Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
144/15.4GAMAC.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Recebida a acusação e realizado o julgamento o juiz não pode, em sede de sentença e como questão prévia, rejeitar a acusação quanto a um dos crimes imputados ao arguido, por a considerar manifestamente infundada, sob pena de preterição dos efeitos do caso julgado já formado pela decisão que a recebera.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos presentes autos, de processo comum, perante tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido RM, imputando-lhe a prática como autor, na forma consumada e em concurso real, de um crime de furto de uso de veículo, p. e p. pelo art. 208.º, n.º 1, do Código Penal (CP), de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do CP, e de um de crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei n.º 2/98, de 03.01.

Foi recebida a acusação e designada data para a audiência de julgamento.

Realizada tal audiência, com a inerente produção de prova, proferiu-se sentença, segundo a qual se decidiu:

- julgar a acusação parcialmente procedente e, em conformidade,

- rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, quanto ao crime de dano, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP);

- condenar o arguido, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no art. 3.º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei n.º 2/98 de 03.01, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), de um crime de furto de uso de veículo, p. e p. no art. 208.º, n.º 1, do CP, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros) e, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no art. 77.º, n.º 1, do CP, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco) euros, perfazendo a quantia de € 750,00.

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

1 - Em 31 de outubro de 2016, foi deduzida pelo Ministério Público acusação contra o arguido, RM, imputando-lhe, para além do mais, em co-autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de dano, previsto e punido pelo art.º 212.º, n.º 1 do Código Penal, nos seguintes termos:

“(…) nos termos e para os efeitos do artigo 16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, em processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, o Ministério Público acusa:

RM, solteiro, desempregado, a frequentar um curso profissional de instalador de sistemas de painéis solares, nascido a 14 de Fevereiro de 1991,filho de… natural de Fontes (Abrantes), com residência na Rua …, Penhascoso;

Porquanto:
No dia 8 de Novembro de 2015, cerca das 03:35 horas, quando o arguido caminhava na Rua Monsenhor Álvares de Moura, em Mação, área da Comarca de Santarém e Instância Local de Abrantes, aproximou-se do veículo ligeiro de passageiros, de marca "Opel", modelo Vectra, com a matrícula XV---, propriedade da ofendida C., que ali se encontrava estacionado, e verificou que o mesmo se encontrava com as portas destrancadas e a chave na ignição, pelo que abriu a porta do lado do condutor e introduziu-se no interior do veículo.

Seguidamente, o arguido colocou o veículo em funcionamento, acelerou a fundo e abandonou o local onde o veículo se encontrava estacionado ao volante do mesmo, o que fez em velocidade excessiva.

O arguido conduziu o referido veículo na artéria acima mencionada e aí o abandonou, após ter embatido com a parte da frente do veículo na ombreira da porta do supermercado "Docemel", o que provocou estragos na parte da frente do veículo, no valor de € 150,00 (cento e cinquenta euros).

O arguido, à data dos factos, não tinha licença de condução que o habilitasse a conduzir tal veículo.

O arguido sabia que o veículo não lhe pertencia e que, ao utilizá-lo, estava a agir contra a vontade da proprietária do mesmo, ainda assim quis actuar da forma descrita, o que conseguiu.

O arguido ao conduzir o veículo da forma supra descrita previu como possível que poderia embater contra algum objecto, tendo-se conformado com tal resultado, bem sabendo que actuava contra a vontade da proprietária do veículo.

O arguido sabia que não era titular de licença de condução e que necessitava da mesma para conduzir aquela viatura, não obstante quis conduzir nas referidas circunstâncias, o que conseguiu.

O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Com a conduta acima descrita, o arguido cometeu, como autor, na forma consumada e em concurso real:

- Um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 208.º, n.º 1 do Código Penal;

- Um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal; e

- Um de crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. (…)” – cfr. resulta dos autos do despacho com a ref.ª citius 73490793.

2 - Em 06.01.2017, ao abrigo do disposto no art.º 311.º do Código de Processo Penal, a M.ma Juiz a quo profere o seguinte despacho: “(…)

Autue como processo comum com Intervenção de Tribunal Singular.
O Tribunal é absolutamente competente.
O Ministério Público tem legitimidade para acusar e a arguida está regularmente defendida.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

Recebo a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 74 a 77, contra o arguido RM, pelos factos e disposições legais nela referidos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos – cfr. 313º, n.º 1, al. a) do CPP (…)” – cfr. resulta dos autos do despacho com a ref.ª 74050997.

3 - A M.ma Juiz a quo, entendeu, e bem, receber a acusação do Ministério Publico, tendo o despacho transitado em julgado.

4 - Em 07.03.2017, foi declarada pela M.ma Juiz a quo aberta a audiência de discussão e julgamento – cfr. resulta da respetiva ata com a ref.ª 74735735, que se encontra junta aos autos – tendo sido produzida a prova e observados os respetivos formalismos legais.

5 - E, em 16.03.2017, a M.ma Juiz profere a sentença - cfr. resulta da respetiva ata e da conclusão com a ref.ª 74742591, que se encontra junta aos autos – da qual resulta, para além do mais, que: “(…)

I – Relatório: (…)
5. Procedeu-se à realização de audiência de julgamento, na ausência do arguido, com observância de todo o formalismo legal, conforme consta das respetivas atas. (…).”

E, bem assim, “(…)

QUESTÃO PRÉVIA QUANTO AO CRIME DE DANO
O Ministério Público deduziu acusação, que consta de fls. 73 a 77, contra o arguido imputando-lhe, entre outros, a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal.

A acusação deduzida articula a seguinte factualidade, quanto a este crime:

“O arguido conduziu o referido veículo na artéria acima mencionada e aí o abandonou, após ter embatido com a parte da frente do veículo na ombreira da porta do supermercado "Docemel", o que provocou estragos na parte da frente do veículo, no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros).

O arguido ao conduzir o veículo da forma supra descrita previu como possível que poderia embater contra algum objeto, tendo-se conformado com tal resultado, bem sabendo que atuava contra a vontade da proprietária do veículo.”

Dispõe o artigo 212º, nº 1 do CP que: “1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”

Ora, na acusação deduzida não se encontra suporte fáctico bastante integrador do ilícito praticado pelo arguido, designadamente de que modo ocorreram “os estragos” no veículo em causa, sendo a acusação completamente omissa nessa parte.

Na verdade, não é referido em que consistem os aludidos “estragos”, sendo omissa a acusação na descrição “dos estragos”, isto é, se o veículo ficou amolgado e, na afirmativa, em que local, se ficou quebrado e, na afirmativa, em que local e de que forma, designadamente em que é que os mesmos (estragos) se consubstanciaram e, consequentemente, conduzam ao valor de 150,00 euros.

A acusação, como refere o Prof. Germano Marques da Silva, é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado (…)

É um pressuposto indispensável da fase de julgamento e por ela se define e fixa o objeto do julgamento – [cf. Curso de Processo Penal, III, pág. 118].

Já sobre o princípio da acusação discorre o Ilustre Prof. limita (…) o objeto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada como garantia da imparcialidade do tribunal e de defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de julgar os factos objeto da acusação, não tendo qualquer “responsabilidade” pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na medida em que a partir da acusação sabe de que é que se tem de defender, não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspetivas dos mesmos factos para os quais não estruturou a defesa – [cf. ob. cit, I, pág. 68].

Ora, a acusação, para além de, no essencial, não concretizar em que é que os mesmos (estragos) se consubstanciaram e se traduzem no valor de 150,00 euros, de não contextualizar a respetiva conduta – o que não foi impeditivo da imputação de um crime – traduz um repositório de factos genéricos, conclusivos e conceitos de direito, de tal forma que inviabiliza o exercício do direito de defesa por parte dos arguidos.

Como impressivamente vem referido no acórdão do STJ de 18.06.2009, proferido no proc. n.º 159708.9PQLSB.S1, numa situação em que na acusação não vinham descritos factos suficientes tendentes à condenação como reincidente. “Em caso de insuficiência factual da acusação, se o tribunal a quo alargar a investigação para além dos limites de factos traçados por aquela estará a violar, além da garantia constitucional consagrada no art.º 32.º, n.º 5, da CRP, o art.º 339.º, n.º 4, do CPP e a tornar nula a decisão de procedência que vier a firmar, nos termos dos arts. 359.º e 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código.

Assim, nestes autos, é, pois, na acusação que radica de forma processualmente relevante a insuficiência factual, quer para completo e inequívoco preenchimento dos pressupostos formais da reincidência, quer para a integração do respetivo pressuposto material. E a consequência dessa insuficiência é a de ter de ser julgada manifestamente infundada (…).”

Por outro lado, também o Supremo Tribunal de Justiça tem recorrentemente afirmado a não valia das imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas, conclusivas, sem especificação das concretas condutas, por as mesmas não serem passíveis de um efetivo contraditório e, logo, do direito de defesa, constitucionalmente consagrado – [cf. acórdãos do STJ de 02.04.2008 e 06.11.2008 proferidos respetivamente nos processos P.07P4197 e P.08P2804].

Por elucidativo do que se vem de dizer, transcreve-se as seguintes passagens do acórdão do STJ de 13.04.2011, in proc. n.º 6929/09.3TAVNG.S1:

Como este Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo a imputação e prova de factos genéricos são insuscetíveis de fundamentar a aplicação de uma pena, visto que a individualização e clareza dos factos objeto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender.

O princípio ou cláusula geral constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, impõe que ao arguido, como sujeito processual sejam assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade de vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia (…).

Por isso, perante a imputação e prova de factos não concretizados, não demarcados, em que o arguido é colocado numa posição de não os poder contraditar, ou seja, de deles não se poder defender, não é admissível a incriminação e a condenação.

Ora, perante a imputação, no essencial, genérica, conclusiva, que reproduz basicamente os conceitos legais, sem que os cuide de concretizar, omissa quanto a aspetos fundamentais, designadamente descrição dos factos em que redundas os estragos no valor de 150.00 euros, sem suporte bastante para a qualificação jurídica do crime que lhe foi imputado, enferma a acusação do vício estruturante do artigo 311.º, n.º 3, al. b) do CPP, sendo como tal manifestamente infundada, não merecendo, em consequência censura, o despacho recorrido, que, assim, o declarou.

Não se mostram, pois, violados os artigos 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) e 283.º do CPP, 165.º, n.ºs 1 e 2 e 30.º, n.º 2 do Código Penal.

No caso em apreço, e como supra se referiu a acusação não contém a narração suficiente dos factos integrantes do ilícito imputado ao arguido, motivo pelo qual e em face do disposto no artº 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. c do C.P.P., a acusação é, nesta parte, manifestamente infundada e como tal terá de ser parcialmente rejeitada.

Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. b) do Código de Processo Penal rejeita-se a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido melhor identificado nos autos, por ser manifestamente infundada quanto ao crime de dano, prosseguindo quanto aos demais, considerando-se tais factos como não escritos. (…)” – tudo conforme resulta dos autos.

6 - O Ministério Público, não se conforma com a decisão proferida pela M.ma Juiz em sede de questão prévia.

7 - A M.ma Juiz a quo não pode rejeitar a acusação do Ministério Público em sede de sentença, no que respeita ao crime de dano.

8 - Por despacho transitado em julgado, a M.ma Juiz a quo, recebeu a acusação do Ministério Público nos termos do disposto no art.º 311.º do Código de Processo Penal.

9 - E, foi realizada a audiência de discussão e julgamento.

10 - A M.ma Juiz a quo, apenas poderia ter optado por proceder à comunicação de alteração não substancial dos factos imputados ao arguido, concretizando os estragos efetuados, conforme se verá infra ou absolver o arguido do mesmo.

11 - Nos termos do disposto no art.º 212.º, n.º 1 do Código Penal, estabelece-se que, “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”

12 - Na acusação do Ministério Público descrevem-se com suficiência os factos constitutivos objetivos e subjetivos do crime imputado ao arguido, os quais são indícios objetivos suficientes da verificação dos factos e bastantes para submeter o arguido a julgamento.

13 - Em sede de audiência de discussão e julgamento, realizada no dia 07.03.2017, foi inquirida, C, ofendida, conforme consta do citius e cujo depoimento se iniciou pelas 10 horas e 01 minutos e terminou pelas 10 horas e 15 minutos, no âmbito do qual, para além do mais, declarou que:

“(…) minutos 04:22 a 04:50:
Ministério Público: Então a Senhora deixou o carro estacionado à porta de sua casa com as chaves na ignição aberto. É isso?

C: Sim.
Ministério Público: Então o que é que aconteceu?
C: Eu acordei com um acelerar enorme e ouvi um embate. E depois um segundo embate. Eu levantei-me e qual não é o meu espanto, quando eu abro a porta, o carro estava no outro lado da rua embatido na porta do supermercado (…).

E, “(…) minutos 07:02 a 07:47:
Ministério Público: E que danos é que teve o seu carro em virtude deste embate?
C: Que danos teve? O para-choques caiu, partiu-se … como é que se chama… ah, partiu-se o farol da frente do lado esquerdo.
Ministério Público: E, mais?
C: E ficou assim com uma mazelazinha bem forte na chapa.
M.ma Juiz: Na?
C: Na chapa.
M.ma Juiz: Mas chapa, o carro tem muita chapa.
C: Na chapa ao lado do farol.
M.ma Juiz: Na parte lateral ou da frente?
C: Na parte lateral (…).
E, ainda, “(…) minutos 08:00 a 08:10:
Ministério Público: A Senhora compôs o carro, depois?
C: Sim, sim.
Ministério Público: E quanto é que pagou para compor?
C: Eu paguei 310,00 €. (…).

14 - Pelo que, salvo melhor opinião, a ofendida procedeu à descrição e concretização dos estragos sofridos na sua viatura, declarações essas que, poderiam e deveriam, ter sido valoradas pela M.ma Juiz a quo.

15 - A M.ma Juiz a quo deveria ter procedido à comunicação ao arguido de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do disposto no art.º 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

16 - E, nessa sequência, deveriam ter sido dados, também, como provados os seguintes factos:

- que o arguido, após ter embatido com a parte da frente do veículo na ombreira da porta do supermercado "Docemel", provocou estragos na parte da frente do veículo, o para-choques caiu e partiu-se, partiu-se o farol do lado esquerdo e a chapa do lado lateral do referido farol ficou amolgada.

17 - Pelo que, a M.ma Juiz a quo, também, deveria ter condenado o arguido pela prática do crime de dano que lhe vinha imputado.

18 - E, caso assim não o entendesse, o que por mera hipótese académica se admite, após valoração da prova produzida, deveria ter absolvido o mesmo.

19 - A M.ma Juiz a quo ao decidir como o fez, violou, designadamente, o disposto no art.º 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. b) do Código de Processo Penal.

20 - O presente recurso merece provimento devendo ser revogada parcialmente a sentença proferida e, em consequência, ser substituída por outra em que o arguido, também seja condenado pela prática do crime de dano.

Por merecer provimento os fundamentos invocados pelo Ministério Público,

Com o douto suprimento do Venerando Tribunal da Relação de Évora, deve proceder o presente recurso, devendo ser o despacho recorrido e, em consequência ser substituído por outro que dê seguimento ao processo, proferindo a M.ma Juiz despacho de saneamento do processo e de designação de data para julgamento, com as inerentes consequências, assim se fazendo JUSTIÇA!

O recurso foi admitido.

O arguido apresentou resposta, concluindo:

Além de não estarem devidamente descritos, na douta acusação deduzida, os efeitos da acção praticada pelo Arguido, no que toca aos danos ocasionados, também se não vislumbram, mesmo na própria acusação, os elementos intelectual e volitivo do crime de dolo, crime doloso, que o Arguido efectivamente não cometeu, pelo que foi bem absolvido do mesmo.

Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, para se fazer a costumada JUSTIÇA!

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, manifestando concordar com a motivação do recurso e no sentido do provimento do mesmo.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP, o arguido nada veio acrescentar.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim, reside em apreciar da ausência de fundamento legal para a rejeição parcial da acusação operada na sentença e das consequências a retirar.

Apreciando:
Através da motivação apresentada, concretamente das conclusões oferecidas, resulta transcrita a decisão ora recorrida e os fundamentos que à mesma presidiram, bem como o teor da acusação no que aqui releva e do anterior despacho que havia procedido ao saneamento do processo nos termos do art. 311.º do CPP, dispensando, aqui, a sua repetição.

Entende o recorrente que o despacho que recebera a acusação transitou em julgado e, assim, que a audiência de julgamento se realizou nessa sequência, também pelo crime de dano, pelo que ao tribunal estava vedada a possibilidade de rejeição, além de que essa acusação só seria manifestamente infundada se, mediante o texto da mesma, faltassem os elementos típicos objectivos e subjectivos do ilícito, o que, no caso, não sucede.

Por isso, defende que, inviabilizada essa possibilidade, o tribunal deveria, em face da produção da prova, ter procedido a comunicação ao arguido de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ao abrigo do art. 358.º, n.º 1, do CPP, e condená-lo ou, se assim não entendesse (o que suscita como mera hipótese académica), absolvê-lo.

O que se discute, pois, antes do mais, é saber se, tendo a acusação sido anteriormente recebida por via desse saneamento, o tribunal, em audiência de julgamento, produzida prova e em sede de sentença, podia vir a rejeitá-la, como questão prévia, na parte atinente ao imputado crime de dano, como aconteceu.

Essa rejeição estribou-se na previsão daquele art. 311.º, por considerar a acusação manifestamente infundada, em virtude de não conter a narração dos factos pertinentes ao imputado crime de dano, em rigor, sustentando que não é referido em que consistem os aludidos “estragos”, sendo omissa a acusação na descrição dos mesmos, por referência aos critérios norteadores do princípio acusatório e às exigências do processo criminal de assegurar todas as garantias de defesa, não se aceitando imputações genéricas e conclusivas.

No entanto, independentemente do acerto dessas considerações ao nível geral, o tribunal, embora realizada discussão da causa, enveredou por solução que contende com o que ficou processualmente estabilizado através do anterior saneamento, por via de idêntica previsão legal, o que redunda em manifesta preterição do caso julgado que se formara.

Com efeito, o despacho proferido nos termos desse art. 311.º destina-se à pronúncia de nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e, nos casos aí previstos, de rejeição/não aceitação da acusação, não se configurando, de modo algum, como de mero expediente, uma vez que os despachos de mero expediente, como é pacífico, são aqueles, conforme Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1984, volume V, págs. 249/250, por meio dos quais o juiz provê ao andamento regular do processo e Não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros, pelo que Pelo facto de os emitir, o juiz não vê esgotado o seu poder jurisdicional; pode, logo a seguir, proferir outro despacho em sentido oposto. Por outras palavras, o magistrado não fica necessariamente vinculado ao despacho que proferiu; o despacho não dá lugar à formação de caso julgado.

Deste modo, proferido esse despacho, o poder jurisdicional sobre a aceitação/rejeição da acusação ficou esgotado, no sentido de que se não possa alterar o decidido nessa matéria.

A propósito, acompanhando, ainda, Alberto dos Reis, ob. cit., págs. 126/127, O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, nem a decisão, nem os fundamentos em que se apoia e que constituem com ela um todo incindível (…) Para ele, a decisão fica sendo intangível (…) O princípio (da extinção do poder jurisdicional) justifica-se cabalmente por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática (…) Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional (…) e como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se. A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via de recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo em todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.

Isso mesmo tem expressão legal no art. 613.º do Código de Processo Civil, claramente aplicável em sede de processo penal (art. 4.º do CPP), pelo que, na situação concreta, o tribunal preteriu esse princípio ao ter, ao arrepio do anteriormente decidido, rejeitado a acusação, ainda que em parte.

Tanto mais que, embora não o indicando expressamente, a sentença nesse aspecto só poderia ter conhecido e decidido de questão prévia ao abrigo do art. 338.º do CPP, e não, pois, com apelo ao mencionado art. 311.º.

E, assim sendo, esse art. 338.º, no seu n.º 1, dispõe que “O tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa” e, saliente-se, “acerca das quais não tenha ainda havido decisão”.

Arredada estava, então, em concreto, a aceitação/rejeição da acusação, mesmo que se entendesse que essa matéria se reconduzisse a questão prévia, o que, todavia, não se aceita, desde logo, perante a circunstância de que, como decorre do art. 311.º, neste se estabelece diferenciação entre nulidades e outras questões prévias ou incidentais, por um lado, e causas de rejeição da acusação, por outro.
Também, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica, Lisboa, 2008, em anotação ao art. 338.º, a pág. 847, refere que O conhecimento das questões prévias ou incidentais inclui o conhecimento dos pressupostos processuais, da conexão de processos na mesma fase processual e da separação de processos, dos impedimentos, recusas e escusas dos peritos, intérpretes e funcionários de justiça, das questões atinentes à assistência por defensor, à substituição de defensor e à representação judiciária dos assistentes, da remessa das partes civis para os tribunais civis, da questão da produção de meios de prova oficiosamente ou a requerimento na audiência de julgamento e das proibições de prova.

Já se vê, pois, que o conhecimento de causas de rejeição da acusação não cabe nesse âmbito, uma vez que, nesse momento, sem que se tivesse verificado qualquer circunstância superveniente, a acusação deduzida já se tinha por estabilizada, à luz do operado saneamento, independentemente da bondade da mesma.

Neste sentido, ainda que o tribunal entendesse que a acusação era deficiente, estava vedado, na circunstância, suportar-se no manifesto infundado da mesma, sob pena de preterição dos efeitos do caso julgado.

Na verdade, em vista da devida estabilização processual e da preservação do exercício das garantias de defesa e, sobretudo, do contraditório, sendo a acusação que define o objecto do julgamento, os limites de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado, a sua rejeição, designadamente, por manifestamente infundada, deve ser conhecida aquando do saneamento do processo, e não posteriormente.

Não se descortina, pois, fundamento válido para o tribunal ter enveredado pelo caminho da apreciação como questão prévia e, além do mais, por posição de contrariar o já antes decidido.

Aliás, a solução de rejeição da acusação na parte em causa sempre se afiguraria discutível, uma vez que o julgador apenas deve usar da prerrogativa da alínea a) do n.º 2 do art. 311.º (“se a considerar manifestamente infundada”), quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, assim, evitar sujeitá-lo injustificadamente à violência de um julgamento, sem que se deva, porém, conferir prevalência a aspectos formais que contendam com a desejável realização material da Justiça e com a inerente protecção dos interesses legalmente protegidos.

Note-se que essa relativa excepcionalidade da rejeição da acusação acaba, ainda, por reflectir-se da conjugação dos arts. 283.º, n.º 3, e 311.º, n.º 3, do CPP, na medida em que se, quanto à falta de requisitos da acusação, o vício cominado é de nulidade sanável (arts. 119.º a contrario e 120.º do CPP), não se compreenderia que, na prolação do despacho de saneamento, se cominasse alguma deficiência, desde que suprível, com a imediata rejeição da mesma.

Com isso, não se põe em crise que a acusação haja de respeitar aqueles requisitos, devendo conter, entre outros, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Essa exigência constitui clara emanação do princípio acusatório consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, no sentido de que só se pode ser julgado pela prática de crime precedendo acusação e formulada por órgão distinto do julgador.

Conforme refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 65, a concepção típica de um processo acusatório implica estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, tanto na determinação do objecto do processo (thema decidendem), como na extensão da cognição (thema probandum),como nos limites da decisão (ne eat judex ultra vel extra petita partium), só assim, quanto àquele objecto e suas consequências, estando asseguradas as garantias de defesa, para que o arguido conheça, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender.

Contém-se na dimensão ampla de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do n.º 1 desse mesmo art. 32.º, que se constitui como verdadeiro princípio constitucional, consagrando uma cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido, ou seja, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 516).

Também Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, tomo III, pág. 117, sublinha que O processo acusatório, buscando assegurar a imparcialidade do julgador, atribui a órgãos distintos as funções de investigação e acusação, por um lado, e a função de julgamento dessa acusação, por outro. Deste modo pretende assegurar-se a objectividade do julgamento dos factos que são objecto da acusação; a acusação é condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento.

Identicamente, já Figueiredo Dias referia, ob. cit., pág. 145, que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado (…). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.

Toda esta temática se revela, aliás, como decorrência do direito a um processo equitativo, em sintonia com o art. 6.º, n.º 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Se assim é, tal significa, pois, que a acusação deva conter com precisão a descrição dos factos da vida real que configuram o acontecimento histórico que teve lugar, socialmente relevante e tipificado pela ordem jurídica, e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, com grau de exigência que se compatibilize com as garantias de defesa, no sentido de que o arguido conheça o objecto de que é acusado e dele se possa conveniente defender.

Contudo, revertendo à situação concreta, tendo em conta o tipo de crime imputado (crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do CP), a atribuída omissão da descrição dos estragos causados, embora existindo, mas constando da acusação que o foram na parte da frente do veículo, em razão de ter embatido (…) na ombreira da porta do supermercado, quando o arguido conduzia esse veículo, não deveria, de acordo com os parâmetros exigíveis, ter redundado naquela solução relativamente excepcional.

A operada narração traduz acontecimento que está minimamente delimitado nos seus contornos e relevância.

Apresenta-se inteligível para o arguido, permitindo defesa normal, sem que, saliente-se (porque suscitado na resposta daquele), na vertente subjectiva, se depare com alguma omissão na descrição do dolo.

Nesta conformidade, para além do referido obstáculo legal concreto à rejeição da acusação em sede de sentença, a posição sufragada, de configurá-la como manifestamente infundada, reveste-se como excessiva e desproporcional, independentemente do que a prova, nesse âmbito, tivesse trazido.

Aqui não deixa, então, de entroncar, na esteira do que é apontado pelo recorrente, a susceptibilidade de apelo à alteração não substancial dos factos descritos na acusação, definida, nos termos do art. 1.º, alínea f), do CPP, como sendo aquela que não tem por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, o que o tribunal descurou, apesar da acusação não padecer de vício estrutural de grau suficientemente elevado, na sua importância, que justificasse a rejeição.

Ainda que por esse entendimento, o tribunal, se não pautasse - solução que se afigura como incorrecta por contender com o desiderato da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa (art. 340.º do CPP) -, restaria, não a rejeição da acusação, mas a absolvição do arguido.

De qualquer modo, impõe-se que conheça da acusação na parte atinente ao imputado crime de dano.

Por fim, diga-se, a pretensão do recorrente de que o arguido fosse, desde já, condenado por esse crime (sendo que a parte final das conclusões enferma de lapso evidente, contrariando o antes explicitado e, bem assim, essa pretensão) representaria a supressão do grau de jurisdição da instância recorrida, tanto mais que a apreciação que se deixou reflectida redunda em revogação de questão, tida pelo tribunal, como questão prévia.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e consequentemente,

- revogar a sentença recorrida na parte em que decidiu rejeitar a acusação contra o arguido quanto ao crime de dano e determinar que seja substituída por outra que, sem prejuízo do que se entenda pertinente diligenciar, conheça e aprecie essa parte da acusação, proferindo decisão final e de mérito que a inclua.

Sem tributação.

Processado e revisto pelo relator.

Évora, 26.Abril.2018

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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)