Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
204/12.3GBRMZ.E1
Relator: ALBERTO JOÃO BORGES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE INCÊNDIO
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - A insuficiência da matéria de facto para a decisão supõe a existência de factos – alegados ou resultantes da discussão da causa – relevantes para a decisão e que, devendo ser averiguados, não o foram.

II - O crime de incêndio, p. e p. pelo art.º 272.º, n.º 1, al.ª a) do CP, exige a criação de “… perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado”. Sendo o acórdão completamente omisso quanto à factualidade que integra este elemento objetivo do tipo, sem tais factos, não se pode dizer que estejam preenchidos todos os elementos que integram o crime de incêndio pelo qual o arguido foi condenado.

III - Por outro lado, não constando tais factos da acusação, não se pode dizer que estejamos perante uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, enquanto vício da sentença, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP, pois que a insuficiência da matéria de facto para a decisão só ocorre quando essa matéria – em falta - faça parte do objeto do processo, delimitado pela acusação, pela defesa e demais factualidade que ao tribunal seja lícito conhecer.

IV - A entender-se de modo diferente violar-se-iam de modo flagrante os direitos de defesa do arguido, que seria confrontado com factos novos – relevantes (tão relevantes que sem eles não se mostram preenchidos os elementos que integram o crime) - relativamente aos quais não teve oportunidade de se defender.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Reguengos de Monsaraz correu termos o Proc. Comum Coletivo Singular n.º 204/12.3GBRMZ, no qual foi julgado o arguido A., melhor identificado no acórdão de fol.ªs 585 a 599, de 22.13.2013, pela prática dos seguintes crimes:

- um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo 152 n.ºs 1 alínea a) e 2 do Código Penal.

- um crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272 n.º 1 alínea a) do Código Penal.

A final veio a ser condenado:

- pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152 n.ºs 1 alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão;

- pela prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272 n.º 1 alínea a) do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão;

- e, em cúmulo jurídico, a pena única de seis anos e seis meses de prisão.

2. Recorreu o arguido desse acórdão, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

1 - O objeto do presente recurso restringe-se ao facto do douto Tribunal Coletivo ter decidido condenar o arguido como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152 n.ºs 1 alínea a) e 2 do Código Penal, e um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272 n.º 1 alínea a) do Código Penal, nas penas parcelares de quatro e quatro anos e, em cúmulo jurídico, na pena única de seis (6) anos e seis (6) meses de prisão, pelo que pretende recorrer da matéria de direito e de facto nos seguintes aspetos:

1.1. - Vícios da sentença

- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410 n.º 2 a) do CPP), o qual se verifica por, como decorre do texto da lei, resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (quanto ao crime de violência doméstica e quanto ao crime de incêndio);

- Erro notório na apreciação da prova (art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP) e consequente impugnação da matéria de facto, o qual se tem por verificado quando é patente, isto é, suscetível de ser detetado pelo homem comum, percetível a um observador médio, pelo que se consubstancia numa incorreção evidente da apreciação da prova (quanto ao crime de violência doméstica):

i) O tribunal a quo deu erradamente como provados factos que jamais constam das declarações das testemunhas ou de qualquer outra prova válida, apresentada em audiência de discussão e julgamento.

ii) O tribunal a quo não soube apreciar os factos e as provas constantes dos autos, no que respeita ao arguido, entrando em erro notório na apreciação da prova, pelo que, este tribunal violou a interpretação constitucional do artigo 127 do CPP, no que respeita ao arguido, e, consequentemente violou os princípios in dubio pro reo e da livre apreciação da prova;

iii) O tribunal a quo, ao dar por não provados certos factos, motivou, e bem, nesta parte e em tal decisão, na circunstância do arguido os ter negado, a única testemunha que os relatou e presenciou (queixosa P) não os descrever daquela forma e mais nenhuma outro prova foi produzida nesta sede, raciocínio e juízo que deveria ter feito para os demais factos.

1.2. - Erro de direito ou de julgamento.
2 - Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410 n.º 2 al.ª a) do CPP), não foi produzida qualquer prova que permita concluir pela condenação do arguido quanto aos pontos 10, 15, 16, 26, 27 e 28 (no que respeita ao crime de violência doméstica).

3 - No que respeita a estes pontos, respeitantes a uma eventual violência física na pessoa da vítima - erroneamente julgados pelo tribunal a quo - existe uma patente e notória insuficiência para a decisão, quer quanto à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, quer quanto a própria motivação e fundamentação do acórdão (reitere-se que na própria fundamentação do acórdão não existe qualquer referência a meios de prova ou qualquer referência ao processo valorativo em que este tribunal a quo se baseou para, e a nosso ver mal, ter dado como provados os supra citados factos, sendo que incumbia ao tribunal a quo indagar em sede de audiência de discussão e julgamento a descoberta material dos factos, e poderia fazê-lo, ao abrigo do artigo 340 do CPP, o que, notoriamente, não fez.

4 - A saber:

No que respeita ao ponto 10, não existem quaisquer testemunhas presenciais destas pretensas lesões no corpo da vítima, a que acresce que não existe nem foi exibido em audiência de discussão e julgamento (nem consta dos autos) qualquer exame médico que ateste as lesões.

Igualmente, jamais o tribunal a quo poderia ter valorado o doc. 18, exibido em sede de audiência, uma vez que do documento não resulta por quem foi tirada a foto, em que condições foi tirada e em que data foi tirada (31 de outubro de 2011 ou 1 de novembro de 2011).

5 - No que respeita aos pontos 26, 27 e 28, o tribunal a quo não cuidou de indagar se as mesmas existiram ou não, sendo que nunca se diz no acórdão que os elementos da GNR visualizaram qualquer marca física no pescoço da vítima nem estes foram presentes, enquanto testemunhas, em sede de audiência de discussão e julgamento, a que acresce que não existe nem foi exibido em audiência de discussão e julgamento (nem consta dos autos) qualquer exame médico que ateste as lesões.

6 - No que respeita aos pontos 15 e 16, os mesmos são meras conclusões, não se depreendendo destas conclusões em que sentido existiram lesões no corpo da vítima, sendo que em sede de motivação do acórdão não se vislumbra qualquer fundamentação ou juízo de valor que ligue estes episódios a lesões físicas no corpo da vítima, logo, não se podem associar as lesões físicas a qualquer atuação do arguido, não se tendo, pois, provado o necessário nexo de causalidade entre uma eventual atuação do arguido e as lesões da vítima, pelo que nestes pontos - 10, 15, 16, 26, 27 e 28 - dados erradamente como provados, o acórdão padece do citado vício do artigo 410 n.º 2 al.ª a) do CPP.

7 – Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410 n.º 2 al.ª a) do CPP), relativamente ao crime de incêndio, não foi produzida qualquer prova que permita concluir pela condenação do arguido A., logo, em nosso entender mal andou o tribunal a quo ao interpretar a prova no sentido de dar como provados os factos constantes dos pontos 35, 38, 39 e 40, e, por conseguinte, no que respeita a este crime o arguido deverá ser absolvido.

8 - O crime de incêndio, p. e p. pelo art.º 272 do Código Penal, enquanto crime de perigo comum, é, no ensinamento da doutrina, cfr. Prof. Faria Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. II, anotação ao citado art.º 272, um crime de perigo concreto, em que a violação do bem jurídico está iniludivelmente ligada à ideia de dano - dano esse que, enquanto realidade dogmática, teria o mesmo valor do perigo - sendo, por isso, um crime de resultado. Fala-se, por isso, na existência de resultado de "perigo-violação" e de resultado de "dano-violação".

9 - Assim, temos que os elementos do tipo são:
- a provocação de incêndio de relevo;
- que crie perigo;
- para bens patrimoniais alheios;
- de valor elevado.

10 – Quanto ao tipo subjetivo do ilícito, ensina a mesma doutrina que o crime de incêndio é um crime essencialmente doloso, na medida em que comporta a existência de qualquer uma das formas de dolo, mas que, face à construção assinalada do tipo objetivo, isso implica que o agente tenha, não só de querer e representar uma das condutas descritas nas diferentes alíneas do n.º 1 do artigo, mas também que represente e queira um resultado de perigo-violação referente aos bens jurídicos determinados no tipo.


11 – Ora, dos factos dados como provados para a decisão e da motivação vislumbramos uma insuficiência patente para daí resultar provado o dano de perigo e, consequentemente, para se dar por provado que foram afetados bens patrimoniais alheios de valor elevado.

12 - Na verdade, o tribunal a quo não indagou nem, posteriormente, motivou, pelo que não se poderá perceber o seu processo cognitivo quanto aos seguintes fatos necessários para preencher os supra citados elementos do tipo:

a) Qual o regime de casamento existente entre o arguido e a vítima?

b) De quem era a propriedade do imóvel sito...em São Marcos do Campo, concelho de Reguengos de Monsaraz?

c) De quem era o recheio existente no imóvel?

d) Que bens integravam o recheio do imóvel?

f) Se os hipotéticos € 25.000 de prejuízo diziam respeito ao imóvel ou ao recheio (e este imóvel e recheio a quem pertenciam)?

g) Como é que se poderia chegar a este valor sem provas periciais, sem exames diretos ou prova documental (orçamentos efetuados por pessoas tecnicamente aptas para chegarem a esse valor)?

g) Se imóveis ou bens confiantes pertencentes a 3.ºs foram afetados?

h) Se a vida ou a integridade física de terceiros foram afetados?

13 – Ora, dos factos dados como provados nos pontos 35, 38, 39 e 40 e da fundamentação da decisão não existe qualquer facto donde se possa extrair e integrar o dolo de perigo da atuação do arguido, sendo que, por não se encontrar preenchido o tipo, o arguido deverá ser absolvido do crime de incêndio.

14 – Quanto ao erro notório na apreciação da prova (art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP) e consequente impugnação da matéria de facto:

15 - Não foi produzida qualquer prova que permita concluir pela condenação do arguido A., logo, em nosso entender, mal andou o tribunal a quo ao interpretar a prova no sentido de dar como provados os factos constantes dos pontos 28, 29, 31, 17, 21 e 6, devendo considerar como «não provada» a matéria constante dos citados pontos, por falta de prova, uma vez que nenhuma das testemunhas da acusação relatou esses factos na audiência de discussão e julgamento, pelo que se impõe a alteração da decisão de facto, por força dos depoimentos probatórios das testemunhas P Garcia e F, nomeadamente:

- O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 36m 50s), aos 10m e 38s das declarações:

Procurador: A senhora foi para casa da sua mãe e chamou alguma autoridade ou não?
Testemunha P: Nessa noite penso que não... durante o dia 26 é que falei...
Procurador: No dia 26 durante o dia?
Testemunha P: Sim no dia 26!
11m e 30s das declarações:
Procurador: No dia 26, durante o dia passou-se mais alguma coisa?
Testemunha P: Eu penso que esse dia não, eu não me recordo bem, porque isto, a cabeça como você deve compreender, isto anda a mil à hora, e eu acho que nesse dia ele também nos convidou para irmos jantar juntos.
Procurador: Olhe no dia 26, recorda-se se ouve algum telefonema?
Testemunha P: Mas no dia 26? Mas telefonema de quem? Do A.?
Procurador: Sim do seu marido para a senhora P, do A.?
Testemunha P: Sim, ele ligou, pediu-me para eu o deixar falar com a S..
Procurador: Foi só isso ou algo mais?
Testemunha P: Sim, acho que foi só isso.
- O depoimento da testemunha F (sessão de 14.11.2013, que se iniciou às 10h 15m 45s) aos 7m e 53s das declarações:
Procurador: A GNR foi lá a casa?
Testemunha F: Foi
Procurador: falou com o seu pai?
Testemunha F: Falou
Procurador: Lembra-se depois o que é que o seu pai depois disse?
Testemunha F: Não, porque eu não estava a ouvir, eu estava trancado no meu quarto.

16 – Ora, as transcrições supra referidas são, nos termos da alínea b) do n.º 3 do art.º 412 do CPP, provas concretas que impõem uma diferente decisão.

17 - Não foi produzida qualquer prova que permita concluir pela condenação do arguido A., logo, em nosso entender mal andou o tribunal a quo ao interpretar a prova no sentido de dar como provados os factos constantes dos pontos 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 22, 23, 24, 25, 26 e 27, devendo considerar como «não provada» a matéria constante dos citados pontos, por falta de prova, e, seguindo o raciocínio do douto tribunal a quo – porquanto, o arguido não confirmou os referidos factos, a filha deste recusou-se a prestar declarações e P, a outra pessoa que os presenciou, não os descreveu daquela forma e nenhuma outra prova foi produzida nesta sede - a alteração da decisão de facto impõe-se, assim, por força dos depoimentos probatórios.

Vejamos:
a) Ponto 3
O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 52m 57s), aos 3m e 46s das declarações:

Testemunha P: Ele ultimamente era só amantes...

b) Ponto 4
O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 36m 50s), aos 13m e 40s das declarações:

Procurador: Essa foi a última situação que aconteceu, mas antes disso como é que era a vossa vida?

Testemunha P: Agora ultimamente quando nós, marido e mulher, acabávamos de fazer sexo ele dizia "quantos já te pularam para cima de ti?"

O depoimento da testemunha F (sessão de 14.11.2013, que se iniciou às 10h 15m 45s), aos 3m e 48s das declarações:

Procurador: O senhor alguma vez ouviu o seu pai dizer essa expressão (quantos já te pularam para cima de ti?)

Testemunha F: Essa não, essa expressão não ouvi.

c) Ponto 5
O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 52m 57s), aos 3m e 19s das declarações:

Procurador: O dia em que isso aconteceu, está recordada em que dia foi?
Testemunha P: Não.

4m e 43s das declarações:
Procurador: Foi na sequência de uma dessas situações que ele partiu a cama?
Testemunha P: Sim, foi numa das guerreias dessas.

d) Pontos 7, 8, 9 e 10
O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 52m 57s), aos 1m e 05s das declarações:

Procurador: Como é que isso foi, como é que foram esses factos, como é que ele fez exatamente?
Testemunha P: Então porque não estávamos deitados os dois na cama ele queria ter relações e eu disse que não.
Procurador: Sim!
Testemunha P: Ele agarrou-me nas cuecas, elas são muito fininhas não é, e arrancou-as e ao puxar o elástico fez-me aqui uma nódoa negra.

e) Ponto 11
O depoimento da testemunha P(sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 52m 57s), aos 4m e 57s das declarações:
Procurador: Está recordada de uma situação que terá ocorrido no café O Pastor, em São Marcos do Campo... o que é que se passou nesse dia?
Testemunha P: ... Ele começou a chamar para eu lhe dizer quem é que era ali o cabrão e pronto, gerou-se ali uma confusão.

f) Pontos 12, 13 e 14
O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 52m 57s), aos 6m e 42s das declarações:
Procurador: Está recordada nesse dia o que se passou em concreto, nesse dia foi para onde?
Testemunha P: Assim em concreto não.
Procurador: Aqui consta que terá sido no dia 2 de novembro de 2012.
Testemunha P: Sei la eu agora, eu já estava na casa dos meus pais.
Procurador: Para casa é que foi nesse dia, esta recordada?
Testemunha P: Fui para casa dos meus pais.
Procurador: Foi para casa dos seus pais?
Testemunha P: Fui.
Procurador: Consta aqui que nesse dia o seu marido terá ido ter consigo ao quarto da sua filha, onde a senhora estava a dormir com ela.
Testemunha: Eu já não me recordo se foi nessa noite ou não.

g) Ponto 16
O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 15h 27m 16s), aos 6m e 42s das declarações:
Advogado: Disse a instâncias do Senhor Procurador que o A. tentava controlar o telemóvel, o facebook e o correio eletrónico, mas a senhora nunca lhe deu, ou não se recorda de ter dado, as senhas, sendo uma relação aberta, as senhas ao seu marido para aceder quando quisesse ao correio eletrónico e ao telemóvel?
Testemunha P: Ele sabia sim, conforme os meus filhos sabem.
Advogado: Ele sabia as senhas porque a senhora lhe tinha facultado as senhas?
Testemunha P: Sim, sim.

h) Ponto: 22, 23, 24, 25, 26 e 27.
O depoimento da testemunha P (sessão de 18.10.2013, que se iniciou às 14h 36m 50s), aos 6m e 50s das declarações:
Procurador: No dia 25 para 26 de dezembro houve um conflito lá em casa, descreva-nos lá o que se passou? A senhora já disse que ele nunca lhe tocou, a senhora disse nunca tocou, quer dizer que ele nunca lhe bateu, foi isso?

Testemunha P: Ele nessa noite, ele estava com os sobrinhos, e estavam os nossos filhos, e nós estávamos no nosso quarto, estávamos a discutir e aventou-me para cima da cama, eu fiquei com as pernas, pronto assim caídas para fora da cama, mas com o tronco deitado em cima da cama e ele ajoelhou-se aqui em cima de mim e começou a apertar-me o pescoço, o nariz e a boca.

Procurador: Enquanto ele lhe apertava o pescoço está recordada o que o seu marido lhe dizia?
Testemunha P: Ele dizia que me matava.

9m e 00s das declarações:
Procurador: A senhora ficou com alguma lesão física?
Testemunha P: Não, não, não, não, fiquei apenas vermelha, é isso, mas mais não... mas depois passou.
Procurador: O que é que a senhora fez?
Testemunha P: Eu fui para casa dos meus pais
10m e 38s das declarações:
Procurador: A senhora foi para casa da sua mãe e chamou alguma autoridade ou não?
Testemunha P: Nessa noite penso que não... durante o dia 26 é que falei...
Procurador: No dia 26 durante o dia?
Testemunha P: Sim, no dia 26!

O depoimento da testemunha F (sessão de 14.11.2013, que se iniciou às 10h 15m 45s), aos 6m e 49s das declarações:
Procurador: Está recordado, ou se ouviu alguma coisa enquanto o seu pai estava nessa posição, ele estava dizer alguma coisa?
Testemunha F: Não, acho que não, quando lá cheguei não estava a dizer nada.

18 – Ora, as transcrições supra referidas são, nos termos da alínea b) do n.º 3 do art.º 412 do CPP, provas concretas que impõem uma diferente decisão.

19 - Reitera-se que os citados pontos foram, manifestamente, mal julgados pelo tribunal a quo, porque apenas assentam nas declarações das testemunha P e F, testemunhas que não descreveram os factos daquela forma, sendo evidente in casu que a decisão deverá ser alterada, por ser evidente que a prova oral referida na fundamentação não conduz à decisão obtida e não se fez qualquer prova de que:

Ponto 3 - desde início do casamento o arguido acusava a vítima.
Ponto 4 - No ano de 2011.
Ponto 5 - Deferiu um murro na cabeceira da casa e apenas não acertou na vítima porque esta se conseguiu desviar.
Pontos 7, 8, 9, 10 - No dia 31 de outubro ou no dia 1 de novembro de 2011 o arguido tivesse solicitado à vítima que fosse para a cama do casal, ao que esta, apercebendo-se que era para meter relações sexuais, concordou e ali chegada o arguido tivesse discutido com a vítima, acusando-a novamente de ter amantes.
Ponto 11 - ter o arguido ter dito "de ti só quero o divórcio".
Pontos 12, 13 e 14 - Nesse mesmo dia (2 de novembro de 2012), pela noite e na casa do casal o arguido se tivesse deitado com a vítima e a filha, e o arguido tivesse perguntado á vitima a gritar com quem é que esta andava a trai-lo, e com quem é que ela andava metida (tendo a filha pedido ao pai que parasse), e tivessem ido posteriormente para a casa da mãe da vítima.
Ponto 16 - O arguido controlava a vítima mediante o telemóvel e o correio eletrónico.

Pontos 22, 23, 24, 25, 26 e 27 - No dia 25 para 26 de dezembro de 2012, entre as 23h30 e as 00h30m, na residência comum do casal, o arguido pediu à vítima que dormisse consigo, ao que esta recusou, e ato contínuo o arguido a tivesse agarrado violentamente pelo pescoço e tivesse proferido a expressão é "agora que eu te mato", causando-lhe mal estar, e tivesse chamado a GNR.

20 - Se dúvidas existissem sobre a prática dos factos supra referidos pelo arguido sempre o tribunal teria dar por não provados tais factos, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo, pois todo o arguido se presume inocente, por força do princípio constitucionalmente consagrado no artigo 32 da CRP, e como bem o fez no que tange aos factos não provados; é pois patente que o tribunal a quo violou a interpretação constitucional do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127 do CPP, violação esta que implica a violação do princípio in dubio pro reo, o qual corresponde a uma das variantes do erro notório.

22 – Ora, entende-se que o tribunal a quo, na sua formação da convicção, apenas se poderá ter baseado nas declarações da vítima, que apreciou, a nosso ver mal, sobre as regras da experiência e a livre convicção, as quais ora se atacam e se impugnam, precisamente por se entender que existe um clara violação das regras da experiência comum ou da lógica.

23 - Quanto ao erro de direito ou erro de julgamento:

O tribunal a quo credibiliza, dá valor e entende ser crível, em sede de factos objetivos sobre os crimes de que o arguido vinha indiciariamente acusado, a própria confissão, ainda que parcial do arguido, dá por provado e motivado que o arguido tem problemas do foro psiquiátrico, que se encontra em tratamento no departamento de psiquiatria do Hospital do Espírito de Santo de Évora, frequentando consultas de psiquiatria e tomando medicação para a depressão, e que se encontra há cerca de 1 ano privado de liberdade, porque sujeito a medida de coação de permanência em habitação com vigilância electrónica.

24 – Contudo, e erroneamente, o tribunal a quo, aquando da escolha da medida da pena, em clara violação do artigo 368, 369 e 370 do CPP, omite, não leva em conta e, bem assim, não tira qualquer consequência para efeitos de aquilatação da culpa do arguido, que se entende devia ser tida por menor, se fosse legalmente atendido ao seguinte:

i) a confissão parcial do arguido
ii) os seus problemas do foro psíquico do arguido
iii) o facto do arguido já estar a cerca de 1 ano privado de liberdade
iv) Não valorou o relatório social que aponta para uma pena não privativa da liberdade.

25 - Pelo que se entende que as penas aplicadas ao arguido são desproporcionadas e extremamente elevadas, o que não se aceita.

26 – Nestes termos, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência:

a) Quanto ao crime de violência doméstica - ser dados por reconhecidos os vícios da sentença, no que respeita aos factos ora alegados em sede de recurso, e, em consequência, tais factos serem dados por "não provados";

b) Quanto ao crime de violência doméstica - caso sejam dados por provados alguns factos e podendo ser decidido o recuso sem o reenvio dos autos para nova apreciação da responsabilidade do arguido - entende-se que a pena parcelar aplicada é excessiva, que deverá ser aplicada uma pena perto dos limites mininos, mas suspensa na sua execução, sujeita a um regime de prova, que passe pela continuação dos tratamentos psiquiátricos e tomada de medicação para a depressão por parte do arguido, cujo consentimento presta desde já;

c) Quanto ao crime de incêndio - deverá o arguido ser absolvido do mesmo.
---
3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:

1 - Os factos provados integram, sem margem para dúvidas, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de violência doméstica imputado ao arguido e pelo qual foi condenado, pelo que quanto a este ilícito não ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al.ª a) do n.º 2 do art.º 410 do CPP.

2 - Os fundamentos que o arguido acaba por avançar nos n.ºs 6 a 11 das conclusões no sentido da existência deste vício constituem, afinal, a sua convicção da prova produzida, ou porque não existem testemunhas presenciais dos factos provados sob os n.ºs 10, 26, 27 e 28, ou porque as lesões descritas sob os n.ºs 15 e 16 não podem ser associadas a qualquer atuação do arguido.

3 - É, pois, a sua visão da prova produzida que o arguido pretende fazer vingar e não o vício que invoca, o qual, como o próprio reconhece, tem de resultar, em exclusivo, da decisão recorrida ou da sua conjugação com as regras da experiência comum.

4 - Já no que concerne ao crime de incêndio, assiste razão ao recorrente, porquanto, não ficou apurada, em julgamento, a titularidade do direito propriedade sobre o imóvel incendiado e o respetivo recheio, sendo certo que o art.º 272 n.º 1 al.ª a) do Cód. Penal exige a criação de «…perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado».

5 - Não indicando o acórdão recorrido a quem pertencem um e outro, e considerando-se que o património comum do casal não constitui bem alheio em relação a qualquer dos cônjuges, conforme vem sendo decidido pela jurisprudência dos tribunais superiores, importa definir em concreto a respetiva titularidade com vista a uma tomada de decisão sobre o preenchimento do tipo do crime de incêndio imputado ao arguido.

6 - Tanto mais que P, aos 10’48” da 3.ª parte do seu testemunho, referiu que a casa «…na caderneta está em meu nome (…) o terreno era do meu pai, o meu pai pagou tudo, maquinaria, ferragens, cimentos, areias, tudo e o A. construiu com a ajuda de amigos (…) o recheio umas coisas foram-nos dadas pelos meus pais outras comprámos a gente».

7 - Afigura-se, assim, que quanto ao crime de incêndio o acórdão padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a al.ª a) do n.º 2 do art.º 410 do CPP.

8 - O acórdão não padece do vício de erro notório na apreciação da prova, pois o recorrente não identifica sequer esse erro, que há-de ser notório, evidente, socorrendo-se, antes, das declarações das testemunhas para procurar fazer valer a sua visão do conjunto da prova.

9 - Reconhece-se razão ao arguido na parte em que afirma nas conclusões do seu recurso que não foi produzida prova, em julgamento, dos factos descritos sob os n.ºs 6, 28 e 31 dos factos provados, que, consequentemente, devem ser retirados desse segmento do acórdão e julgados não provados, porquanto, nenhuma das testemunhas se lhes referiu no decurso do julgamento nem outra prova foi sobre eles produzida.

10 - Já no que concerne ao n.º 17 constata-se que a testemunha F referiu que ouviu o pai dirigir à mãe a expressão “puta” e a queixosa referiu na 2.ª parte das suas declarações, aos 16’40” e segs., que o arguido disse-lhe: «um dia fechas os olhos e já não os abres. Um dia morres».

11 - Relativamente ao facto descrito no n.º 21 da matéria assente foi o mesmo referido pela queixosa, na 4.ª parte do seu testemunho, aos 13’00” e segs. - «era só pelo episódio de nós não termos as chaves e o gaiato com um ferro partiu o vidro da janela da irmã para entrar em casa» - e por AG, aos 15’00” e segs. da 1.ª parte do seu testemunho: «o F. não tinha as chaves de casa porque o pai lhas tirou (…) a P também não, também não entrava (…) Não, ninguém tinha chaves!»

12 - No que concerne ao facto constante do n.º 29 da matéria assente foi confirmado por P, aos 13’00” e segs. da 1.ª parte das suas declarações, por F, na 1.ª parte das suas declarações, aos 08’50” e segs. - «lembro-me do meu pai ter ligado para a minha mãe a ameaçá-la e dizia que quem entrasse em casa era tudo morto. Depois dela receber o telefonema disse-lhe mesmo tens que abalar daqui!» - e aos 11’50”: «foi nesse dia que eu abalei de casa. Ele foi ter comigo à pastelaria “O Chocolate” e disse-me que quem entrasse em casa era morto e que iria puxar fogo à casa e se queríamos tirar as coisas era já nesse dia» - e por AG, aos 09’00” da primeira parte das suas declarações: «No dia em que a P foi para a casa abrigo ele ameaçou que toda a gente que entrasse em casa era morto (…) eu ouvi da boca do Sr. A. pelo telefone, quando estava em casa da mãe da P».

13 - Consequentemente, devem tais factos ser mantidos na matéria de facto assente, tal como os factos julgados provados e descritos nos nºs. 4, 5, 7 a 10, 11, 12 a 14, 16 e 22 a 27.

14 - Com efeito, P descreveu os factos julgados provados sob os n.ºs 4 e 5, aos 02’00” da 2.ª parte das suas declarações - «ele deu um murro na cabeceira da cama (…) e se eu não tivesse saído rápido tinha-me pregado com aquilo na cabeça» - e aos 04’20” da 2.ª parte das suas declarações, quando questionada se a situação do arguido lhe perguntar quantos homens é que já lhe pularam para cima e se aconteceu mais do que uma vez respondeu “Sim”, e que foi na sequência de uma dessas situações que o arguido desferiu o murro que partiu cabeceira da cama.

15 - Os factos descritos sob os n.ºs 7 a 10 referiu-os na segunda parte do seu testemunho, aos 00’35” - «eu uma vez neguei-me, eu tinha uma cuecas e ele arrancou-mas do corpo (…) e criou uma nódoa negra aqui (…) ao puxar o elástico fez-me aqui uma nódoa negra» - e perguntada, aos 03’45” e segs., se esses factos aconteceram na sequência do arguido a acusar de ter amantes, respondeu que «Sim».

16 - Quanto aos factos constantes do n.º 11 verifica-se que foram referidos por P , aos 05’45” e segs. da 2.ª parte das suas declarações: «Começou-me a chamar para eu lhe dizer quem era ali o cabrão».

17 - Os factos julgados provados nos n.ºs 12 a 14 da matéria assente foram relatados pela queixosa aos 08’00” da 2ª parte das suas declarações: «ele deitou-se com nós as duas, ele começou a insistir, quem eram os amantes e a miúda começou a chorar (…) eu acabei por conseguir safar-me de casa e ir para casa da minha mãe».

18 - O facto descrito sob o n.º 16 resulta das declarações de P, aos 10’50” do seu testemunho: «…ele ia ver as mensagens dos telemóveis, quem tinha ligado (…) no facebook às vezes ia ver com quem estava a falar (…) ele estava sempre desconfiado que eu tivesse alguém».

19 - Quanto aos factos descritos sob os n.ºs 22 a 27, estes resultaram das declarações de P, aos 07’30” e segs. da 1.ª parte das suas declarações - «…estávamos a discutir, ele levantou-me para cima da cama, eu fiquei com as pernas caídas para fora da cama e com o tronco todo deitado em cima da cama. Ele ajoelhou-se em cima de mim e começou-me a apertar o pescoço e a tapar o nariz e a boca (…) eu chamei várias vezes pelo nosso filho, a nossa filha chamou-o e o irmão veio quando ele estava a apertar o pescoço (…) ele dizia que me matava (…) eu senti medo, fiquei vermelha e com dores» - aos 13’30” e segs. da 4.ª parte dessas declarações e aos 15’20” e segs. dessa 4.ª parte: «quando ele saiu de cima de mim eu abalei, ele agarrou nos sobrinhos e foi levá-los à Cumeada e disse: quando eu chegar a casa se esta mulher aqui estiver eu mato-a diante de vocês, isso foi ele a dizer ao filho. Eu aí fui-me embora.»

20 - Declarações confirmadas pelas de F, na 1.ª parte das suas declarações, aos 04’50” e segs.: «eu fui ao quarto ver, ele estava em cima dela com as duas mãos no pescoço, foi quando eu lhe disse o que é que está a fazer, tentei separá-los (…) a minha mãe estava deitada, de barriga para cima (…) na cama (…), 06’15” ficou com uma negra no pescoço, ficou em pânico (…) e aos 07’20” GNR foi lá a casa, estava eu no quarto (…) não foi no dia de consoada, foi no dia a seguir».

21 - Nos termos do disposto no art.º 127 do CPP a regra consiste na livre apreciação da prova, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

22 - O depoimento de P Rosado é plenamente válido e mostra-se consistente e conforme às regras da experiência comum e o tribunal recorrido explicita cabalmente os motivos da sua veracidade.

23 - Escrutinado o testemunho de P verifica-se que este se mostrou sempre bastante espontâneo, claro, descritivo, sem deixar de ser um depoimento emocionado, revelando o sofrimento demonstrado, que só pode ser resultado da vivência dos factos.

24 - As declarações de P são completamente credíveis, por consistentes e mantidas no tempo, conformes às regras da experiência comum e, consequentemente, atendíveis pelo tribunal, tanto mais que, em parte, foram corroboradas pelos testemunhos presenciais de F e de AG.

25 - Acresce que a queixosa, pelos pormenores que indicou, pela manifesta espontaneidade do seu depoimento, pela emoção com que se expressou, pela sua atitude corporal ao testemunhar, até pelos seus silêncios, ao ser confrontada com as questões que mais tocavam a vida íntima do casal, foi completamente credível, por verdadeira.

26 - Bem andou o tribunal ao considerar essas declarações, não se verificando qualquer dúvida razoável que exija a aplicação do princípio in dubio pro reo.

27 - O recorrente efetua uma diferente valoração daquele depoimento, mas sem demonstrar a existência de provas que imponham uma diversa solução quanto à factualidade provada, como exige o art.º 412 n.º 3 al.ª b) do CPP.

28 - De tudo o exposto, em conclusão, resulta que, na pendência do casamento que contraíram, o arguido, recorrentemente, de forma gratuita, dirigiu à sua mulher palavras ofensivas da sua honra e reputação, humilhou-a, ameaçou-a de morte e bateu-lhe.

29 - Tais factos, cada um deles considerado por si só e concatenados uns com os outros, preenchem todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado em primeira instância.

30 - Considerando o grau de ilicitude muito elevado, traduzido na reiteração do seu comportamento ao longo dos vários anos em que viveu com a queixosa, na seriedade das ameaças de morte dirigidas diretamente à sua mulher, que a fizeram temer pela vida ao ponto de ser obrigada a sair de casa, primeiro para casa dos pais e depois para uma casa abrigo, como forma de garantir a sua segurança.

31 - A culpa, também de grau muito elevado: o arguido agiu com dolo muito intenso (dolo direto), dirigindo palavras humilhantes e vexatórias à sua própria mulher, umas vezes no interior da residência do casal e na presença dos filhos de ambos e outras vezes perante terceiros, e realizando sérias ameaças de morte, acompanhadas de agressões físicas.

32 - A forte necessidade de prevenção geral deste tipo de condutas, resultante da enorme frequência com que ocorrem os crimes de violência doméstica.

33 - As condições pessoais do agente e a sua situação económica: o arguido sempre desenvolveu atividades laborais com as quais contribuía para o sustento do casal e dos filhos.

34 - A conduta anterior aos factos: o arguido não tem antecedentes criminais registados, circunstância que não podendo traduzir qualquer prémio, posto que é dever de qualquer cidadão manter uma conduta conforme com o direito, não será aqui de desconsiderar totalmente, atenta a sua idade à data da prática dos factos.

35 - A conduta posterior aos factos e as necessidades de prevenção especial: o arguido continua a não aceitar a separação do casal revelada pela deflagração do incêndio na casa de morada de família.

36 - Sopesando as circunstâncias indicadas, donde ressalta à evidência a preponderância das de cariz agravante, afigura-se que a pena de quatro anos de prisão aplicada no acórdão recorrido mostra-se adequada, pelo que deverá manter-se.

38. A postura do arguido ao longo do julgamento, demonstrando uma total indiferença em relação aos crimes cometidos, constituem indicadores mais do que suficientes de que a suspensão da execução da pena de prisão não salvaguarda devidamente as exigências de prevenção geral, pois é evidente que o arguido não oferece a mínima garantia de que no futuro irá conduzir a sua vida de acordo com aqueles mesmos valores e, por isso, a suspensão da execução da pena também não salvaguarda as exigências de prevenção especial.

38 - A necessidade de repor a confiança da comunidade nas normas violadas e a impossibilidade de formular um juízo de prognose social favorável ao arguido impedem, assim, que se decida pela suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado.
---
4. Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso (quanto ao crime de incêndio, relativamente ao qual entende ocorrer o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, e relativamente aos factos dados como provados nos pontos 6, 28 e 31, que entende que devem ser considerados não provados).

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).

6. Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:

1 - O arguido e a vítima P. casaram em 18 de setembro de 1993.

2 - Desse casamento nasceram dois filhos, F, nascido em 12-1-1993, e S, nascida em 24-09-2002.

3 - Desde o início do casamento que o arguido acusava a vítima de ter amantes.

4 - No ano de 2011, em data e hora não concretamente apuradas, na residência comum do casal sita ... em São Marcos do Campo, concelho de Reguengos de Monsaraz, encontrando-se a vítima deitada na cama do casal, no quarto de ambos, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Quantos homens já te pularam para cima?”.
5 - De seguida, desferiu um murro na cabeceira da cama, local onde a vítima se encontrava, apenas não lhe acertou pois esta conseguiu desviar-se.

6 - Em agosto de 2011 a ofendida passou a dormir juntamente com a sua filha S no quarto desta.

7 - No dia 31 de outubro de 2011 ou no dia 1 de novembro do ano de 2011, em hora não concretamente apurada, o arguido solicitou à vítima que fosse para a cama do casal, ao que esta, apercebendo-se que seria para manterem relações sexuais, concordou.

8 - Ali chegada, o arguido começou a discutir com a vítima, acusando-a novamente de ter amantes.

9 - Pelo que a vítima referiu ao arguido que não pretendia ter relações sexuais consigo.

10 - De seguida, o arguido rasgou-lhe as cuecas, causando-lhe um hematoma na zona da anca.

11 - No dia 2 de novembro de 2012, em hora não concretamente apurada, no Café ..., em São Marcos do Campo, o arguido dirigiu as seguintes palavras à vítima: “Ouve lá, diz-me lá quem é que é aqui o cabrão?” e “De ti já só quero o divórcio”.

12 - Nessa mesmo dia, pela noite, encontrando-se a vítima deitada na cama, juntamente com a filha, no quarto desta, o arguido dirigindo-se ao quarto da filha e disse-lhe: “já que tu dormes com a nossa filha, eu também durmo”; e deitou-se na cama com estas.

13 - De seguida, o arguido perguntou à vítima, gritando, com quem é que esta andava a traí-lo e com quem é que andava metida, enquanto a menor, que ali se encontrava, chorava pedindo ao pai que parasse.

14 - Face ao exposto, a vítima foi, juntamente com a sua filha, passar a noite a casa da sua mãe, que é contígua à residência do casal.

15 - Passado um tempo, a vítima ouviu um som similar a um disparo de arma.

16 - O arguido controlava a vítima de todas as formas, controlando-lhe o telemóvel e o correio eletrónico.

17 - Em datas e horas não concretamente apuradas, o arguido, por duas vezes, dirigiu as seguintes palavras à ofendida “puta” e “um dia fechas os olhos e já não abres”.

18 - No dia 2 de dezembro de 2012, dia de aniversário da vítima, o arguido encontrava-se a conduzir o veículo automóvel, juntamente com vítima e a sua filha S, e ao mesmo tempo que acelerava o carro dizia “tens de me dizer a verdade, tens que me dizer quem ele é”.

19 - Enquanto o arguido gritava, a filha do casal chorava e pedia-lhe para parar.

20 - No início do mês de dezembro de 2012, em dia e hora não concretamente apurada, o arguido ligou ao filho F. a dizer que se iria suicidar e que esta não precisava de se vestir de preto.

21 - Nesse mesmo dia o arguido trancou as portas da residência comum do casal, impossibilitando a vítima de ali entrar.

22 - No dia 25 para 26 de dezembro de 2012, entre as 23h30 e as 00h30, na residência comum do casal, o arguido pediu à vítima que dormisse consigo, ao que esta recusou.

23 - De seguida, o arguido agarrou-a violentamente pelo pescoço e atirou-a para cima da cama.

24 - Em consequência da atuação do arguido, a ofendida ficou com tronco no colchão e as pernas pendentes para o chão.

25 - Estando a vítima naquela posição, o arguido colocou-se em cima do tronco da vítima, de joelhos, enquanto lhe apertava o pescoço e tapava-lhe a boca, ao mesmo tempo que lhe dizia “eu mato-te, é agora que eu te mato”.

26 - Em consequência direta da atuação do arguido, a ofendida ficou com uma marca vermelha no pescoço e sofreu dores e mal estar geral.

27 - De seguida, a vítima dirigiu-se à casa da sua mãe e chamou a GNR.

28 - Confrontado com os factos, pelos elementos da GNR que se deslocaram ao local, o arguido referiu “que a próxima vez que a GNR lá fosse seria para levar o cadáver da ofendida”.

29 - No dia 26 de dezembro, próximo da hora de almoço, o arguido ligou para o telemóvel da ofendida e disse-lhe: “Quem quer que entrasse em casa, fosse ela, fossem os filhos, os mataria a todos”.

30 - Pelo que, novamente, a ofendida solicitou a presença da GNR, tendo sido acolhida numa casa abrigo.

31 - Nesse mesmo dia, o arguido voltou a ligar à ofendida e disse-lhe: “Quando te vir, a primeira coisa que te faço é matar-te”.

32 - No dia 4 de fevereiro de 2013, pelas 10h30, no interior da residência comum do casal sita..., São Marcos do Campo, em Reguengos de Monsaraz, o arguido, utilizando um isqueiro que, para o efeito, acendeu, e despejando previamente gasolina, ateou fogo em duas divisões da mencionada residência, no quarto do casal, especificamente, no colchão da cama e na sala de estar, concretamente, nos sofás ali existentes, fogo esse que se propagou por essas duas divisões.

33 - Nas restantes divisões da residência ocorreu a deposição de fuligem, bem como a produção de danos nos objetos ali existentes, atenta a exposição ao calor.

34 - Ao atuar da forma descrita, repetidamente, e por vezes em público e na presença dos filhos, o arguido pretendia maltratar a queixosa corporalmente, causando-lhe dores e ferimentos e, por outro lado, atingir o seu bem estar psicológico e fazê-la temer pela sua vida e integridade física, ameaçando-a, humilhando-a e fragilizando-a na sua relação conjugal, objetivos que logrou alcançar.

35 - Ao proferir as expressões supra descritas, de forma contínua e reiterada, quis o arguido causar-lhe sofrimento e humilhação, o que conseguiu, sabendo que as mesmas atingiam a honra e consideração pessoal da sua mulher.

36 - Estava o arguido ciente de que deveria abster-se de se comportar da forma descrita, atentos os laços que o uniam à ofendida, bem como que lhe devia especial respeito e carinho.

37 - O arguido atuou sempre de forma livre e consciente, apesar de saber que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

38 - Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o recheio existente nas mencionadas duas divisões (quarto do casal e sala) ficou completamente destruído pelo fogo e as paredes e tetos da casa, devido ao calor do fogo causado pelo arguido e ao fumo, ficaram com a pintura totalmente destruída.

39 - Os estragos causados pela conduta do arguido na estrutura da casa têm o valor global de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros).

40 - Ao atuar do modo descrito, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, no intuito que logrou alcançar de fazer arder a residência supra descrita e todo o seu interior, bem sabendo que dessa forma punha em risco e destruía, como o fez, o seu recheio.

41. O arguido bem sabia ser a sua conduta proibida por lei.

42. O arguido atuou sempre de forma livre e consciente, apesar de saber que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

43 - O arguido não tem antecedentes criminais.

44 – O arguido encontra-se sujeito a medida de coação de permanência na habitação com vigilância eletrónica desde o dia 9-2-2013, residindo com a mãe, reformada, auferindo cerca de 500 euros de pensão por mês. É esta que suporta as suas despesas, pois o arguido não tem qualquer rendimento.

45 – O arguido tem como habilitações literárias o 6.º ano de escolaridade.

46 – Trabalhou como pedreiro na Suíça. Após o regresso daquele país a Portugal, em dezembro de 2011, manteve-se inativo em casa e consumia bebidas alcoólicas em excesso.

47 – O arguido divorciou-se da ofendida em 27 de maio de 2013.

48 – Após o episódio que deu origem ao presente processo e o consequente ingresso na Unidade de Internamento de Psiquiatria do Hospital do Espírito Santo de Évora, manteve, até ao momento, o acompanhamento indicado, frequentando consultas de psiquiatria e tomando medicamentos para a depressão.
---
7. E não se provou:

a) que - na situação descrita em 18 e 19 - a determinada altura, perto da rotunda da Cumeada, a filha do casal tentou sair do veículo automóvel em andamento, o que só não conseguiu por ter sido agarrada pelo arguido. Após, o arguido parou bruscamente a viatura, tendo a ofendida e a filha saído rapidamente do veículo, ao que o arguido agarrou a vítima de forma a colocá-la à força no carro. Só não o logrou fazer, por a sua filha se ter agarrado à vítima, impedindo-o;

b) que o telefonema referido em 20 foi dirigido e efetuado à ofendida.

8. O tribunal formou a sua convicção – de acordo com a fundamentação – com base nos seguintes elementos de prova:

1) No depoimento do arguido, “na parte em que o mesmo admitiu que quando voltou da Suíça começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, achou a mulher e o filho distantes, o que o deixou triste e, numa altura em que «se foi abaixo», incendiou a casa onde residia com a mulher e os filhos, usando para o efeito gasolina e um isqueiro. Referiu que ainda pensou em se suicidar, permanecendo na casa em chamas, mas que sentiu muito calor e acabou por sair. Nesse dia, em casa da mãe, pegou numa corda para se suicidar. Não conseguia encarar o facto de a sua família se estar a desfazer. Está a ser acompanhado desde então por médico psiquiatra, que lhe prescreve medicamentos para a depressão. Vai às consultas respetivas de dois em dois meses.

… confirmou ainda que antes de incendiar a sua casa retirou da mesma documentos seus importantes.

Esta última declaração não é consistente com a explicação que dá para ter incendiado a sua casa – tentativa de suicídio. De facto, não faz sentido que tenha querido preservar documentos seus se efetivamente pensava em acabar com a sua vida. E se, de facto, desistiu de se suicidar, usando o fogo como meio para tal, não explicou o motivo pelo qual não tentou apagar o referido incêndio ou, pelo menos, contactar os bombeiros para o efeito. Tanto mais que… saiu de casa à pressa, ignorando a vizinha MT que o alertou para o facto de estar a sair fumo do seu quarto, bem como a vizinha MR, que nem sequer cumprimentou.

Por outro lado, não se mostrou coerente a sua versão dos factos, na parte em que negou toda a restante matéria que lhe é imputada, uma vez que não apresentou qualquer explicação plausível que justifique as marcas de lesões exibidas pela ofendida - marca vermelha no pescoço e nódoa negra na anca (esta última reproduzida no documento de fls. 18) - que permita perceber porque recorreu a ofendida a uma casa abrigo nem que explique os depoimentos emocionados e coerentes da sua ex-mulher, filho e namorada deste…”.

2) No depoimento de P., ex-mulher do arguido, que – de acordo com a perceção do tribunal – prestou um depoimento de “forma credível e coerente, pese embora fosse visível uma compreensível emoção. Referiu, além do mais, que casou com o arguido em 18-9-1993, estão divorciados, têm dois filhos menores, o F e a S, e viveram sempre juntos, à exceção do período em que ele esteve na Suíça (alguns meses, em 3 situações diferentes, uma das vezes há 2 anos).

No dia 26 de dezembro de 2012 foi para uma casa abrigo, porque tinha medo do arguido, de quem já se havia separado desde fins de outubro, princípios de novembro. Ela nessa altura já dormia na casa dos pais dela, contígua à sua. Já não aguentava mais as discussões e ofensas. Nesse dia 26, o seu filho disse que saía de casa se a mãe não procurasse ajuda.

Confirmou a situação descrita nos n.ºs 22 a 28, esclarecendo que a mesma ocorreu no quarto do casal, onde estavam a discutir. Ele atirou-a para cima da cama, tapou-lhe o nariz e boca e atirou-se para cima do tronco dela. A filha S chegou à porta viu o pai a apertar-lhe o pescoço e foi chamar o irmão. O arguido dizia que a matava. Teve medo. Ficou com o pescoço vermelho e com dores. Chegou a ter dificuldades em respirar. A situação só cessou com intervenção dos filhos. Foi para casa dos pais dela, onde ela já estava a dormir. O arguido tinha-lhe tirado a chave de casa. Quando ela precisava de coisas ligava-lhe e ele abria a porta, ela tirava o que precisava e ele voltava a fechar a porta.

Acrescentou que o arguido quando veio da Suíça estava descontrolado, não trabalhou mais, «era só beber e fumar, fumar e beber». Ele sempre foi ciumento. Mas com o tempo tornou-se obsessivo, dizia que ela tinha outro alguém na vida dela, o que era mentira. Confirmou que o mesmo lhe perguntava quantos homens haviam pulado para cima dela.

Uma vez negou-se a ter relações e ele arrancou-lhe as cuecas e ficou com nódoa negra (n.ºs 9 e 10) fotografada a fls. 18, foto que foi tirada uns dias depois dos factos. Outra vez ele deu um murro na cabeceira da cama e partiu a mesma. Ultimamente acusava-a de ter amantes, já a via com tudo e todos.

No café --, em São Marcos do Campo, que pertence ao seu irmão e a quem ela estava a ajudar, o arguido chamou-a e perguntou-lhe quem era ali o cabrão. «Ele já estava quente» (alcoolizado). Foi-se embora com filhos para casa. Já não havia diálogo.

Disse ainda a ofendida que houve outra noite que se deitou com ela e com a filha. Ela às vezes dormia umas noites com a S. Ele disse que se ela podia dormir com a filha também ele podia. A filha chorava. Ele gritava para ela dizer quem eram os seus amantes. Nessa noite foi para casa da mãe com a filha e depois ouviu algo que lhe pareceu um tiro. Chamou a GNR. Não sabia o que ele podia fazer. Ele não estava bem. Ela dizia para procurar psiquiatra ou psicólogo. Ele dizia que não estava maluco. Controlava-lhe o telemóvel e computador. Via os números para quem ela ligava, outras vezes as sms. Quando ela falava no facebook com a prima ele ia ver com quem ela estava a falar. Estava sempre desconfiado.

Uma vez ele ia a conduzir a grande velocidade, ela ia no carro, a filha também. Ela ainda puxou duas vezes o travão de mão, ele dizia que espetava com o carro numa oliveira e rocha. A filha pedia para ele parar.

Ele também lhe dizia «um dia fechas os olhos e depois já não os abres». Ela já nem dormia com medo do que pudesse acontecer. O filho F. também ouviu.

No dia 4-2-2013 ainda estava na casa abrigo, mas mandou a S. para os pais dela por causa da escola. Tinha 13 chamadas do arguido não atendidas. Ela telefonou, ele atendeu, mas não disse nada. Telefonou à mãe e soube que a casa dela estava a arder. Só viu a casa dia 20 de fevereiro. Foi horrível. Foi com o filho e namorada. Viu muitas coisas queimadas e destruídas com o fogo e água. Estragou-se muita coisa. Tinham uma boa casa. Valia tudo mais de 100 000 euros. Para reparar a casa são necessários 25 000 euros e substituir as coisas queimadas. A casa pega com a da mãe dela. Se os bombeiros não interviessem podia o fogo propagar-se. Havia duas garrafas de gaz na cozinha.
Antes disso o arguido telefonou ao filho a dizer que se ia matar, que não pusessem preto por ele.

Ficou com medo. Sentiu-se humilhada. Não perdoa o que ele fez à casa dos filhos. Mas não lhe deseja mal”.

3) No depoimento de F, filho do arguido e da ofendida, o qual, no essencial, confirmou as declarações prestadas pela ofendida.

Apesar de jovem, depôs de forma muito segura, embora visivelmente transtornado com a situação e muito ressentido com o arguido.

Esclareceu que viviam todos em São Marcos do Campo. Agora vive com avós. O pai esteve na Suíça 2 vezes nos últimos 3 anos. Quando o pai estava em casa havia dias em que havia discussões entre ele e a mãe. O pai tinha ciúmes da mãe. Ele dizia que a mãe tinha amantes.

No dia a seguir ao Natal do ano passado estava em casa com irmã. Ele estava no quarto a jogar playstation, a irmã foi chamá-lo e disse que o pai estava em cima da mãe. Ele foi ao quarto e viu o pai com os joelhos em cima da cama a apertar o pescoço da mãe.

Nesse dia a mãe foi dormir a casa da avó, que vive ao lado, e viu a mãe com uma marca vermelha no pescoço. Chamaram a GNR. No dia 26/12/12 o pai disse que quem entrasse em casa seria morto. Começou a achar que as ameaças eram sérias e disse a mãe para ir para a casa da avó.

A mãe já andava a dormir na casa da avó havia algum tempo, já tinha medo do arguido.

No dia dos anos da mãe dele (2/12/2012) a irmã ligou-lhe dizendo que o pai ia a conduzir com força, chorava e dizia que os pais estavam a guerrear. Quando chegaram a casa a mãe ia com medo e a irmã chorava, mal conseguia falar.

A partir de uma certa altura o pai trancou as portas de casa, a mãe não tinha livre acesso a mesma, tinha que lhe pedir as chaves ao pai. Ele (filho) antes de entrar tinha que perguntar se podia entrar.

Pelo menos duas a três vezes ouviu o pai dizer que os matava. Ele tinha armas, sempre gostou muito de caça. Tomou isso a sério. Depois disso a mãe foi para uma casa abrigo. Ele continuou a dormir lá em casa, não saía do quarto dele. Comia na avó, uma vez ou duas, na cozinha, com pai. Outras vezes ajudava no café e comia no café (do tio).

No dia 4-2-2013 adormeceu na casa da avó. A avó foi acordá-lo a dizer que a casa estava a arder. Viu a casa a deitar fumo. Era muito fumo. Foi a casa mas não conseguiu fazer nada, já tinham chamado os bombeiros. Viu o quarto dos pais ardido, a sala queimada, as paredes pretas, como fotografado a fls. 314 e segs. Os bombeiros tiraram garrafas de gaz do quintal. Nesse dia o pai ligou-lhe e disse: «ah ah ah consegui, venci». Era o n.º do pai e a voz dele. Desde esse dia nunca mais falou com o pai.

Ele e a irmã ficavam tristes com as zangas dos pais. A irmã ficava em pânico, não falava, chorava, chorava. Ouviu o pai chamar puta à mãe, uma vez. Mesmo antes de ir para a Suíça o pai tinha ciúmes e perguntava a mãe se tinha amantes”.

4) No depoimento de AG, namorada do F. desde 2011:

Referiu que quando começou o namoro, o arguido estava na Suíça. Quando ele regressou pela última vez, em 2012, ela costumava ir lá a casa aos fins de semana. Na passagem de ano foi lá passar o mesmo com eles. Estavam a comer a P recebeu uma sms era para os dois. Ela deu-lhe e ele viu e atirou o telemóvel para cima do lume. A relação deles não era muito boa. Ele implicava com a maneira dela vestir, falava de forma zangada, não gostava do decote, da blusa de gola alta, do cabelo esticado, do cabelo encaracolado, quando ela estava pintada, não estava. Criticava sempre a forma como ela se apresentava.

No dia que a P. foi para a casa de abrigo ele disse a todos que quem entrasse em casa era morto. Ouviu pelo telefone, estava na casa da mãe da P, com a P, namorado e avó deste. Antes disso ligou ao F. a dizer que se ia matar, para ele – F. - não se vestir de preto. A P. já dormia na casa da mãe dela.

No dia 2-12-2012, estava na casa do F., quando ligou a irmã do F. a chorar aos gritos a dizer que o pai ia com velocidade no carro e ele não parava. Quando regressaram, ainda o viu a dar um encontrão à P com os braços. Ela foi contra a ombreira da porta, ficou com dores no braço. A S. chegou a chorar muito. Correu para o irmão e para ela a chorar. Estava muito nervosa.

Nem o F. nem a P tinham chaves de casa. O arguido tirou-lhes as mesmas. A P andava com medo.

Ele disse que incendiava ou então, partia tudo em a casa, quando a P foi para a casa de abrigo.

No dia do incêndio, estavam deitados na casa da avó do F, quando esta veio avisar que ele tinha incendiado a casa.

Levantou-se, viu fumo, tudo a arder. Já não se conseguia entrar em casa, depois viu que ficou tudo queimado, especialmente o quarto do casal e a sala. A roupa dela toda tirada, o colchão fora da cama, na sala os álbuns do casamento no chão da sala. Apenas se recuperou a mobília do quarto da S. e do F. Depois disse, nesse dia, o pai ligou ao F. a dizer: «vocês pensavam que eu não vencia, mas eu já venci»”.

5) No depoimento de MT, vizinha do arguido, que mora do outro lado da rua:

Referiu que no dia do incêndio viu sair fumo pela janela, disse ao arguido: «olha lá o fumo a sair pela janela», e ele nada disse e continuou a entrar no seu carro.

Chamaram os bombeiros que apagaram o fogo, se não tivessem aparecido teriam ardido mais coisas”.

6) No depoimento de MR, vizinha do casal, que mora em frente do arguido:

Referiu que “no dia do incêndio, estava a falar com a vizinha MT. Viram o arguido a sair do portão dele e a entrar para carro. Ela disse-lhe: «A., está saindo fumo da janela». Ele não respondeu e entrou para o carro. O fumo saía da janela do quarto deles. A casa fica pegada a outras. Se os bombeiros não aparecessem teriam ardido mais coisas. O arguido nem sequer lhes disse bom dia, o que não era habitual”.

7) Considerou ainda, escreve-se na fundamentação:
O relatório de exame pericial de fls. 357 a 359, do qual se extrai que o produto inflamável utilizado pelo arguido para atear fogo à sua casa foi gasolina, o que, de resto, se mostra em conformidade com as declarações daquele.

O auto de notícia de fls. 36 a 41, datado de 5 de novembro de 2012, através do qual a P. dá conhecimento à GNR de Reguengos de Monsaraz de que é vítima de ameaças e agressões por parte do arguido;

Certidão de assento de casamento de fls. 91, que comprova que o arguido e a ofendida casaram em 18-09-1993;

Certidões de nascimento de fls. 94 e 97, que comprovam a filiação de F. e S.;

Fotografias de fls. 314 a 321, bem elucidativas do estado em que ficou a casa do arguido, após ter sido deflagrado o incêndio mencionado nos factos assentes, que de resto se mostra em conformidade com a descrição efetuada pela ofendida P .”.

E o CRC do arguido atualizado junto aos autos a fls. 535 (facto descrito no n.º 43) e as declarações do arguido (quanto aos factos descritos nos n.ºs 44 a 48), que nessa parte se mostram credíveis e em conformidade com o teor do relatório social junto aos autos (a fls. 538 a 542).

Relativamente aos factos não provados o tribunal considerou:

- por um lado, quanto aos referidos na al.ª a), que “o arguido não confirmou os referidos factos, a filha deste, recusou-se a prestar declarações e P - a outra pessoa que os presenciou - não os descreveu daquela forma. Nenhuma outra prova foi produzida nesta sede”;

- por outro, quanto aos referidos na al.ª b), porque P. e o seu filho F disseram que a comunicação em causa teve como alvo este último.
---
9. É sabido que as conclusões do recurso delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art.ºs 402, 403 e 412 n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e, a título de exemplo, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).

Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões que o recorrente pretende ver submetidas à apreciação do tribunal superior, sem perder de vista a natureza do recurso, que não se destina a um novo julgamento sobre o objeto do processo, mas a uma reapreciação da decisão recorrida por forma a corrigir os vícios ou erros de que a mesma enferme.

Feitas estas considerações, e atentas as conclusões da motivação do recurso assim consideradas – que, diga-se, não primam pela clareza e concisão - delas se retiram as seguintes questões colocadas à apreciação deste tribunal:

1.ª – A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP);

2.ª – A existência de erro notório na apreciação da prova (art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP);

3.ª – Se a pena aplicada – quanto ao crime de violência doméstica – é excessiva, devendo ser aplicada uma pena próxima dos limites mínimos, suspensa na sua execução.
---
9.1. - 1.ª questão (a insuficiência da matéria de facto para a decisão)

Alega o arguido que o acórdão recorrido enferma do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, porquanto:

Por um lado, não foi produzida qualquer prova que permita concluir que o arguido praticou os factos descritos nos pontos 10, 15, 16, 26, 27 e 28 da matéria de facto dada como provada, relativamente ao crime de violência doméstica;

Por outro, da fundamentação não resultam factos de que possa extrair-se o dolo de perigo na atuação do arguido, sendo que os dados como provados não preenchem os elementos objetivos do crime de incêndio, ou seja, a criação de perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado.

A – Quanto ao crime de violência doméstica.

A insuficiência da matéria de facto para a decisão, enquanto vício da sentença, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP, existirá quando – apreciada a decisão recorrida, na sua globalidade – se chega à conclusão que existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão, seja porque o tribunal não se pronunciou sobre toda a factualidade – relevante - alegada em sede de acusação/pronúncia e contestação, enquanto peças delimitadoras do objeto do processo/julgamento (havendo, por isso, uma omissão de pronúncia sobre factos relativamente as quais o tribunal devia pronunciar-se), seja porque omitiu o dever de investigar determinados factos – de que lhe era lícito conhecer – essenciais para a decisão, não sendo os factos apurados, por isso, suficientes para a decisão.

Em síntese – e como se escreveu no acórdão do STJ de 24.07.98, Proc. 436/98, que mantém atualidade – “a insuficiência da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada.

Para que exista aquele vício é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida, por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria de facto.

Não ocorre aquele vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar.

A demonstração dessa insuficiência não pode emergir da mera discordância em relação à forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida, pois aí poderá haver erro de julgamento…”, que – repete-se – não se confunde com aquele vício.

Diga-se que tal vício terá de resultar do texto da decisão recorrida, na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como expressamente resulta do art.º 410 n.º 2 do CPP, sem o recurso a outros elementos que, constando eventualmente do processo, não constam da decisão, o que equivale a dizer que essa necessidade de averiguar outra factualidade há-de resultar da própria decisão.

Assim entendido, e como resulta das razões em que o recorrente baseia a alegada existência de tal vício, bem se vê que estas nada têm a ver com a insuficiência da matéria de facto para a decisão - enquanto vício da sentença, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP – mas antes com a insuficiência de provas para o tribunal dar como provados tais factos, ou seja, com erro de julgamento da matéria de facto, questão que com aquela não se confunde.

Improcede, por isso, a invocada insuficiência da matéria de facto para a decisão.
---
B – Quanto ao crime de incêndio
Alega o recorrente que da fundamentação não resultam factos de que possa extrair-se o dolo de perigo da atuação do arguido, sendo que os dados como provados não preenchem os elementos objetivos do crime de incêndio, ou seja, a criação de perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado.

Valem aqui as considerações supra expostas a propósito dos pressupostos da insuficiência da matéria de facto para a decisão, considerações que, assim consideradas, permitem concluir que não estamos, também aqui, perante a insuficiência da matéria de facto para a decisão; a insuficiência da matéria de facto para a decisão supõe a existência de factos – alegados ou resultantes da discussão da causa – relevantes para a decisão e que, devendo ser averiguados, não o foram.

O que aqui está em causa é que a matéria de facto – tal como alegada em sede de acusação e demonstrada em sede de julgamento – não preenche todos os elementos objetivos do tipo de crime de incêndio imputado ao arguido.

De facto, o crime de incêndio, p. e p. pelo art.º 272 n.º 1 al.ª a) do CP, exige a criação de “… perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado”, sendo que o acórdão é completamente omisso quanto à factualidade que integra este elemento objetivo do tipo – “a criação de perigo para a vida a integridade física ou para bens patrimoniais de elevado valor” – pelo que, sem tais factos, não se pode dizer que estejam preenchidos todos os elementos que integram o crime de incêndio pelo qual o arguido foi condenado.

Por outro lado, não constando tais factos da acusação, não se pode dizer que estejamos perante uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, enquanto vício da sentença, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP, pois que a insuficiência da matéria de facto para a decisão só ocorre quando essa matéria – em falta - faça parte do objeto do processo, delimitado pela acusação, pela defesa e demais factualidade que ao tribunal seja lícito conhecer.

A entender-se de modo diferente violar-se-iam de modo flagrante os direitos de defesa do arguido, que seria confrontado com factos novos – relevantes (tão relevantes que sem eles não se mostram preenchidos os elementos que integram o crime) - relativamente aos quais não teve oportunidade de se defender.

Consequentemente, não se demonstrando que o incêndio tivesse criado qualquer perigo “para a vida ou para a integridade física de outrem” ou “para bens patrimoniais alheios de valor elevado” (tratando-se da casa de morada de família não resulta demonstrado que fosse criado perigo para bens patrimoniais alheios), não se mostra preenchido um dos elementos objetivos do tipo, pelo que, relativamente ao crime de incêndio, não pode o arguido deixar de ser absolvido.

A procedência desta questão prejudica o conhecimento da impugnação da matéria de facto relativamente a este crime (pontos 38 a 40), sendo que a referência ao ponto 35 parece resultar de um lapso manifesto, já que não respeita a este crime, pois que o seu conhecimento, ainda que viesse a proceder o alegado, redundaria em mera inutilidade, sem consequências jurídicas, face ao que antecede.
---
9.2. – 2.ª questão
Entende o arguido que o tribunal errou na análise que fez da prova ao dar como provados os pontos 6, 17, 21, 28, 29 e 31 da matéria de facto, parecendo daí inferir que ocorre um erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP.

O erro notório na apreciação da prova, enquanto vício da decisão, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª c) do CPP, existirá e será relevante quando, apreciada a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, dela ressalta como evidente, manifesta, uma falha grosseira na análise e valoração da prova, porque se deu como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido.

Dito de outro modo, haverá “um tal erro quando um homem médio, perante oque consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou, mesmo, contraditórios” (Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 4.ª edição, 76).

Ora, assim entendido, e tendo em atenção a matéria de facto dada como provada e respetiva fundamentação, não se pode dizer que se verifica o invocado erro notório na apreciação da prova, enquanto erro que ressalte da decisão recorrida como evidente, manifesto, pondo à evidência que os factos – de acordo com as regras da experiência comum – não podem ter ocorrido como da mesma constam.

A eventual errada valoração da prova – ou de algumas provas – não se confunde com aquele vício, entendido nos termos acima expostos, reconduzindo-se, antes, a um erro de julgamento da matéria de facto, questão que de seguida se analisará.
---
A divergência do recorrente – sob o pretexto da invocada insuficiência da matéria de fato para a decisão e erro notório na apreciação da prova, relativamente ao crime de violência doméstica - reconduz-se à errada valoração da prova produzida em julgamento (ou sua inexistência), que, no seu entender, não permite dar como provados:

1) Os factos descritos nos pontos 10, 15, 16, 26, 27 e 28 da matéria de facto dada como provada, por – em síntese – não existir “qualquer referência a meios de prova ou qualquer referência ao processo valorativo…” em que o tribunal se baseou para dar como provados tais factos;

2) Os factos descritos nos pontos 6, 17, 21, 28, 29 e 31 da matéria de facto, por “nenhuma das testemunhas de acusação” ter relatado tais factos em julgamento;

3) Os factos descritos nos pontos 3 a 5, 7 a 14, 16, 22 a 27, “porquanto, o arguido não confirmou os referidos factos, a filha deste recusou-se a prestar declarações e P – a outra pessoa que os presenciou – não os descreveu daquela forma…”.

Vejamos.
Quanto ao primeiro grupo de factos supra enunciados, o tribunal, de acordo com a fundamentação que apresentou, baseou a sua convicção:

- No depoimento da testemunha P, que depôs em tribunal (de acordo com a perceção que o tribunal teve do seu depoimento) “de uma forma credível e coerente, pese embora fosse visível uma compreensível emoção”.

Relatou: “… uma vez negou-se a ter relações e ele arrancou-lhe as cuecas e ficou com nódoa negra… fotografada a fol.ªs 18, foto que foi tirada uns dias depois dos factos… houve outra noite que se deitou com ela e com a filha. Ela às vezes dormia umas noites com a S… Ele gritava para ela dizer quem eram os seus amantes. Nessa noite foi para casa da mãe com a filha e depois ouviu algo que lhe pareceu um tiro. Chamou a GNR. Não sabia o que ele podia fazer. Ele não estava bem… Controlava-lhe o telemóvel e computador. Via os números para quem ela ligava, outras vezes as sms. Quando ela falava no facebook com a prima ele ia ver com quem ela estava a falar. Estava sempre desconfiado…”.

Confirmou “a situação escrita nos n.ºs 22 a 28, esclarecendo que a mesmo ocorreu no quarto do casal, onde estavam a discutir. Ele atirou-a para cima da cama, tapou-lhe o nariz e boca e atirou-se para cima do tronco dela. A filha S chegou à porta e viu o pai a apertar-lhe o pescoço e foi chamar o irmão. O arguido dizia que a matava. Teve medo. Ficou com o pescoço vermelho e com dores. Chegou a ter dificuldades em respirar. A situação só cessou com a intervenção dos filhos. Foi para casa dos pais dela, onde ela já estava a dormir…”.

No depoimento da testemunha F – que no essencial confirmou o depoimento da mãe – tendo deposto (de acordo com a perceção que o tribunal teve do seu depoimento) “de forma muito segura, embora visivelmente transtornado com a situação e muito ressentido…

No dia a seguir ao Natal do ano passado estava em casa com a irmã. Ele estava no quarto a jogar playstation, a irmão foi chamá-lo e disse que o pai estava em cima da mãe. Ele foi ao quarto e viu o pai com os joelhos em cima da cama a apertar o pescoço à mãe.

Nesse dia a mãe foi dormir a casa da avó, que vive ao lado, e viu a mãe com uma marca vermelha no pescoço. Chamaram a GNR.

No dia 26/12/2012 o pai disse que quem entrasse em casa seria morto…

A mãe já andava a dormir na casa da avó havia algum tempo, já tinha medo do arguido…”.

- No documento de fol.ªs 18, exibido em audiência, onde é visível uma nódoa negra na anca da ofendida.

Ou seja, o tribunal – no que respeita, concretamente, aos factos descritos nos pontos 10, 15, 16 e 26 da matéria de facto provada - disse claramente quais as provas que em que se baseou para dar como provados tais factos e porque razão tais provas lhe permitiram formar a sua convicção nesse sentido e não noutro, em síntese, porque os depoimentos da ofendida e do filho F – que relataram tais factos, nos termos que se deixaram transcritos (o F apenas quanto aos descritos nos pontos 26) - o fizeram de forma coerente e segura, em termos que ao tribunal mereceram credibilidade, conjugados com o documento de fol.ªs 18 e com as declarações do arguido, que não apresentou qualquer explicação plausível – de acordo com as regras da experiência comum - que justifique as marcas exibidas pela arguida, o depoimento emocionada que prestou em audiência de julgamento (bem percetível na gravação do seu depoimento) e o acolhimento da mesma numa casa abrigo, na sequência dos factos ocorridos na noite de 25 para 26 de dezembro de 2012.

E esta convicção assim apresentada tem lógica, é coerente, e está racionalmente justificada, em termos de deixar perceber perfeitamente a correção de raciocínio lógico dedutivo que o tribunal seguiu na análise que fez das provas, uma análise conforme com as regras da experiência comum e os critérios da normalidade, em suma, no rigoroso respeito pelo princípio da livre apreciação da prova a que se encontra vinculado, ex vi art.º 127 do CPP.

É destituída de fundamento, consequentemente, a afirmação de que não existe “qualquer referência a meios de prova ou qualquer referência ao processo valorativo…” em que o tribunal se baseou para dar como provados tais factos;

Diga-se ainda:
- por um lado, que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas (art.º 125 do CPP), pelo que nada obstava a que o tribunal valorasse (como valorou) o documento de fol.ªs 18, em conjugação com as demais provas produzidas (designadamente, o depoimento da ofendida supra referido, quanto ao episódio de 31/10 ou 1/11/2011) e as regras da experiência comum;

- por outro, que as provas não valem tanto pela sua quantidade, designadamente, no que respeita à prova testemunhal, mas pela sua qualidade, atendendo ao modo como são produzidas e à credibilidade que mereçam ao tribunal, pelo que nada obsta que o tribunal forme a sua convicção com base no depoimento da ofendida, que ao tribunal, pela forma como foi prestado, mereceu credibilidade e em grande parte foi corroborado pelo seu filho F, depoimentos que, de acordo com uma análise criteriosa, segundo as regras da experiência comum e da lógica, lhe permitiram concluir que os factos assim se passaram (deve notar-se que a maioria das vezes estes crimes ocorrem no seio familiar, no aconchego do lar, sem a presença de estranhos, pelo que é natural que não haja outras testemunhas para além dos intervenientes, o que não obsta a que tais factos possam ser provados, e muitas vezes o são, apenas com base no depoimento da ofendida).

Relativamente ao ponto 28, e de acordo com a fundamentação, não se descortina – efetivamente - qualquer prova que tenha sido produzida a esse respeito, pelo que, na ausência de prova que permita dar tal facto como provado, o mesmo não pode deixar de ser considerado como não provado.
---
Relativamente ao segundo grupo dos factos supra enunciados (os descritos nos pontos 6, 17, 21, 28, 29 e 31), e sendo certo que relativamente ao ponto 28 já nos pronunciámos, deve dizer-se, por um lado, que não se descortina na fundamentação qualquer prova que tenha sido produzida sobre a factualidade vertida nos pontos 6 e 31, por outro, que a prova produzida permita concluir que o arguido, no dia 26.12.2012, próximo da hora do almoço, tenha ligado para o telemóvel da ofendida e lhe tenha dito que “quem quer que entrasse em casa, fosse ela fossem os filhos, os mataria a todos” (facto descrito no ponto 29), pois que a ofendida (a quem, supostamente, foi dirigido esse telefonema) não confirmou a existência desse telefonema (com o teor que aí consta), pelo que tal facto não encontra suporte na prova produzida.

Relativamente aos pontos 17 e 21 o recorrente, concluindo que da audição da prova não é possível concluir pela prática, por parte do arguido, desses factos, não concretiza quaisquer provas concretas que permitam concluir que o tribunal errou na análise que fez das provas (os depoimentos das testemunhas P e F. transcritos nada têm a ver com essa matéria) que lhe permitam dar como provados tais factos, concretamente, porque razão haveria o tribunal de dar como não provados tais factos, sendo certo que – deve dizer-se – ao recorrente que divirja da convicção que o tribunal formou não basta manifestar a sua divergência, impondo-lhe a lei (art.º 412 n.º 3 al.ª b) do CPP) que concretize as provas que impõem decisão diversa, ou seja, as provas que, de acordo com uma análise racional e crítica, demonstrem que o tribunal errou na análise que fez das provas, que – de acordo com tais princípios - outra devia ser a convicção que o tribunal formou, ónus a que o recorrente, relativamente a tal matéria, não deu cumprimento, não havendo, por isso, razões para questionar a convicção que o tribunal formou relativamente a tal matéria.

Improcede, por isso, a impugnação da matéria de facto relativamente aos pontos 17, 21, procedendo quanto aos pontos 6, 28, 29 e 31.
---
Resta o grupo de factos descritos nos pontos 3 a 5, 7 a 14, 16 e 22 a 27 da matéria dada como provada, que o recorrente entende que deviam ser dados como não provados - “porquanto, o arguido não confirmou os referidos factos, a filha deste recusou-se a prestar declarações e P – a outra pessoa que os presenciou – não os descreveu daquela forma…” – concluindo, em relação a cada facto, que devia ser dado como não provado:

Ponto 3 – “desde o início do casamento o arguido acusava a vítima”;
Ponto 4 – “no ano de 2011”;
Ponto 5 – “desferiu um murro na cabeceira da casa e apenas não acertou na vítima porque esta se conseguiu desviar”;
Pontos 7, 8, 9 e 10 – “no dia 31 de outubro ou no dia 1 de novembro de 2011 o arguido tivesse solicitado à vítima que fosse para a cama do casal, ao que esta, apercebendo-se que era para manter relações sexuais, concordou, e ali chegado o arguido tivesse discutido com a vítima, acusando-a novamente de ter amantes”;
Ponto 11 – “ter o arguido dito «de ti só quero o divórcio”;
Pontos 12, 13 e 14 – “nesse mesmo dia (2 de novembro de 2012), pela noite, e na sala do casal, o arguido se tivesse deitado com a vítima e a filha, e o arguido «tivesse perguntado à vítima, a gritar, com quem é que esta andava a traí-lo e com quem é que ela andava metida (tendo a filha pedido ao pai que parasse) e tivessem ido posteriormente para a casa da mãe da vítima”;
Ponto 16 – “o arguido controlava a vítima, mediante o telemóvel e correio eletrónico”;
Pontos 22, 23, 24, 25, 26 e 27 – “no dia 25 para 26 de dezembro de 2012, entre as 23h30 e as 00h30, na residência comum do casal, o arguido pediu à vítima que dormisse consigo, ao que esta recusou e, ato contínuo, o arguido a tivesse agarrado violentamente pelo pescoço e tivesse proferido a expressão é «agora que eu te mato», causando-lhe mau estar e tivesse chamado a GNR”.
---
Como se vê da fundamentação, o tribunal formou a sua convicção, relativamente a tais factos, nos depoimentos das testemunhas P. – que prestou um depoimento de forma “credível e coerente” (sic), relatando os factos de que foi vítima, referindo que “ele sempre foi ciumento… com o tempo tornou-se obsessivo…” – e F, que “no essencial confirmou as declarações” prestadas por aquela, prestando um depoimento “de forma segura, embora visivelmente transtornado com a situação e muito ressentido com o arguido”.

As razões invocadas pelo recorrente resumem-se a alguns – curtos - excertos retirados da gravação (fol.ªs 619 a 621 dos autos) dos depoimentos da ofendida e da testemunha F.

Preliminarmente deve dizer-se que o que está em causa e importa provar é a factualidade objetiva imputada ao arguido na acusação – não o depoimento da vítima, enquanto elemento de prova da acusação, a apreciar e valorar criticamente pelo tribunal, em conjunto com os demais elementos de prova, de acordo com as regras da experiência e da lógica do homem médio - não relevando para afastar a prova dessa factualidade pequenas diferenças de pormenor quanto à forma como a vítima a descreve, depois, deve reafirmar-se que nada obsta a que a prova possa ser feita apenas com base no depoimento de uma testemunha, desde que esta mereça credibilidade ao tribunal - como no caso aconteceu – por outro lado, ainda, as provas têm que ser apreciadas e analisadas na sua globalidade, no concreto contexto em que são produzidas, e não retirando aqui e além excertos ou transcrições do depoimento prestado, desvirtuando a essência do seu conteúdo.

Feitas estas considerações deve dizer-se que, de acordo com as transcrições do depoimento da vítima e da testemunha Fábio - e ouvidas as respetivas gravações - há efetivamente alguns factos cuja prova não se descortina, ou seja, que – de acordo com tais depoimento, que lhe servem de fundamento - não resultam provados.

Referimo-nos, concretamente, aos factos descritos:

- No ponto 3: a vítima disse que “ultimamente era só amantes, amantes…”, que o arguido sempre foi uma pessoa ciumenta, desde o namoro, que “pensava que eu andava com alguém…”, expressões que (e outras não existem que afastem tal entendimento) não permitem a conclusão de que a acusação de que a vítima tinha amantes ocorria desde o início do casamento (podia ser ciumento – e a vítima disse que também o era – e pensar que a vítima andava com alguém, circunstâncias que não permitem concluir que a acusava de ter amantes “desde o início do casamento”);

- No ponto 11: a vítima nada referiu quanto ao divórcio, pelo que a expressão “de ti só quero o divórcio” não tem, de facto, qualquer suporte nas provas produzidas;

- No ponto 27: a vítima confirma que de seguida se dirigiu à casa da sua mãe, mas não confirma que tenha chamado a GNR (sendo que o que aí se afirma é que foi ela que chamou a GNR) e do depoimento da testemunha Fábio, que coloca a GNR no local nessa noite, não se conclui – com a certeza exigível, até porque a mãe não confirma que a tivesse chamado – que fosse a ofendida a chamar a GNR na sequência dos factos antes ocorridos (quando tal facto foi perguntado à ofendida disse que pensa que não – que não chamou – durante o dia 26 é que falou).

Procede, por isso, a impugnação da matéria de facto relativamente aos pontos 3, 11 e 27 da matéria de facto dada como provada.

Relativamente à demais factualidade não tem razão o recorrente.

- Ponto 4: questiona o arguido que essa factualidade tenha ocorrido “no ano de 2011”, porque a vítima relatou que “… agora, ultimamente, quando nós, marido e mulher, acabávamos de fazer sexo ele dizia «quantos já te pularam para cima de ti», expressão que – tal como se apresenta – não permite afastar a prova de tal facto, ou seja, da palavra ultimamente não se retira, lógica e necessariamente, que tal factualidade não ocorreu (também) numa data não concretamente apurada do ano de 2011;

- Ponto 5: pretende o arguido que o tribunal não devia dar como provado tal facto porque a vítima, quando lhe foi perguntado, disse não se lembrar do dia em que o arguido “desferiu um murro na cabeceira…” (nas circunstâncias descritas no ponto 5), circunstância que não impõe, lógica e necessariamente, a conclusão de que tal não aconteceu, ou seja, que o arguido “desferiu um murro na cabeceira da casa e apenas não acertou na vítima porque esta se conseguiu desviar”;

- Pontos 7 a 10: relativamente ao facto descrito no ponto 10 já acima nos pronunciámos, por outro lado, não se percebe porque razão o recorrente questiona a prova de tais factos, com base na transcrição do depoimento da vítima (feita pelo arguido), quando o que dessa transcrição se retira é que os factos efetivamente ocorreram, nas circunstâncias aí descritas, não havendo quaisquer razões para questionar o depoimento da vítima, em circunstâncias que bem evidenciam a seriedade com que foi prestado (veja-se que o que está em causa é a reação do arguido à recusa da vítima em ter relações sexuais consigo e as consequência da sua conduta, não permitindo conclusão diversa os pormenores como a vítima relata a situação, no essencial coincidentes com a factualidade dada como provada);

- Pontos 12 a 14: parece o arguido pretender a não prova de tais factos porque a ofendida, quando lhe foi perguntado, disse não se recordar da data – conforme transcrição feita pelo recorrente; ora, essa circunstância não permite concluir, só por si, ou melhor, não impõe a conclusão de que tal facto não ocorreu (aliás, de acordo com os critérios da normalidade não é exigível que a vítima, perante toda uma vivência de conflito e agressividade que se prolongou durante anos, se lembre de todas as datas em que ocorreram episódios de violência);

- Ponto 16: já acima nos pronunciámos quanto à matéria constante deste ponto, que resultou provada com base no depoimento da ofendida, não havendo razões para a questionar a seriedade do mesmo – que o recorrente, aliás, não questiona – sendo que do facto da ofendida ter facultado ao arguido – como declarou – as senhas de acesso ao telemóvel e correio eletrónico não afasta a conclusão de que ele a controlava, nos termos dados como provados (pelo contrário, desse modo até estava facilitado tal controlo);

- Pontos 22 a 26: questiona o arguido a prova de tais factos com base na transcrição do depoimento da vítima, transcrição que, na sua essência, corresponde à factualidade dada como provada, pelo que nem se percebe porque razão, no entender do recorrente, haveria o tribunal e dar como não provada tal factualidade - “ele nessa noite… estávamos no nosso quarto, estávamos a discutir, ele levantou-me para cima da cama, eu fiquei com as pernas caídas para fora da cama e com o tronco todo deitado em cima da cama. Ele ajoelhou-se em cima de mim e começou a apertar o pescoço e a tapar o nariz e a boca… ele dizia que me matava… eu senti medo, fiquei vermelha e com dores…” - factualidade que é confirmada pela testemunha F, que viu o pai em cima da mãe com as duas mãos no pescoço, que separou, e uma negra no pescoço da mãe, sendo que daquela conduta não podiam deixar de resultar, como consequência lógica e necessária, de acordo com as regras da experiência comum, dores na vítima.

Assim, concluindo, em face do que se deixa dito, em obediência ao princípio in dubio pro reo, decide-se:

1) Dar como não provada a matéria constante dos pontos 6, 28, 29 e 31 da matéria de facto dada como provada, que passa a constar da matéria de facto não provada;

2) Eliminar do ponto 3 da matéria de facto dada como provada a expressão “desde o início do casamento”;

3) Eliminar do ponto 11 da matéria de facto dada como provada a expressão “de ti já só quero o divórcio”;

4) Eliminar do ponto 27 da matéria de facto dada como provada a expressão “e chamou a GNR”.
---
Relativamente ao mais – e para além de quanto supra se deixou dito - não pode deixar de se vincar que, vigorando entre nós o princípio da oralidade e da imediação – privilégio de que desfruta o tribunal da 1.ª instância perante o qual foi produzida a prova – e não dispondo este tribunal, que não contactou com tais provas, de elementos que permitam questionar a credibilidade que lhe mereceram os depoimentos prestados, concretamente, da vítima e da testemunha F, a simples divergência do recorrente quanto à convicção assim formada – racionalmente justificada, nos termos que da fundamentação constam – não é razão bastante para questionar a bondade da decisão recorrida.

Deve notar-se - como se escreveu no acórdão desta Relação proferido no Proc. 2698/97-1, que mantém actualidade - que “… a prova gravada e em parcelas transcrita nunca poderá suprir a abundância de pormenores que a oralidade e a imediação proporcionam ao juiz quando aprecia a prova que… se desenrola no tribunal. O modo como o arguido… as testemunhas depõem, as suas reações, as suas reticências, a sua mímica, são fatores decisivos na formação de uma convicção e não podem ser captados pela frieza assética de quaisquer meios mecânicos…”.

E que - como se escreve no acórdão da RP de 5.06.2002, in www.dgsi.pt“a atividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espetadores, recetores de depoimentos. A atividade judiciária… há-de atender a uma multiplicidade de fatores que têm a ver com as garantias da imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança... as coincidências, as contradições, não raras vezes o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios que tenham merecido a confiança do tribunal...”.

Por isso se tem entendido (ver, v.g., o acórdão do STJ de 13.02.2003, in www.dgsi.pt) que, “se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que proferida em obediência à lei, que impõe que ele julgue de acordo com a sua convicção. Isto é mesmo assim, quando… houver documentação da prova, de outra maneira seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação”.

No mesmo sentido pode ver-se o acórdão do TC de 30.03.2004, DR, II Série, de 2.06.2004, onde se escreveu – em síntese - que “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode… assentar de forma simplista no ataque da fase final de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente, os dados objetivos que se apontam na motivação… doutra forma seria uma inversão das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem julga pela convicção dos que esperam a decisão”.

Por conseguinte – e concluindo – as razões invocadas pelo recorrente (e a análise que faz das provas produzidas, fora do contexto em que foram proferidas) não permitem concluir – relativamente à impugnação da matéria de facto acima julgada improcedente – que o tribunal tenha errado na análise que fez das provas produzidas, uma análise racionalmente justificada e conforme com as regras de experiência comum e os critérios da normalidade da vida, e, por consequência, que permitam formular qualquer juízo de censura quanto ao decidido nessa parte.
---
9.3. – 3.ª questão
Relativamente ao crime de incêndio já acima nos pronunciámos, pelo que nada mais há a dizer nesta sede.

Relativamente ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152 n.ºs 1 e 2 do CP, com pena de prisão de 2 a 5 anos, o tribunal condenou o arguido na pena de quatro anos de prisão.

Para assim decidir o tribunal ponderou:

- o grau elevado da ilicitude dos factos e a violação dos deveres impostos ao agente (a integridade física, a honra, vida familiar), alvo de elevada tutela jurídica (como se infere, dizemos nós, da moldura da pena prevista para o crime);

- as consequências (para as vítimas) do crime de violência doméstica, quer a nível físico, quer a nível emocional;

- as elevadas exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir, tendo em conta a frequência com que este tipo de crimes continua a ocorrer e – dizemos nós - o sentimento de insegurança e impunidade que o mesmo gera na comunidade, quer pela frequência com que ocorre, como alguma comunicação social nos dá conta diariamente, quer pela dificuldade da sua prova, já que normalmente ocorre no seio familiar;

- o facto do arguido não ter revelado em audiência qualquer sinal de arrependimento ou que de algum modo interiorizou a gravidade da sua conduta;

- a ausência de antecedentes criminais e a modesta condição económica;

- as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir, face à repetição da conduta e à postura do arguido em julgamento, “fazendo antever a possibilidade de… voltar a agir de modo idêntico…” (sic).

A divergência do recorrente quanto à pena concretamente aplicada relativamente a este crime assenta, como se vê da fundamentação, na confissão do arguido, ainda que parcial – quando tal facto, relativamente a este crime, não se verifica – no facto do arguido ter problemas psiquiátricos e se encontrar em tratamento, e no facto de se encontrar privado da liberdade há cerca de um ano.

Ora, por um lado, não é verdade que o arguido tenha confessado os factos – que não confessou, confissão que, aliás, é contraditória com a postura que assume em sede de recurso – por outro lado, a privação da liberdade à ordem deste processo (enquanto medida cautelar) e o facto de se encontrar em tratamento psiquiátrico (após os factos) em nada contribuem para a diminuição da culpa do arguido – enquanto juízo de censura que recai sobre a sua conduta – ou para a desnecessidade da pena, pois que tal facto, só por si, não permite qualquer prognose favorável quanto ao seu futuro próximo, ou seja, quanto ao seu modo de vida futuro em conformidade com as normas vigentes.

A pena aplicada, atentos os fundamentos em que se funda – ainda que tendo em consideração a alteração da matéria de facto, nos termos que acima se deixaram expostos, já que se trata de alteração que não diminui, em termos significativos, a ilicitude do facto – reforçados, no que respeita às exigências de prevenção especial, pelo teor do relatório social junto (onde consta que o arguido, por ter deixado de tomar parte da medicação, apresenta “alguma instabilidade emocional, agitação e ideação persecutória”, o que coloca “sérias reservas relativamente à evolução do seu comportamento emocional e comportamental e futura capacidade para adotar uma conduta adequada”), não ultrapassando a medida da culpa, mostra-se adequada às exigências de prevenção que o se fazem sentir, pelo que nenhuma censura nos merece.

O tribunal suspende a execução da pena “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (art.º 50 n.º 1 do CP).

Trata-se, de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, que deve ser aplicada sempre que o tribunal – fazendo apelo aos critérios da razoabilidade e bom senso – conclua, em face das circunstâncias concretas do caso, que esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, por outro lado, como se decidiu no acórdão do STJ de 11.01.2001, in www.dgsi.pt, tratando-se de um juízo sobre o futuro comportamento do arguido, “o tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa”.

No caso em apreço, a gravidade dos factos, a postura do arguido e o teor do relatório social junto - acima parcialmente transcrito - bem revelam que não estão criadas as condições mínimas para confiar que o arguido, no futuro, passe a comportar-se de modo socialmente responsável, em suma, para formular um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, pelo que não se verificam os pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena. Deve dizer-se ainda que a suspensão da execução da pena, nestas circunstâncias, não seria adequada e suficiente para satisfazer as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir, podendo até ser encarada pela comunidade como uma forma mitigada de desculpabilização e contribuir para o sentimento de desconfiança que reina na sociedade sobre a eficácia do sistema juríco-penal, efeito contrário àquele que se visa com a punição.
---
10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, decidir:

1) Quanto à matéria de facto

I - Dar como não provada a matéria constante dos pontos 6, 28, 29 e 31 da matéria de facto dada como provada, que será aditada à matéria de facto não provada com o seguinte teor:

c) que, em agosto de 2011, a ofendida passou a dormir juntamente com a sua filha S. no quarto desta”;

d) que, confrontado com os factos, pelos elementos da GNR que se deslocaram ao local, o arguido referiu «que a próxima vez que a GNR lá fosse seria para levar o cadáver da ofendida»”;

“e) que, no dia 26 de dezembro, próximo da hora do almoço, o arguido ligou para o telemóvel da ofendida e disse-lhe: «Quem quer que entrasse em casa, fosse ela fossem os filhos, os mataria a todos»”;

“f) que nesse mesmo dia (26 de dezembro) o arguido voltou a ligar à ofendida e disse-lhe: «Quando te vir a primeira coisa que te faço é matar-te»”.

II - Eliminar dos pontos 3, 11 e 27 da matéria de facto dada como provada, respetivamente, as expressões “desde o início do casamento”, “de ti já só quero o divórcio” e “e chamou a GNR”, que passarão a ter a seguinte redacção:

3 – Ultimamente o arguido acusava a vítima de ter amantes”.

11 – No dia 2 de novembro de 2012, em hora não concretamente apurada, no café ..., em São Marcos do Campo, o arguido dirigiu as seguintes palavras à vítima: «Ouve lá, diz-me lá quem é que é aqui o cabrão»”.

27 – De seguida, a vítima dirigiu-se a casa da sua mãe”.

E, consequentemente, aditar à matéria de facto não provadas as seguintes alíneas:

g) que o facto referido no ponto 3 da matéria de facto dada como provada acontecia desde o início do casamento”;

h) que, nas circunstâncias descritas no ponto 11 da matéria de facto dada como provada, o arguido disse também à vítima: «De ti já só quero o divórcio»”;

i) que, depois de se dirigir a casa da sua mãe, nas circunstâncias descritas no ponto 27 da matéria de facto dada como provada, a vítima chamou a GNR”.

2) Revogar a decisão recorrida, no que respeita ao crime de incêndio, e absolver o arguido da prática desse crime;

3) Em negar provimento ao recurso relativamente às demais questões suscitadas e manter a condenação do arguido - relativamente ao crime de violência doméstica - na pena de quatro anos de prisão.
Sem tributação.

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 2014 /06/03

(Alberto João Borges)

(Maria Fernanda Pereira Palma)