Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
53/21.8T8STR-B.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - o rendimento indisponível para efeitos de exoneração do passivo restante há de fixar-se através da ponderação das concretas circunstâncias do caso, alcançando, no âmbito dos parâmetros legalmente estabelecidos, o montante razoavelmente necessário para fazer face ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não descurando a finalidade do processo de insolvência no sentido da satisfação dos credores;
- tratando-se, porém, de um agregado familiar cujo rendimento não é apto a garantir a afetação do valor correspondente à RMMG a cada um dos progenitores, afigura-se que o princípio constitucional da garantia da dignidade da pessoa humana impede se imponha a compressão do nível de vida que mantinham antes da declaração da insolvência;
- residindo o Insolvente na Irlanda, país onde se encontra a trabalhar, o valor de uma das RMMG que integram o rendimento indisponível para efeitos de cessão ao fiduciário deve ser aferida por referência àquela que vigorar nesse país.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente/ Insolventes: (…)
Recorridos / Credores: Banco (...), SA e outros

No âmbito do processo de insolvência, foi deduzido o Incidente de Exoneração do Passivo Restante.


II – O Objeto do Recurso
O Incidente foi objeto da seguinte decisão:
«(…) atendendo à mencionada factualidade considerada provada, reputa-se o valor de 1,3 salários mínimos nacionais como necessários e suficientes para assegurar o sustento minimamente digno do seu agregado familiar.
Pelo exposto e decidindo, ao abrigo do art. 239.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considera cedido a fiduciário, investindo-se nessa qualidade a Sra. Administradora de Insolvência nomeado nos autos, cuja remuneração e reembolso de despesas ficam a cargo do insolvente (arts. 240.º, n.º 1 e 60.º, n.º 1, do CIRE).
Considerando o agregado familiar do insolvente e o critério a que alude o art. 239.º, n.º 3, do CIRE, que exclui do rendimento disponível a afetar à satisfação dos créditos do insolvente o montante que constitua o sustento minimamente digno do devedor, determino que o rendimento disponível do devedor/insolvente, objeto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que àquele advenham, a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de 1,3 salários mínimos nacionais, em cada um dos 12 meses do ano.»
Inconformado, o Insolvente apresentou-se a recorrer pugnando pela revogação da decisão recorrida relativamente ao montante de rendimento indisponível para cessão, a substituir por outra que fixe esse rendimento no montante de 2 (dois) salários mínimos nacionais do país em que se encontrar a residir em cada momento. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos:
«A) Por douto despacho de fls., foi decidido que estabelecer como rendimento indisponível para cessão o montante de 1,3 salários mínimos nacionais.
B) O requerente acredita que, atento o seu agregado familiar (que é composto pelo insolvente e por 2 filhos com 11 e 10 anos) deverá ser fixado, como excluído da cessão, o montante equivalente a 2 SMN.
C) Aliás, de acordo com a jurisprudência dominante e conforme referido pelo próprio Tribunal a quo, deverá recorrer-se à denominada escala de Oxford – escala da OCDE criada em 1982, para determinar a capitação dos rendimentos de um agregado familiar, nos seguintes termos: “(…) o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0.7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5” – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/03/2013, proc. 1254/12.5TBLRA-F.C1, in www.dgsi.pt.
Sem prescindir
D) O despacho ora objeto de recurso estabeleceu, como base para cálculo o salário mínimo nacional português, fixando o rendimento indisponível em 1,3 salários mínimos nacionais.
E) Entende o requerente, que existe necessidade de adaptar o cálculo do rendimento disponível determinado, ao nível de vida e ao rendimento mínimo garantido do país em que reside o devedor, permitindo assim a este um sustento minimamente condigno.
F) Aliás, de acordo com a jurisprudência dominante, “Considerando que o custo de vida na Suíça é superior ao do nosso País o casal insolvente disporá de 3 salários mínimos durante os meses ou proporcionais do ano em que viva naquele país e 2 quando estiver em Portugal, ficando tal valor dispensado da entrega ao fiduciário” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18.02.2013, proferido no processo n.º 2160/12.9TJVNF-C.P1 (Relator: Rui Moura).
G) Pelo exposto, entende-se que o Tribunal posto em crise interpretou erradamente o artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

A questão suscitada pelo Recorrente consiste em saber se deve ser excluído do rendimento disponível para efeito de cessão ao fiduciário o montante que corresponde a duas vezes o valor da Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG), a aferir por aquele que esteja fixado no país de residência.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1) O agregado familiar do insolvente é constituído pelo próprio, pela companheira e pelos dois filhos menores de ambos, nascidos em 12/02/2009 e 09/10/2010.
2) O requerente trabalha por conta de outrem, encontrando-se a viver e trabalhar por tempo indeterminado na Irlanda, exercendo a função de ladrilhador, pela qual aufere um rendimento mensal líquido no montante de € 984,22, acrescidas de despesas de expatriamento.
3) A companheira do requerente encontra-se a residir em Portugal com os filhos de ambos, e trabalha por conta de outrem, auferindo um rendimento mensal líquido no montante de € 795,42.
4) O agregado familiar reside em casa cedida a título de comodato.
5) Despende quantia que concretamente não foi possível apurar em água, luz, gás, telecomunicações, alimentação, vestuário, saúde e educação dos filhos.

B – O Direito
Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência se não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
Entre essas disposições consta o art. 239.º do CIRE, cujo n.º 2 estatui que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
Segue o n.º 3 determinando que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Trata-se de uma medida inovadora de proteção do devedor pessoa singular, permitindo que se liberte do peso das suas dívidas, podendo recomeçar de novo a sua vida.[1] Destina-se, pois, a promover a reabilitação económica do devedor a que alude o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março.
Não descurando, no entanto, os interesses dos credores, tal regime impõe ao devedor a cedência do seu rendimento disponível a um fiduciário nomeado pelo tribunal, que afetará, no final de cada ano, os montantes recebidos ao pagamento dos itens enunciados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, designadamente distribuindo o remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores. A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.[2]
Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados – cfr. artigos 241.º, n.º 1 e 245.º do CIRE.
Ora, é sobre o montante do rendimento indisponível que incide o presente recurso.
Na senda da jurisprudência de doutrina dominantes, importa apreciar cada caso concreto de molde a determinar qual é o valor que se afigura razoavelmente necessário para proporcionar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.[3]
Nos termos do regime legal em apreço, o montante necessário para salvaguarda do sustento digno do devedor não deve exceder, em princípio, o montante correspondente a três salários mínimos, nem ficar aquém do salário mínimo nacional, cujo valor se cifra, atualmente, em € 705.[4] Na verdade, o “salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o ‘mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo”[5].
De todo o modo, em tese, há que determinar o montante pecuniário estritamente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, e não necessariamente manter o nível de vida que tinham antes da declaração de insolvência. Aliás, a situação de insolvência tem como primeira consequência a impossibilidade de manutenção do anterior nível de vida. A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor; implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos[6].
Como se afirma no já citado Acórdão desta Relação[7], para que o instituto em causa cumpra a sua função, o montante de rendimento indisponível terá de ficar aquém do rendimento normal e regular do devedor (só assim se salvaguarda minimamente a posição dos credores); o respetivo diferencial (que corresponde ao rendimento disponível a ceder ao fiduciário para acautelar o pagamento de despesas e reembolso dos credores) não há de ser insignificante a ponto de tornar quase virtualmente irrecuperáveis para os credores os valores em dívida; a aferição de tal montante assentará na apreciação da conduta do devedor, que deverá resultar sensibilizado a empenhar-se, de forma esforçada, no controlo da sua economia doméstica, adequando as despesas ao seu nível de rendimento.
Há que atender às condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos), condições essas ponderadas à luz do princípio da salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal (cfr. artigos 1.º, 13.º, 59.º/1 e 67.º/1 da CRP, e artigos 1.º e 25.º/1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem). Esta abordagem implica na garantia do valor equivalente à Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG) por adulto do agregado e 0,5 por cada criança.[8] Não se atenderá só às concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas pelo insolvente, procurando-se antes a determinação do que é razoável gastar para prover ao seu sustento e do seu agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo.[9]
Isto posto, cumpre apreciar o caso concreto.
O Insolvente integra o agregado familiar constituído ainda pela companheira e dois filhos menores. Trabalha por conta de outrem, encontrando-se a viver e trabalhar por tempo indeterminado na Irlanda, exercendo a função de ladrilhador, pela qual aufere um rendimento mensal líquido no montante de € 984,22, acrescidas de despesas de expatriamento. Já a sua companheira reside em Portugal com os filhos de ambos, e trabalha por conta de outrem, auferindo um rendimento mensal líquido no montante de € 795,42. Residem em casa cedida a título de comodato, e suportam as despesas gerais inerentes à vida quotidiana, designadamente as inerentes ao consumo de água, luz, gás, telecomunicações, alimentação, vestuário, saúde e educação dos filhos.
Importa acautelar a satisfação do sustento condigno deste concreto agregado familiar, que apresenta escassos rendimentos para fazer face às despesas inerentes a esse sustento. Em face disso, afigura-se que, neste caso concreto, não há como fazer apelo aos considerandos por via dos quais se estipula que o rendimento indisponível terá de ficar aquém do rendimento normal e regular do devedor, que este e o respetivo agregado familiar não deverão manter o nível de vida que tinham antes da declaração de insolvência.
Na verdade, quando se faz alusão à não manutenção do nível de vida, devendo as despesas ser reduzidas ao mínimo necessário, toma-se por referência um quadro circunstancial que regista uma ou outra despesa extravagante, condutas que originam despesas supérfluas e que extravasam o estritamente necessário para assegurar uma vivência digna de todos os elementos do agregado familiar, tais como refeições assíduas em restaurantes, gozo de férias fora da residência, etc. Tratando-se, como se trata, de um agregado familiar composto de 4 elementos, com um rendimento que, imputando-se € 352,50[10] a cada menor, reverte em € 537,50 para cada um dos progenitores, afigura-se que o princípio constitucional da garantia da dignidade da pessoa humana impede se imponha a compressão do nível de vida que mantinham antes da declaração da insolvência. O que se apresenta ainda mais premente no atual quadro de expectável subida das taxas de juros e de inflação, escalada dos preços da energia, e manifesta incapacidade de a atividade económica sustentar qualquer progressão salarial, ainda que nos setores onde prestam serviço os mais qualificados.
Afigura-se, assim, ser razoável a pretensão esgrimida no presente recurso, devendo fixar-se como rendimento indisponível para cessão o montante equivalente a duas vezes o valor da Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG).
Considerando que o Insolvente reside na Irlanda, país onde se encontra a trabalhar, sendo em face do custo de vida desse país que tem de gerir o seu rendimento para, designadamente, assegurar o cumprimento dos seus deveres e responsabilidades parentais, é de determinar que o valor de uma das RMMG seja aferida por referência àquela que vigorar no país onde resida o Insolvente.[11]

Procede, pois, o presente recurso.

As custas recaem sobre os credores, na vertente de custas de parte – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Concluindo: (…)

IV – DECISÃO
Por todo o exposto, decide-se pela procedência do recurso, revogando-se a decisão recorrida no que tange ao rendimento indisponível para efeitos de cessão ao fiduciário, rendimento esse que vai fixado em montante equivalente a duas vezes o valor da Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG), aferindo-se uma delas por referência àquela que vigorar no país onde resida o Insolvente.
Custas pelos credores, na vertente de custas de parte.
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Évora, 24 de fevereiro de 2022
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
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[1] V. Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis 2005, p. 167.
[2] Cfr. Ac. TRC de 07/03/2017 (Jorge Manuel Loureiro).
[3] V., entre muitos outros, Ac. TRE de 03/12/2015, relatado por Mário Serrano, in dgsi.pt; Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, 5.ª edição, p. 162 e 163.
[4] Decreto-Lei n.º 109-B/2021 de 7 de dezembro.
[5] Ac. do Tribunal Constitucional n.º 318/99.
[6] Ac. do TRP de 25/09/2012, in dgsi.pt.
[7] Ac. TRE de 03/12/2015, relatado por Mário Serrano, in dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. TRC de 04/02/2020 (Maria João Areias).
[9] Cfr. Ac. TRC citado.
[10] O que corresponde a 0,5 da atual RMMG.
[11] Cfr. Acs. TRL de 22/03/2018 (Pedro Martins) e TRP de 21/02/2019 (Aristides Rodrigues de Almeida).