Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
145/17.8GESLV.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: CRIME DE AMEAÇAS
DOLO
Data do Acordão: 06/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - O crime de ameaça visa a tutela penal da liberdade de decisão e de ação do destinatário, ou seja, da pessoa ameaçada, pelo que o conhecimento da ameaça por parte desta é elemento integrante do tipo objetivo do ilícito de ameaça: “Quem ameaçar outra pessoa

II - O dolo essencial à perpetração do crime de ameaça, que tem de abranger todos os elementos do tipo objetivo, depende do conhecimentoe vontadepor parte do arguido que as palavras ameaçadoras proferidas cheguem ao conhecimento do visado com essas mesmas palavras, sob qualquer das formas previstas no art. 14º do C. Penal).

III - Não constando da sentença recorrida todos os elementos subjetivos do ilícito típico doloso de Ameaça p. e p. pelo artigo 153º do C. Penal e não sendo possível o seu apuramento em audiência por força da Jurisprudência fixada no acórdão do STJ nº 1/2015, impõe-se a absolvição do arguido.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Silves (Juiz 2), foi julgado EE, solteiro, desempregado, nascido em 14-01-1977 a quem o MP imputara a prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, al. a), ambos do Código Penal.

2. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento, o tribunal singular decidiu condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º1 e 155.º n.º1 alínea a) do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à razão diária de €6,00 (seis euros), perfazendo um total €480 (quatrocentos e oitenta euros).

3. – Inconformado, o arguido vem recorrer daquela decisão extraindo da sua motivação as seguintes conclusões que se transcrevem:

«CONCLUSÕES:
I- O presente recurso é interposto da douta sentença que condenou o arguido EE “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º1 e 155.º n.º1 alínea a) do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à razão diária de €6,00 (seis euros), perfazendo um total €480 (quatrocentos e oitenta euros).”.

II- O Requerente não concorda nem se conforma o Recorrente com a mesma.

III- A Douta Sentença considerou provados os seguintes factos, com relevância para a decisão respeitante ao ora recorrente:
(…)
2. Nesse instante o ora Arguido, através do seu aparelho de telemóvel com número não concretamente apurado, efectuou uma chamada telefónica para o aparelho de telemóvel da referida JF, com o nº 966----.

3. No decurso dessa conversa, o Arguido, que se encontrava na parte exterior da residência indicada em 1º, dirigindo-se para o Ofendido, BB, em tom sério e grave, proferiu as seguintes expressões: “é fácil pagar €500,00 a um preto para te limpar”; “sei onde moras e onde trabalhas, é fácil de te encontrar”; “agora não te faço nada, mas amanhã logo te apanho”;
(…)
IV- O Tribunal, na fundamentação da sua convicção, afirma que:

“Assim, no que diz respeito à conduta desenvolvida pelo Arguido a convicção do Tribunal gizou-se no depoimento do Ofendido, BB, que num depoimento claro, escorreito e conciso, relatou toda a actuação do Arguido descrita nos factos provados, bem como no depoimento de JF que corroborou tais factos.”

V- O Recorrente não se conforma com a dita fundamentação, não só porque os depoimentos do Ofendido BB e da testemunha e da testemunha JF, são contraditórios entre si; mas também porque estamos perante um método proibido de prova, no tocante ao testemunho do Ofendido.

Concretizando:

VI- Na fundamentação da douta sentença, o Tribunal a quo afirma que:

“Mais se refira que pese embora, JF ter dito que o Ofendido ouviu a gravação da chamada, é mais plausível que tenha ouvido mediante sistema de alta voz, como referido pelo Ofendido, porquanto tal é compatível com o facto de o Arguido estar a fazer a chamada junta a casa onde Ofendido e a testemunha se encontravam.”

V II- Há uma grande discrepância sobre o que se passou naquela noite, pois são realidades totalmente diferentes o facto de o Ofendido ouvir a gravação da chamada, ou ouvir a conversa através do sistema alta voz.

VIII- As regras da experiência comum dizem-nos que não é normal que, num espaço de tempo tão curto – menos de nove meses –, o tempo tenha distorcido a memória das testemunhas ao ponto de surgirem estas duas versões que não encaixam entre si.

IX- Tanto que, como se pode verificar no excerto da sentença supra citado, o Tribunal “a quo” optou por acreditar na versão apresentada pelo Ofendido, descartando a hipótese de gravação da conversa apresentada pela testemunha JF – e, consequentemente, desconsiderando esta versão dos factos.

X- Quanto ao depoimento do Ofendido, o Tribunal “a quo” levanta (e bem) a questão de sabermos se: “O facto de terceiros escutarem palavras em chamada telefónica, que não lhes é dirigida, devido a acionamento de meio técnico (sistema de alta voz), não conhecido nem consentido pelo dono da voz escutada, pode contender com os direitos à palavra e à privacidade que beneficiam de consagração constitucional (artigo 26.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa).”

XI- O Tribunal “a quo” optou por considerar que “Com efeito, salvo melhor opinião, neste caso mostra-se justificada a divulgação dessa conversa a terceiros pelo sistema de alta voz, pois foi a comunicação telefónica o meio utilizado para cometer o crime de ameaça e o recurso a esse sistema visou, assim, a obtenção de prova contra o Arguido, actuando a referida testemunha com causa legitima e mostrando-se proporcional e adequada a divulgação da conversa entre mantida entre JF e o Arguido.”

XII- Mas, o Recorrente discorda com a decisão do Tribunal “a quo”, na medida em que as normas plasmadas na Constituição e na Lei, demonstram que a solução prevista pelo legislador, é outra.

XIII- A Ordem jurídica portuguesa protege, de forma categórica, as comunicações e a privacidade das mesmas, seja através da criminalização, no Código Penal, da intromissão no conteúdo de telecomunicações que não lhe sejam dirigidas:

XIV- Seja através da proibição e consequente nulidade, prevista no Código de Processo Penal e na Constituição da República Portuguesa, das provas obtidas mediante intromissão nas telecomunicações.

XV- Estabeleceu assim o legislador nos artigos 32.º n.º 8 da Constituição da República Portuguesa e 126.º n.º 3 do Código Processo Penal, a nulidade das provas obtidas através da abusiva intromissão nas telecomunicações, permitindo, apenas e só, como excepções à regra, o regime previsto nos artigos 187.º e seguintes do Código Penal, nos quais, mediante o cumprimento de determinados requisitos e formalidades, as autoridades possam interceptar e gravar, comunicações telefónicas.

XVI- O legislador quis assim proibir as autoridades e os privados, de violarem o direito à palavra e a privacidade das telecomunicações de outrem, estabelecendo assim regras rígidas e absolutamente excepcionais, para que possa existir a intercepção e/ou gravação de chamadas telefónicas.

XVII- No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 28/10/2008, processo n.º 103/06.8GAAGN.C1, disponível em http://www.dgsi.pt – decisão esta também citada pela Mma. Juiz, no qual os Venerandos Juízes Desembargadores consideraram que:

“(…) a testemunha teve conhecimento dos factos que relatou em audiência porque, passivamente, os ouviu, mas tal audição apenas foi possível porque uma outra pessoa – a assistente – com o propósito de o permitir, activou, sem o consentimento do recorrente, um meio técnico de audição – alta voz do telemóvel usado na comunicação – que constitui uma intromissão em telecomunicações.

Assim, atento o disposto nos arts. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa e o art. 126º, nº 3, do C. Processo Penal, o depoimento prestado pela referida testemunha é prova nula.”

XVIII- Esta posição defendida no douto acórdão da Relação de Coimbra, que é também a adoptada pelo Recorrente.

XIX- No caso em apresso, o Ofendido BB diz que tomou conhecimento das supostas ameaças, através da activação, por parte da testemunha JF, do sistema de alta voz do telemóvel desta, onde decorria uma chamada telefónica dirigida única e exclusivamente à Sra. JF, na qual o Ofendido BB se intrometeu sem que o Arguido desse o seu consentimento para que tal acontecesse.

XX- Assim, e ao abrigo do disposto nos artigos 32.º n.º 8 da Constituição da República Portuguesa e 126.º n.º 3 do Código Processo Penal, estamos perante prova proibida que é, consequentemente nula.

XXI- Como o depoimento do Ofendido BB – que serviu de “pilar” na fundamentação da decisão recorrida – é nulo, o mesmo não podia ter sido considerado pelo Tribunal “a quo”, pelo que a Douta sentença recorrida é inválida.

XXII- Realidade essa que deve ser ainda conjugada com o testemunho da Sra. JF, que se revelou impreciso e contraditório, e ao qual não deve ser atribuída qualquer credibilidade.

XXIII- Termos em que, deve a sentença recorrida ser revogada pelos motivos supra expostos, sendo substituída por outra que absolva o Arguido do crime de que vem acusado.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas.doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência, ser revogada a referida sentença, substituindo-a por outra que absolva o arguido EE do crime de que foi acusado.»

4. – Admitido o recurso, o MP o apresentou a sua resposta, concluindo pela total improcedência daquele.

5.- Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no mesmo sentido.

6.Notificado, o arguido nada acrescentou.

7. A sentença recorrida (transcrição parcial)

«A) FACTUALIDADE PROVADA:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 21 de Abril de 2017, pela 1 hora da madrugada, o ofendido BB, melhor id. nos autos, encontrava-se no interior da residência da sua namorada, JF , sita na Rua----., Alcantarilha, Silves.

2. Nesse instante o ora Arguido, através do seu aparelho de telemóvel com número não concretamente apurado, efectuou uma chamada telefónica para o aparelho de telemóvel da referida Joana, com o nº 966----.

3. No decurso dessa conversa, o Arguido, que se encontrava na parte exterior da residência indicada em 1º, dirigindo-se para o Ofendido, BB, em tom sério e grave, proferiu as seguintes expressões: “é fácil pagar €500,00 a um preto para te limpar”; “sei onde moras e onde trabalhas, é fácil de te encontrar”; “agora não te faço nada, mas amanhã logo te apanho”;

4. O Ofendido ficou de tal modo com receio, com temor de que o arguido o pudesse atingir na sua integridade física, senão mesmo na própria vida, que não saiu daquela residência até chegada da GNR, e passou a ter redobrados cuidados na sua vida diária.

5. O Arguido agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente.

6. Bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida, e que a mesma era punida por lei.

7. Por decisão de 25 de Fevereiro de 2013, transitada em julgado em 18 de Março de 2013, proferida no Processo n.º ---/11.9TAADV, que correu termos no Tribunal Judicial de Almodôvar, foi condenado pela prática, em 2008, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €5.00, perfazendo um total de €300.

B) FACTOS NÃO PROVADOS
Da discussão da causa e com relevância para a decisão da mesma não resultaram provados quaisquer outros factos. Nomeadamente não se provou:

a) o número de telemóvel utilizado pelo Arguido.
b) Que o Arguido disse “quando te encontrar na rua vou-te passar com a carrinha por cima”.

C) MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal face aos factos descritos fundou-se no conjunto da prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio e da livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal).

Assim, no que diz respeito à conduta desenvolvida pelo Arguido a convicção do Tribunal gizou-se no depoimento do Ofendido, BB, que num depoimento claro, escorreito e conciso, relatou toda a actuação do Arguido descrita nos factos provados, bem como no depoimento de JF que corroborou tais factos.

Com efeito, pese embora a acção do Arguido sobre o referido Sujeito Processual a verdade é que o mesmo narrou toda a actuação do Arguido de forma clara e sem querer empolar os acontecimentos, daí que o Tribunal lhe tenha atribuído total credibilidade.

Mais se refira que pese embora, JF ter dito que o Ofendido ouviu a gravação da chamada, é mais plausível que tenha ouvido mediante sistema de alta voz, como referido pelo Ofendido, porquanto tal é compatível com o facto de o Arguido estar a fazer a chamada junta a casa onde Ofendido e a testemunha se encontravam.

Além do mais, o Ofendido referiu que teve a sensação de que o Arguido sabia que o mesmo estava a ouvir a conversa, tanto mais que lhe dirigiu as palavras dadas como provadas.

O facto de terceiros escutarem palavras em chamada telefónica, que não lhes é dirigida, devido a acionamento de meio técnico (sistema de alta voz), não conhecido nem consentido pelo dono da voz escutada, pode contender com os direitos à palavra e à privacidade que beneficiam de consagração constitucional (artigo 26.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa).

O artigo 194.º do Código Penal pune aquele que, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicações ou dele tomar conhecimento.

Protege a privacidade das comunicações telefónicas, a confiança comunitária no sigilo das comunicações telefónicas, a confiança colectiva em que estas se estabeleçam e desenrolem sem perturbações ou devassas indevidas [assim, Costa Andrade, Comentário Conimbricense, I, pp. 725s].

O artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa declara nulas as provas obtidas mediante intromissão nas telecomunicações.

O artigo 126.º do Código de Processo Penal proíbe o aproveitamento das provas obtidas mediante intromissão nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

As comunicações telefónicas pressupõem a intervenção simultânea de duas pessoas, ambas portadoras do bem jurídico e com iguais direitos e igual poder de domínio sobre a comunicação. É-lhes reconhecido – a ambas – o direito, constitucionalmente garantido, de que seja vedado o acesso de terceiros às suas conversas privadas – mesmo quando, ou sobretudo quando, essas conversas se desenrolam à distância e por intermédio de um canal de comunicação, o telefone.

Será, pois, em princípio, ilícito o acesso – a intromissão – de terceiros nestas conversas, sem o conhecimento e o consentimento dos interlocutores.

É, aliás, essa a conduta tipicamente ilícita (artigo 194.º do Código Penal).

A prova assim obtida, escutada por intermédio de qualquer sistema de captação ou de acesso ao som (da palavra), desde logo porque eventualmente obtida através da prática de crime, é em princípio prova proibida [sobre a ausência de unanimidade no tratamento da questão, quando estão em causa provas obtida por privados e não pelo poder público, como é o caso, ver Costa Andrade, Das Proibições de Prova em Processo Penal, 1992. pp 40s].

Pode, no entanto, ocorrer causa de justificação, consistente numa legítima defesa – obter testemunho do crime praticado pelo arguido para o enfrentar e obstar a que prossiga na agressão – ou num direito de necessidade (probatório) – agir para obter prova para o perseguir criminalmente.

Por outro lado, da justificação (licitude penal) do comportamento, por si só, poderá não resultar a viabilidade (aproveitamento) da prova em processo penal (embora tal leitura pareça resultar do artigo 167.º do Código de Processo Penal). A lei penal substantiva é fonte do direito das proibições de prova, mas não esgota a problemática da licitude da prova em processo penal [assim, Costa Andrade, loc. Cit].

Esta decisão tem merecido tratamento jurisprudencial divergente.

Assim, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-10-2008 [relator Vasques Osório, acessível in www.dgsi.pt] decidiu-se que “o depoimento prestado por uma testemunha, sobre factos jurídico-penalmente relevantes e obtidos através da função de “alta voz”, quando efectuado sem o conhecimento e o consentimento do emissor de voz, é uma intromissão em telecomunicações e deve ser taxado como prova nula”. E no acórdão no Tribunal da Relação do Porto de 26-05-2004 [relator Borges Martins, acessível in www.dgsi.pt] considerou-se que “a prova testemunhal que se limita a reproduzir a conversa telefónica havida entre o arguido e a ofendida, com o consentimento desta, não é nula por não constituir uma intromissão nas telecomunicações”.

O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no acórdão de 07-02-2001 [relator Leonardo Dias, sumariado em www.pgdl.pt] no sentido de que “o acesso ao conteúdo de uma comunicação telefónica com recurso a um meio técnico de audição, como é o alta-voz, integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) em telecomunicações do artigo 194.º, n.º 2, do Código Penal. Logo, é seguro que preenche o referido tipo legal de crime a conduta de quem se intromete voluntária e intencionalmente no conteúdo de comunicações telefónicas, mediante recurso a um alta-voz, com tomada de conhecimento, do mesmo modo voluntária e intencionalmente, desse conteúdo. Ao abrigo das disposições contidas nos artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 3, do CPP, os depoimentos prestados, na qualidade de testemunha, por quem se intromete, na referida forma, no conteúdo de comunicações telefónicas, na parte em que se reportam a esse mesmo conteúdo, são provas nulas”. Esta decisão contou com o voto de vencido de Leal-Henriques, no sentido de que, no caso concreto, “não se reuniam os requisitos de aplicação do artigo 194º, nº2 do Código Penal e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal”, para o que considerou relevante “a compreensão e apreensão das condições e do circunstancialismo que rodearam os factos concretos” que fundamentam a conclusão expressa no voto no sentido da licitude do aproveitamento da prova em causa.

Este voto de vencido mostra a importância da definição prévia dos contornos totais factuais da prova em crise, para a decisão definitiva sobre a sua legalidade.

Por tudo, concluímos que a prova em causa não é, sem mais, prova livre; que também não é necessariamente, sempre e sem excepção, prova proibida; que uma decisão definitiva sobre a sua admissibilidade pressupõe o conhecimento dos factos que rodearam o acesso à conversação telefónica.

Vertendo ao caso concreto e olhando-o segundo a perspectiva adoptada, temos que considerar válida a prova testemunhal cujo conhecimento dos factos em que se estriba a conduta apurada do Arguido, adveio da circunstância da testemunha JF ter accionado o sistema de alta voz do telefone, permitindo e consentindo de modo expresso ou implícito que o Ofendido ouvisse a conversa que mantinha com o Arguido, apesar da falta de consentimento deste.

Com efeito, salvo melhor opinião, neste caso mostra-se justificada a divulgação dessa conversa a terceiros pelo sistema de alta voz, pois foi a comunicação telefónica o meio utilizado para cometer o crime de ameaça e o recurso a esse sistema visou, assim, a obtenção de prova contra o Arguido, actuando a referida testemunha com causa legitima e mostrando-se proporcional e adequada a divulgação da conversa entre mantida entre JF e o Arguido.

A prova dos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo de crime de ofensa, derivaram das regras da experiência comum em conjugação com a formação do homem comum, o qual resulta e tem perfeita noção do crime aqui em questão.

Para prova dos antecedentes criminais registados atendeu o Tribunal ao certificado de registo criminal junto aos autos.

Quanto, aos factos dados como não provados, cumpre dizer que nenhuma outra prova se produziu em audiência de julgamento que permitisse dar como provados outros factos para além dos que, nessa qualidade, se demonstraram.

O demais não se considerou como facto provado ou como facto não provado, uma vez que se traduz num facto conclusivo ou num meio de prova.
*
III – DO DIREITO.
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

Conhecimento oficioso da qualificação jurídico-penal dos factos, tal como resultaram provados na sentença recorrida.

In casu, independentemente das questões suscitadas pelo recorrente, impõe-se apreciar oficiosamente se em face da factualidade provada se mostram preenchidos todos os elementos, objetivos e subjetivos, do ilícito típico, para o que começaremos por tecer algumas considerações ditadas pelo confronto entre a factualidade descrita na acusação e os factos julgados provados e não provados.

1. A este respeito, constatamos que apesar de se dizer no ponto 3) da acusação que “A referida JF colocou o seu aparelho no sistema de voz alta por forma a que o seu atual namorado ouvisse o teor da chamada”, este facto não foi incluído na enumeração dos factos provados e não provados, conforme determina o nº2 do artigo 374º do CPP, o que poderia consubstanciar a nulidade de sentença prevista no art. 379º nº1 a) por referência ao art. 374º nº2, ambos do CPP.

Na verdade, o facto era importante para a coerência da sequência factual explanada na acusação permitindo compreender, de forma certa e assertiva, como é que o ofendido, BB, tinha ouvido as palavras que lhe eram dirigidas apesar de a conversa telefónica decorrer entre o arguido e JF, impondo-se ao tribunal de julgamento discutir criticamente a prova do facto alegado na acusação (“…colocou o seu aparelho no sistema de voz alta…”) e decidi-lo fundamentadamente, incluindo-o nos factos provados ou não provados. Facto que, para além do ora referido, sempre poderia relevar em matéria de legalidade da prova, que foi referida na apreciação crítica da prova e vem suscitada no recurso.

1.2. Em segundo lugar, a discussão da causa não pode deixar de ter suscitado questão factual que a acusação também não resolvia explicitamente mas que é determinante para a integração dos elementos subjetivos do tipo de ilícito pelo qual o arguido vem condenado. Ou seja, uma vez que a conversa telefónica se estabeleceu entre JF e o arguido, era preciso apurar e fazer constar expressamente da factualidade provada (ou não provada) que o arguido sabia e queria estar a ser ouvido pelo ofendido, pois só assim se mostram preenchidos os elementos subjetivos do crime.

Com efeito, o crime de ameaça visa a tutela penal da liberdade de decisão e de ação do destinatário, ou seja, da pessoa ameaçada, pelo que o conhecimento da ameaça por parte desta é elemento integrante do tipo objetivo do ilícito de ameaça: “Quem ameaçar outra pessoa”.

Sendo irrelevante a forma utilizada pelo ameaçador, isto é, quer o arguido faça a ameaça direta e pessoalmente, utilize meio de comunicação (carta, telefone) ou se sirva de interposta pessoa, é indispensável que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário, para que se tenha por preenchido o elemento objetivo do ilícito consumado – cf Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, Vol. I, 2ª ed. p. 562.

Sendo assim, o dolo essencial à perpetração do crime de ameaça, que tem de abranger todos os elementos do tipo objetivo, depende do conhecimento e vontade por parte do arguido que as palavras ameaçadoras proferidas cheguem ao conhecimento do visado com essas mesmas palavras (sob qualquer das formas previstas no art. 14º do C.Penal), o qual não tem que coincidir com a pessoa a quem as dirige, como é sabido. Isto é, o tipo legal apenas se preenche na sua dimensão subjetiva se ao proferir as palavras em causa enquanto falava com JF, o arguido sabia que o ofendido BB o ouvia ou, por outro meio, viria a ter conhecimento das suas palavras, ou, pelo menos, que admitiu essa possibilidade conformando-se com ela.

Constata-se, porém, que a sentença nada diz a este respeito, limitando-se a reproduzir a fórmula tabelar, “O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente”.

1.3. Ora, embora consideremos que esta formulação encerra na generalidade dos casos a afirmação mínima do dolo do tipo (ainda que não seja a mais precisa e concretizada forma de o fazer), pois ao dizer-se que o arguido agiu de forma “consciente” afirma-se que agiu com conhecimento, com consciência, da sua ação objetiva que se descreve e que ao agir de forma “deliberada” o fez com o propósito, com a intenção, de levar a cabo, de realizar, aquela mesma ação, tal não se verifica no caso presente.

Na verdade, neste caso não cabe no significado linguístico da fórmula tabelar a afirmação de que o arguido sabia que ao proferir aquelas palavras estava a ser ouvido por BB ou, em alternativa, que sabia e queria que este viesse a saber das suas palavras por qualquer outro meio, pois a locução tabelar apenas pode significar, concludentemente, que o arguido tinha conhecimento que estava a proferir as palavras descritas em 3) da factualidade provada e, que, assim sendo, o fez com o propósito ou intenção de as proferir.

Não está em causa o valor indiciário do descrito no ponto 3) da factualidade provada para a inferência de que o arguido saberia que estava a ser ouvido ou que o admitiu como possível, mas sim a necessidade de afirmar expressamente este facto integrante do dolo. Tanto mais que, no plano mais denso da verdade dos factos (e não das meras questões de formulação), as regras da experiência remetem-nos no caso presente para outras hipóteses factuais alternativas, pelo que se impunha ponderação, decisão e enunciação expressa sobre se o arguido sabia que o ofendido teria acesso direto às suas palavras ou conhecimento delas por qualquer meio, ou se pelo menos admitiu tal possibilidade, querendo-a ou conformando-se com ela.

Sucede, porém, que a omissão ora apontada já se verificava na acusação o que nos encaminha para o AFJ 1/2015 que - se e enquanto não vier a ser alterado – fixou jurisprudência no sentido de “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

Isto é, não constando dos factos provados da sentença recorrida que o arguido, ao proferir as palavras descritas em 3), sabia, ou pelo menos admitiu como possível, que o ofendido BB ouvia as palavras ali referidas, agindo com o propósito de que as ouvisse ou conformando-se com a referida possibilidade, não pode já o tribunal de julgamento aditá-los na audiência de julgamento, pelo que não cabe o reenvio do processo para apuramento da factualidade omitida.

Assim, não constando da sentença recorrida todos os elementos subjetivos do ilícito típico doloso de Ameaça p. e p. pelo artigo 153º do C. Penal e não sendo possível o seu apuramento em audiência por força da Jurisprudência fixada no acórdão do STJ nº 1/2015, impõe-se a absolvição do arguido, o que se decide, revogando-se a sentença condenatória recorrida.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso do arguido, embora com fundamentação diversa, pelo que decidem revogar a sentença recorrida e, em substituição, absolver o arguido da prática do crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º n.º1 e 155.º n.º1 alínea a) do Código Penal, que lhe fora imputado na acusação do MP.

Sem custas.

Évora, 26 de junho de 2018

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete)