Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3150/15.5T8ENT-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
FIADOR
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A perda de benefício do prazo pelo devedor não afecta o seu fiador.
II - Assim, não pode o credor, com fundamento no vencimento antecipado da dívida, nos termos do artigo 781.º do Código Civil, exigir ao fiador também o pagamento da totalidade da dívida.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3150/15.5T8ENT-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…), Executada nos autos principais, veio deduzir oposição, mediante embargos de executado, contra a Exequente Banco (…), SA, peticionando a final a extinção da execução relativamente a si.
Alegou que é executada na qualidade de fiadora dos principais devedores, ou seja, dos mutuários no contrato de mútuo que deu azo à execução, e, no referido contrato, renunciou ao benefício da excussão prévia, mas não renunciou ao benefício do prazo e não foi interpelada para pagamento das prestações em falta, pelo que não está constituída em mora.
A Embargada contestou invocando que a Embargante foi devidamente interpelada para pagamento das quantias em dívida, na qualidade de fiadora, e, bem assim, no âmbito Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento - PERSI - para a morada convencionada.
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O processo seguiu os seus termos e, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando os embargos improcedentes, determinou o prosseguimento da execução.
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Desta sentença recorre a embargante concluindo a sua alegação nestes termos:
A decisão recorrida julgou os embargos de executado improcedentes, partindo de uma errada interpretação do artigo 782.º do Código Civil.
Contrariamente ao sustentado pela meritíssima juíza a quo, o regime consagrado no artigo 781.º CC aplica-se aos fiadores, como garantes pessoais.
A lei não distingue entre garantias pessoais e reais, pelo que o artigo 782.º é aplicável ao fiador, como ensina a doutrina, corroborada pela jurisprudência.
Do contrato de mútuo resulta que a quantia mutuada será paga ao longo de 480 meses, e não de uma só vez.
Competia ao mutuante, exequente, interpelar o fiador para se substituir ao mutuário no cumprimento mensal da dívida, por ser este o tempo de cumprimento, tal como decorre do contrato de mútuo, sendo que a fiança tem o conteúdo da obrigação principal – artigo 634.º CC.
O mutuário perdeu o benefício do prazo contratado, que lhe facultaria a possibilidade de efectuar o pagamento da dívida ao longo de 480 meses (40 anos), mas o mesmo não sucede com o fiador, enquanto não for interpelado para se substituir ao principal devedor no cumprimento da dívida, durante o prazo contratado, conforme vinha sucedendo com o principal devedor e decorre do conteúdo do contrato.
Mostram-se violados os termos do conteúdo do contrato, visto que o credor se limitou a interpelar o fiador para o cumprimento da dívida, mas com total desrespeito pelo benefício do prazo, obrigando-o a pagar imediatamente a totalidade da dívida.
O fiador tem o direito de saber em que mês deixou de ser cumprida a primeira prestação vencida e não paga, de maneira a poder iniciar o cumprimento de cada uma das prestações, nos respectivos prazos de vencimento.
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O recorrido contra-alegou defendendo que a recorrente foi interpelada para cumprir.
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Foram colhidos os vistos.
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A matéria de facto é a seguinte:
1. No dia 16.06.2015, o Exequente Banco (…), SA, deu entrada do requerimento executivo constante dos autos principais, para instauração de execução para pagamento de quantia certa, onde apresentou como título executivo documento denominado “Contrato de Mútuo com Hipoteca”, celebrado em 24.03.2006, no valor de € 20.625,00 (vinte mil, seiscentos e vinte e cinco euros) – cujo teor se dá aqui por reproduzido – e documento denominado “Contrato de Mútuo e Hipoteca”, celebrado em 24.03.2006, no valor de € 49.375,00 (quarenta e nove mil, trezentos e setenta e cinco euros) – cujo teor se dá aqui por reproduzido –, para pagamento da quantia de 68.376,57 € (Sessenta e Oito Mil, Trezentos e Setenta e Seis Euros e Cinquenta e Sete Cêntimos), documentos subscritos pelo Exequente, aqui Embargado, e, entre os demais, pela Executada, aqui Embargante (…), na qualidade de Fiadora onde se lê, nomeadamente, em ambos os referidos escritos particulares o seguinte:
Cláusula Décima Nona Fiança
O Fiador, com renúncia ao benefício de excussão prévia, constitui-se fiador e principal pagador de todas as obrigações emergentes para o mutuário do presente contrato.
2. No seguimento da falta de pagamento das prestações nos termos devidos constantes dos escritos particulares referidos em 1, a Exequente, aqui Embargada, remeteu à Executada, aqui Embargante, com aviso de recepção, para a morada constante dos documentos referidos em 1, que esta recebeu, a missiva com o seguinte teor:
Exmos. Senhores (…)
(…)
Rua 25 de Abril, (…), 2380-570 (…)
Registada C/ Aviso de Recepção
Lisboa, 20 de Maio de 2015
Assunto; Contrato de Empréstimo n.º (…) datado de 24 de Março de 2006
Exmos. Senhores,
Vimos pela presente remeter, na qualidade de garantes do contrato em assunto, fotocópia da carta que nesta data enviámos aos mutuários.
Aproveitamos para comunicar que a fim de evitar as consequências gravosas de uma solução judicial, deverão V. Exas., proceder no prazo de dez dias a contar da recepção ou da devolução desta comunicação à regularização das responsabilidades vencidas decorrentes do mencionado contrato, que nesta data ascendem, a Euros 20.192,59 (vinte mil cento e noventa e dois euros e cinquenta e nove cêntimos), correspondendo:
Euros 19.388,58, a capital em dívida;
Euros 41,96, a juros compensatórios;
Euros 762,05, a juros de mora;
Euros 0,00, a imposto de selo.
Apresentamos os nossos melhores cumprimentos,
De V. Exas Atentamente
3. No seguimento da falta de pagamento das prestações nos termos devidos constantes dos escritos particulares referidos em 1, a Exequente, aqui Embargada, remeteu à Executada, aqui Embargante, com aviso de recepção, para a morada constante dos documentos referidos em 1, que esta recebeu, a missiva com o seguinte teor:
Exmos. Senhores (…)
(…)
Rua 25 de Abril, (…), 2380-570 (…)
Registada C/ Aviso de Recepção
Lisboa, 20 de Maio de 2015
Assunto; Contrato de Empréstimo n.º (…) datado de 24 de Março de 2006
Exmos. Senhores,
Vimos pela presente remeter, na qualidade de garantes do contrato em assunto, fotocópia da carta que nesta data enviámos aos mutuários.
Aproveitamos para comunicar que a fim de evitar as consequências gravosas de uma solução judicial, deverão V. Exas., proceder no prazo de dez dias a contar da recepção ou da devolução desta comunicação à regularização das responsabilidades vencidas decorrentes do mencionado contrato, que nesta data ascendem, a Euros 48.121,94 (vinte mil cento e noventa e dois euros e cinquenta e nove cêntimos), correspondendo:
Euros 46.271,38, a capital em dívida;
Euros 100,14, a juros compensatórios;
Euros 1.679,24, a juros de mora;
Euros 71,18, a imposto de selo.
Apresentamos os nossos melhores cumprimentos,
De V. Exas Atentamente
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É sabido que se a dívida puder ser paga em prestações, a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento das demais; ou seja, toda a obrigação se vence por causa do incumprimento de uma das prestações (art.º 781.º, Cód. Civil).
Este regime, no entanto, não é aplicável aos co-obrigados do devedor, nos termos do art.º 782.º.
Isto significa que a perda do benefício do prazo não ocorre em relação aos garantes da obrigação; o fiador não responde pela totalidade da dívida porque o devedor não pagou algumas das prestações; dito ainda de outra forma, quem perde o referido benefício é o devedor e só o devedor. Por isso, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela que a «perda do benefício do prazo não afecta (…) terceiros que tenham garantido o cumprimento da obrigação», sendo que a garantia «só pode ser posta a funcionar depois de atingido o momento em que a obrigação normalmente se venceria» (Cód. Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 29). É este o sentido do ac. da Relação de Coimbra, de 27 de Janeiro de 2015, citado pela recorrente, bem como o de 3 de Julho de 2012 da mesma Relação (com o argumento, que nos parece relevante de que é a solução «que melhor garante a natureza acessória do instituto da fiança (que se mantém mesmo sem a subsidariedade afastada pela renúncia ao benefício da excepção), porque o prazo também é estabelecido a favor do fiador, que terá interesse em ser alertado (interpelado) pelo banco, no sentido de pagar as prestações vencidas e as que se forem vencendo pelo decurso do tempo, em vez de ser abruptamente confrontado com uma dívida de centenas de milhares de euros». No mesmo sentido ainda vai o ac. da Relação do Porto, de 23 de Junho de 2015.
Como se escreve nas alegações, o «mutuário perdeu o benefício do prazo contratado, que lhe facultaria a possibilidade de efectuar o pagamento da dívida ao longo de 480 meses (40 anos), mas o mesmo não sucede com o fiador, enquanto não for interpelado para se substituir ao principal devedor no cumprimento da dívida, durante o prazo contratado, conforme vinha sucedendo com o principal devedor e decorre do conteúdo do contrato»
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Quando, então, pode acontecer que o co-obrigado perca tal benefício?
Parece-nos, e parece-nos apenas, que apenas quando seja interpelado nos mesmos termos em que o devedor o foi: interpelado para cumprir a prestação em falta que justificou a perda de benefício do prazo por banda do devedor. Só depois desta interpelação (que se destina a suprir o incumprimento parcial do devedor) é que o credor, no caso de o fiador não pagar as prestações em falta (repete-se, aquelas que levaram à perda do benefício do prazo por parte do devedor), o pode interpelar para o pagamento de toda a dívida. Ou seja, o fiador pode perder o benefício do prazo já como devedor subsidiário porque em tal se constituiu pela interpelação do credor para pagar o que motivou, por sua vez, a perda do benefício pelo devedor.
Se é certo que o fiador é tão responsável pela dívida como o devedor (art.º 634.º), também é certo que esta regra tem um desvio importante («e muito importante»; cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 1990, p. 476, nota) no art.º 782.º. Por isso, o credor deve tratar o fiador tal como tratou o devedor (interpelando aquele para o pagamento das prestações em falta da mesma forma que notificou o devedor).
No nosso caso, o que se passou foi que o exequente interpelou a executada para pagar a totalidade da dívida (aliás, das dívidas pois são dois os contratos de mútuo) sem que esta tenha sido notificada para fazer o pagamento das prestações em falta. Se tivesse acontecido esta interpelação, a executada poderia optar por pagar as prestações em falta e as outras que se fossem vencendo ao longo do tempo, sem prejuízo para o credor (o contrato de mútuo manter-se-ia tal como estava combinado).
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Note-se, em passagem, que na sentença considerou-se que, «tendo ocorrido a interpelação da Embargante no sentido de liquidar as prestações vencidas, perdeu esta o benefício do prazo» mas esta consideração não está certa; a interpelação que foi feita à recorrente foi para pagar a totalidade da dívida e não apenas as prestações que estavam em falta (não resulta das cartas que o exequente se refira às prestações mas sim a todo o capital).
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Em todo o caso, o que não nos parece correcto, porque violador do sentido de protecção do art.º 782.º, é que o credor, perante a falta de pagamento de uma prestação pelo devedor, venha exigir a este e ao fiador a totalidade da dívida. Isto vai mais além do contratado pois que o fiador obrigou-se em determinados termos. Como escreve Januário Gomes, o «que se pretende é vincar que o regime do art.º 782.º, constitui, no que à fiança se refere, manifestação de um princípio geral: o de que não são extensivas ao fiador as modificações de prazo com que ele não conte ou não possa razoavelmente contar» (Assunção Fidejussória da Dívida, Almedina, Coimbra, 2000, p. 948).
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Por estes motivos, não vemos como pode o recorrido exigir do fiador a totalidade da dívida quando ele não perdeu nunca o benefício do prazo contratualmente fixado.
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Não está identificado o montante das prestações que não foram pagas e que suscitaram a perda do benefício do prazo pelo devedor; assim, não se pode determinar a redução da quantia exequenda aos devidos montantes.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso em função do que se revoga a sentença recorrida e se julgam procedentes os embargos, cessando a execução em relação à recorrente.
Custas pelo recorrido.
Évora, 12 de Outubro de 2017
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho