Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
255/13.0TBCUB-B.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: RELATÓRIO PERICIAL
PEDIDO DE RECTIFICAÇÃO OU DE ACLARAÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Deve, por princípio, admitir-se um segundo pedido de esclarecimentos dirigido aos peritos sobre a sua perícia, tanto mais razoável quanto mais precoce for o estádio de recolha da prova: a rejeição da obtenção de eventuais elementos probatórios complementares numa fase ainda prematura da produção de prova, e em que é ainda mais difícil avaliar da sua pertinência, não será prudente.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 255/13.0TBCUB-B.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Na presente acção ordinária, actualmente a correr termos na Secção Cível da Instância Central de Beja da Comarca de Beja (depois de iniciada no Tribunal da Comarca de Cuba), instaurada por (…) e mulher, (…), contra «(…) e Irmãos, Lda.» e (…), foi pelos AA. invocado terem os RR. assumido para consigo obrigações contratuais no sentido da construção de uma casa e de acompanhamento técnico dessa mesma obra, respectivamente, e alegado o incumprimento de tais obrigações, pedindo o reconhecimento da resolução do contrato de empreitada celebrado e a condenação de ambos no pagamento de determinadas quantias, a título indemnizatório e compensatório.

Contestada a acção pelos RR., e na sequência da normal tramitação processual, teve lugar o saneamento do processo e a produção de prova através da realização de perícia, conforme pedido por ambas as partes (cfr. despacho determinativo de fls. 305), após o que, e perante o respectivo relatório pericial (cfr. fls. 309-316), foi formulado pelos AA. pedido de prestação de esclarecimentos, por parte dos peritos, ao abrigo do artº 485º, nº 2, do NCPC (cfr. fls. 319-322), a que estes deram resposta através de relatório complementar (cfr. fls. 324-329).

Por considerarem essa resposta insuficientemente esclarecedora, entenderam os AA. formular novo pedido de esclarecimentos (cfr. requerimento de fls. 331-336), sobre o qual veio a recair despacho do tribunal de 1ª instância (a fls. 338-339), com o seguinte teor:

«Do novo pedido de esclarecimentos por parte do A.:
Considera novamente o A. que as respostas dadas pelos Srs. Peritos não são esclarecedoras.
Da análise do relatório apresentado verifica-se que todos os peritos responderam ao solicitado, esclarecendo as questões que haviam sido colocadas. Questão diversa é a discordância do A. relativamente às mesmas.
Assim, entendo não haver lugar à apresentação do novo relatório, sendo que qualquer dúvida que ainda subsista será esclarecida pelos Srs. Peritos em sede de audiência de julgamento, para a qual serão notificados para comparecer – cfr. art. 486º, nº 1, do CPC.
Notifique

É desta decisão de indeferimento do pedido de segunda prestação de esclarecimentos pelos peritos, subsequente a perícia e respectivo relatório pericial, que vem interposto, pelos AA., o presente recurso de apelação (cfr. fls. 341-364), o qual subiu em separado, e cujas alegações culminam com as seguintes conclusões (com rectificação da numeração dada, por manifesto lapso de escrita, pelos recorrentes a essas conclusões):

«1. O presente Recurso tem por objeto a discordância com a decisão da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, de 23/11/2016, que indeferiu o pedido de esclarecimentos relativos a factos que os Senhores Peritos não prestaram.

2. Consequentemente, o presente Recurso restringe-se apenas às questões relacionadas quanto ao pedido de perícia e à resposta que foi dada, a qual os Recorrentes entendem não estar completa e concluída e que, por isso mesmo, o Douto Tribunal a quo deveria ter notificado os Senhores Peritos para que a concluíssem.

3. Dão-se por integralmente reproduzidos os objectos de perícia apresentados pelos Autores e pela Ré, de 18/02/2014, com Ref.ª 15979098 e de 17/02/2014, com a Ref.ª 15962990, respectivamente.

4. Os Senhores Peritos vieram responder aos quesitos em 09/12/2015, com a Ref.a 531036, a qual se dá por reproduzida.

5. Acontece que, na perspectiva dos Autores, a resposta apresentada não estava completa, porque não tinha sido dada relativamente a uns factos, e, quanto a outros, a resposta não era esclarecedora para efeitos daquilo que se pretende de uma peritagem que se destina a demonstrar – no interesse de ambas as partes – eventual má execução da obra, divergência com o projecto inicial e telas finais e quantificação de prejuízos.

6. A reclamação dos Autores é de 12/01/2016, com a Ref.ª 21541022, a qual aqui se dá por reproduzida.

7. Em síntese, os quesitos da discordância foram os seguintes:

A) Qual é a área bruta de construção do prédio descrito nos autos?

B) Existiu uma redução de área bruta de construção em relação ao projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal de Alvito?

C) Foi tecnicamente aconselhável proceder à elevação da cota de soleira por forma a permitir a instalação de uma rede de drenagem das águas pluviais do pátio interior do prédio para impedir a hipótese de entrada de água na habitação?

D) A elevação da cota de soleira implica algum acréscimo de custos para o empreiteiro?

E) No caso concreto, e em caso afirmativo, qual a estimativa de custos?

F) A instalação na garagem de uma rampa exterior de acesso, com aproximadamente +/- 30 cm solucionaria a diferença existente?

G) As paredes externas do prédio têm 12 cm de espessura?

K) Existiu redução de área útil proveniente do não desbaste das paredes meeiras de taipa?

L) Em caso afirmativo, qual a redução?

M) Caso exista redução, o valor de mercado do imóvel sofrerá alguma alteração significativa?

N) A alteração na cobertura determinou uma ampliação da área útil do sótão?

Q) É ou não prática comum, no ramo da construção civil, que as alterações de escassa relevância construtiva e urbanística ao projecto inicial que se introduzem [ao longo da obra sejam efectuadas nas telas finais]?

R) A instalação dos painéis solares já constava no projeto de comportamento térmico-RCCTE – Regulamento de características e comportamento térmico dos edifícios?

8. Na sequência da reclamação apresentada pelos Autores, o Douto Tribunal a quo ordenou que os Senhores Peritos se pronunciassem, vindo estes a solicitar prazo de 20 dias para o fazer.

9. Em 01/06/2016, os Senhores Peritos juntaram o Relatório com as respostas às questões solicitadas e o Recorrente foi notificado em 09/06/2016, através da Ref.ª 27979486, que se dá por integralmente reproduzido.

10. Acontece que este Relatório não veio esclarecer nenhum dos Pontos solicitados, verificando-se, aliás, má vontade em responder e melindrar o ora signatário.

11. Na sequência, o Recorrente viu-se na necessidade de pedir os esclarecimentos que não tinham sido efectuados, o que fez através de Requerimento de 20/06/2016, com a Ref.ª 22971627, que se dá por reproduzido.

12. Em síntese, as questões que foram colocadas eram referentes aos quesitos seguintes:

A) Qual é a área bruta de construção do prédio descrito nos autos?

B) Existiu uma redução de área bruta de construção em relação ao projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal de Alvito?

C) Foi tecnicamente aconselhável proceder à elevação da cota de soleira por forma a permitir a instalação de uma rede de drenagem das águas pluviais do pátio interior do prédio para impedir a hipótese de entrada de água na habitação?

D) A elevação da cota de soleira implica algum acréscimo de custos para o empreiteiro?

E) No caso concreto, e em caso afirmativo, qual a estimativa de custos?

F) A instalação na garagem de uma rampa exterior de acesso, com aproximadamente +/- 30 cm solucionaria a diferença existente?

G) As paredes externas do prédio têm 12 cm de espessura?

K) Existiu redução de área útil proveniente do não desbaste das paredes meeiras de taipa?

L) Em caso afirmativo, qual a redução?

R) A instalação dos painéis solares já constava no projecto de comportamento térmico-RCCTE – Regulamento de características e comportamento térmico dos edifícios?

13. Ou seja, a generalidade das dúvidas persistiram, e por isso os Autores requereram os devidos esclarecimentos, tanto mais que as respostas pretendidas só poderiam ser dadas se os Senhores Peritos procedessem a uma análise objectiva, designadamente medindo o interior da habitação, para aferir a redução das áreas brutas e úteis, assim como a espessura das paredes e confrontá-las com os projectos, quer iniciais quer relativamente às telas finais.

14. Porém, o Douto Tribunal a quo decidiu por Despacho com Referência 28392457, com o seguinte teor:

"Considera novamente o A. que as respostas dadas pelos Srs. Peritos não são esclarecedoras.

Da análise do relatório apresentado verifica-se que todos os peritos responderam ao solicitado, esclarecendo as questões que haviam sido colocadas. Questão diversa é a discordância do A. relativamente às mesmas.

Assim, entendo não haver lugar à apresentação do novo relatório, sendo que qualquer dúvida que ainda subsista será esclarecida pelos Srs. Peritos em sede de audiência de julgamento, para a qual serão notificados para comparecer – cfr. art. 486°, n° 1, do CPC.

Notifique."

15. Decisão relativamente à qual os Autores não se conformam, como se passa a explanar.

16. Sendo a peritagem colegial paga, quem a requer está a pagar um serviço que tem de ser devidamente prestado.

17. A Meritíssima Juíza entendeu que a reclamação dos Autores não passava de uma discordância com a resposta.

18. Porém e com todo o respeito, a Reclamação nada tem a ver com divergência de opinião, tratando-se de questões objectivas.

19. Ou seja, objectivamente os Senhores Peritos não cumpriram o compromisso de honra, porque não responderam:

a. Quanto à estimativa de custos sobre diversas operações (elevação cotas soleiras; com os trabalhos para verificação da espessura das paredes; etc);

b. Relativamente às medidas reais solicitadas, e não como foi feito pelos Senhores Peritos que se basearam a reproduzir as medidas que constam das plantas;

c. Quanto à medição das paredes face aos pedidos do Autor que admite que a espessura do tijolo utilizado esteja em desconformidade com o do projecto, o que tem como consequência a ocorrência de infiltrações;

d. Quanto à área útil decorrente do desbaste das paredes meeiras e respectiva redução (basta um simples calculo aritmético que não foi demonstrado);

e. Quanto à resposta concreta sobre os painéis solares, os quais não faziam parte do projecto inicial, tendo sido posteriormente aditados.

[20]. Isto são questões objectivas e para as quais os Peritos tinham obrigação de responder com objectividade e imparcialidade.

[21]. Não se trata de uma questão de opinião ou discordância. Quando o Sr. Perito (…) afirma num determinado momento que para saber a espessura das paredes é preciso medi-las e não o fez, encontrando-se por isso justificada a discordância entre a informação do Relatório e aquilo que se pretende saber.

[22]. Veja-se a resposta que é dada na alínea a) do segundo Relatório. Em determinado momento, os senhores peritos alegam o seguinte:

"(...) É difícil nesta fase, a não ser que furemos ou façamos um "raio-X" a todas as paredes meeiras (o Autor poderá optar e suportar esses custos) para medir as suas espessuras, aferir a área bruta de construção do imóvel. (...)"

[23]. Face a esta posição, é obviamente ao Autor que cabe decidir se pretende ou não furar as paredes ou fazer raio x para aferir se foi construído o que foi contratado.

[24]. Cabendo igualmente ao Autor decidir se tal trabalho deverá ser realizado através de segunda perícia, a efectuar por outros peritos, face à indisponibilidade manifestada para esclarecer com rigor.

[25]. Ora, a prestação dos peritos é muito importante para ajudar o Julgador a criar uma mais adequada noção dos factos.

[26]. Quando os peritos respondem de forma abstrata e incomodada como resulta das declarações do Sr. Perito (…), entendemos que a única decisão que o Tribunal deveria tomar seria a de notificar os Peritos para responderem de forma objectiva de modo a afastar as dúvidas existentes.

[27]. Aliás, a grande virtualidade da resposta dos Peritos, é evitar que se tenha de produzir prova com testemunhas sobre questões técnicas relativamente às quais estas não têm formação e o seu depoimento acaba por ter o valor de "mera opinião".

[28]. Por outro lado, o contributo dos Senhores Peritos permite eliminar um conjunto de factos a provar, tornando os julgamentos mais céleres e a prova mais confiável.

[29]. As questões que estão por responder não se resolvem com a presença dos Senhores Peritos em Audiência de Julgamento porque o que se pretende saber são factos que têm de ser verificados no local. São questões objectivas que necessitam de medições locais e testes.

[30]. Aspecto que é relevante, dir-se-á mesmo, essencial, uma vez que não podemos ignorar que a presente acção foi proposta não só com o fundamento de que o Empreiteiro teria abandonado a obra antes da sua conclusão, mas também por ter realizado trabalhos mal executados, uns contra o projecto e outros ilegais, os quais, uns e outros, necessitam de esclarecimento técnico adequado.

[31]. Por isso mesmo os Autores requereram a perícia colegial para que todas essas questões fossem resolvidas.

[32]. E só após a totalidade das questões serem respondidas é que os Autores poderão ponderar requerer a segunda perícia a que alude os artigos 487º e seguintes do CPC, que aqui se justifica plenamente, porque os Autores têm vindo a verificar que os Senhores Peritos não têm sido diligentes e rigorosos nas apreciações que fazem e têm pecado pela omissão de resposta às questões relacionadas com os custos das reparações, essenciais para o apuramento dos valores indemnizatórios.

[33]. Os Autores sabem a razão pela qual pretendem que as paredes sejam medidas. É óbvio que sabem que os tijolos utilizados não são os regulamentados.

[34]. Face ao exposto entendemos, salvo melhor opinião, que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo não deveria encerrar a fase das peritagens quando muitas questões estão por ser respondidas.

[35]. E não é uma questão de discordância com a opinião dos Senhores Peritos que está em discussão.

[36]. Aqui trata-se de respostas que tinham obrigatoriamente de ser dadas e não foram, desse o trabalho que desse, verificando-se mesmo nalguns aspectos que a posição dos Senhores Peritos não era unânime, o que, desde logo, seria fundamento para o Douto Tribunal requerer, oficiosamente, a prestação de esclarecimentos ou aditamentos, tal como decorre do disposto no artigo 485º nº 4 do CPC.

[37]. Face ao exposto, entendemos que o Douto Tribunal a quo, ao decidir por indeferir o pedido de realização dos esclarecimentos requeridos e adequados e aceitando como boas as conclusões apresentadas pelos senhores Peritos, violou o disposto no nº 4 do artigo 152º do C.P.C..

[38]. Aliás, ao recusar o requerido, o Tribunal a quo errou e violou a Constituição e a Lei, designadamente, os princípios da legalidade, da colaboração e da descoberta da verdade material, consignado nos normativos que se indicam:

- Artigos 3º e 202º nº 2 da Constituição da República Portuguesa;

- Artigos 6º nº 1, 7º nº 1 e 2, 8º, 152º nº 1 e 4, 411º, 417º, 469º nº 1, 476º, 479º, 481º, 485º e 487º, todos do Código Processo Civil.»


Não houve contra-alegações.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do recorrente resulta que a matéria a decidir se resume, muito singelamente – e apesar da prolixidade das conclusões das alegações de recurso –, a apreciar do acerto da decisão constante do despacho recorrido (a fls. 338-339), no sentido do indeferimento de segundo pedido de esclarecimentos sobre a prova pericial produzida.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:

Estando assentes – tanto quanto resulta dos presentes autos de recurso em separado – os elementos descritos no relatório, cabe, com base neles, aferir da justeza da decisão recorrida.

Comece-se por situar a questão nos seus precisos parâmetros.

Desde logo, está em causa uma diligência de prova que tem o seu assento legal nos actuais artos 467º e seguintes do NCPC, e que, em regra, culmina com um relatório pericial, previsto no artº 484º desse diploma, o qual pode ser objecto de reclamações, que, se atendidas pelo tribunal, determinam a necessidade de completamento, esclarecimento ou melhor fundamentação do relatório, por parte do perito ou peritos, conforme previsto no artº 485º do mesmo Código (que apresenta redacção idêntica ao artº 587º do pretérito CPC).

Do regime legal enunciado não consta a possibilidade de um segundo pedido de esclarecimentos – o que, de um ponto de vista meramente formal, pareceria impedir uma tal pretensão. Ou seja, poderia sustentar-se a impossibilidade de formulação de uma segunda reclamação contra o relatório pericial, com fundamento numa estrita interpretação literal do sistema legal. Nessa leitura, que diríamos legalista ou formalista, pareceria haver fundamento para o indeferimento que, no caso concreto, foi determinado pela decisão recorrida, em relação a uma segunda reclamação.

Contudo, não foi esse o fundamento invocado pelo tribunal a quo para o indeferimento decretado. No despacho recorrido não se alude a uma impossibilidade de segunda reclamação, mas antes a uma desnecessidade dos esclarecimentos pretendidos – certamente por se entender verificada a suficiência dos esclarecimentos já prestados. Note-se que se declara que os peritos «responderam ao solicitado» e «esclarece[ram] as questões (…) colocadas», ao mesmo tempo que se convoca os peritos para o julgamento, a fim de esclarecerem dúvidas – o que reflecte esse juízo de suficiência, bem como o entendimento de que não haverá necessidade de averiguações periciais complementares (já que a sua audição em julgamento pressupõe já estarem realizadas todas as diligências necessárias à perícia).

Colocado o cerne do indeferimento em apreço no domínio da suficiência da prova, isso remete-nos para a indispensabilidade da formulação de um juízo de utilidade ou necessidade dos esclarecimentos pretendidos para a descoberta da verdade material. É sabido que este é um dos valores essenciais do nosso sistema legal, ao serviço do qual se estrutura também o processo civil (como o demonstram as referências à «justa composição do litígio» e à «descoberta da verdade», que afloram em diversas normas, v.g. artos 6º, nº 1, 411º e 417º, nº 1, do NCPC) – pelo que àquela visão formalista ou legalista a que se aludiu supra poderá, mais propriamente deverá, sobrepor-se a exigência da busca da realização daquele valor de superior relevância do sistema normativo.

Ora, a elaboração de um tal juízo de utilidade ou necessidade de prova quando, como no caso presente, ainda nos encontramos numa fase intermédia da causa, sem ter ainda havido qualquer produção de prova em audiência de julgamento, imporá uma maior prudência em relação à rejeição da obtenção de eventuais elementos probatórios complementares – ou, dito de outro modo, a mera probabilidade de relevância de tais elementos exigirá, cautelarmente, uma maior abertura à pretensão da sua obtenção, ainda que sem prejuízo de sempre se dever prevenir situações de manifesto abuso.

Esta perspectiva das coisas era, aliás, já propugnada por ALBERTO DOS REIS. Discorria assim o autor: «Pode dar-se o caso de as segundas respostas não serem satisfatórias (…); em tal caso não pode negar-se às partes o direito de insistir na sua reclamação e ao juiz o poder de ordenar que os peritos dêem satisfação cabal aos reparos feitos» (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 256) – ainda que logo alertando para a necessidade de obstar a abusos no uso da faculdade de reclamação contra o relatório pericial. E na mesma linha se posicionaram LEBRE DE FREITAS et alii, ainda com referência àquele autor, ao admitirem que «não está excluído que (…) os peritos sejam confrontados com a insistência das partes para que seja totalmente satisfeita a sua reclamação» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 551).

Com a coadjuvação destes elementos doutrinários, não podemos deixar de propender para a admissibilidade, por princípio, de um segundo pedido de esclarecimentos dirigido aos peritos, tanto mais razoável quanto mais precoce for o estádio de recolha da prova: conforme se adiantou supra, a rejeição da obtenção de eventuais elementos probatórios complementares numa fase ainda prematura da produção de prova, e em que é ainda mais difícil avaliar da sua pertinência para a formação da decisão do tribunal sobre a matéria de facto, não será prudente – antes pelo contrário, tudo aconselha, nesse contexto, a uma maior abertura à pretensão de obtenção de tais elementos, ainda que mais tarde o tribunal, já na posse de todo o material probatório, possa constatar a menor relevância dos elementos assim obtidos.

Sintetizando, podemos dizer que, em tese geral, o indeferimento do pedido de segunda prestação de esclarecimentos só deve ocorrer quando essa diligência se revele manifestamente desnecessária e inútil para a descoberta da verdade. Ora, isto significa que, em cada caso, se imporá a necessidade de um juízo de prognose no sentido de uma averiguação perfunctória sobre a pertinência dos eventuais elementos a obter para a formação da convicção do julgador

Procedendo à aplicação deste critério ao caso em apreço, diremos o seguinte: uma vez que ainda se está numa fase prematura da produção de prova, e feita a ponderação do conjunto das questões em relação às quais os apelantes manifestam dúvidas concernentes às respostas dos peritos (constantes do primeiro relatório e do relatório complementar), não se encontra motivo bastante para considerar as mesmas impertinentes ou abusivas – pelo que se nos afigura inexistir fundamento bastante para a rejeição liminar da pretensão de obtenção de novos esclarecimentos. Acresce que algumas das questões parecem configurar a necessidade de um exame adicional do objecto da perícia, pelo que a solução de comparência na audiência final (determinada pelo tribunal a quo e prevista no artº 486º do NCPC) não satisfaria suficientemente aquela pretensão.

Cumprirá, assim, deferir a essa pretensão e permitir nova pronúncia dos peritos sobre a matéria incluída no pedido de esclarecimentos formulado pelos AA.. Em todo o caso, não se deixará de sublinhar que se nos afigura já excessivo o raciocínio de que o pagamento da perícia pelas partes legitimaria a exigência da realização de toda e qualquer diligência de recolha probatória só porque as partes entendem que a mesma é necessária e possível – o que obviamente não pode abranger a realização de diligência que seja tecnicamente absurda ou impraticável. Seguramente é de entender que os peritos continuam a dispor de toda a autonomia técnica no exercício do seu múnus, realizando somente as diligências que forem exequíveis e prestando apenas esclarecimentos quanto a questões a que for objectiva e tecnicamente possível dar resposta.

Conclui-se, assim, que assiste razão aos AA. recorrentes, quanto à possibilidade de formulação de segundo pedido de obtenção de esclarecimentos em relação à perícia realizada nos autos, e por parte dos respectivos peritos, que os devem prestar, mediante a prévia realização, se necessário, das diligências complementares de recolha probatória que se revelem necessárias e exequíveis, em ordem a dar resposta, na medida do que for tecnicamente possível, às questões colocadas pelos AA. no seu requerimento. E, consequentemente, deve proceder a presente apelação.

Impõe-se, assim, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outro despacho que ordene o prosseguimento dos autos, mediante a tramitação processualmente devida – o que in casu implica o deferimento do requerimento dos AA. de fls. 331-336 e nova aplicação do regime previsto no artº 485º, nº 3, do NCPC.

Em suma: pelas razões aduzidas, merece provimento o presente recurso, devendo ser revogado o despacho sob recurso (de fls. 338-339), determinativo do indeferimento de segundo pedido de obtenção de esclarecimentos em relação à perícia realizada nos autos (conforme requerimento dos AA. de fls. 331-336), o qual será substituído por outro despacho que defira esse requerimento e dê novo cumprimento ao regime previsto no artº 485º, nº 3, do NCPC, nos termos processualmente adequados.

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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente apelação, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro despacho que dê seguimento aos pertinentes trâmites processuais, nos termos acima descritos.

Sem custas, por os RR. apelados a elas não terem dado causa (artº 527º, nos 1 e 2, a contrario, do NCPC).

Évora, 25 / 05 / 2017

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)