Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
565/19.3T8ENT-C.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: ADVOGADO
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O segredo profissional que se impõe ao Advogado como dever essencial ao exercício da sua profissão, encontrando embora justificação também em razões de ordem pública, pode e deve ceder quando em confronto com outros interesses, igualmente relevantes, como é o caso do interesse, também ele de ordem pública, na descoberta da verdade dos factos e na boa administração da justiça, de que o dever genérico e alargado de cooperação consagrado no artigo 417.º do CPC é instrumental.
II. A dispensa, porém, devendo assumir um carácter de verdadeira excepcionalidade, só deve/pode ser determinada quando ocorram razões imperiosas, assumindo-se o testemunho do profissional como absolutamente essencial, decisão que impõe a ponderação dos interesses em conflito tendo em vista a formulação de um juízo de prevalência assente nas circunstâncias concretas do caso.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo 565/19.3T8ENT-C.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Execução do Entroncamento – Juiz 1

(…) deduziu embargos à execução que lhe é movida por Caixa Económica Montepio Geral, tendo alegado, em suma, que se constituiu fiador da (…), Transportes Marítimos Unipessoal, SA mas não era o real beneficiário, decisor ou gestor financeiro da sociedade afiançada, tendo em tudo actuado “por conta e no interesse da própria exequente”, “no estrito cumprimento das suas ordens e instruções”, e com a garantia de que a fiança não seria accionada, tendo-se esta comprometido a pagar a dívida afiançada com empréstimos posteriores. Trata-se, conclui, de um negócio simulado, já que nenhuma das partes quis constituir uma garantia pessoal, destinando-se apenas a permitir que a exequente concedesse o financiamento à referida sociedade, actuando a exequente em abuso de direito.
Revelou ainda o embargante na sua petição de embargos que para executar os procedimentos necessários à formalização da operação gizada pela exequente foi por esta escolhida a sociedade de advogados (…) e Associados, que contratou e à qual pagou, tendo tido intervenção em todo o processo a Dr.ª (…).
Juntou diversos documentos, tendo requerido a notificação da exequente/embargada para proceder à junção de outros e ainda que fosse solicitada documentação variada ao BdP. Arrolou 10 testemunhas, entre as quais (…) e a dita advogada, Dr.ª (…), e requereu também a realização de perícia “a todo o dossier das sociedades do executado junto da exequente”.
Notificada, a exequente/embargada apresentou contestação, peça na qual impugnou a essência da factualidade invocada pelo embargante, defendendo a validade da garantia prestada.
Arrolou 11 testemunhas, entre as quais a mesma Il. Advogada, Dr.ª (…).
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Tendo os autos prosseguidos seus regulares termos, no dia designado para a realização da audiência final compareceu a testemunha que, perguntada aos costumes, declarou não ter “relação pessoal com o executado ou com o exequente, mas que desde 2013 é mandatária das sociedades Coral (…), Island (…), Peral (…), e South (…), das quais o executado (…) era gerente”, tendo de seguida invocado sigilo profissional, assim fundamentando a sua recusa em prestar testemunho.
De seguida, pela Il. Mandatária do embargante foi requerido que “Face à invocação do sigilo profissional tendo em vista fundamentar uma recusa legítima a depor, o embargante requer a abertura de incidente de dispensa de sigilo profissional de advogado da testemunha, ao abrigo do disposto no artigo 135.º do CPC, aplicável por via dos artigos 417.º, n.º 3 e 497.º do CPP, a fim de ser remetido ao Tribunal da Relação de Évora, uma vez que a testemunha tem conhecimento directo dos factos em causa nos autos, participou ou esteve directamente envolvida na quase totalidade dos factos que são protagonizados pela própria testemunha, tal como alegado em sede de embargos e já confirmado em sede de depoimento das testemunhas inquiridas, sendo essencial à descoberta da verdade material, à importância dos interesses em causa e à reduzida afetação dos visados, que são todas as partes envolvidas. A testemunha foi, aliás, arrolada por ambas as partes, embargante e embargado”.
O Il. Mandatário da parte contrária nada opôs ao requerido, após o que o Mm.º Juiz, tendo julgado legítima a recusa da Il. Advogada (…) a prestar testemunho, ordenou a constituição do presente apenso e sua remessa para apreciação a este Tribunal.
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Sendo este Tribunal o competente para apreciação do incidente suscitado, constitui única questão a decidir indagar da verificação dos fundamentos da requerida quebra do sigilo.
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II. Fundamentação
Importando à decisão os factos relatados em I., cabe agora decidir se, conforme vem requerido, deve a testemunha arrolada por ambas as partes, embargante e embargada, a Il. Advogada (…), ser dispensada do sigilo profissional, em ordem a prestar o seu testemunho.
O dever de o advogado guardar segredo vem previsto no artigo 92.º do EOA, que estende tal obrigação a “todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços” (vide n.º 1 do preceito).
Segundo entendimento perfilhado e reiterado pelo CDL da AO “três grandes ordens de razões estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos, dos quais tome conhecimento no exercício da profissão: a) a indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente; b) o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça; c) a garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.”[1]
Dos fundamentos invocados, são de qualificar como de ordem pública os indicados e 2.º e 3.º lugares, o que justifica que o segredo profissional do advogado não possa ser, pura e simplesmente, dispensado pela parte sua cliente, conforme se decidiu, a nosso ver acertadamente, no aresto do TRP de 23/2/2015 (no processo 552/06.1TAPGR.P1, acessível em www.dgsi.pt).
Não obstante a natureza e os fins que prossegue, o dever de sigilo pode e deve ceder quando em confronto com outros interesses, igualmente relevantes, como é o caso do interesse, também ele de ordem pública, na descoberta da verdade dos factos e na boa administração da justiça, de que o dever genérico e alargado de cooperação consagrado no artigo 417.º do CPC é instrumental. A dispensa, porém, devendo assumir um carácter de verdadeira excepcionalidade, só deve/pode ser determinada quando ocorram razões imperiosas, assumindo-se o testemunho do profissional como absolutamente essencial – a imprescindibilidade de depoimento a que alude o n.º 3 do artigo 135.º do CPP, aplicável ex vi do n.º 4 do artigo 417.º do CPC – (neste sentido, acórdão do TRL de 25/3/2014, processo 602/08.7TBBNV-A.L1-7, em www.dgsi.pt). Tal decisão importa, pois, a ponderação dos interesses em conflito e a formulação de um juízo de prevalência assente nas circunstâncias concretas do caso.
O C.º Lopes do Rego esclareceu, a propósito, que “É manifesto que o tribunal superior, ao realizar o juízo que ditará o interesse que, em concreto, irá prevalecer, carece de actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, «maxime» o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão. (….). Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa; assim, por exemplo, poderá configurar-se como perfeitamente adequado que, numa acção que verse sobre direitos pessoais fundamentais ou que contenda, em termos decisivos, com a sobrevivência económica da parte, o tribunal decida quebrar o sigilo bancário; pelo contrário, tal dispensa poderá não se configurar já como adequada e proporcional, v. g., quando se trate de vulgar acção de cobrança de dívida comercial, de valor pouco relevante para a empresa credora. (...).”[2]
No caso em apreço, a Il. Advogada indicada como testemunha por ambas as partes declarou, aos costumes, ser desde 2013 mandatária de diversas sociedades, todas elas tendo como gerente o embargante pelo que, em bom rigor – e apesar do próprio (…) ter alegado que a sociedade de advogados a que a recusante pertence foi, na verdade, seleccionada, escolhida e contratada pela exequente – não prestou serviços a nenhuma das partes em conflito, não podendo a sua indicação como testemunha ser tida como autorização para depor por banda do cliente.
Não obstante, parece não haver dúvida que a Sr.ª Advogada, tal como o embargante alegou, tem conhecimento privilegiado de muitos dos factos relatados na petição de embargos, designadamente por ter tido intervenção na formalização dos diversos negócios ali mencionados. Todavia, daí não decorre, sem mais, que o seu testemunho seja o único e indispensável meio de fazer prova de tal factualidade e, decisivamente, não resulta dos autos ou do requerimento apresentado que assim seja. Com efeito, a despeito da invocação do carácter essencial do testemunho da Il. Advogada feito pelo requerente, não surge minimamente justificado porque é que assim o considera, tendo em conta o elevado número de testemunhas arroladas e a diversidade dos meios de prova produzidos. Tão pouco foram pelo requerente especificadamente indicados os factos a que deveria ser ouvida, não sendo crível que apenas esta testemunha tenha conhecimento de toda a factualidade relevante, considerando, como se referiu, que diversas outras foram indicadas, muitas delas entretanto já inquiridas. Por outras palavras, não se encontra evidenciada a imprescindibilidade do testemunho da Sr.ª advogada por não poder ser feita prova dos factos por outros meios ao dispor das partes, inexistindo portanto, por ora, fundamento para que seja decretada a quebra do sigilo. Tal não obsta, contudo, e tal como decidiu já este mesmo Tribunal (acórdão de 14/1/2021, no processo 87/19.2T8CCH.E1, relatado pela aqui Sr.ª Juíza Des. Adjunta, acessível em www.dgsi.pt), a que seja eventualmente deduzido novo incidente, devidamente fundamentado, se disso for caso.
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III. Decisão
Atento o exposto, acordam os Juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em indeferir a requerida quebra do segredo profissional do Sr.ª Dr.ª (…), indicada como testemunha pelas partes na causa.
As custas serão suportadas por embargante e embargada em partes iguais, uma vez que o incidente a ambas aproveitava.
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Sumário:
(…)
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Évora, 11 de Novembro de 2021
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho Santos
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[1] O Dever de Guardar Sigilo Profissional – Uma Aproximação Prática, exposição apresentada no VI congresso dos Advogados Portugueses, acessível em http://www.oa.pt/Uploads/%7B7760A5F7-FAAD-4C97-B199-5B7B12AC6A69%7D.pdf
[2] Comentário ao CPC, I vol., págs. 457-458, também citado no aresto do TRL de 14/3/2014.