Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FLORBELA MOREIRA LANÇA | ||
Descritores: | MENORIDADE RESIDÊNCIA HABITUAL DIREITO DE AUDIÇÃO DIREITO DE GUARDA DE MENORES DIREITO DE REGRESSO DIREITO INTERNACIONAL CUSTÓDIA INTERESSE DA CRIANÇA DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA PRESSUPOSTOS | ||
Data do Acordão: | 06/04/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I. Para que seja ordenado o regresso de uma criança, necessário é que se demonstre que: a) a criança residia habitualmente num outro Estado contratante; b) a deslocação ou retenção da criança constitui uma violação do direito de guarda ao abrigo da lei desse Estado; c) o requerente estava, de facto, no exercício desses direitos no momento da deslocação ou retenção ilícitas. II. O direito de custódia pode resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer ainda de um acordo vigente segundo o direito do Estado da residência habitual (art.º 3.º da Convenção), o que significa que não é exigida a prévia definição, por acordo, decisão administrativa ou sentença judicial, do regime de custódia. III. A custódia ex lege baseia-se ou na lei interna do Estado da residência habitual da criança ou na lei designada pelas normas de conflito desse Estado. IV. Apurada que a retenção foi ilícita, verificada, pois, a ilicitude, de acordo com a lei interna do país da residência habitual da criança, os tribunais têm de determinar a entrega imediata da criança, salvo se ocorrer alguma das situações expressamente previstas no art.º 13.º da Convenção, V. Ao julgador cabe a apreciação sobre os pressupostos positivos que determinam esse regresso mas também sobre os pressupostos negativos (excepções) que justificam o indeferimento, impondo-se a pronúncia sobre o desejo expresso de uma criança em permanecer no país para a qual foi deslocada e está retida. VI. A decisão de ordenar o regresso da criança ilicitamente transferida para um dos Estados Contratantes ou nele retida indevidamente exige que se averigue da conformidade entre o regresso e o interesse da criança ou mesmo se o regresso é da sua vontade, desde que a sua idade e grau de maturidade justifiquem que a sua opinião releve sobre o assunto. VI. Julgar de acordo com critérios de conveniência e oportunidade não significa postergar regras processuais e substantivas basilares (sumário da relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I.Relatório No presente processo tutelar comum instaurado pelo Ministério Público, em representação da Direção Geral de Reinserção Social, ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, 3.º, 4.º, 6.º, 7.º als. a) e f) e 12.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia a 25.10.1980, de que tanto Portugal como a Ucrânia são partes contratantes, e do art.º 67.º do RGPTC, foi requerido que se declarasse ilícita a retenção da criança N… e se ordenasse o seu regresso imediato à Ucrânia, para junto de seu pai ali residente. Fundamentou o M.P. o pedido na circunstância de a criança ter a sua residência habitual na Ucrânia e de a mãe, contra a vontade do pai, a ter retido em Portugal, quando aqui se encontrava a passar férias, o que constitui retenção ilícita, pelo que deverá ser ordenado o regresso imediato da criança. Por despacho de 19.07.2019, foi determinada a inserção dos dados relativos à criança no sistema de informação Schengen, mediante comunicação ao Gabinete SIRENE, solicitado à segurança social que averiguasse as condições em que a criança se encontrava a viver, designadamente entrevistando a criança e colhendo informações complementares junto da escola, saúde e vizinhança, devendo, ainda, ser apurado o circunstancialismo que rodeou a deslocação para Portugal bem como a data da separação do casal, como se processou o exercício das responsabilidades parentais após essa ocorrência e a opinião da criança sobre o assunto e o seu grau de maturidade. Foi ainda ordenado que a progenitora apresentasse prova do por si alegado junto da DGRS, ou seja, que lhe foram “atribuídas as responsabilidades parentais”. Foi designada data para audição da progenitora, da criança e tomada de declarações à técnica gestora nomeada para o caso para oralmente transmitir a informação colhida a ser gravada no sistema informático e reduzida a escrito. Foram ouvidas a progenitora, A…, que se encontrava acompanhada pela sua I. mandatária, a criança N… e a técnica gestora, C…. No final da diligência, o M.P. requereu que fosse solicitada à autoridade central portuguesa que diligenciasse junto da sua congénere ucraniana pela obtenção das decisões pertinentes ao menor, i.e., a sentença do divórcio e eventuais regulações e alterações das responsabilidades parentais. Junta a sentença do divórcio de requerente e requerida, os autos foram com vista ao M.P., o qual reiterou o pedido formulado, ou seja, pela declaração da ilicitude da retenção da criança N… e pelo regresso imediato à Ucrânia. Conclusos os autos, foi proferida decisão, em 23 de Março p.p. que, “Considerando ilícita a retenção em Portugal da criança N…” ordenou “o seu regresso imediato à Ucrânia”. A…, mãe da criança N…, não se conformando com a sentença prolatada dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões “I. O presente recurso que se interpõe, versa sobre a douta sentença que determina o regresso da criança N…; II. A douta sentença proferida pelo Tribunal “ad quo” errou ao determinar o regresso da menor à Ucrânia pelas razões que se passam a expor. III. Em sede de audição da mãe da criança, a ora recorrente, a mesma indicou circunstâncias que obstam à entrega da criança. IV. O menor também foi ouvido e declarou, além do mais que: Tem 12 anos de idade, frequentou o 6.º ano mas não transitou de ano; Gosta muito de estar cá; Quer poder irà Ucrânia de férias visitar a sua família, mas só com a sua mãe; Vive com a mãe e com o irmão; não tem saudades do pai. V. Ademais face à prova dos autos, mormente, as declarações prestadas na Conferencia de Pais pelo menor N… perante a Mmª Juiz, conjugada com a demais prova documental dos autos impunha-se que o tribunal “a quo” julgasse provada a seguinte factualidade: a) O menor frequenta o 6.º ano de escolaridade na escola de Montenegro; b) Tem 12 anos de idade, frequentou o 6.º ano mas não transitou de ano; c) Tem algumas dificuldades linguísticas, mas já está melhor; d) Gosta muito de estar cá; e) Quer poder ir à Ucrânia de férias visitar a sua família, mas só com a sua mãe; f) Vive com a mãe e com o irmão; g) Não tem saudades do pai; VI. Não o tendo feito a douta sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto. VII. Além disso, a douta sentença recorrida foi proferida sem que tivesse em consideração a vontade do menor; VIII. O tribunal “a quo” antes de proferir decisão não ordenou a elaboração de relatório social a fim de aferir quais as actuais condições do menor em Território Nacional, IX. O Tribunal “a quo” também não solicitou relatórios à Segurança Social da Ucrânia, de molde a aferir se o regresso do menor a esse país, (que antes da Pandemia Covid-19 já se encontrava em situação económica difícil, para além de ser palco de uma guerra com a Federação da Rússia) sujeitaria a criança a risco grave, ou a ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou a ficar numa situação intolerável. X. O que se impunha e que, salvo melhor opinião, consubstancia omissão de diligências essenciais à boa decisão da causa que no caso é o superior interesse da criança, em violação do princípio do inquisitório, consagrado nos artigos 6.º e 411.º da lei processual civil. XI. O tribunal “a quo” tomou a decisão recorrida após lhe ter sido remetida, a seu pedido, a certidão da sentença do divórcio decretado pelo tribunal da Ucrânia. XII. Ora, em declarações prestadas perante a Mmª Juiz a mãe do menor disse que as responsabilidades parentais se encontravam reguladas, mas que ela não tinha nenhuma cópia desse acordo. XIII. Enquanto se encontrava a diligenciar pela obtenção desse documento, o que apenas logrou em 27-03-2020 (documento que ora junta) foi surpreendida com a sentença sub judice. XIV. E só com a notificação da decisão recorrida tomou conhecimento que as autoridades da Ucrânia haviam remetido certidão da sentença do divórcio decretado pelo tribunal da Ucrânia; XV. Ou seja, o tribunal “a quo” não deu à Requerida o direito ao exercício do contraditório, pois não a notificou quer da junção aos autos daquele documento, nem da douta promoção do MP subsequente à junção do mesmo, em violação do artigo 3.º do C.P.C. que estabelece que cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem. XVI. O tribunal “a quo” extraiu, mal a nosso ver, da certidão de divórcio junta pela autoridade central que não existia uma regulação das responsabilidades parentais, ao arrepio das declarações prestadas pela Recorrente na Conferencia. XVII. Impunha-se, sim, ao invés, que notificasse as competentes autoridades da Ucrânia a insistir na junção do documento solicitado ou esclarecer o porquê do envio de apenas aquele documento (quando existe outra decisão judicial transitada que ora se junta). XVIII. Acresce que a douta sentença recorrida foi proferida sem considerar o interesse primordial, a acautelar nestes casos e consagrado na Convenção de Haia: o superior interesse da criança. XIX. In casu, o tribunal “a quo” não efectuou, como se impunha, um juízo de ponderação e de conformidade entre o regresso da criança e o seu interesse, ou mesmo a sua vontade, elemento fundamental que está subjacente na Convenção de Haia. XX. A sua execução é, por si só causadora de sujeição do menor a perigos de ordem psíquica e física, susceptíveis de comprometer irremediavelmente o seu desenvolvimento. XXI. Ora, ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 13.º da Convenção de Haia, cessa a obrigação de entrega da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha ao retorno provar que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo fica numa situação intolerável. XXII. O que sucede no caso vertente por duas ordens de razões: Primeira: a criança tem 12 anos de idade, encontra-se a residir em Portugal desde Julho de 2018, ou seja, há quase 2 (dois) anos, aqui frequenta a escola, reside com a mãe e um irmão que aqui trabalham e sobretudo verbaliza vontade de permanecer na companhia da mãe e não tem saudades do pai; Segunda: No ambiente de pandemia covid-19, a execução da decisão recorrida é expor o jovem a riscos graves para a sua vida e integridade física e psíquica. XXIII. Ordenar o regresso do menor N… para a Ucrânia, país que já antes da Pandemia Covid-19 se encontrava mergulhado em crise económica, política e social (em virtude anexação ilegal da «República Autónoma da Crimeia» e da cidade de Sebastopol pela Federação da Rússia), é suscetível de comprometer irremediavelmente o saudável desenvolvimento do mesmo. XXIV. Destarte, salvo melhor opinião, a situação sub judice integra a excepção impeditiva do regresso imediato da criança, com 12 anos de idade, já inserida em Portugal, num ambiente familiar onde disfruta de estabilidade emocional e psicológica há quase 2 (dois) anos, sobretudo por se desconhecer o ambiente onde o menor será acolhido no país de origem, até porque resulta dos autos que o vinculo afectivo do menor com o progenitor ali residente é ténue, atentas as suas próprias declarações acima transcritas. XXV. Normas jurídicas violadas: Artigos 3.º, 6.º, 411.º e 615.º n.º 1 al. d) todos do C.P.C.; artigo 4.º, n.º 1, al. c), do RGPTC; artigo 12.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, acolhida na nossa ordem jurídica pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 8/6/90; a Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança, adotada em Estrasburgo em 25/1/96, acolhida na nossa ordem jurídica pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13/12/2013; O artigo 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em 7/12/2000; os artigos 11.º, n.º 2, 23.º, al. b) e 41.º, n.º 2, al. c) do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27/11/2003; o artigo 13.º nº 1, al. b) e 20.º da Convenção de Haia, aprovada pelo Decreto do Governo n.º 33/83, de 11/05, Publicada no Diário da República I, n.º 108, de 11/05/1983. Em face do exposto, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que recuse o regresso da menor à Ucrânia. Todavia, V. Exas. Venerandos Desembargadores decidirão como é de Direito e Inteira Justiça.”. O M.P. respondeu às alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida. II. Objecto do Recurso Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. - Da violação do princípio do contraditório; - Da omissão de pronúncia quanto à audição da criança N…, que manifestou não pretender regressar à Ucrânia; - Da impugnação da matéria de facto; - Da verificação dos pressupostos de que depende o regresso da criança N…; - Da verificação de alguma das excepções a esse regresso. III. Fundamentação Consta da sentença recorrida que “Dos elementos constantes dos autos, resultaram apurados os seguintes factos”: 1.A criança N… nasceu na Ucrânia no dia 30/7/2007 e é filha de A… e V…. 2. A criança residia com os pais na Ucrânia. 3. Os progenitores separaram-se. 4. O casamento dos progenitores foi dissolvido por sentença proferida pelo Tribunal Distrital da cidade de Poltava, Ucrânia, transitada em julgado em 7/8/2009 (doc de fls. 25 a 28). 5. À data do divórcio, a criança residia com a mãe (cf. fls. 27). 6. A requerida/progenitora veio viver para Portugal em Maio de 2018, deixando a criança aos cuidados da avó materna. 7. A criança veio para Portugal, na companhia de um irmão, no Verão de 2018. 8. O progenitor autorizou a deslocação da criança para Portugal a fim de passar as férias do Verão com a mãe (até 15 de Setembro de 2018). 9. O menor não regressou à Ucrânia. 10. A criança encontra-se a viver com a mãe, em Portugal. 11. O progenitor não autoriza a permanência do menor em território português. 2. O Direito Fundamenta-se o pedido de entrega da criança N… na Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 26.10.1980 e aprovada pelo Decreto do Governo n.º 22/83 de 11 de Maio, publicado no DR, I Série, de 11.05.1983, doravante designada por Convenção, a qual tem por objectivo essencial assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente e fazer respeitar de maneira efectiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado Contratante (art.º 1.º, als a) e b) da Convenção). “O rapto é por vezes a questão central tratada, por estarem em causa pedidos de regresso a outros Estados, formulados por quem invoca a titularidade do poder/dever de guarda da criança, que lhe advém de decisão judicial, de acordo eficaz ou da lei aplicável, consoante os casos”[1] A Convenção baseia-se na presunção de que, salvo em circunstâncias excepcionais, a deslocação ou retenção ilícitas de uma criança através de fronteiras internacionais não é do interesse superior da criança (Preâmbulo da Convenção e cfr. art.º 11.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças), e que o regresso da criança ao Estado da residência habitual promoverá os seus interesses, por reivindicar o direito da criança a ter contacto com ambos os pais (cfr. n.º 3 do art.º 9.º da Convenção das nações Unidas sobre os Direitso das Crianças), apoiando a continuidade na vida da criança (art.º 8.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças), e que qualquer determinação relacionada com a sua guarda ou acesso é feito pelo tribunal mais adequado tendo em conta a provável disponibilidade de elementos de prova pertinentes O objectivo prevalecente é, assim, o de garantir o restabelecimento da situação alterada pela acção daquele que deslocou ou reteve ilicitamente a criança, sendo o seu regresso imediato a primeira providência a ser considerada pelas autoridades judiciárias de cada Estado. O rapto parental ocorre, à luz dos art.ºs 3.º, 4.º e 5.º da Convenção, quando: a) Tenha havido uma deslocação de uma criança com menos 16 anos, de um país onde tinha a sua residência habitual, para outro país; b) A deslocação ou retenção da criança tenha sido efectuada com violação do direito de custódia atribuído pela lei do Estado onde a criança tinha a sua residência habitual; c) O direito de custódia tenha estado a ser exercido de forma efectiva, individual ou em conjunto, no momento da deslocação ou da retenção, ou devesse estar a ser exercido, se não se tivesse verificado a deslocação ou retenção. Com o objectivo fundamental de combater a subtracção internacional de crianças, a Convenção da Haia de 1980 é, essencialmente, um instrumento que institucionaliza um mecanismo de colaboração de autoridades (denominadas de autoridades centrais) destinado a assegurar o imediato regresso da criança ao Estado da sua residência habitual e que tenha sido deslocada para outro Estado ou aí se encontre retida ilicitamente, garantindo-se, deste modo, o exercício efectivo dos direitos de custódia e proscrevendo-se, nessa fase, uma qualquer discussão sobre a conformidade jurídica ou oportunidade da guarda que esteja a ser efectivamente exercida. Significa a Convenção que a melhor solução do ponto de vista de tutela do interesse da criança é a de assegurar o seu regresso imediato ao Estado onde antes da deslocação ou da retenção ilícita tinha a sua residência habitual, conceito que assume no contexto deste instrumento de direito internacional uma importância relevantíssima (art.º 4.º da Convenção). A residência habitual da criança corresponde ao local que revelar uma determinada integração desta num ambiente social e familiar, tendo-se em conta a duração, a regularidade, as condições e as razões da sua permanência no território de um Estado e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade da criança, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado. Essa presença não pode ser temporária ou ocasional, devendo apresentar um carácter estável que o permita considerar como o centro permanente ou habitual dos seus interesses. A Convenção impõe aos tribunais que ordenem o regresso da criança ao Estado da sua residência habitual se esta foi deslocada ou retida em violação de um direito de guarda da pessoa que pede o regresso, sendo esse regresso obrigatório a menos que: a) A parte que pede o regresso da criança não esteja a exercer, de maneira efectiva, o direito de guarda ou tenha consentido ou concordado com a deslocação ou retenção (art.ºs 3.º, al. b) e 13.º, al. a) da Convenção); b) Exista um grave risco de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável (art.º 13.º, al. b) da Convenção); c) A criança tenha atingido já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas objecções ao regresso (art.º 13.º, § 2.º da Convenção); d) O pedido para o regresso não tenha sido apresentado no Estado em que a criança se encontra dentro do período de um ano após a deslocação ou retenção ilícitas e a criança esteja já integrada no seu novo ambiente (art.º 12.º da Convenção); ou e) O regresso da criança não seja consentâneo com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (art.º 20.º da Convenção).[2] Verificada a ilicitude da deslocação ou retenção e havendo decorrido menos de um ano entre estas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança (art.º 12.º). No caso de ambos os pais exercerem o direito de custódia, que inclui o “direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular o direito de decidir sobre o lugar da sua residência” (art.º 5.º, al. a) da Convenção), à data da deslocação da criança, a permanência desta em Portugal, com inobservância do hiato temporal consentido pela progenitor requerente para a deslocação e permanência, traduz uma retenção ilícita, como decorre do disposto no art.º 3.º, als. a) e b) da Convenção, o que determina a obrigação do Estado Português, através das autoridades competentes, enquanto outorgante da Convenção, de ordenar o regresso imediato da criança, uma vez que, entre a data da retenção indevida e a data do início dos presentes autos, havia decorrido menos de um ano (art.º 12.º da Convenção). Não se pode olvidar que a primeira das fontes do direito de custódia, que são meramente exemplificativas, a que o art.º 3.º da Convenção faz alusão, como se retira do § 2 do citado normativo é a lei, quando refere que a custódia pode resultar de uma atribuição de pleno direito, o que permite a aplicação da Convenção na protecção dos direitos de custódia exercidos antes de qualquer decisão sobre a matéria. Este ponto é muito importante, tanto mais que são muito frequentes os casos em que o menor é deslocado ou ilicitamente retido antes de ter sido proferida qualquer decisão sobre a custódia. Assim, ao incluir estes casos no âmbito da sua aplicação a Convenção progrediu de forma significativa na solução dos problemas reais que anteriormente escapavam aos mecanismos tradicionais do direito internacional privado. Assim, a custódia ex lege baseia-se ou na lei interna do Estado da residência habitual do menor ou na lei designada pelas normas de conflito desse Estado. É que o direito de custódia pode resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer ainda de um acordo vigente segundo o direito do Estado da residência habitual (art.º 3.º da Convenção), o que significa que não é exigida a prévia definição, por acordo, decisão administrativa ou sentença judicial, do regime de custódia, bastando que este decorra directamente do direito positivo interno do Estado da residência habitual da criança, incluindo as normas de direito internacional privado. Ora, a obrigação de ordenar o regresso de crianças ilicitamente deslocadas ou indevidamente retidas num dos Estados outorgantes da Convenção comporta, porém, como acima referimos, excepções motivadas pelo interesse da criança que constitui a trave mestra da própria Convenção. A decisão de ordenar o regresso da criança ilicitamente transferida para um dos Estados Contratantes ou nele retida indevidamente exige que se averigue da conformidade entre o regresso e o interesse da criança ou mesmo se o regresso é da sua vontade, desde que a sua idade e grau de maturidade justifiquem que a sua opinião releve sobre o assunto (art.º 13.º da Convenção). Por assim ser, compreende-se que “existindo um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”, o Estado Contratante, não obstante a ilicitude da deslocação ou da retenção, deixe de estar obrigado a ordenar o regresso da criança (art.º 13.º, al. b), da Convenção), cabendo ao progenitor, que se opôs ao regresso do menor ao país onde tem a sua residência habitual, a prova de existir risco grave de a criança ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo ficar numa situação intolerável. Também o desejo expresso de uma criança em permanecer no país para a qual foi deslocada e está retida deverá revelar a necessária maturidade que a convenção impõe. Na verdade não basta uma criança exprimir que deseja permanecer no Estado contratante para o qual foi ilicitamente deslocada ou retida. Necessário é que tal expressão demonstre um grau de maturidade e que essa permanência, rectius, a decisão de não regresso assente no superior interesse da criança. Aliás, se a letra da norma não aponta para a obrigatoriedade de uma decisão de não regresso, quando o menor verbaliza não pretender regressar, a verdade é que o julgador, perante essa verbalização da criança sobre ela, tem, obrigatoriamente, de se pronunciar. Nunca é demais relembrar que “Não está em causa neste processo – nem poderia estar (art.º 16.º da Convenção) - nenhuma decisão sobre a guarda do menor. Trata-se, diferentemente, de um processo expedito (cfr. Ac. do STJ de 20.01.2009, acessível em www.dgsi.pt), tendente a garantir a eficácia de uma decisão judicial (…). Em tal eventualidade, os tribunais têm de determinar a entrega imediata da criança, sem que possam discutir a bondade da solução, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção da Haia (…) considera aptas a fundamentar uma decisão de recusa”[3], não cabendo, pois, nessa sede discutir quaisquer questões relacionadas com o exercício das responsabilidades parentais Assim, para que seja ordenado o regresso de uma criança, necessário é que se demonstre que: - a criança residia habitualmente num outro Estado contratante; - a deslocação ou retenção da criança constitui uma violação do direito de guarda ao abrigo da lei desse Estado; - o requerente estava, de facto, no exercício desses direitos no momento da deslocação ou retenção ilícitas. “Para que o pedido de regresso imediato possa ser procedente é desde logo necessário provar a deslocação ou retenção ilícita da criança, para ou num Estado diferente daquele no qual se encontrava imediatamente antes da deslocação ou da retenção. De acordo com o artigo 3.º da Convenção da Haia de 25 de Outubro de 1980, considera-se ilícita uma deslocação ou retenção que viole o regime vigente para o direito de guarda da criança, desde que este direito estivesse a ser efectivamente exercido, conjunta ou separadamente, no momento da deslocação ou da retenção, ou devesse estar a ser exercido, se não tivesse ocorrido nenhuma dessas vicissitudes. (…). Interessa ainda reter que, para o efeito que agora interessa, para se considerar conjunta ou não a guarda, cumpre saber se é ou não necessário o consentimento de ambos os progenitores para decidir sobre o local de residência da criança. É pois a protecção do poder-dever de guarda ou custódia da criança que está em causa — e não o regime de visitas eventualmente estabelecido para o progenitor que não resida com a criança, que efectivamente poderá ser igualmente infringido em resultado de deslocação ou retenção da criança por parte do progenitor guardião — cfr., nomeadamente, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Abril de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 180/05.9TMMTS-B.P1. Averiguar da ilicitude da deslocação ou retenção de uma criança, alegada como fundamento do pedido de regresso apresentado nos tribunais portugueses, reconduz-se normalmente a determinar se aquele que deslocou a criança para Portugal tinha o poder de, por si só, decidir sobre o respectivo local de residência, ou se a deslocação ou retenção foi ou não efectuada com o acordo ou com o consentimento do titular (ou co-titular) desse poder. (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 786/09.7T2OBR-A.C1). Assim, entende-se uniformemente que existirá rapto se, tendo de ser decidido por ambos os progenitores o local de residência da criança, por assim resultar do regime de exercício das responsabilidades parentais aplicável, a deslocação ou retenção tiver resultado apenas da vontade de um deles, sem consentimento do outro. (…) Exige-se ainda, como condição da ilicitude da deslocação ou retenção, que a guarda estivesse efectivamente a ser exercida pelo progenitor que pretende o regresso da criança deslocada ou retida; ou devesse estar, se isso não tivesse sucedido. (…) Verificada a ilicitude da deslocação ou da retenção, o tribunal tem de decretar o regresso da criança, salvo se ocorrer alguma das razões excepcionais, previstas no artigo 13.º da Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980, que justifiquem uma decisão de retenção: (a) o não exercício efectivo do direito de guarda quando ocorreu a deslocação ou a retenção ilícita (…) ou o consentimento ou acordo posterior do titular, (b) existência de “risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a riscos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, a ficar numa situação intolerável”; ou oposição da criança, considerando o tribunal que a sua idade e a sua maturidade justificam que se siga a opinião que manifestou, como se viu já. (…) Para que assim não seja, é necessário que se prove o consentimento posterior (al. a)) ou o risco (al. b)), cabendo o ónus da prova a quem se opõe ao regresso (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 1534/11.7TMLSB-A-L1-7). Na falta de qualquer prova, é imperativo determinar o regresso (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 773/08.2TBLNH.L1.7). (…)”[4] Tudo a significar que, apurada que a retenção foi ilícita, verificada, pois, a ilicitude, de acordo com a lei interna do país da residência habitual da criança, os tribunais têm de determinar a entrega imediata da criança, salvo se ocorrer alguma das situações expressamente previstas no art.º 13.º da Convenção, caso em que o pedido de regresso é recusado, sendo que a prova da verificação de uma dessas situações excepcionais incumbe ao progenitor requerido/a quem se opõe ao regresso. Também como se referiu as objecções da criança ao regresso, caso esta tenha atingido a idade e maturidade suficientes, constituem base para a recusa do regresso. Há ainda que considerar que o art.º 14.º da Convenção dispõe que “Para determinar a existência de uma transferência ou retenção ilícitas nos termos do art.º 3.º, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado requerido poderão tomar conhecimento directo do direito e das decisões judiciais ou administrativas formalmente reconhecidas ou não no Estado da residência habitual da criança sem ter de recorrer a procedimentos específicos para prova dessa legislação ou para reconhecimento de decisões estrangeiras que seriam aplicáveis de modo diferente”, ou seja, importará indagar do direito da residência habitual da criança, tanto mais que se não tiver sido proferida qualquer decisão sobre as responsabilidades parentais, o direito de custódia resultará da lei civil do Estado de origem. “A audição da criança que tem discernimento e maturidade para se pronunciar sobre o pedido de regresso é um instrumento relevante de concretização do princípio do seu superior interesse e destina-se a permitir-lhe influenciar a decisão que vier a ser tomada, como se observa, por exemplo, nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 1169/08.1TBCSC-A, L1 ou de 17 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 3473/05.1TBSXL-D.L1. Figura entre os princípios enunciados no artigo 4.º da Lei de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo, sendo portanto aplicável aos processos tutelares cíveis, como é o caso. O artigo 13.º da Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980 frisa mesmo que a oposição da criança, cuja idade e maturidade justifiquem a consideração das suas opiniões, pode fundamentar a decisão de recusa do pedido de regresso. O princípio da audição da criança, segundo as suas capacidades de compreensão e discernimento, nos processos relativos a questões que, como tal, lhe dizem respeito, encontra-se aliás consagrado em diversos instrumentos internacionais vinculativos para o Estado português, dos quais se recordam a Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pelas Nações Unidas em 1989, e a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27 de Janeiro”[5] Debrucemo-nos, agora, sobre o procedimento interno. “O direito interno português não prevê um procedimento específico para a tramitação do pedido de regresso ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, devendo o juiz pugnar por uma gestão processual que lhe permita uma decisão justa, com a maior celeridade e a menor complexidade que o caso justifique. “Estes processos estão classificados como providências tutelares cíveis e, consequentemente, como processos de jurisdição voluntária nos quais o tribunal deve decidir a questão subordinando os interesses envolvidos ao interesse daquele que lhe incumbe tutelar e salvaguardar: o superior interesse da criança (art.º 3.º da Convenção dos Direitos da Criança). Esta prevalência do superior interesse da criança não implica, de modo algum, a desconsideração dos outros interesses, designadamente dos progenitores ou da própria salvaguarda da execução das decisões proferidas, significando antes a subordinação destes interesses a um interesse considerado prevalecente: o superior interesse da criança. Tratando-se de processos de jurisdição voluntária, o tribunal pode conhecer oficiosamente os factos relevantes para a decisão, dispondo de iniciativa probatória e apenas admitindo as provas que considere necessárias (art.º 986.º, n.º 2 do CPC); pode decidir de acordo com critérios de conveniência e de oportunidade, não estando sujeito a critérios de legalidade estrita, embora estejam excluídas daqueles critérios algumas questões de natureza substantiva ou adjetiva (art.º 987.º do mesmo Código); pode modificar as resoluções, em adaptação à evolução da situação de facto ou à consideração de factos supervenientes (art.º 988.º, n.º 1 do citado Código) e não admitir recurso de revista das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e de oportunidade (art.º 988.º, n.º 2 do referido Código). Não obstante a indeterminação da forma processual e da respetiva tramitação, a doutrina e a jurisprudência publicadas permitem definir um conjunto de orientações ou de boas práticas que, no essencial, têm contribuído para uma adequada execução da Convenção da Haia de 1980”[6]. A apreciação dos presentes autos realiza-se, assim, segundo as regras específicas, em parte resultante da Convenção, do direito interno do Estado da residência habitual da criança, mas sempre de acordo com os princípios específicos da jurisdição voluntária, como é próprio de processos organicamente jurisdicionais mas nos quais se pretende que o tribunal prossiga activamente o interesse da criança a que dizem respeito. Também, no tocante aos meios de prova verifica-se uma significativa diferença de grau de intervenção entre a jurisdição contenciosa e a jurisdição voluntária, não constituindo violação do princípio do inquisitório a discordância sobre a forma como o tribunal exerceu os poderes de investigação no contexto de um pedido de regresso a outro Estado de uma criança ilicitamente retida em Portugal.[7] “É certo, ainda, que o princípio da célere restituição da criança subtraída ou retida ilicitamente é então o alicerce sobre o qual assenta a actio possessória in infantem prevista na Convenção da Haia de 1980, desde logo, através da imposição do recurso a procedimentos expeditos ou de urgência que permitam uma decisão no prazo máximo de seis semanas, excepto em caso de circunstâncias (art.ºs 2.º, 7.º, al. c), 10.º, 11.º, §1.º, 12.º, §1.º)”[8] Também é certo que “o Código de Processo Civil de 2013 veio dar um relevo substancialmente maior ao poder/dever do juiz de conformar o processamento e os actos que o integram, enfatizando o princípio da adequação formal (presente em vários preceitos específicos e, em geral, no artigo 547.º do Código de Processo Civil) e conjugando-o com o dever de gestão processual (artigo 6.º), que implica a adopção de mecanismos de simplificação e agilização do processo. Ambos os princípios são aplicáveis à jurisdição voluntária, naturalmente, mas cedem perante regimes definidos por normas imperativas ou princípios gerais que caiba respeitar (nomeadamente, os princípios da igualdade ou do contraditório, cfr. citado n.º 2 do artigo 630.º do Código de Processo Civil)”[9]. “Com efeito, tratando-se de processo de jurisdição voluntária, goza o tribunal de ampla margem de discricionariedade na realização das diligências instrutórias, só sendo admitidas aquelas que o juiz considere necessárias, face às circunstâncias concretas do caso. Tal implica que a definição das diligências probatórias tidas por necessárias e úteis para a solução do litígio assenta – não em critérios normativos, de legalidade estrita – mas antes em “critérios de conveniência e oportunidade”. (…) A denominada jurisdição voluntária, por oposição à jurisdição contenciosa, é sempre exercitada em relação aos interesses dos sujeitos envolvidos ou a situações jurídicas subjectivas cuja tutela é assumida pelo ordenamento jurídico por razões de interesse geral da comunidade (…) Dado que nestes processos há, normalmente, apenas um interesse a regular (…), é natural que haja uma diferente modelação prática de certos princípios e regras processuais. Assim, nestes processos (de jurisdição voluntária) é mais forte a presença do princípio do inquisitório, e muito menos a actuação do princípio do dispositivo, na medida em que o julgador pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, tendo o poder de só admitir as provas que julgue necessárias (art.º 986.º CPC). O juiz, por outro lado, não está sujeito a critérios de decisão fundados na legalidade estrita, podendo pautar-se pela equidade, adotando em cada caso a solução que lhe pareça mais conveniente e oportuna, em suma, mais justa (art.º 987.º). Depois, as decisões adotadas pelo julgador são livremente modificáveis com fundamento em circunstâncias supervenientes (rebus sic stantibus), ao invés da imodificabilidade que caracteriza as sentenças e os acórdãos no âmbito da jurisdição contenciosa, seja pelo próprio juiz, após terem sido proferidas (art.º 613.º CPC), seja após terem transitado em julgado (art.º 619.º e art.º 621.º CPC). Da circunstância de alguns dos processos integrados na denominada jurisdição voluntária evidenciarem um verdadeiro conflito de interesses entre as partes (…), a distinção entre esta atividade jurisdicional e a denominada jurisdição contenciosa tende a esbater-se.”[10] A verdade, porém é que julgar de acordo com critérios de conveniência e oportunidade não significa postergar regras processuais e substantivas basilares, como as que respeitam, desde logo, à natureza do objecto, à legitimidade das partes, ao exercício do contraditório, ao ónus da prova e à condenação em custas[11] Feito este excurso, volvamos ao caso dos autos. Alega a recorrente que, tendo declarado que as responsabilidades parentais se encontravam reguladas, mas que ela não tinha nenhuma cópia desse acordo e enquanto se encontrava a diligenciar pela obtenção desse documento, o que logrou apenas em 27 de Março de 2020, foi surpreendida com a sentença ora sob censura. Só com a notificação da decisão recorrida tomou conhecimento que as autoridades da Ucrânia haviam remetido certidão da sentença do divórcio decretado pelo tribunal da Ucrânia, não tendo o tribunal a quo dado à Requerida o direito ao exercício do contraditório, pois não a notificou quer da junção aos autos daquele documento quer da promoção do MP subsequente à junção do mesmo, em violação do art.º 3.º do CPC, tendo o tribunal a quo extraído, mal, da certidão de divórcio junta pela autoridade central que não existia uma regulação das responsabilidades parentais. Apreciemos: O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito, consagrada no art.º 20.º da CRP e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão, ou seja, o próprio direito ao contraditório – hodiernamente entendido como a possibilidade de as partes influírem em todos os elementos (mormente, questões de direito) que, estando associados ao objecto da causa, têm potencial relevo para a decisão –, embora seja postulado pelo direito a um processo equitativo (cfr. n.º 4 do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa)[12] não beneficia de tutela constitucional expressa. A necessidade da contradição, aflorada, em diversas disposições do CPC, vem genericamente concretizada no art.º 3.º, que, sob a epígrafe “Necessidade do pedido e da contradição”, dispõe: “(…) 3. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. (…)”. Dispõe, por sua vez, o artigo 4.º do mesmo diploma legal: “[o] tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”. O direito ao contraditório, decorrência natural do princípio da igualdade das partes, consagrado no art.º 4.º do CPC, na medida em que garante a igualdade das mesmas ao nível da possibilidade de pronúncia sobre os elementos susceptíveis de influenciar a decisão, “possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta” (Ac. do STJ de 27.10.1998, proc. n.º 98ª817, www.dgsi.pt). Surge como estruturante e basilar no Processo Civil. (…) Nos últimos tempos e nesta sociedade em que o direito de acesso à justiça é um direito fundamental do cidadão, vem-se assistindo a uma crescente tendência de substituição de um processo estritamente individualista, privatístico, por um direito processual mais justo e socialmente mais aberto, sendo notória a mudança das linhas de orientação adjectiva, passando o juiz a ser visto não como um mero garante das regras do jogo honesto mas, antes, empenhado na solução concreta do conflito e mais aberto na consideração das consequências das soluções, tendo sempre o dever de fundamentar a sua decisão e deixando-se às partes o direito de a influenciar. Passou, assim, a ter uma maior amplitude, pois também está em causa assegurar às partes o direito de serem ouvidas como ato prévio a qualquer decisão que venha a ser proferida no processo. Nesse sentido, o n.º 3 do art.º 3.º, para além de estabelecer que o juiz “deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo o princípio do contraditório”, acautela que o juiz não decida “questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”, só assim não sendo, como menciona este próprio preceito, em caso de “manifesta desnecessidade”. Nesta conformidade, para além de se evitarem as decisões-surpresa, passou a conferir-se às partes a possibilidade de intervirem e, com os seus argumentos, influenciarem a decisão (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2.ª ed., pp. 26.27). (…) Agora, o princípio do contraditório significa muito mais do que um jogo de ataque e defesa ao longo do qual o processo se desenvolve, sendo entendido como garantia do direito de influenciar a decisão, mediante a possibilidade de participação efectiva de ambas as partes em todos os elementos em que o litígio se manifesta - o plano da alegação de facto, o plano da prova e o plano do direito - que em qualquer fase do processo surjam como potencialmente relevantes para a decisão, ficando marcado por uma dupla crivagem ou entrelaçamento de perspetivas de grande valia para alcançar a justa decisão do caso concreto. Os factos, as provas de tais factos e os critérios jurídicos aplicáveis aos mesmos são as três bases ou níveis em que assenta a decisão do Tribunal e, por isso, a possibilidade de ambas as partes influírem na decisão, pronunciando-se sobre a intervenção processual da outra, reporta-se a todos eles. O princípio do contraditório, visto como o direito de influenciar a decisão, é uma garantia de participação efectiva das partes no desenrolar do litígio, acompanhando-o em toda a sua longevidade, mediante a possibilidade de as mesmas a influenciarem em todos os planos - quer no âmbito da alegação fáctica, quer na âmbito das provas quer quanto ao direito -, manifestando a sua perspectiva, garantindo-se a ambas condições de absoluta igualdade ou paridade. O objectivo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou de resistência à actuação da parte contrária, para passar a ser a influência positiva e activa na decisão, ou seja, passou a ser visto como o direito de provocar uma decisão favorável: o direito de intervir, participando para, usando os melhores argumentos, tentar convencer o julgador e obter um desfecho favorável, para si. E tem por objeto quer os argumentos factuais, incluindo provas, quer os jurídicos. (…) Porém, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito susceptíveis de virem a integrar a base de decisão. (…) Além disso, impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” (…). A referida disposição legal limitou a imperiosa observância do contraditório aos casos em que a considerou justificada, dispensando-a nos casos de “manifesta desnecessidade” isto é “quando – nomeadamente por se tratar de questões simples e incontroversas – tal audição se configure como verdadeiro “acto inútil” (…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” (José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, op. cit., pp. 10). (…)”[13] O princípio do contraditório,“(…) com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido como uma garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[14]. Com efeito, o princípio do contraditório constitui um princípio basilar na concretização do princípio da igualdade das partes, tendo encontrado ambos expressão na lei ordinária nos art.ºs 3.º n.º 3 e 4.º do CPC, garantindo uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais, que lhes assegura a participação em idênticas condições até ser proferida a decisão. Tem sido este o entendimento prevalente na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[15]. Ora, a omissão do exercício do contraditório constitui uma nulidade processual. As nulidades processuais “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“[16]. Atento o disposto nos art.ºs. 195.º e ss. do CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um acto proibido, omissão de um acto prescrito na lei ou realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido. Há nulidades principais e nulidades secundárias, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos. As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art.ºs 186.º a 194.º e 196.º a 198.º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art.º 195.º do CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art.º 199.º do CPC. A omissão do exercício do contraditório não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art.ºs. 186.º a 194.º e 196.º a 198.º do CPC. Representa, pois, a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art.º 195.º do CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art.º 199.º do CPC. A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa”. No sentido de interpretar o conceito, seguimos os ensinamentos de Alberto dos Reis[17]:“[o]s atos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram atos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela“. Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento. Ora, “[a] não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art.º 199.º. Na verdade, incluindo-se a violação do princípio do contraditório na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do n.º 1, do art.º 195.º, onde se consagra que “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa). É usual afirmar-se que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir. Sendo esta a solução ajustada à generalidade das nulidades processuais, a mesma revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão, omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a omissão da notificação dos documentos requisitados. Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica à decisão recorrida, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida.[18] É que estando a nulidade cometida coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada impugnável e conhecida em sede de recurso[19]. Assim e em conclusão, como concretização prática do princípio constitucional do processo equitativo (art.º 20.º, n.º 4, da CRP) e corolário do princípio da igualdade (art.º 13.º), o direito ao contraditório traduz-se essencialmente na possibilidade concedida a cada uma das partes de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”.[20] O Código de Processo Civil consagra o princípio do contraditório, nos termos tradicionalmente aceites, estipulando no seu art.º 3.º que «o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição» (n.º 1), e circunscrevendo a “casos excepcionais previstos na lei a possibilidade de ser adoptada uma providência contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” (n.º 2). A reforma de 1996/1997, através do aditamento a esse artigo de um novo comando (n.º 3), mantidos no código actualmente vigente, acentuou a relevância concedida à garantia do contraditório no aspecto relativo ao direito de resposta, impondo ao juiz o “dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório”, com a consequência de não lhe ser lícito, “salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Ora, na espécie, o tribunal requisitou “a sentença de divórcio e todas as decisões relativas às responsabilidades parentais” (art.º 436.º do CPC), sendo que a obtenção de documentos requisitados é notificada às partes (art.º 439.º do CPC). Recebida a sentença de divórcio, a Mm.ª juíza a quo, por despacho de 12 de Março p.p., determinou que os autos fossem com vista ao M.P., tendo o M.P., em 18.03.2020, entendido que “Conforme se verifica na sentença de divórcio: - As partes divorciaram-se na Ucrânia. - Na sentença é dito que a criança reside com a mãe. - Todavia, nada estabelece quanto à autorização de viajar e/ou residir no estrangeiro. Atendendo que esta situação, residir no estrangeiro, constitui questão de particular importância, terá que existir acordo e/ou sentença que reconheça essa possibilidade. Uma vez que não existe acordo das partes, nem qualquer sentença que autorize a residência no estrangeiro, consideramos que, efetivamente, a criança se encontra de modo ilícito, a residir em Portugal, pelo que deverá ser julgado procedente o pedido inicial.”, pronunciando-se, assim, sobre o documento junto. Conclusos os autos no dia 19 de Março p.p. foi, em 23.03.2020, proferida a sentença recorrida, que determinou o regresso da criança N…à Ucrânia. Foram considerados relevantes pelo tribunal recorrido, nomeadamente os seguintes factos: - “O casamento dos progenitores foi dissolvido por sentença proferida pelo Tribunal Distrital da cidade Poltava, Ucrânia, transitada em julgado em 07.08.2009 (doc. de fls 25 a 28) e - “À data do divórcio, a criança residia com a mãe (fls.27), sendo que o documento de fls. 25 a 28 é a sentença requisitada. Lê-se na fundamentação de direito da sentença sob censura “(…) não se vislumbra que tenham sido reguladas as responsabilidades parentais (nem que, por conseguinte, à progenitora tenham sido atribuídas tais responsabilidades exclusivo), apenas tendo sido enviada decisão que decretou o divórcio em 2009”. Assim sendo, só pode concluir-se que a sentença de divórcio foi relevante para o desfecho do presente procedimento, donde que fosse necessariamente relevante o exercício do contraditório, em sede probatória, pela requerida, pelo que pela inobservância, pelo Tribunal recorrido, do princípio do contraditório neste âmbito, resultou, assim, cometida a invalidade processual a que alude o art.º 195.º, n.º 1, do CPC, posto que a irregularidade influi, decisivamente até, no exame e decisão da causa. É certo que, não sendo a nulidade de conhecimento oficioso, a mesma carece de reclamação (art.º 200.º, n.º 3 do CPC), pelo que tinha a recorrente o prazo geral de 10 dias para a arguir, sob pena de sanação (cf. artigos 199º, n.º1, e 149º, n.º1, do Código de Processo Civil). Sucede, porém, que é com a notificação da sentença que a recorrente fica a saber que foi preterida a notificação do documento junto para que pudesse exercer o contraditório e que tal omissão relevou na decisão proferida, como vimos. Neste contexto, entende-se que a nulidade processual encontra-se coberta por uma decisão judicial que admite recurso. Na verdade, a recorrente foi confrontada com a decisão final do procedimento, em que é interessada, sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório quanto ao documento junto e sem que antes tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão do acto devido, sendo a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação[21] Ora, a nulidade cometida, reporta-se a prova produzida e valorada – sem observância do princípio do contraditório –, que foi relevante para o estabelecimento dos factos julgados provados e, outrossim, para a decisão recorrida, traduzida no regresso da criança Nikita à Ucrânia. Prevê o art.º 195.º, n.º 2, do CPC que, havendo um acto processual de ser anulado, serão anulados também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente. Assim, fica abalada a própria sentença - onde essa prova foi valorada -, que deverá, por isso, ser anulada, devendo, pois, a requerida ser notificada, como dispõe o art.º 439.º do CPC. Efectivamente, à requerida, omitindo-se o acto de notificação imposto na lei (art.º 439.º do CPC), não lhe foi concedido o prazo processual de impugnação, quanto à prova documental, estabelecido em benefício da parte, para exercício do contraditório, que, a não ser prescindido pelo beneficiário, não pode ser impedido/inviabilizado, mormente tratando-se de documentos relevantes para o desfecho do procedimento, sob pena de violação do princípio do contraditório (art.º 3.º, n.º 3, do CPC), consubstanciador de nulidade processual, com influência relevante no processo[22], no exame e decisão da causa, a invocar, no caso, em sede de recurso da sentença, por estar aquela a coberto desta[23] [24]. Ocorrendo tal violação, verifica-se nulidade processual, que determina também a anulação da sentença, onde essa prova foi valorada, para que o contraditório preterido seja exercido, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento das demais questões enunciadas. Deste modo, julgando-se verificada a nulidade em causa, por violação do contraditório, impõe-se a anulação da sentença a fim de ser dado cumprimento ao contraditório, com a notificação à progenitora do documento junto - como, aliás, ocorreu com o M.P. que sobre ele se pronunciou -, após o que se decidirá, sem prejuízo de se entender ser necessária a realização de qualquer outra diligência ou produção de prova, devendo, ainda, o tribunal recorrido considerar, também, na análise crítica da prova, a decisão judicial junta pela requerida, prova já admitida. Em face do provimento parcial do recurso por via da nulidade e da anulação da sentença, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas. Sem embargo, sempre dirá, que a criança N…, com 12 anos de idade, foi ouvida, tendo manifestado, nomeadamente, pretender permanecer em Portugal, A sentença recorrida seja em termos de facto, seja em termos de direito, é totalmente omissa quanto às declarações e à vontade expressa pelo menor de permanecer em Portugal, objectando ao seu regresso à Ucrânia. Como dissemos, a obrigação de ordenar o regresso de crianças ilicitamente deslocadas ou indevidamente retidas num dos Estados outorgantes da Convenção comporta, porém, como acima referimos, excepções motivadas pelo interesse da criança que constitui a trave mestra da própria Convenção. Ora, ao julgador cabe a apreciação sobre os pressupostos positivos que determinam esse regresso mas também sobre os pressupostos negativos (excepções) que justificam o indeferimento, se invocados, tal como se impõe a pronúncia sobre o desejo expresso de uma criança em permanecer no país para a qual foi deslocada e está retida. É que as objecções da criança ao regresso, caso esta tenha atingido a idade e maturidade suficientes, constituem base para a recusa do regresso. O artigo 13.º da Convenção frisa mesmo que a oposição da criança, cuja idade e maturidade justifiquem a consideração das suas opiniões, pode fundamentar a decisão de recusa do pedido de regresso. “A audição da criança que tem discernimento e maturidade para se pronunciar sobre o pedido de regresso é um instrumento relevante de concretização do princípio do seu superior interesse e destina-se a permitir-lhe influenciar a decisão que vier a ser tomada, como se observa, por exemplo, nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 1169/08.1TBCSC-A, L1 ou de 17 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 3473/05.1TBSXL-D.L1”[25]. É que a audição da criança que tenha discernimento e maturidade para se pronunciar sobre o pedido de regresso, enquanto instrumento relevante de concretização do seu superior interesse, deverá ser tida em conta. A decisão de ordenar o regresso da criança ilicitamente transferida para um dos Estados Contratantes ou nele retida indevidamente exige que se averigue da conformidade entre o regresso e o interesse da criança ou mesmo se o regresso é da sua vontade, desde que a sua idade e grau de maturidade justifiquem que a sua opinião releve sobre o assunto (art.º 13.º da Convenção). É certo que não basta uma criança exprimir que deseja permanecer no Estado contratante para o qual foi ilicitamente deslocada ou retida. Necessário é que tal expressão demonstre um grau de maturidade e que essa permanência, rectius, a decisão de não regresso assente no superior interesse da criança. Mas se a letra da norma não aponta para a obrigatoriedade de uma decisão de não regresso, quando o menor verbaliza não pretender regressar, a verdade é que o julgador, perante essa verbalização da criança, sobre ela, deve, obrigatoriamente, se pronunciar seja para, com base nela, proferir decisão de não regresso, seja por entender que essa verbalização, de acordo com os critérios previstos na Convenção, não permite a prolação da decisão de não regresso. Destarte, também por esta via, a sentença recorrida seria passível de ser anulada. Acresce, ainda, que a sentença recorrida é totalmente omissa quanto à fundamentação da decisão de facto da sentença sob censura, limitando-se a referir “Dos elementos constantes dos autos, resultaram apurados os seguintes factos”. Também na fundamentação de direito não se cita um único preceito normativo da lei ucraniana, lei da residência habitual da criança, não constando, assim, da sentença recorrida, fundamentação, que permita concluir pela violação do direito de custódia atribuído pela lei do Estado onde a criança tinha a sua residência habitual ou que o direito de custódia tenha estado a ser exercido de forma efectiva, individual ou em conjunto, no momento da deslocação ou da retenção, ou devesse estar a ser exercido, se não se tivesse verificado a deslocação ou retenção. O dever de fundamentação das decisões judiciais está previsto no art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa, que impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, e encontra consagração na lei ordinária, por via da expressa previsão do n.º 1 do art.º 154.º do CPC, de acordo com o qual “[a]s decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, e, bem assim, no art.º 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, como uma componente essencial da garantia a um processo equitativo (cf. art.º 20.º, n.º 4, da CRP). A fundamentação das decisões, quer de facto, quer de direito, proferidas pelos tribunais estará viciada caso seja descurado o dever de especificar os fundamentos decisivos para a determinação da sua convicção, já que a opacidade nessa determinação sempre colocaria em causa as funções que estão ínsitas na motivação da decisão, ou seja, permitir às partes o eventual recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação em causa e, simultaneamente, permitir o controlo dessa decisão, colocando o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos seguros, um juízo concordante ou divergente. Daí que, na elaboração da sentença e na parte respeitante à fundamentação, se prescreva no n.º 3 do ar.º 607.º do CPC, que “[d]eve o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”, e se adite no n.º 4 que, “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (…)”, exigindo-se, pois, que a fundamentação contemple tanto o plano de facto como a vertente jurídica da decisão. Como é evidente, no caso dos autos, foi totalmente omitido o dever de motivação da matéria de facto, imposto ao julgador no preceito. Naturalmente que esta exigência legal da concretização do dever de fundamentação tem que ser adequada ao caso concreto em análise. Mas, pelo facto de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, estando em causa matéria controvertida, e atendendo à importância do acto sindicado, e as consequências que tem na esfera jurídica da criança, do requerente e da requerida, não estava o julgador dispensado de fundamentar a decisão. Aliás, por referência às questões plasmadas nas conclusões, o recurso apenas poderá prescindir de as apreciar quando a sua decisão esteja logicamente prejudicada pela solução dada a outras questões, e apenas poderá ir além delas na medida em que a lei lhe permita, ou imponha, o conhecimento oficioso de qualquer outra questão, mesmo que não suscitada nessas conclusões. Tendo presente esta alusão a questões passíveis de apreciação oficiosa na instância recursória, tal verifica-se, quando se não mostre possível o exercício pela 2.ª instância de poderes de cognição substitutivos dos da 1.ª instância, a formulação, em sede de recurso, de um juízo de rescisão ou cassatório, ou seja, de um juízo reportado à própria decisão recorrida, e não de um juízo reportado à causa julgada pela decisão recorrida. É este o regime decorrente do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, compreendido à luz da articulação entre os poderes substitutórios – que são os predominantes no nosso sistema de recursos – e os poderes cassatórios dos tribunais de recurso. [26] Destarte, os vícios apontados sempre poderiam impor oficiosamente a anulação da sentença recorrida (al. d) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC), determinando-se a respectiva prolação com cumprimento, na parte aplicável, do figurino imposto pelo artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC. IV. Dispositivo Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação em anular a sentença recorrida, devendo a requerida ser notificada da junção da sentença requisitada, a fim de ser cumprido o contraditório, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas. Sem custas. Registe. Notifique. Évora, 4 de Junho de 2020 Florbela Moreira Lança (Relatora) Ana Margarida Leite (1.ª Adjunta) Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta) _______________________________________________ [1] Maria dos Prazeres Beleza, Revista Julgar, n.º 24, 2014, pp. 67 [2] Cita-se texto publicado da autoria do Juiz de Direito António José Fialho, acessível em https://csm.org.pt/rijh/execucao-das-decisoes-de-regresso-proferidas-no-ambito-da-convencao-de-haia-de-1980/ [3] Ac. STJ de 05.11.2009, proferido no proc. n.º 1735/06.0TMPRT, acessível em www.dgsj.pt [4] Maria dos Prazeres Beleza, op. e loc. cit. [5] Maria dos Prazeres Beleza, op. cit, pp. 81-82 [6] António José Fialho, 125 anos da CHHC, pp. 19 [7] Neste sentido vide, entre outros, Ac. do STJ de 05.11.2009 e da RL de 20.12.2017, proferidos, respectivamente nos processos n.ºs 1735/06.OTMPRT.S1 e 1133/13.9TBTVD-D.L1-2, acessíveis em www.dgsi.pt [8] António José Fialho, op. cit, pp. 16 [9] Maria dos Prazeres Beleza, op. cit., pp. 75 [10] Ac. da RP de 18.02.2019, proferido no proc. n.º 2914/17.0T8MTS.P1, acessível em www.dgsi.pt [11] Cfr. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, O processo especial de tutela da personalidade no Código de Processo Civil de 2013, pp. 68 [12] Assim RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra, pp. 17 [13] Ac. da RG de 19.04.2018, proferido no proc. n.º 533/04.0TMBRG-K.G1, acessível em www.dgsi.pt [14] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado (1999), I, pp. 8 [15] Vide, entre outros e além dos arestos já citados, os Acs. do STJ de 11.02.2015, proferido no proc. n.º 877/12.7TVLSB.L1-A.S1 e acessível em www.dgsi.pt e no proc. n.º 201/05.5TBFZZ.-C.C1.S1 e sumariado em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Mensais/civel2015_02.pdf, de 17.01.2013, proferido no proc. n.º 1769/06.4TVLSB.L1.S1 e sumariado em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/sumarios-civel-2013.pdf, de 12.07.2011, proferido no proc. n.º 620/1999.C1.S1 e sumariado em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/sumarios-civel-2011.pdf e de 11.03.2010, proferido no processo n.º 1860/07.0TVLSB.S1 e acessível em www.dgsi.pt. [16] Lopes do Rego, Código de Processo Civil, 1999, pp. 25 [17] José Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, II, pp. 486 [18] Assim, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, em comentário ao Ac. da RE, de 10.04.2014, proferido no proc. n.º 500/12.0TBABF-K.E1, acessível em www.dgsi.pt, observando que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa «nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão» (em blogippc.blogspot.pt, escrito datado de 10-5-14), citado no Ac. do STJ de 23.06.2016, proferido no proc. n.º 1937/15.8T8BCL.S1, acessível em www.dgsi.pt. [19] Neste sentido, vide, entre outros, Acs. do STJ. de 13.01.2005, proferido no proc. n.º 04B4031, da RP de 18.06.2007, proferido no proc. n.º. 0733086 e Ac. da RL de 09.10.2014, proferido no proc. n.º 2164/12.1TVLSB.L1-2, acessível em www.dgsi.pt [20] Entre muitos outros, vide o Acórdão n.º 1193/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt [21] Assim, ABRANTES GERALDES, Recursos no NCPC, 3ª ed., pp. 25, e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., pp. 52, e, entre outros, os Acs. da RG de 11.07.2019 (proc. n.º 4794/18.9T8OER.L1-7), onde se concluiu que “[a] arguição da nulidade, nos termos dos artigos 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1 do Código de Processo Civil, só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso” e da RE de 22.11.2018 (proc. n.º 60337/17.7YIPRT.E1), onde se consignou que: «V- Sendo certo que o incumprimento pelo juiz da determinação dos poderes instrutórios que lhe estão cometidos, pode em algumas situações influir na decisão da causa e consequentemente ser geradora de uma nulidade processual, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, a arguir pelo interessado nos termos dos artigos 197.º e 199.º, todos do CPC, temos vindo a considerar que quando ocorre uma nulidade processual que se encontra coberta por uma decisão judicial que admite recurso, aquela é consumida pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, sendo tempestiva a arguição da eventual nulidade cometida nas alegações de recurso» [22] Ac. do STJ de 23.06.2016, no processo 1937/15.8T8BCL.S1; Também no mesmo sentido Ac. do STJ de 17.03.2016, no proc. 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e Miguel Teixeira de Sousa (Jurisprudência 250) in https://blogippc.blogspot.pt/ [23] Ac. da RL de 05.05.2015, proferido no proc. n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7 [24] No mesmo sentido, entre outros, Ac. da RL de 09.10.2014, proc. n.º 2164/12.1TVLSB.L1-2 e Ac. RE de 10.05.2018 Proc. n.º 2239/15.5T8ENT-A.E1 [25] Maria dos Prazeres Beleza, op. cit, pp. 81-82 [26] Assim, Ac. da RC de 02.12.2008, proferido no proc. n.º 162/06.3TBVLF.C1, acessível em www.dgsi.pt |