Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
383/13.2TTPTM-A.E1
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INSTRUMENTOS DE TRABALHO
DIREITO DE RETENÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Tendo-se provado que uma viatura foi entregue ao exequente em virtude da sua qualidade de sócio da executada, e não que a mesma lhe foi entregue na qualidade de diretor de serviços da mesma, não se pode invocar o disposto no art. 342º do CPT (devolução dos instrumentos de trabalho) para fundamentar a ilegítima retenção da viatura após a cessação do contrato de trabalho, sendo certo que o exequente manteve a sua qualidade de sócio.
II. A condenação como litigante de má-fé pressupõe uma patente intenção maliciosa, ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira, muito próxima da atuação dolosa, determinando um elevado grau de reprovação ou de censura.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº383/13.2TTPTM-A.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
BB, Ldª deduziu oposição à execução intentada por CC, pedindo que o exequente seja condenado num crédito a seu favor, a arbitrar, em equidade pelo tribunal, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, apurados no valor de € 62.679,07, pela violação e privação de uso do veículo Audi A3, Sportback, 2.0 TDI, matrícula …” e que, em consequência, se opere a compensação de créditos a seu favor.
Alegou, em síntese:
- A execução teve por base uma decisão judicial proferida no processo nº 383/13.2TTPTM, que a condenou a pagar ao autor, ora exequente, a quantia ilíquida de € 3.609,64, a título de férias vencidas e não gozadas no ano de 2011 e remanescente do subsídio de férias de 2011, a quantia ilíquida de € 7.845,53, a título de proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal do ano da cessação do contrato, e a quantia de € 591,50, a título de formação profissional, sendo todas as quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos, até integral pagamento ao autor.
- Ser dona do veículo automóvel referido o qual se encontrava adstrito ao serviço do exequente, enquanto seu trabalhador, em vista do desempenho das funções que lhe estavam cometidas.
- O contrato de trabalho que ligava o exequente a si cessou em 20.08.2012, não tendo o mesmo restituído o aludido veículo, o que só veio a acontecer em 06.02.2014.
- Uma vez não pode dispor do seu veículo, teve de custear as deslocações do trabalhador contratado para substituir o exequente, contratando ainda o aluguer de um veículo automóvel para deslocações de serviço, o que importou tudo em € 2.145,07.
- O aluguer de um veículo equivalente ao abusivamente mantido na posse do exequente corresponde a € 114,00 diários – o que, multiplicado pelo número de dias em que o exequente manteve o veículo na sua posse após a cessação do contrato de trabalho, significa um prejuízo para a executada de € 60.534,00.
- Pretende, pois, ver-se ressarcida de tais prejuízos – que qualifica como danos patrimoniais e não patrimoniais.

Os embargos foram admitidos liminarmente, tendo o exequente sido notificado para contestar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 732º, nº 2, do Código de Processo Civil.
O exequente/embargado apresentou contestação, na qual impugnou os factos alegados pela executada, sustentando que o veículo em questão lhe foi atribuído atenta a sua qualidade de sócio da executada e não enquanto trabalhador da mesma, sendo legítima a sua retenção, na medida em que tinha créditos a haver da executada, em função dessa sua condição de sócio, tendo restituído o veículo no momento em que deixou de ter tal qualidade.
Alegou ainda não corresponderem à verdade os invocados prejuízos, inexistindo qualquer crédito da executada sobre si que possa ser objeto de compensação, sustentando finalmente existir abuso de direito e litigância de má-fé por parte da embargante/executada, pedindo a condenação desta em indemnização a fixar a final.

Foi proferido despacho saneador, que concluiu pela regularidade e validade da instância, tendo-se circunscrito o objeto do litígio à apreciação da existência do contra crédito invocado pela embargante, na perspetiva de decidir se o veículo atribuído ao exequente lhe foi entregue enquanto complemento da sua retribuição e por força da relação laboral existente ou se, pelo contrário, lhe foi entregue em vista da sua qualidade de sócio, com as consequências daí decorrentes, e dispensado a fixação dos temas da prova.

Procedeu-se à realização de audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou improcedentes, por não provados, os embargos deduzidos pela executada, e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução.

Inconformada com esta decisão judicial, a executada interpôs recurso de apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso de apelação interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou improcedentes os embargos de executado nos termos contidos na decisão recorrida.
2. A Recorrente considerou incorretamente julgado o facto provado 17º da sentença recorrida, porquanto, entende os seguintes meios probatórios que impõem decisão diversa sobre a matéria de facto incorretamente julgada provada.
3. Resulta do título executivo que serve de base à presente execução, bem como, da prova produzida nos presentes autos que o exequente detinha na empresa executada duas qualidades jurídicas distintas, sendo a primeira de sócio e a segunda de trabalhador, em que ambas são exercidas desde a constituição da sociedade executada.
4. Ora, nos termos das declarações assentes na sentença recorrida e ainda nos demais elementos probatórios constantes nos autos, nomeadamente, nos documentos apresentados, entendeu o tribunal a quo dar como provado o art. 17º dos factos provados com base na fundamentação da sentença recorrida.
Porém,
5. O critério jurídico atendido pelo Tribunal a quo, em face dos elementos probatórios, impunha decisão diversa atendendo desde logo a que o mesmo desconsiderou o seguinte:
Que,
A) Durante 14 anos o exequente não teve direito a veículo da empresa;
B) No ano seguinte à recorrente ter passado o exequente à categoria profissional de Diretor de Serviços desta, é-lhe atribuído o veículo Audi A3;
C) Que, conforme decorre dos factos provados, o exequente utilizava o veículo ao serviço da empresa (apesar de utilizar também em questões pessoais);
D) Não apresentou o exequente em Tribunal qualquer elemento probatório (à exceção das suas declarações de parte prestadas, contraditadas) que motivasse o facto da empresa recorrente beneficiar um sócio – só pelo facto de ser sócio daquela -com um veículo automóvel.
6. Logo, considera o recorrente que os concretos meios probatórios que motivam dar como não provado o facto 17º dos factos provados, baseiam-se, pois, na reconsideração de toda a prova, nomeadamente, atento as alegações constantes do presente recurso de apelação para o qual se remete.
7. Assim a decisão que deve ser proferida sobre a questão de facto impugnada será a de substituir o facto provado nº 17º da sentença recorrida, substituindo-o por outro que considere provado que o veículo em apreço nos autos era utilizado pelo exequente na sua qualidade de trabalhador constituindo pois instrumento de trabalho, com base nas motivações supra alegadas em sede própria.
Ademais,
8. A recorrente impugna ainda a matéria de direito;
9. A recorrente faz assentar a responsabilidade do exequente na violação do disposto no art. 342º do CT, bem como, no direito à privação do direito de uso da executada com relação à posse indevida do exequente sobre o veículo automóvel supra mencionado, contra a lei e a vontade da sua legítima proprietária, a ora executada, desde 20.8.2012 até 6.2.2014 (cfr. arts. 14º, 15º,25º, 26º dos Embargos de Executado).
10. Com efeito, os pressupostos da responsabilidade civil do exequente verificam-se pois a executada alegou os factos essenciais que constituem a causa de pedir (art.5º nº 1 do CPC), sendo que cumprirá ao Tribunal a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º nº 3 do CPC).
11. A executada assentou os seus embargos com base na violação pelo exequente do disposto no art. 342º do CT, complementando com a violação do direito à privação do uso do veículo por comportamento ilícito e abusivo do exequente.
12. Resulta dos factos provados nºs 4, 7º, 8º, 9º e 11º, da sentença recorrida que a executada era dona de um veículo automóvel da marca Audi, modelo A 3, Sportback, 2.0 TDI, com a matrícula …; que o exequente manteve a posse do veículo supra mencionado entre os dias 20.8.2012 (data dos efeitos da denúncia do contrato de trabalho pelo exequente) até ao dia 6.2.2014 (data da entrega do veículo); que no período compreendido entre 20.8.2012 e 6.2.2014 a executada não tinha qualquer outro veículo disponível que pudesse cumprir as finalidades do veículo em apreço; que a executada através do seu mandatário, remeteu ao exequente a carta que consta de fls. 13 dos autos, com o teor ali descrito (cfr. facto provado nº 8 da sentença recorrida).
13. Ora, Venerandos Julgadores, o tribunal a quo errou ao proferir a decisão recorrida considerando nos seus fundamentos que o exequente não reteve o veículo Audi A 3 abusivamente.
Vejamos,
14. No facto provado nº 23 da sentença recorrida, deu o Tribunal recorrido como provado que o exequente entendeu reter a viatura em seu poder, uma vez que, na qualidade de sócio era credor da sociedade aqui executada pelo valor de € 13.500,00, cujo pagamento foi reclamado no processo nº 3228/13.0TBPTM, que correu termos no 2º Juízo Cível do Juízo Cível da Comarca de Portimão.
15. No entanto, não existia da parte do Exequente o direito à retenção do veículo em apreço.
Com efeito,
16. Nos termos do art. 754º e 755º do CC, não dispunha o Exequente de qualquer direito de retenção sobre o veículo em apreço nos autos, por não se verificar qualquer condição factual em conformidade com a lei atrás mencionada.
17. O direito de retenção invocado pelo Exequente, manifestamente dado como provado na sentença recorrida baseia-se num direito de crédito por força de uma redução do valor da quota, não tendo a ver com quaisquer despesas ou danos relacionados com a viatura automóvel retida pelo mesmo ou qualquer direito de retenção especial previsto no art. 755º do CC.
18. Por conseguinte não assistia ao Exequente qualquer direito de retenção sobre o veículo automóvel Audi A 3, matricula ….
19. Ademais, a executada interpelou em 27-9-2012 (Facto Provado nº 8 da sentença recorrida) para, pelo menos em 3.10.2012, proceder à devolução do veículo automóvel em apreço nos presentes autos. Momento este, pelo menos, a partir do qual o Exequente se constituiu em mora nos termos do art. 805º do CC!
20. E, não tendo cumprido, invocando e sendo dado como provado que o Exequente exerceu uma retenção ilegal, fica constituído na obrigação de indemnizar a Executada nos termos do art. 804º do CC, por abusiva retenção exercida pelo Exequente sobre o veículo, o que o constitui em responsabilidade perante a Executada.
21. Ademais, quanto aos danos, o Tribunal a quo deu como provado na sentença recorrida que o Exequente privou a Executada, do veículo em apreço, desde 20.8.2012 até 6.2.2014, privando esta da faculdade de utilização do mesmo naquele período que mediou 531 dias (cfr. Factos provados nºs 7 e 9 da sentença recorrida). Considerou ainda o Tribunal a quo como provados a título de danos patrimoniais os i constantes nos nºs 13 e 14 dos factos provados constantes na sentença recorrida.
22. Logo, cumprirá ao Exequente indemnizar a Executada pelos danos patrimoniais decorrentes dos factos provados nº 13 e 14 da sentença recorrida, bem como, em indemnização pelos danos provenientes da privação do direito ao uso da viatura em escopo nos autos, com base na equidade atento às disposições conjugadas dos arts. 483.º, 496.º n.º 3 e 562.º do Código Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito, com o douto suprimento de V. Exa., deve o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência:
A) Ser alterada a matéria de facto impugnada, em conformidade com os argumentos expendidos nas presentes alegações de recurso;
B) Ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que considere procedentes os embargos de executado, condenando o Exequente num crédito a favor da executada, a arbitrar, em equidade pelo Tribunal, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, apurados no valor peticionado, pela violação e privação de uso do veículo Audi A 3, Sportback, 2.0 TDI, matrícula …, nos termos da causa de pedir
constante nos embargos;
C) Fixado que seja o quantum indemnizatório, nos termos da alínea anterior, declarar a compensação de créditos a favor da executada.

O exequente contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1 - Não tendo a Embargante qualquer documento que comprovasse o seu crédito, e exigindo o artº 729 alínea h) CPC para a oposição à execução com base em sentença que o crédito a compensar esteja provado por documento, não podia nunca o embargante obtê-lo num processo de oposição à execução de uma sentença proferida por um tribunal do foro do Trabalho.
Assim, a primeira conclusão é a de que nunca o executado poderia servir-se deste meio processual, e portanto, não sendo os embargos admissíveis, a única decisão a proferir de acordo com a lei á a de julgar improcedente o recurso uma vez que é inadmissível a oposição à Execução.
2 – Caso se alterasse a matéria de facto constante do artº 17 da sentença recorrida no sentido pretendido pela recorrente delimitado nas suas conclusões, uma vez que os créditos com que pretenderia a compensação estavam prescritos nos termos do artº 337 do CT, nunca com eles se poderia dar qualquer compensação e por isso a situação não estaria abrangida pelo fundamento para embargo referido no artº 729 alínea h) do CPC.
3 - A recorrente não aponta “ os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida tal como era exigido ao recorrente pelo artº 640 nºs 1 e 2 do CPC, o que a recorrente não cumpriu, pelo que improcedem as alterações que a recorrente pretende à matéria de facto dada como provada na douta sentença.
4 - Improcedem os motivos pelos quais a recorrente pretende a alteração da matéria dada como provada e vertida no nº 17 da douta sentença, sendo que a documentação, as declarações quer de testemunha e sócios da empresa, tudo explicado e justificado na sentença, levam a que não possa ser outra a dita matéria de facto.
5 - Não há qualquer fundamento para a alteração da resposta dada pelo tribunal à matéria provada referida em 23 e, por conexão, também a referida em 24, 25 e 26, improcedendo também aqui a pretensão da recorrente.
6 - A executada fez assentar o alegado crédito a seu favor na existência de violação do disposto no artigo 342º do Código do Trabalho (obrigação de restituição, ao empregador, dos instrumentos de trabalho), geradora de responsabilidade civil por danos causados.
Todavia, da matéria de facto apurada nos autos não resulta, que o veículo entregue ao exequente fosse alguma vez qualificado como instrumento de trabalho – já que não se destinava apenas ao desempenho das funções exercidas pelo exequente ao serviço da executada, sendo utilizado também nas deslocações pessoais do mesmo, que de tal viatura fazia o uso que bem entendesse, com a anuência da respetiva dona, conforme decorre dos factos dados como provados sob os números 6, 16, 19 e 20.
Improcedem também as conclusões de direito apresentadas pela recorrente.
7 – As matérias relativas ao direito de retenção, à constituição em mora e aos danos pretensamente sofridos pela recorrente ficam completamente prejudicadas precisamente porque assentavam na alegada ilicitude da utilização do veículo pelo exequente, seu sócio.
8 – Tendo em conta que no presente recurso se encontram elementos suscetíveis de enquadrar a atuação da recorrente no disposto no artº 542 nºs 1 e 2 alínea d) CPC, verificando-se negligência grave, e uso do recurso com vista a protelar sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão recorrida, pede-se a condenação da recorrente como litigante de Má-Fé.

A Senhora Procuradora-Geral Adjunta, neste tribunal da relação, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.
Foi remetido o projeto de acórdão aos Ex.mos Juízes-adjuntos que, atendendo à natureza das questões a decidir, deram o seu acordo para serem dispensados os vistos, nos termos do art. 657º nº4 do Código de Processo Civil.

II. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente retira da respetiva motivação, tendo sido suscitadas as seguintes questões:
a) A recorrente impugnou o ponto 17 da matéria de facto dada como provada pela decisão proferida em primeira instância porquanto, em seu entender, a prova produzida não permite que se assente que a viatura de marca Audi A3, de matrícula … tenha sido entregue ao exequente em virtude da sua qualidade de sócio da executada;
b) Tendo a executada fundamentado os seus embargos na violação pelo exequente do art. 342º do Código do Trabalho, importa averiguar acerca da legitimidade da retenção da viatura por parte do exequente, invocando que na qualidade de sócio da executada era credor da mesma no montante de €13.500,00.

III. Factos dados como provados na decisão proferida em primeira instância:
1. Em agosto de 1994, o autor/exequente constituiu a sociedade ré/executada juntamente com o seu sócio DD, tendo naquela data iniciado funções como 1º escriturário técnico da ré e, pelo menos desde junho de 2006, passado a desempenhar funções como diretor de serviços da ré.
2. O autor desempenhava as suas funções na sede da ré.
3. Em junho de 2012, o autor denunciou o contrato de trabalho celebrado, com efeitos a partir de 20 de agosto de 2012.
4. A executada é dona de um veículo automóvel da marca Audi, modelo A3, Sportback – 2.0 TDI, com a matrícula ….
5. O veículo automóvel supra identificado foi entregue ao exequente, em data não concretamente apurada.
6. O veículo em questão era usado pelo exequente, no exercício da sua atividade profissional e também nas suas deslocações pessoais.
7. Em 20.08.2012, o exequente tinha o mencionado veículo em seu poder.
8. A executada, através do seu mandatário, remeteu ao exequente a carta que consta de fls. 13 dos autos, com o seguinte teor:
“Ex.mos Senhores:
Sou, pela presente, na qualidade de advogado da empresa BB, Lda., a interpelar V. Exª para no próximo dia 03.10.2012 pelas 10:30 horas, se dirigir ao meu escritório na morada supra mencionada, afim de receber os créditos salariais que lhe são devidos após a v/ do contrato de trabalho com atrás mencionada empresa.
Para o efeito a empresa BB incumbiu-me de lhe entregar cheque no valor de € 2.740,00, para pagamento dos sobreditos créditos salariais, ao qual, no ato de sua entrega ser-lhe-á entregue declaração de quitação global para outorgar.
Deverá ainda na data em que vier recolher os vossos créditos salariais, proceder, no imediato, à entrega dos utensílios de trabalho que possui, entre eles, computadores, informações, documentos, pastas, automóvel marca Audi, modelo A3.
Mais me incumbiu a minha cliente de negociar com V. Exª a cessão de quota da empresa BB, Lda. que detém naquela empresa.
Assim sendo, gostaríamos que fosse a informar o valor que pretende pela mesma, bem como, se pretende que a esse valor, sendo razoável, ser compensado com o veículo por vós detido, sendo que este é pertencente à citada empresa.
Com os melhores cumprimentos,
(…)”
9. O exequente somente no dia 06.02.2014 entregou o supra citado veículo à executada.
10. A executada obteve a cotação que consta do documento de fls. 15, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. A executada, no período de 20.08.2012 a 06.02.2014, não tinha outro veículo disponível que pudesse cumprir as finalidades do veículo em apreço.
12. A executada é uma empresa e o veículo em causa fazia parte do seu ativo corpóreo.
13. O trabalhador da executada, EE, apresentou a esta, que lhe pagou, os seguintes valores fruto de deslocações por este efetuadas no seu veículo próprio ao serviço daquela:
a) No mês de janeiro de 2013, percorreu o trabalhador referido um total de 482 km, tendo a executada pago àquele a quantia de € 173,52;
b) No mês de março de 2013, percorreu o trabalhador referido um total de 600 km, tendo a executada pago àquele a quantia de € 216,00;
c) No mês de abril de 2013, percorreu o trabalhador referido um total de 150 km, tendo a executada pago àquele a quantia de € 54,00;
d) No mês de maio de 2013, percorreu o trabalhador referido um total de 55 km, tendo a executada pago àquele a quantia de € 19,80;
e) No mês de maio de 2013, percorreu o trabalhador referido um total de 600 km, tendo a executada pago àquele a quantia de € 216,00;
f) No mês de junho de 2013, percorreu o trabalhador referido um total de 620 km, tendo a executada pago àquele a quantia de € 223,20;
g) No mês de agosto de 2013, percorreu o trabalhador referido um total de 1.200 km, tendo a executada pago àquele a quantia de € 534,45.
14. Entre os dias 06.07.2013 e 15.07.2013, a executada teve que proceder ao aluguer de um veículo automóvel para as deslocações ao serviço desta, que importou um custo de € 649,80.
15. O exequente, além de trabalhador da executada, foi também sócio da mesma até 06.02.2014.
16. O exequente, enquanto trabalhador, utilizava a viatura identificada pela executada para o serviço da empresa.
17. Porém, a viatura foi entregue ao exequente em virtude da sua qualidade de sócio da empresa executada.
18. O outro sócio da executada, que é também seu gerente, o Sr. DD, também possuía uma viatura da empresa, que utilizava quer ao serviço da empresa, quer para fins pessoais.
19. A viatura era utilizada pelo exequente, não exclusivamente para efeitos de deslocações ao serviço da executada, mas também para fins pessoais, o que sempre foi permitido pela executada.
20. A referida viatura estava afeta exclusivamente ao exequente e nunca foi utilizada por qualquer outro trabalhador da empresa.
21. À data da cessação do contrato de trabalho do exequente, a executada possuía mais duas viaturas, sendo uma utilizada pelo sócio gerente, DD, e a outra utilizada pelo seu filho.
22. O exequente não entregou a viatura aquando da cessação do seu contrato de trabalho, nem entendeu que o devesse fazer, atentas as circunstâncias em que a mesma lhe havia sido entregue.
23. O exequente entendeu reter a viatura em seu poder, uma vez que, na qualidade de sócio, era credor da sociedade aqui executada pelo valor de € 13.500,00, cujo pagamento foi reclamado no processo nº 3228/13.0TBPTM, que correu termos no 2º juízo cível da comarca de Portimão.
24. A executada reconheceu este crédito, visto que as partes, em 06.02.2014, celebraram um acordo mediante o qual a executada reconheceu ser devedora do supra referido montante de € 13.500,00, sendo no âmbito desse mesmo acordo que o exequente procedeu à entrega da viatura objeto dos presentes autos.
25. No âmbito do acordo supra referido, as partes celebraram também um contrato de cessão de quota em 06.02.2014, mediante o qual o exequente cedeu ao outro sócio da executada a quota de que dispunha nesta.
26. Na data em que deixou de ser sócio da executada, o exequente entregou o veículo Audi A3 com a matrícula …, no estado de conservação e manutenção em que se encontrava, tendo o outro sócio da executada aceite a entrega do mesmo.

IV. O Tribunal recorrido fundamentou da seguinte forma a decisão proferida sobre a matéria de facto:
A matéria de facto dada como provada resulta da apreciação de toda a prova produzida nos autos, em conjugação e confronto entre si e com as regras de experiência comum, com destaque para toda a prova documental reunida nos autos, nomeadamente, a certidão da sentença proferida no processo nº 383/13.2TTPTM, que consta a fls. 8 e ss. dos autos de execução, e os documentos de fls. 11 (comunicação da denúncia do contrato de trabalho por parte do exequente), 12 (cópia do certificado de matrícula do veículo em causa nos autos, do qual consta a executada como proprietária inscrita), 13 (comunicação dirigida pelo mandatário da executada ao exequente, datada de 27.09.2012), 15 (e-mail remetido à executada (…), 17 a 23 (folhas de despesas de deslocação apresentadas pelo funcionário da executada, EE), 24 (cópia da fatura respeitante ao aluguer de um veículo no período de 06.07.2013 a 15.07.2013), 63 a 76 (cópia dos acordos celebrados entre o exequente, DD e a executada em 06.02.2014) – sendo que nenhuma das partes pôs em causa a genuinidade de tais documentos.
Foi igualmente considerado o depoimento da testemunha EE, funcionário da executada, o qual, no essencial, veio confirmar a exatidão dos documentos de fls. 17 a 23 e o recebimento das quantias neles inscritas, correspondentes a deslocações por si efetuadas em veículo próprio, não mostrando esta testemunha quaisquer outros conhecimentos relevantes relativamente aos factos em causa nos autos.
No mais, foram consideradas, em confronto entre si, as declarações prestadas por DD (sócio gerente da executada) e pelo próprio exequente, as quais não foram, como seria de esperar, coincidentes. Não obstante, tendo em conta a prova documental a que acima se aludiu (nomeadamente, o conteúdo dos acordos celebrados entre os dois sócios da executada), apreciados todos os elementos à luz das regras de experiência comum, acabou por conferir-se maior saldo de credibilidade ao declarado pelo exequente, para o que também contribuiu a forma hesitante como o sócio gerente da executada se expressou, caindo em algumas contradições (nomeadamente, ao sugerir que existiam outros sócios da executada a quem nunca tinham sido atribuídas viaturas, para depois reconhecer que, à data em que as viaturas foram compradas, a sociedade tinha apenas dois sócios: ele próprio e o exequente) e procurando desvalorizar a circunstância de as questões relativas à saída do exequente da sociedade e às compensações que lhe eram devidas terem sido tratadas em simultâneo com a entrega do veículo, o que fez de forma não particularmente convincente.
O exequente, pelo contrário, relatou factos que conferem consistência à sua posição, designadamente, a circunstância de, na primeira ocasião em que a sociedade adquiriu uma viatura para lhe disponibilizar, ter feito entrega de um carro de sua propriedade para retoma, o que diminuiu os custos para a empresa – atitude que, compreensivelmente, não teria se o veículo devesse ser-lhe disponibilizado em função da sua qualidade de funcionário.
Por outro lado, não existe qualquer evidência nos autos de que a atribuição de uma viatura fizesse parte da retribuição do exequente, enquanto diretor de serviços da executada, nem tão pouco tal matéria foi aflorada no âmbito da ação declarativa da qual os autos de execução constituem decorrência – e seguramente não deixaria de ter sido, se assim fosse, já que na mesma se discutiram os créditos de natureza laboral. Acresce que a circunstância de apenas o exequente usar o veículo, nunca tendo o mesmo sido utilizado por qualquer outro trabalhador da executada, e de o usar também nas suas deslocações pessoais, e não apenas em serviço, constitui igualmente um forte indício de que tal viatura não era um instrumento de trabalho disponibilizado ao funcionário da executada, mas antes um benefício atribuído em atenção à sua qualidade de «dono» da empresa – sem embargo de constituir uma utilidade no desempenho das funções.
Em suma, as evidências no sentido de que a viatura em questão era uma utilidade atribuída ao sócio suplantam, claramente, as que poderiam sugerir que a mesma constituía apenas uma ferramenta de trabalho, e daí as respostas dadas.
Já no que se refere ao valor da viatura em questão nos anos de 2012 a 2014, nenhuma prova relevante se produziu, resultando tal matéria, em consequência, não provada.

V. Fundamentação
a) A recorrente impugnou a decisão proferida sobe a matéria de facto, alegando que a prova produzida nos autos não permite dar como provada a matéria que consta do ponto 17, ou seja que a viatura de marca Audi A3, de matrícula … tenha sido entregue ao exequente em virtude da sua qualidade de sócio da executada.
Sustenta a sua posição na seguinte argumentação:
- Resulta do título executivo que serve de base à presente execução, bem como, da prova produzida nos presentes autos que o exequente detinha na empresa executada duas qualidades jurídicas distintas, sendo a primeira de sócio e a segunda de trabalhador, em que ambas são exercidas desde a constituição da sociedade executada.
- Durante 14 anos o exequente não teve direito a veículo da empresa.
- No ano seguinte à recorrente ter passado o exequente à categoria profissional de Diretor de Serviços desta, foi-lhe atribuído o veículo Audi A3.
- O exequente utilizava o veículo ao serviço da empresa (apesar de utilizar também em questões pessoais);
- Não apresentou o exequente em Tribunal qualquer elemento probatório (à exceção das suas declarações de parte prestadas, contraditadas) que motivasse o facto da empresa recorrente beneficiar um sócio – só pelo facto de ser sócio daquela -com um veículo automóvel.
- Considera a recorrente que os concretos meios probatórios que motivam dar como não provado o facto 17º dos factos provados, baseiam-se, pois, na reconsideração de toda a prova, nomeadamente, atento as alegações constantes do presente recurso de apelação para o qual se remete.
O exequente, por seu turno, defende que a decisão proferida sobre a matéria de facto não deve ser alterada com base nos seguintes argumentos:
- A recorrente não aponta “ os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida tal como era exigido ao recorrente pelo artº 640 nºs 1 e 2 do CPC, o que a recorrente não cumpriu, pelo que improcedem as alterações que a recorrente pretende à matéria de facto dada como provada na douta sentença.
- Improcedem os motivos pelos quais a recorrente pretende a alteração da matéria dada como provada e vertida no nº 17 da douta sentença, sendo que a documentação, as declarações quer de testemunha e sócios da empresa, tudo explicado e justificado na sentença, levam a que não possa ser outra a dita matéria de facto.
Vejamos:
O art. 662º nº1 do Código de Processo Civil prevê a possibilidade do Tribunal da Relação poder alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, o art. 640º do CPC estabelece as regras a que tem de obedecer a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Assim, o recorrente deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso previsto na alínea b) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Antes de mais, importa ainda frisar que o art. 396º do Código Civil refere que a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal, o que nos leva a concluir que na nossa lei processual civil vigora o princípio da livre apreciação da prova testemunhal segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
De qualquer forma, a livre apreciação e convicção da prova não é uma operação puramente subjetiva, por meio da qual se chega a uma conclusão unicamente baseada em impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, de tal modo que a convicção pessoal seja sempre uma convicção objetivável e motivável – trata-se em suma, da convicção da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável.
Como refere o Prof. Manuel de Andrade[1] segundo o princípio da livre apreciação das provas “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência da vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal.”
Intimamente relacionados com este princípio da livre apreciação e convicção estão os princípios da oralidade e imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão na audiência de julgamento se realizem oralmente, de modo que todas as provas exceto aquelas cuja natureza o não permite, terão de ser apreendidas pelo julgador por forma auditiva. O segundo diz respeito à proximidade que o julgador tem com os participantes ou intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova através de uma perceção direta ou formal. Esta perceção imediata oferece maiores possibilidades de certeza e da exata compreensão dos elementos levados ao conhecimento do tribunal.
Segundo o Prof. Manuel de Andrade estes princípios possibilitam o indispensável contacto pessoal entre o juiz e as diversas fontes de prova[2]. Só eles permitem avaliar o mais corretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelas testemunhas.
Longe da plenitude da prova efetuada em julgamento importa, na reapreciação da prova, ter a necessária cautela para não desvirtuar os aludidos princípios, dando primazia à verdade formal em detrimento da sempre tão desejada verdade material.
No caso concreto dos autos a recorrente indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, no caso o ponto 17 da matéria de facto dada como provada, bem como a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, ou seja dar como não provado o facto 17, tendo assim dado cumprimento ao disposto nas alínea a) e c) do nº1 do art. 640º do CPC.
Quanto à exigência, prevista na alínea b) do art, 640º nº1 do CPC, de especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, a recorrente evidencia determinados factos que foram dados como provados (Durante 14 anos o exequente não teve direito a veículo da empresa; No ano seguinte à recorrente ter passado o exequente à categoria profissional de Diretor de Serviços desta, foi-lhe atribuído o veículo Audi A3), acrescentando que “O exequente utilizava o veículo ao serviço da empresa (apesar de utilizar também em questões pessoais)”, concluindo com a observação de que o exequente não apresentou em Tribunal qualquer elemento probatório (à exceção das suas declarações de parte prestadas, contraditadas) que motivasse o facto da empresa recorrente beneficiar um sócio – só pelo facto de ser sócio daquela -com um veículo automóvel.
Finalmente acrescenta ainda que os concretos meios probatórios que motivam dar como não provado o facto 17º dos factos provados, baseiam-se, pois, na reconsideração de toda a prova, nomeadamente, atento as alegações constantes do presente recurso de apelação para o qual se remete.
Relativamente a este ponto da matéria de facto, o tribunal recorrido frisou que a convicção foi formada, positivamente, com base no seguinte:
- Apreciação de toda a prova produzida nos autos, em conjugação e confronto entre si e com as regras de experiência comum com destaque para toda a prova documental reunida nos autos;
- Quanto à prova documental foi feita referência à cópia dos acordos celebrados entre as partes em 06.02.2014, sendo que nenhuma das partes pôs em causa a genuinidade de tais documentos;
- No confronto das declarações prestadas por DD (sócio gerente da executada) e pelo próprio exequente, as quais não foram coincidentes;
- Apreciação global da prova documental conjugada com os depoimentos, à luz das regras de experiência comum, conferindo-se maior credibilidade às declarações do exequente, atenta a forma hesitante como o sócio gerente da executada se expressou, caindo em algumas contradições (nomeadamente, ao sugerir que existiam outros sócios da executada a quem nunca tinham sido atribuídas viaturas, para depois reconhecer que, à data em que as viaturas foram compradas, a sociedade tinha apenas dois sócios: ele próprio e o exequente) e procurando desvalorizar a circunstância de que as questões relativas à saída do exequente da sociedade e às compensações que lhe eram devidas terem sido tratadas em simultâneo com a entrega do veículo, o que fez de forma não particularmente convincente;
- Declarações do exequente que relatou factos que conferem consistência à sua posição, designadamente, a circunstância de, na primeira ocasião em que a sociedade adquiriu uma viatura para lhe disponibilizar, ter feito entrega de um carro de sua propriedade para retoma, o que diminuiu os custos para a empresa – atitude que, compreensivelmente, não teria se o veículo devesse ser-lhe disponibilizado em função da sua qualidade de funcionário;
- Não existir nos autos qualquer evidência de que a atribuição de uma viatura fizesse parte da retribuição do exequente, enquanto diretor de serviços da executada, não tendo sido tal matéria sequer aflorada no âmbito da ação declarativa da qual os autos de execução constituem decorrência – e seguramente não deixaria de ter sido, se assim fosse, já que na mesma se discutiram os créditos de natureza laboral;
- A circunstância de apenas o exequente usar o veículo, nunca tendo o mesmo sido utilizado por qualquer outro trabalhador da executada, e de o usar também nas suas deslocações pessoais, e não apenas em serviço, o que constitui igualmente um forte indício de que tal viatura não era um instrumento de trabalho disponibilizado ao funcionário da executada, mas antes um benefício atribuído em atenção à sua qualidade de «dono» da empresa – sem embargo de constituir uma utilidade no desempenho das funções.
Analisada globalmente toda a prova documental e os depoimentos prestados pelo exequente e pelo sócio gerente da executada temos de concluir que bem andou o tribunal recorrido ao dar como provado que a dita viatura foi entregue ao exequente em virtude da sua qualidade de sócio da empresa executada.
Na verdade, o depoimento do exequente apresenta uma linearidade em tudo coadunável com o conjunto da prova documental junta aos autos, projetando uma muito forte indiciação no sentido de que a viatura lhe foi entregue pelo facto de ser sócio da executada.
O facto de ter feito a entrega de uma viatura de sua propriedade para retoma, diminuindo os custos para a empresa, traduz um impulso que de acordo com a experiência comum é alheio, e não exigível, a um mero funcionário.
Trata-se de um comportamento típico do sócio de uma sociedade fortemente empenhado no sucesso económico da mesma, com vista a oportunamente colher os desejados dividendos.
Os acordos celebrados entre as partes em 6/02/2014 também são reveladores de que a aludida viatura tinha sido entregue ao exequente atenta a sua qualidade de sócio, pois a mesma é entregue à executada na altura em que é celebrado o contrato de cessão de quotas, em que é feito um acerto de contas, constando dos considerandos do mesmo que as partes acordaram pôr termo aos vários diferendos que as opunham.
Desses acordos não resulta minimamente que as partes tenham pretendido relegar para uma fase posterior a liquidação de qualquer compensação pelo uso da viatura pelo exequente, desde a cessação do seu contrato de trabalho até à data da entrega da mesma, que coincidiu com a celebração dos acordos.
Por outro lado, também é significativo e deve ser valorado o facto de na ação declarativa não ter sido sequer aflorado a questão de saber se a viatura fazia parte da retribuição, pois nessa ação discutiram-se os créditos de natureza laboral reclamados pelo autor, ora exequente.
Por todas estas razões, podemos afirmar que, do conjunto de toda a prova produzida, é de sufragar a posição da 1ªinstância, pois como se afirmou as evidências no sentido de que a viatura em questão era uma utilidade atribuída ao exequente, na sua qualidade de sócio, superam em muito as que poderiam indiciar que a mesma constituía apenas uma ferramenta de trabalho de um mero funcionário da executada.

b) A segunda questão suscitada pela recorrente encontra-se necessariamente prejudicada pelo facto de se ter decidido manter a matéria de facto dada como provada no ponto 17.
Na verdade, a recorrente questionava que tendo fundamentado os seus embargos na violação pelo exequente do art. 342º do Código do Trabalho, importava averiguar acerca da legitimidade da retenção da viatura por parte daquele, invocando que na qualidade de sócio da executada era credor da mesma no montante de €13.500,00.
O art. 342º do Código do Trabalho, com a epígrafe “Devolução de instrumentos de trabalho” dispõe “Cessando o contrato de trabalho, o trabalhador deve devolver imediatamente ao empregador os instrumentos de trabalho e quaisquer outros objetos pertencentes a este, sob pena de incorrer em responsabilidade civil pelos danos causados.”
Tendo-se provado que a viatura foi entregue ao exequente em virtude da sua qualidade de sócio da empresa executada, e não que a mesma lhe foi entregue na qualidade de trabalhador da executada, a referida disposição legal não pode ser invocada para fundamentar a ilegítima retenção da viatura, com os efeitos pretendidos em sede de processo de natureza laboral.
Face a tal matéria de facto dada provada também não se pode invocar o disposto nos artigos 754º e 755º, do Código Civil (disposições referentes direito de retenção), para considerar que estamos perante uma retenção ilegítima, pois o que ficou provado é que a viatura foi entregue ao exequente na qualidade de sócio da executada, tendo-se mantido na sua posse até deixar de ter essa qualidade.

VI. Nas suas contra-alegações o exequente pediu a condenação da recorrente como litigante de Má-Fé, pois em seu entender resultam do presente recurso elementos suscetíveis de enquadrar a atuação da recorrente no disposto no artº 542 nºs 1 e 2 alínea d) CPC, verificando-se negligência grave, e uso do recurso com vista a protelar sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão recorrida.
O mesmo pedido já tinha sido efetuado na contestação aos embargos, tendo a sentença recorrida se pronunciado no sentido de que a executada não devia ser sancionada a tal título.
Vejamos então se a executada deve ou não ser condenada como litigante de má-fé.
O legislador, na reforma do processo civil de 1995/96, ao introduzir o princípio da cooperação (art. 266º do CPC) quis logo dar-lhe o estatuto de princípio fundamental, pois visava-se transformar o processo civil numa “comunidade de trabalho” responsabilizando as partes e o tribunal pelos seus resultados, como refere Miguel Teixeira de Sousa.
O dever de cooperação na condução e intervenção no processo estende-se a magistrados, mandatários judiciais e às próprias partes.
As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação de forma a concorrer para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
O referido Autor acrescenta que o dever de cooperação assenta, quanto às partes, no dever de litigância de boa-fé (art. 266º-A do CPC) e que a infração do dever do honeste procedere pode resultar de uma má-fé subjetiva, se ela é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objetiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
O art. 542ºnº2, que corresponde ao anterior art. 456º nº2 , do CPC fornece-nos o conceito de má-fé ao dispor:
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Enquanto na redação anterior à reforma de 95/96 a má-fé era identificada como uma modalidade de dolo processual, entendendo a doutrina e a jurisprudência maioritária que a mesma consistia na utilização maliciosa e abusiva do processo, agora o seu âmbito foi alargado aos casos de negligência grave.
Da formulação legal retira-se que qualquer das modalidades da má-fé processual pode ser substancial ou instrumental. É substancial quando a parte violar o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não deveria ignorar ou alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (alíneas a) e b) do nº2 do art. 542º do CPC); é instrumental se a parte tiver omitido, com gravidade, o dever de cooperação ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (alíneas c) e d) do nº2 da mesma disposição legal citada).
Ambas as modalidades pressupõem uma intenção maliciosa, ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira, muito próxima da atuação dolosa, determinando um elevado grau de reprovação ou de censura.
Como se salienta no Acórdão do STJ de 13/03/2008, a condenação como litigante de má-fé assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.
Relativamente a esta matéria da má-fé o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art. 456º (atual art. 542º) do CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b), do nº2 (má fé substancial).
Assim, tem-se entendido que não basta não se ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, para que se justifique, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má-fé.
Este entendimento assenta em que a verdade revelada no processo é verdade do convencimento do juiz, uma verdade relativa, que poderá ficar aquém da certeza das verdades reveladas, porque resulta de um juízo passível de erro e também porque assenta em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psicossociológico.
A condenação como litigante de má-fé pressupõe uma patente intenção maliciosa, ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira, muito próxima da atuação dolosa, determinando um elevado grau de reprovação ou de censura.
Como se refere no recente Acórdão do STJ de 12/11/2015, Recurso nº 368/12.9.TTLSB.S1 “ Lide dolosa não se confunde com lide imprudente ou temerária e só aquela, com que a parte atua ou litiga com dolo, ou com negligência grave, merece censura e condenação fundada em litigância de má-fé”
No caso concreto dos autos, atenta a matéria em discussão, não nos parece que a conduta processual da executada tenha sido motivada por uma intenção maliciosa ou que enferme de uma negligência grosseira que mereça reprovação ao ponto de exigir uma condenação como litigante de má-fé.
Na verdade, a questão discutida nos embargos tem substrato jurídico suscetível de diversos entendimentos até a que fosse fixada a matéria de facto.
Assim, podemos concluir como na sentença recorrida, afirmando que a conduta processual da executada embora algo temerária não se pode considerar ostensivamente contrária ao direito.

VII. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
1. Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela executada, mantendo consequentemente na íntegra a sentença recorrida;
2. Julgar improcedente o pedido de condenação da executada como litigante de má-fé.
Custas a cargo da recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Évora, 23/06/2016
Joaquim António Chambel Mourisco (Relator)
José António Santos Feteira
Moisés Pereira da Silva


_________________________________________________
[1] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, pág. 384.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, pág. 386.