12].
Ora, dado que a lei sujeita o contrato de arrendamento a forma escrita - contrato formal -, quando seja celebrado sem que a forma escrita tenha sido observada, tal acarretará a nulidade do contrato, nos termos do art.º 220.º do Cod. Civil, visto que o legislador não consagrou qualquer meio através do qual o vício pudesse ser suprido, nomeadamente pelo mecanismo de exibição do recibo de renda que já ia fazendo tradição no direito anterior, cabendo, pois aplicar o regime geral[13]: nos termos do art.º 220.° do Cod. Civil, a violação de normas que imponham uma forma especial, acarreta, regra geral, a nulidade do acto praticado.
Assim, um contrato de arrendamento celebrado sem que tenha sido reduzido a escrito, será nulo, nulidade que poderá ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado, e cognoscível ex officio (art.º 286.º do Cod. Civil), sendo-lhe, pois, aplicável o regime geral da nulidade (art.º 289.º e ss do Cod. Civil)[14].
“Não existem, pois, limites específicos à invocação, designadamente, por qualquer das partes, da invalidade formal do contrato, não vendo a lei - como já não via, no regime anterior - o locador como o culpado, real ou presumido, do vício de forma, no arrendamento urbano: ambos os contraentes surgem, por isso, em perfeita igualdade, quanto à possibilidade de invocar a nulidade formal. Tal invocação poderá, no entanto, - nos termos gerais da proibição de abuso do direito (art.º 334.°, do Cod. Civil) - ser detida, caso o exercício da respectiva situação jurídica se mostre inadmissível, v.g. por inalegabilidade formal ou por proibição de venire contra factum proprium[15].
A aplicabilidade, sem desvios ou reticências, do regime geral da nulidade, em caso de invalidade formal do contrato de arrendamento urbano, representa uma importante alteração, relativamente ao regime legal anterior:
Na verdade, com o NRAU, deixa de existir a hipótese de convalidação do contrato verbal, mediante exibição do recibo de renda (cfr. art.º 7.°, n.º 2, do RAU).
Cessam, consequentemente, as múltiplas e controversas questões que esta solução legal vinha suscitando[16]: em especial, a possibilidade, ou impossibilidade, de conhecimento oficioso do vício de forma; ou a dúvida sobre o âmbito e o sentido da norma legal, que remetia para o regime de renda condicionada” [17].
Ora, como vimos, à luz da legislação aplicável, o contrato de arrendamento deve revestir a forma escrita, sendo inadmissível a convalidação do contrato verbal, mediante exibição do recibo de renda, pelo que a inobservância de forma, importaria a nulidade do mesmo, cognoscível ex officio (art.º 1069.º do Cod. Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto e art.ºs 220.º, 286.º e 289.º do Cod. Civil).
Assim, ainda que se tivesse provado que havia sido celebrado um contrato de arrendamento (art.ºs 1022.º e 1023.º do Cod. Civil), a verdade é que com a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto os contratos de arrendamento, independentemente do prazo, passaram a ficar sujeitos à forma escrita (art.º 1069.º do Cod. Civil) e não estabelecendo a lei qualquer sanção especial para a omissão da forma legalmente exigida o contrato de arrendamento, celebrado com inobservância da forma legalmente prescrita, seria nulo, à luz do disposto no art.º 220.º do Cód. Civil, nulidade, à míngua de especificação em contrário, cognoscível ex officio (art.º 286.º do CPC).
Ora, a figura da nulidade, consistente na falta ou vício de um elemento interno ou formativo, implica que o negócio não produza, ab initio, os efeitos a que tendia, opera ipso iure e é de conhecimento oficioso, sendo que o seu conhecimento não tem limitação temporal (artºs. 286.º e 289.º, do Cod. Civil).
Tendo o reconhecimento da nulidade efeitos retroactivos, haverá lugar à reposição das coisas no estado anterior ao negócio - o status quo ante - restituindo-se tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Surge, desta forma, uma relação de repristinação, ou de liquidação, cujos efeitos não são negociais, mas legalmente desencadeados.
A obrigação de restituir é um mero efeito legal e “destina-se a permitir uma liquidação e não o objectivo finalista querido pelas partes”[18].
Em execução do efeito de respristinação determinado cumpriria à R. proceder à restituição do imóvel e do gozo entretanto fruído e à A. a restituição das “rendas” recebidas.
De facto, como consequência da eficácia da declaração de nulidade, o A. tem direito a ser restituído no que prestou em execução do contrato, por aplicação do disposto no art.º 289.º, nº 1 do Cod. Civil, afastando-se as regras do enriquecimento sem causa.[19]
Contudo, não sendo possível a restituição, em espécie, do gozo do imóvel, ficaria a R. obrigada à restituição do valor correspondente ao gozo do imóvel devido até à entrega do imóvel, vista a relação sinalagmática existente entre as duas prestações.
Consequentemente, sendo o contrato declarado nulo, atento o disposto no art.º 289.º, n.º 1 do Cod. Civil, à R. caberia restituir a coisa “locada” e, como acima se referiu, o valor correspondente ao gozo do “locado”. Tal é a doutrina expedida no Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/95, de 28 de Março de 1995, hoje com valor de AUJ, mantendo perfeita actualidade, publicado no Diário da República n.º 114, Série I-A, de 17 de Maio de 1995, onde se prescreve que "Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do art.º 289.º, do Código Civil", o que não excederia os limites impostos pelo art.º 609.º nº 1 do CPC, atendendo ao pedido formulado, divergindo apenas os fundamentos, o que é legalmente permitido (art.º 5.º do CPC).
Tudo para significar que, ainda a R. houvesse logrado provar ter celebrado com a A., em Junho de 2016, um contrato de arrendamento, sempre teria que proceder à entrega do imóvel à A., por efeito da nulidade do contrato, não tendo alegado, nem se vislumbrando, quaisquer factos que permitissem o recurso ao instituto do abuso de direito.
Revertendo ao caso concreto e à concreta factualidade provada nos autos, do que deixámos dito resulta que o arrendamento não se transmitiu para a R., por morte de sua mãe, pelo que, ultrapassado o prazo de seis meses estipulados no art.º 1053.º do Cod. Civil, deixou a R./apelante, a partir desse momento, de ter qualquer título de ocupação do imóvel em causa, inexistindo, como se viu, motivo válido que obste à restituição do imóvel à A., tanto mais que não provou a celebração, em Junho de 2016 (nem mesmo em qualquer outro momento), de um contrato de arrendamento com a A..
Assim, e não se tendo provado que a R. haja sido reconhecida enquanto arrendatária, por parte da autora, na qualidade de senhoria, no sentido de admitir que o arrendamento se havia transmitido à R. ou que entre elas havia sido celebrado contrato de arrendamento, improcede, também nesta parte, a alegação de recurso do apelante.
Com o que se expôs, mostra-se delineada a improcedência de todas conclusões recursórias.
As custas do presente recurso serão suportadas, porque vencida, pela apelante (n.º 1 e n.º 2 do art.º 527.º do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença apelada.
Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Registe.
Notifique.
Évora, 13 de Fevereiro de 2020
Florbela Moreira Lança (Relatora)
Ana Margarida Leite (1.ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)
__________________________________________________
[1] Neste sentido, a respeito de arguição simétrica, vide. o Ac. do STJ de 08.01.2015, proferido no proc. n.º 129/11.0TCGMR.G1.S1 e acessível em www.dgsi.pt
[2] Ac. da RE de 13.07.2017, proferido no processo n.º 136548/14.0YIPRT.E, acessível em ww.dgsi.pt
[3] Ac. do STJ de 07.09.2017, proferido no processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[4] Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I, 2014 - 2ª ed., 2014, Almedina, pp. 395.
[5] Ac. da RP de 15.09.2014. No mesmo sentido, os Acs. RP de 17.12.2014, de 17.12.2014 e de 20.11.2014 , todos acessíveis em www.dgsi.ptwww.dgsi.pt.
[6] Ac. da RG de 18.01.2018, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Ac. da RP de 29.06.2017, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pp. 80 e Luís Filipe Pires de Sousa, As Declarações de Parte - Uma Síntese, acessível em www.verbojuridico.pt.
[9] Ac. da RG de 28.06.2018, proferido no proc. n.º 2476/16.5T8BRG.G1, acessível em www.dgsi.pt
[10] Não é aplicável ao caso o art.º 57.º do NRAU, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, que entrou em vigor na pendência da presente acção, pelas razões expostas, tendo em conta, ainda, as disposições transitórias daquela Lei.
[11] Todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt,
[12] Na pendência da presente acção entrou em vigor a Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro que alterou o art.º 1069.º do Cod Civil. Contudo o n.º 2 de tal normativo, na redacção introduzida por aquela Lei, aplica-se, para além, obviamente, dos contratos celebrados após a entrada em vigor desta lei – contratos futuros -, apenas e só a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma (cfr. n.º 2 do art.º 14.º da referida Lei e n.º 2 do art.º 12.º do Cod. Civil), sendo manifesto que o arrendamento em apreço caducou por morte da mãe da R., em 2016, em data muito anterior à data da entrada em vigor da presente lei.
[13] Maria Olinda Garcia, A nova disciplina do arrendamento urbano, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2006, pp. 18
[14] À luz do preceito em apreço, o regime do vício de forma do contrato de arrendamento urbano é o da nulidade típica – Assim, Luís Menezes leitão, Arrendamento urbano, Almedina, 2006, pp. 25, 33 e ss.
[15] Assim, MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1984, especialmente, 742 ss e 771ss e Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, t. 4, Almedina, 2005, em especial, 275 ss e 299 ss). Tais limites não ocorrerão quando se trate de declaração oficiosa da invalidade pelo tribunal, a qual não constituirá, naturalmente, abuso de direito — cfr. Ac. RL 08.07.99 (JOÃO MOREIRA CAMILO), sum. BMJ 489, 1999, 397-398. Nesta hipótese, só a preterição das regras formais em jogo permitirá atingir uma situação de inalegabilidade: cfr. a mais recente posição de A. MENEZES CORDEIRO, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, ROA 65, II, 2005, 327 ss (353-355).
No mesmo sentido, Luís Menezes Leitão, Arrendamento urbano, cit., 25-26 e 35.
[16] C. LACERDA BARATA, Formação do contrato de arrendamento urbano, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. III, Almedina, 2002, pp. 64 ss.
[17] Assim, Carlos Lacerda Barata - Celebração do contrato de arrendamento no novo regime do arrendamento urbano, acessível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-iii-dez-2006/doutrina/carlos-lacerda-barata-celebracao-do-contrato-de-arrendamento-no-novo-regime-do-arrendamento-urbano
[18] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pp. 616
[19] Ac. do STJ de 31.03.93, CJ II, pp. 55