Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
650/06.1TBEVR-C.E1
Relator: JAIME PESTANA
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
DEVEDOR
TERCEIRO
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O facto de o recorrido, sendo uma instituição bancária e por isso autorizada a conceder garantias bancárias, surgir como garante de uma obrigação de que é devedor em nada põe em causa a autonomia da garantia.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 650/06.1TBEVR-C.E1



Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Nos presentes autos de prestação de caução requeridos pela AA, S.A. ao abrigo do disposto nos artigos 913.º e 915.º, CPC e em que são requeridos BB, CC e DD veio a requerente oferecer caução a favor de “EE Lda”, FF, GG, HH, II, BB, DD e CC, através da emissão de garantia bancária e no valor de€39161l,56.

Os requeridos impugnaram a idoneidade da garantia prestada, alegando, em síntese, que a concentração, na mesma pessoa jurídica, das qualidades de parte e de garante gera um conflito de interesses e uma total confusão entre as posições jurídicas assumida pela AA.

Proferida decisao foi a caução oferecida julgada idónea mediante emissão de garantia bancária, à primeira interpelação, no montante de €391 611,56 (trezentos e noventa e um mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e seis cêntimos), a favor de “EE Lda”, FF, GG, HH, II, BB, DD e CC,.

Inconformados recorreram os requeridos tendo concluído nos seguintes termos:

O Tribunal Recorrido desconsiderou absolutamente a existência do manifesto conflito de interesses em que a Recorrida actua, contanto que confunde em si as qualidades de parte e de garante.

Resulta dos autos que a Recorrida AA foi instada a prestar caução, que configura uma garantia especial das obrigações.

Assente essa realidade, a lei determina, nos artigos 623.° e seguintes do Código Civil que “se alguém for obrigado ou autorizado por lei a prestar caução, sem se designar a espécie que ela deve revestir, pode a garantia ser prestada por meio de depósito em dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária” (n.º 1), acrescentando-se no n.º 3 que “cabe ao tribunal apreciar a idoneidade da caução, sempre que não haja acordo dos interessados”.

Por seu turno o artigo 624.º do citado diploma impõe que “se alguém for obrigado ou autorizado por negócio jurídico a prestar caução ou esta for imposta pelo Tribunal, é permitido prestá-la por meio de qualquer garantia, real ou pessoal”, aplicando-se o disposto no n.º 3 do artigo 623.º do Código Civil.

Em crise nos autos está a prestação de uma garantia bancária por entidade que neles é parte e, ao mesmo tempo, garante.

Ou seja: a parte, através da prestação de uma garantia pessoal não ofereceu o património de um terceiro para garantia das obrigações, como aliás é próprio do regime da garantia bancária que se configura como uma “operação activa dos bancos destinada a assegurar o cumprimento das obrigações contraídas pelo cliente perante terceiro, e podendo assumir diversas modalidades, nomeadamente: fiança, mandato de crédito, aval e garantia autónoma” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo n.º 896-C/1998.L1-7.)

Sem entrar em considerações concretas sobre a natureza jurídica da garantia bancária é ponto assente que a mesma se insere numa estrutura negocial revestida de alguma complexidade, na medida em que é composta por um conjunto de contratos distintos e independentes, mas com conexão entre si, sendo tradicionalmente composta por um esquema contratual tripartido ou triangular.

O mesmo é dizer que a garantia autónoma não se estabelece por negócio jurídico unilateral, antes sim, através de um negócio bilateral, o que impede, pela natureza das coisas, o denominado contrato consigo próprio, como ocorre nos presentes autos.

Como referem Romano Martinez e Fuzeta da Ponte in “Garantias de Cumprimento, pp. 132 e 133”, “a atipicidade do contrato de garantia bancária tem, todavia, por base negócios jurídicos típicos. Poder-se-á admitir que a garantia autónoma, hoje contrato individualizado, corresponde a uma evolução do contrato de fiança, de mandato e de promessa de cumprimento. À fiança, a garantia autónoma foi buscar a função de garantia e aspectos com ela relacionados, excluindo, em particular, a acessoriedade. Sendo um contrato autónomo, assenta na ordem que o garantido dá ao garante de, verificados certos pressupostos, pagar ao beneficiário; esta ordem integra-se tendencialmente na estrutura negocial de um mandato” (sublinhado nosso). Neste sentido, veja-se ainda o Acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Julho de 1994.

Tudo quanto vai dito serve já para demonstrar que a garantia prestada pela Recorrida carece de idoneidade.

Não se esqueça que a Recorrida – que é uma instituição bancária – prestou caução no âmbito dos presentes autos, mas através da emissão de uma garantia bancária dela própria.

Tal facto implica que oferecendo a Recorrida uma garantia pessoal dela própria, então confunde na sua esfera jurídica as posições de parte e de garante, fazendo-se tábua rasa do regime da caução que exige que a garantia seja prestada por terceiro.

Por outras palavras: a Recorrida celebrou um negócio consigo mesmo, o que não é admissível, in casu.

A garantia bancária assume as características da fiança, nomeadamente no Que tange com a oneração do património de um terceiro no âmbito da relação Jurídica, pelo que, por essa razão, “a fiança nunca pode ter como fonte um negócio unilateral, mas um contrato e que sendo prestado por uma declaração unilateral [o que é o caso sub judice] a mesma deve ser considerada nula, tendo em atenção o disposto no artigo 457.º do Código Civil”.

Alias, à luz da decisão proferida por essa mesma Relação de Évora em 18 de Janeiro de 1996, e disponível na Colectânea de Jurisprudência, 1996, Tomo I, p. 268 e seguintes sempre se dirá que constitui um risco a referida confusão de esferas na medida em que o garante/garantido “conserva sempre um grau de disponibilidade sobre a execução da própria caução, o que alteraria a razão de ser da própria caução.

Aqui o cumprimento do desiderato da garantia está na disponibilidade da Recorrida que, por sua vez, é a mesma entidade que foi obrigada ex officio a prestar caução no âmbito dos presentes autos.

Desta forma, e contrariando a decisão do Tribunal a quo, admitir que a AA que está obrigada a prestar caução é a mesma AA que presta a referida garantia é colocar em causa o objectivo fundamental da caução, na medida em que esta não é idónea, atento o manifesto conflito de interesses subjacente.

Diga-se, ademais, que a situação aqui em crise é manifestamente análoga à que se encontra vertida no Acórdão supra referido da Relação de Évora, e que, de acordo com o aí decidido, o douto Tribunal foi taxativo a determinar que, para efeitos de suspensão de acção executiva, o seguro caução não podia ser prestado pela própria seguradora executada.

Para o efeito, o Tribunal da Relação de Évora entendeu que a “garantia do seguro- caução oferecida” por si própria configurava-se como sendo “inidónea e imprópria, por corresponder a um contrato consigo própria”, para logo acrescentar que o seguro-caução “tratando-se de um contrato bilateral, não é possível conceber a coincidência das duas partes na mesma pessoa jurídica.

Ora, estando nos presentes autos em causa uma garantia bancária, semelhante a ie perto a jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora, “tem de ser prestada por terceiro e não pelo próprio devedor.

O que está em causa, e com que os ora Recorrentes não se conformam, é a idoneidade da AA, no presente caso, em prestar uma garantia quando a própria AA é parte interessada na relação, sendo a parte garantida.

Dispõe o artigo 871.°, n.º 1, CC que determina que “se na mesma pessoa se reúnem as qualidades de devedor e de fiador, fica extinta a fiança, excepto se o credor tiver legítimo interesse na subsistência da garantia”.

Tal preceito deve ser interpretado abrangendo a presente garantia, na medida em que a mesma também se apresenta, mutatis mutandis, como uma garantia pessoal.

Citando Almeida Costa, in “Direito das Obrigações, p. 1118”, estamos perante a chamada confusão imprópria, isto é, quando “se reúnem as qualidades de devedor ou credor e de garante da mesma obrigação.

Por seu lado, Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral – Vol. II, pp. 270 e 271 “, fala em confusão imprópria e, com relevância para o presente caso, afirma que “como fica a faltar uma pessoa que possa assegurar o cumprimento da prestação devida por outra, e não se concebe, em princípio, o desaparecimento da obrigação principal, mantendo-se a dívida acessória, a consequência normal da confusão será a extinção da garantia” (sublinhado nosso).

Face a quanto vai dito, verifica-se que carece de fundamento o argumento do Tribunal Recorrido de acordo com o qual “o facto da instituição bancária concentrar a qualidade de parte e de garante em nada põe em causa a autonomia da garantia acima definidos”, porquanto subjaz aqui um contrato consigo mesmo, e possibilidade de controlo de execução da garantia propriamente dita.

A AA apresentou contra alegações pugnando pela improcedência do recurso.

Dispensados os vistos cumpre apreciar e decidir.

O Tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto:

‘AA, S.A.” intentou contra “EE” e outros a presente acção de reforma de título onde deduz o seguinte pedido: “.. .ordenar-se a reforma da livrança em branco, que os RR. entregaram, para garantia dos créditos de que, actualmente, é titular a A….”;

Por decisão judicial proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, no apenso B destes autos, em 18.12.2014, transitada em julgado, determinou-se o seguinte com relevo para os autos: “…devendo para o efeito a AA prestar no tribunal “a quo” a respectiva caução, no prazo de 15 dias, nos termos previstos nos arts.913° e 915.º, n.º 1 do novo C.P.C….”;

Em obediência ao mencionado no facto anterior, “AA, S.A. ofereceu a prestação de caução a favor dos réus, através da emissão de garantia bancária à primeira interpelação, no valor de € 391 611,56 (trezentos e noventa e um mil, seiscentos e onze euros e cinquenta e seis cêntimos), a qual se encontra junta aos autos a fls. 7, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso – artigo 639.º, CPC.

Discute-se a idoneidade da garantia prestada pela recorrida.

Se alguém for obrigado ou autorizado por lei a prestar caução, sem se designar a espécie que ela deve revestir, pode a garantia ser prestada por meio de depósito em dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária.(art.º 623.º, n.º 1, CC

Cabe ao tribunal apreciar a idoneidade da caução, sempre que não haja acordo dos interessados. (623.º, n.º 3, CC)

In casu a garantia prestada assumiu a forma de garantia autónoma on first demand.

As garantias especiais das obrigações podem ter natureza pessoal, ficando outros patrimónios alem do do devedor, vinculados ao cumprimento da obrigação ou ter natureza real, ficando o credor com direito de se pagar, de preferência a qualquer outro, pelo valor de certos bens do devedor ou de terceiro.

Uma das garantias especiais das obrigações é a fiança.

O fiador garante a satisfação do direito de credito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor (art.º 627.º, n.º 1, CC).

A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequência legais e contratuais da mora ou culpa de devedor (art.º 634.º, CC).

A invalidade ou a extinção da dívida principal acarretam, respectivamente, a invalidade ou a extinção de fiança. A característica principal da fiança é a sua subsidiariedade em relação à obrigação principal: ou seja, o cumprimento da obrigação pelo fiador só pode ser exigido quando o devedor a não cumpra e não a possa cumprir.

Pode, por consequência, o fiador recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito, e ainda mesmo após a execução, se o fiador provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor

Havendo, em relação ao mesmo crédito, alguma garantia real constituída por terceiro, tem ainda o fiador o direito de exigir a previa excussão dos bens sobre que essa garantia recai, desde que ela seja contemporânea ou anterior à fiança.

No caso da garantia bancária on first demand o garante não pode invocar quaisquer meios de defesa provenientes da relação jurídica entre o devedor e o beneficiário, e deve também ser automática ou à primeira solicitação (on first demand, na terminologia bancária), ou seja, não estar sujeita senão à interpelação do beneficiário.

Subscrevemos na íntegra a fundamentação da decisao recorrida.

Não estando em causa a solvabilidade do garante, a garantia bancária prestada constitui um reforço efectivo da garantia de satisfação do crédito do recorrente dado o diferente recorte das obrigações assumidas pela recorrida enquanto garante.

Como refere a decisao recorrida, do ponto de vista dos requeridos, no caso em apreço está colocada em causa a relação triangular (uma relação entre o devedor mandante e o banco e uma relação entre o banco e o beneficiário), uma vez que o banco garante e o devedor (o obrigado a prestar caução) são a mesma pessoa, daí resultando uma confusão que compromete a autonomia da garantia enquanto sua característica essencial.

Como referimos supra e como refere a decisao recorrida, in casu, a autonomia da garantia significa que o garante assegura a verificação de um determinado resultado (no caso, a entrega de uma determina soma pecuniária ao beneficiário), totalmente independente da obrigação do devedor, sem que o garante (enquanto tal) possa opor aos requeridos excepção alguma que lhe assista enquanto autora (sendo a garantia independente das vicissitudes que possa conhecer’ aquela relação principal), daí resultando, inequivocamente, que a garantia bancária. prestada constitui um importante acréscimo da segurança dos requeridos/réus, enquanto subscritores e avalistas (ou sucessores destes).

Diverso é o regime da fiança que faculta ao fiador invocar contra o credor quaisquer meios de defesa que competem ao devedor (art.º637.º, CC).

O facto de o recorrido, sendo uma instituição bancária e por isso autorizada a conceder garantias bancárias surgir como garante de uma obrigação de que é devedor, em nada põe em causa a autonomia da garantia. (no mesmo sentido Ac STA, de 14 de Agosto de 2013, disponível em www.dgsi.pt).

Por todo o exposto acordam os Juízes da Secção Cível do tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e em consequência confirmam a decisao recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Évora, 21 de Abril de 2016-04-26

Jaime Pestana

Paulo Amaral

Rosa Barroso