Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
735/19.4PBEVR-A.E1
Relator: ANA BACELAR
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PRAZO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - As notificações feitas à denunciante pela autoridade policial junto da qual é apresentada a denúncia, designadamente a notificação para se constituir assistente em determinado prazo, fazem parte do ritual a que é sujeito quem, junto da autoridade policial, surge como denunciante.
Valem pelo conteúdo informativo que contém e delas não resulta a imposição de prazo preclusivo.

2 - E a explicação para isto é óbvia.
Compete ao Ministério Público apurar no processo a veracidade dos factos denunciados e classificá-los juridicamente. E só então, mediante notificação do titular do processo de inquérito, podem ser exigidos comportamentos e impostos prazos – nomeadamente a constituição como assistente.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 735/19.4PBEVR do Juízo de Instrução Criminal de Évora da Comarca de Évora, por decisão judicial datada de 26 de abril de 2021, foi indeferida a constituição como assistente de (…).

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1.ª O Tribunal a quo proferiu despacho no dia 26 de abril de 2021 em que indeferiu a admissão como assistente.
2.ª A Polícia de Segurança Pública notificou a denunciante num termo de notificação da vítima onde consta a “Obrigatoriedade de se constituir assistente no processo nos crimes de natureza particular: Fica advertido, nos termos do Artigo 246.º, n.º 4, do CPP, de que deve constituir-se assistente no processo mediante requerimento a apresentar no prazo de 10 dias a contar desta data, conforme estipulado no Artigo 68.º, n.º 2, do CPP.»
3.ª O termo de notificação foi elaborado no momento da apresentação da queixa, constituindo um elenco das várias disposições legais aplicáveis independentemente do tipo e da natureza pública, semipública ou particular do crime denunciado.
4.ª A Polícia de Segurança Pública tenha tipificado os factos denunciados como “crimes contra a reserva da vida privada”, de natureza pública ou semipública conforme o artigo 198.º do Código Penal, tendo iniciado inquérito.
5.ª A natureza particular dos factos denunciados só foi apurada após a concretização dos factos em investigação e delimitação do objeto da investigação, momento em que o Ministério Público notificou a denunciante para a necessidade da constituição como assistente.
6.ª O “termo de notificação da vítima” constitui um formulário genérico que não se encontra adaptado para o caso concreto, uma vez que faz depender do denunciante o ónus de saber que os factos que denuncia constituem um crime particular.
7.ª A notificação para constituição como assistente do “termo de notificação de vítima” não poderá operar como limitadora do direito de se constituir como assistente, sem que tenha existido no momento da apresentação da denúncia a referência a que aqueles factos concretos constituem um crime particular.
8.ª Caso assim se não entenda, como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 16 de outubro de 2018, processo 631/16.7PBAMD.L1-5, “Uma repetição de notificação determinada pelo Ministério Público, ainda que se mostre desprovida de qualquer cabimento legal, não pode, em qualquer caso, prejudicar as partes, pelo que, tendo o recorrente apresentado o seu pedido de constituição de assistente no prazo constante da notificação que, para o efeito, lhe foi efetuada, tem o mesmo de considerar-se atempado e, consequentemente, de ser admitido.”
9.ª O douto Tribunal violou as normas dos artigos 246.º, n.º 4 e 68.º, n.º 2 do Código de processo penal.

Pelo que, o Douto despacho datado de 26 de abril de 2021 deverá ser substituído por outro que aprecie o requerimento para a constituição de assistente apresentado por (...).

O recurso foi admitido.
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Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta, emitiu o parecer que se transcreve:
«O Recurso foi interposto e motivado por quem tem legitimidade e interesse em agir, atempadamente, sendo de manter o regime de subida e o efeito ao Recurso atribuído no despacho de admissão.
Concordamos e damos por reproduzidos os argumentos aduzidos na Motivação de Recurso apresentadas pelo nosso Exmoº Colega junto do Tribunal de 1.ª Instância, entendendo que o Recurso merece provimento, em conferência

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]]
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Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece os seguintes elementos:
(i) Pelas 19H20 do dia 5 de setembro de 2019, (...), no Comando Distrital de Évora da Polícia de Segurança Pública, fez lavrar auto de denúncia contra (…), onde consta:
«A lesada/ofendida, identificada em campo próprio, informou que na data que consta, foi recebedora de várias mensagens enviadas pelo suspeito (seu patrão), em que as mesmas tinham conteúdo de devassa. A lesada perante as mensagens que recebeu que a mesma tem gravadas (ameaçar que iria direcionar a terceiros – familiares da lesada – atos de filmagens pornográficas, onde a denunciada é o alvo a atingir). A lesada labora para o suspeito na empresa denominada “(...)”, sita na artéria que consta como local da ocorrência, há cerca de dois anos e ultimamente o suspeito tem arranjado várias situações conflituosas a nível laboral, desde ameaças e injúrias, para não lhe pagar o vencimento. A lesada acrescentou ainda que o suspeito a ameaça de difundir as ditas filmagens pornográficas para a família da lesada, para que esta trabalhe sem receber qualquer vencimento
(ii) Esta denúncia foi qualificada como integrando crimes contra a reserva da vida privada.
(iii)Ainda no dia 5 de setembro de 2019, foi a Denunciante (...) notificada como vítima e também da possibilidade de deduzir pedido de indemnização civil, dos termos que devia observar para o fazer e dos casos em que é, para tanto, obrigatória a constituição de advogado;
(iv) No dia 9 de novembro de 2020, o Magistrado do Ministério Público titular do processo ordenou a notificação de «(...), nos termos do artigo 246.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, para se constituir assistente no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de, nesta parte, ser legalmente inadmissível o procedimento, ao abrigo dos artigos 68.º, n.º 2 e 277.º, n.º 1 do mesmo Código
(v) No dia 2 de fevereiro de 2021, (...) requereu a sua constituição como assistente no processo.
(vi) A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«Requerimento de constituição de assistente de fls. 112:
Nos presentes autos, veio (…), em 02/02/2021, requerer a respetiva constituição como assistente, após notificação do Ministério Público ocorrida em 12/11/2021 e a fls. 99/100.
Os factos denunciados consubstanciam a prática de um crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181.º do Cód. Penal, cujo prosseguimento do processo dependente da constituição como assistente e de acusação particular.
Sucede, porém, que em 05/09/2019 e a fls. 5/5 verso, a requerente foi notificada para, no prazo de 10 dias, requerer a sua constituição como assistente relativamente aos factos denunciados, nos termos do art.º 246.º, n.º 4 e 68.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e essa notificação foi assinada pela própria requerente.
Como o despacho do Ministério Público não pode conceder novo prazo para além daquele que consta do art.º 68.º, n.º 2, do Cód. Processo Penal, há muito que esse prazo iniciado em 05/09/2019 transcorreu e não é o pedido tempestivo.
Nos termos expostos, indefere-se a constituição como assistente de (…), quanto aos factos suscetíveis de integrar a prática de crime de injúria ocorridos em 05/09/2019.
Notifique.
Devolva os presentes autos ao DIAP
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Conhecendo, com a contenção argumentativa aconselhada pela simplicidade da questão que nos é colocada.

As notificações feitas a (...), no dia 5 de setembro de 2019, fazem parte do ritual a que é sujeito quem, junto da autoridade policial, surge como denunciante.
Valem pelo conteúdo informativo que contém e delas não resulta a imposição de prazo preclusivo.
E a explicação para isto é óbvia.
Compete ao Ministério Público apurar no processo a veracidade dos factos denunciados e classificá-los juridicamente. E só então, mediante notificação do titular do processo de inquérito, podem ser exigidos comportamentos e impostos prazos – nomeadamente a constituição como assistente.

Atente-se, in casu, que os factos denunciados pela (...) foram categorizados pelo órgão de polícia criminal como crime contra a reserva da vida privada – os previstos e puníveis pelos artigos 190.º a 196.º do Código Penal.
E o procedimento por qualquer um destes crimes não depende da constituição de assistente.

Isto posto, a decisão recorrida é injustificável.
E o recurso procede.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que pondere o requerimento para constituição como Assistente de (...).

Sem tributação.
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Évora, 2021 novembro 9
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)


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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)


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(Renato Amorim Damas Barroso)

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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].