Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
323/11.3 GBGDL.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
HOMICIDIO QUALIFICADO TENTADO
ARMA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 01/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
1. Nos casos em que o agente deva ser punido pelo crime do art. 132.º do Código Penal não há lugar à agravação prevista no artigo 86.º, nºs 3 e 4 do RJAM, independentemente da qualificação do homicídio resultar, ou não, em concreto, da alínea h) do nº2 do art. 132º (“meio particularmente perigoso”);

2. Uma vez integrada a conduta delituosa no tipo de crime “homicídio qualificado” – pelo nº 1 do art. 132º ou também por qualquer das alíneas do nº 2 – perde sentido o accionamento da agravante da lei das Armas.

3. Exigências de compatibilização lógico-valorativa dos preceitos legais em cotejo impõem que o art. 86º, nº 3 funcione apenas por referência ao tipo do art. 131º (ou a outros tipos de homicídio não qualificado), para os casos de gravidade intermédia, em que o crime foi cometido com arma, se bem que não “especialmente perigosa”.(1)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1.No Processo comum colectivo nº 323/11.3 GBGDL do juízo de instância criminal de Grândola foi proferido acórdão em que se decidiu condenar o arguido JJ como autor de um crime de violência doméstica do artigo 152.º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão; como autor de um crime de homicídio qualificado dos artigos 131.º, 132.º, nºs 1 e 2, alínea b), 22.º, 23, nºs 1 e 2, e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal, e agravado pelo artigo 86.º, nºs 3 e 4 do RJAM, na pena de 10 (dez) anos e 2 (dois) meses de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 11 (onze) anos e 4 (quatro) meses de prisão. Foi ainda condenado no pagamento de € 144,21 a Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, E.P.E. e de € 23.549,00 a CM.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1ª- O arguido, ora recorrente, vinha acusado da prática, em concurso real, como autor e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, alínea a) do Código penal, e de um crime de homicídio qualificado, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea b), 22º e 23º, todos do citado diploma legal.

2ª- O Tribunal a quo, em sede de audiência de julgamento, procedeu a uma alteração daquela qualificação jurídica, passando a estar imputados ao arguido as agravações previstas nos artigos 152º, nº2 do Código Penal e 86º, nºs 3 e 4, do RJAM, p. e p. pela Lei nº5/2006, de 23 de Fevereiro.

3ª- Quanto à alteração da qualificação jurídica operada relativamente ao crime de violência doméstica, o arguido entende que bem andou o Tribunal a quo; não obstante, quanto à alteração da qualificação jurídica operada relativamente ao segundo dos supra identificados crimes, o arguido entende que a mesma não podia ter operado.

4ª- Nos termos do artigo 86º do RJAM, nomeadamente no seu nº3, as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso da arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso e porte de arma.

5ª- Ora, no caso sub iudice, o porte ou o uso da arma são efetivamente elemento do respetivo tipo de crime, e assim, não podia haver lugar à agravação efetuada pelo Tribunal a quo, nos termos supra descritos.

6ª- A lei já prevê- embora não de forma expressa – a agravação, que o Tribunal a quo operou, nos termos do artigo 86º, nºs 3 e 4 do RJAM, bastando que o arguido passasse a estar também acusado nos termos da alínea h) do artigo 132º, nºs 1 e 2.

7ª- Dispõe a alínea h) do citado preceito legal: “Praticar facto juntamente com, pelo menos, mais de duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso, ou que se traduza na prática de rime de perigo comum”; o que impõe a conclusão de que a agravação das penas aplicáveis a crimes cometidos com arma, tal como dispõe o supra citado artigo 86º, nomeadamente no seu nº3, já está prevista no tipo legal do crime de homicídio qualificado, na última parte da mencionada alínea h).

8ª- Na verdade, o uso pelo arguido do cutelo com a lâmina de 22 cm de comprimento, como objeto de agressão, já comporta em si mesmo a prática de um crime de perigo comum, sendo o caso do autos perfeitamente subsumível na referida alínea h) do artigo 132º, nºs 1 e 2 do Código Penal.

9º- Consequentemente, a moldura abstrata inicialmente fixada pelo Tribunal a quo, quando procedeu à especial atenuação da moldura penal do crime de homicídio qualificado, por virtude do mesmo ter sido praticado sob a forma tentada, não poderia ser de novo agravada; o que naturalmente têm consequências ao nível da medida da pena concreta a aplicar ao arguido, que se deverá situar entre 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses.

10º- Na operação de fixação da medida concreta da pena, atende-se ao disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal.

11ª- O limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente. O limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral. Assim, reduz-se a amplitude da moldura abstratamente associada ao (s) tipo (s) penal (ais) em causa.

12ª- A pena concreta é achada considerando as exigências de prevenção geral e todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

13ª-A moldura penal abstrata relativamente ao crime de violência doméstica agravada é de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão.

13ª- A moldura penal abstrata relativamente ao crime de homicídio qualificado, sob a forma tentada é 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses.

14ª- A pena não pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de se atingir a dignidade da pessoa humana, pelo que tal limite encontra consagração no artigo 40º do Código Penal.

15ª- Relativamente ao crime de violência doméstica, não resultou provado que o arguido tivesse infligido maus tratos físicos e psicológicos à ofendida durante os cerca de 31 (trinta e um) anos que viveram em comunhão de leito, mesa e habitação; apenas resultou provado que a partir do ano de 2010 e durante o ano de 2011, o arguido efetivamente infligiu maus tratos à ofendida.

16ª- O artigo 13º da matéria de facto provada, cujo conteúdo versa sobre a verificação do elemento subjetivo do tipo de crime em causa (representação e vontade), na parte final, não está em consonância com a restante matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido, ou seja,”(…) o que pretendeu e fez de forma reiterada durante aproximadamente, 31 (trinta e um) anos.”

17ª- Se é certo que o grau de ilicitude do facto é elevado e as suas consequências graves, tendo em conta os danos que provocou à ofendia, já não se pode dizer que o lapso temporal durante o qual foram praticados os factos tenha sido extenso, uma vez que apenas se provou que nos últimos 2 (dois) anos de vivência em comum, o arguido molestou física e psicologicamente a ofendida, de forma reiterada.

18ª- O modo de execução do facto insere-se na tipicidade própria do crime praticado, sem qualquer particularidade no caso concreto; e assim a medida da culpa do arguido impõe que a pena não seja superior a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. Ou seja, a aplicação do artigo 40º do Código Penal estabelece um limite máximo de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

19ª- As exigências de prevenção geral não justificam que o limite mínimo ultrapasse o que é estabelecido pela moldura abstrata: 2 (dois) anos de prisão.

20ª- No que respeita ao crime de homicídio qualificado, sob a forma tentada, o grau de ilicitude do facto é elevado, confirme se afirma no douto acórdão recorrido e o modo de execução do crime foi totalmente imprevisível para a ofendida, embora o recorrente discorde do entendimento do Tribunal a quo, de que a conduta do arguido não lhe permitiu qualquer defesa.

21ª- Da matéria de facto provada, resulta exatamente o contrário, ou seja, a demandante procurou defender-se da atuação do arguido e efetivamente se defendeu.

22ª- O modo de execução do facto ainda assim inseriu-se na tipicidade própria do crime em causa, e deste modo, a medida da culpa do arguido impõe que a pena não seja superior a 8 (oito) anos de prisão. Isto é, a aplicação do artigo 40º do Código Penal estabelece um limite máximo de 8 (oito) anos.

23ª- Quanto ao crime de violência doméstica as exigências de prevenção geral são elevadas, uma vez que este ilícito é sentido pela comunidade como sinal de desprezo pela dignidade da pessoa humana, sendo que a violência no seio familiar, quase sempre silenciada, é um dos grandes flagelos da nossa sociedade, sucede porém, que o modo de execução do facto insere-se na tipicidade própria do crime praticado.

24ª- Já quanto ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, urge salientar que em Portugal o aumento da criminalidade violenta manifestou-se pelo crescimento de roubos. As necessidades de prevenção geral não se fazem sentir com particular acuidade. Os assassinatos não ocorrem com tanta frequência que permitam qualificar tal fenómeno como um verdadeiro flagelo, que importa estancar pela aplicação de penas mais severas, como sucede com os roubos, o tráfico de estupefacientes, os abusos sexuais a corrupção, que se tendem a banalizar.

25ª- O arguido não tem antecedentes criminais, contando à data da prática dos factos com 62 (sessenta e dois) anos de idade, e atualmente com 64 (sessenta e quatro) anos, circunstância que é deveras elucidativa de que o arguido não apresenta propensão para o crime.

26ª- Encontra-se familiar e socialmente inserido, e até à data da prática dos factos encontrava-se igualmente profissionalmente inserido; não o estando atualmente por virtude da tentativa de suicídio que efetuou após os factos da qual resultou para si lesões graves.

27ª- Do exposto, no que respeita às circunstâncias que depõem contra ou a favor o arguido, há ainda que acrescentar que o mesmo confessou grande parte dos factos e as exigências de prevenção especial não são muito elevadas, na perspetiva do recorrente, pois que o douto acórdão recorrido não faz expressamente alusão a tais exigências.

28ª- A medida da culpa não permite pois que a pena ultrapasse os 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, no que concerne ao crime de violência doméstica e 8 (oito) anos, relativamente ao crime de homicídio qualificado, sob a forma tentada.

29ª- As necessidades de prevenção geral não tornam lícito elevar os limites mínimos resultantes das molduras abstratas dos tipos em causa.

30ª- Os artigos 40º, 71º, 152º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal implicam uma condenação a pena não superior a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, quanto ao primeiro dos supra identificados crimes.

31ª- Os artigos 40º, 71º, 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas b) e h), 22º, 23º e 73º, nº1, alíneas a) e b) todos do Código Penal, implicam uma condenação a pena não superior a 8 (oito) naos de prisão relativamente ao segundo dos supra identificados crimes.

32ª- O Tribunal a quo procedeu ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido, sendo que este embora concorde com o raciocínio jurídico efetuado por aquele Tribunal, discorda ainda assim do quantum da pena única que lhe veio a aplicar.

33ª- O arguido deverá ser condenado numa pena única de prisão pelos 2 (dois) crimes que cometeu, que deverá ter como limite mínimo a mais elevada das penas e como limite máximo a soma das penas, isto tendo como referência as penas que deveriam ter-lhe sido concretamente aplicadas, ou seja, a pena deverá ser determinada no intervalo dos 8 (oito) anos, a 10 (dez) anos e 6 (seis) meses.

34ª- A qual deverá concretizar-se na pena de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão.

35ª- Por último, salvo o devido respeito, o recorrente entende que ter-se-ão de tomar em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes, fazendo-se a comparação do caso concreto com a s situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sendo de tomar em consideração o douto Acórdão proferido pelo STJ, no âmbito do processo nº332/10, relato 495, da Comarca do Alentejo Litoral, no qual foi mantida a douta decisão proferida em 1ª Instância, de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão, relativamente ao crime de homicídio consumado, embora na forma simples.

36ª- Nesta conformidade, o arguido considera, salvo o devido respeito, a pena que lhe foi aplicada abusiva, considerando que deverá ser condenado numa pena de prisão próxima de um terço do intervalo entre um máximo de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses e um mínimo de 8 (oito) anos, considerando ajustada a fixação de uma pena de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e pela confirmação do acórdão

Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto aderiu à resposta do Ministério Público em primeira instância.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. No acórdão, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. Durante aproximadamente trinta e um anos, o arguido JJ viveu em comunhão de leito, mesa e habitação com CM, tendo casado com a mesma.

2. Ultimamente, o arguido JJ e CM residiam na Rua…, em Grândola.

3. Sucede que, em data não concretamente apurada, o arguido JJ começou a exercer violência física, a ameaçar e a ofender verbalmente CM, o que fazia no interior da residência onde coabitavam, nomeadamente nos casos que a seguir se elencam.

4. Nessas ocasiões, o arguido JJ, fazendo uso da sua superioridade física e de uma ascendência autoritária, dirigia-se a CM insinuando que ela tinha amantes, dizia-lhe “(…) és uma ranhosa (…)”, “(…) vai para a puta que te pariu (…)”, “(…) corto-te às postas (…)”.

5. Ainda nessas ocasiões, o arguido JJ desferia murros e bofetadas na face e cabeça de CM, empurrava-a, apertava-lhe e torcia-lhe os braços, provocando-lhe, assim, fortes dores físicas.

6. Noutra ocasião, ocorrida cerca do ano de 2010, na sequência de uma discussão verbal ocorrida no interior da residência onde habitavam, o arguido JJ desferiu um murro no nariz de CM, tendo esta necessitado de receber tratamento hospitalar.

7. Em data não concretamente apurada, mas próxima e posterior ao facto referido no ponto anterior, o arguido JJ chegou a casa, dirigiu-se à casa de banho, onde CM se encontrava a dar banho ao neto e desferiu um pontapé na perna da mesma.

8. Em Abril de 2011, depois de CM afirmar que pretendia divorciar-se, JJ começou a dizer à mesma que ela tinha amantes e “(…) não penses que eu saio, porque não saio, eu corto-te às postas.”

9. Nessas ocasiões, o arguido JJ apertava os braços de CM e encostava uma das mãos à cara da mesma.

10. Por outro lado, na sequência do pedido de divórcio, JJ começou a perseguir CM, dirigindo-se ao local onde a mesma trabalhava e dizendo que se a visse com alguém a matava.

11. Ainda no quadro do descrito comportamento, no dia 13 de Setembro de 2011, o arguido JJ dirigiu-se à Rua…, ao estabelecimento comercial onde trabalha CM, cerrou a mão e levantou o braço na direcção da face da mesma, dizendo “(…) pensas que me enganas, se eu te vir com alguém na rua eu mato-te, corto-te às postas como se faz às costeletas”, bem como “(…) enquanto não assinarmos os papéis do divórcio se eu te vir com algum homem corto-te às postas.”

12. Então, o arguido JJ só não desferiu um murro na face de CM por a mesma ter fugido.

13. Ao agir da forma descrita, o arguido JJ sabia que molestava a saúde física de CM, que a ofendia na sua honra e consideração, que fazia com que ela receasse pela sua vida, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada durante, aproximadamente, trinta e um anos.

14. No dia 15.12.2011, pelas 12H00, o arguido JJ transportava no interior de uma bolsa preta, com as letras “ICEL” inscritas, uma faca de grandes dimensões com o cabo branco e outra faca de grandes dimensões com o cabo de madeira, designadamente com lâmina de 22 centímetros de comprimento.

15. Nessa ocasião o arguido JJ, fazendo-se transportar, num veículo “Volkswagen”, modelo “PASSAT”, de matrícula --RA, deslocou-se para a Rua….

16. Aí chegado, o arguido JJ saiu do veículo e dirigiu-se à loja de óptica, sita no n.º 33 da Rua---, local onde trabalhava CM, levando com ele a mencionada bolsa preta.

17. De seguida, o arguido JJ entrou no referido estabelecimento comercial e dirigiu-se a CM.

18. Já próximo de CM, o arguido JJ retirou do interior da referida bolsa, que trazia consigo, o cutelo com o cabo em madeira e lâmina de 22 centímetros de comprimento, e disse “(…) eu não disse que te matava? Agora vou fazer o que disse!”

19. De imediato, o arguido JJ deslocou-se para junto de CM e com o cutelo, que empunhava, desferiu três golpes na cabeça da mesma.

20. Então, CM baixou-se e começou a tentar fugir.

21. Enquanto CM tentava fugir, o arguido JJ continuou a desferir com o cutelo, que empunhava, golpes na cabeça e corpo da mesma, atingindo-a, nomeadamente, na cabeça, no ombro direito e na mão direita.

22. Entretanto, o arguido JJ, com uma das mãos, agarrou CM pelo pescoço, fazendo força, enquanto, com a outra mão, desferia golpes na cabeça da mesma.

23. A certa altura, CM desequilibrou-se e caiu ao chão, tendo o arguido JJ caído e largado o cutelo.

24. Nesse instante, CM correu para a porta, onde se encontrava MR, que a puxou por um braço.

25. Acto contínuo, MR levou CM para o interior do estabelecimento comercial que explora e encerrou a porta.

26. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido JJ, CM foi assistida no local pelo INEM e, de imediato, transportada para o Hospital, tendo sofrido de politraumatismo grave com perda de conhecimento, de três feridas incisas na região parietal direita, com entre três e seis centímetros, de ferida incisa no ombro direito, de ferida incisa no dorso da mão direita, de escoriação do antebraço direito, de pequena ferida na mão esquerda, lesões que determinaram quinze dias de doença, oito dos quais com afectação da capacidade para o trabalho profissional.

27. Ao desferir, fazendo uso da força muscular e do cutelo que empunhava, diversos golpes na cabeça, no corpo e membros de CM, o arguido JJ agiu com o propósito de retirar a vida à mesma, o que só não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade.

28. O arguido JJ actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

29. A prática pelo demandado JJ dos factos referidos nos pontos anteriores causou à demandante CM dores físicas, sofrimentos e receios, nomeadamente nas situações que a seguir se elencam.

30. Das várias feridas provocadas pelo demandado JJ na demandante CM algumas foram suturadas, tendo esta que posteriormente tirar os pontos.

31. Em 30.01.2012, a demandante CM teve de recorrer ao serviço de urgência do Hospital do Espírito Santo, em Évora, com queixas de tonturas, desequilíbrios e ligeira afonia, tendo ficado em observação durante 24 horas e realizado posteriormente em exame de TAC.

32. Ainda hoje, passar a escova pelo cabelo provoca-lhe dor de cabeça, no local onde o demandado JJ a atingiu com o cutelo.

33. A demandante CM sofre actualmente de stress pós-traumático.

34. Até à data dos factos referidos nos pontos 17 a 25, a demandante CM era uma mulher saudável e não dependia de qualquer medicação.

35. Trabalhava em três locais distintos, nomeadamente oito horas diárias na empresa “Óptica …, Lda”, a tempo parcial no supermercado “Continente” e ainda algumas horas em serviço de limpeza.

36. Actualmente só governa a sua vida e descansa durante a noite se tomar medicação.

37. Ainda não conseguiu voltar a trabalhar.

38. Em virtude dos factos referidos nos pontos 17 a 25, a demandante CM despendeu em medicamentos, exames e consultas médicas, honorários clínicos, taxas moderadoras e despesas de transporte o montante global de €111,00.

39. A demandante CM obtinha um rendimento médio mensal de €915,00 dos três empregos referidos no ponto 35.

40. Ainda se encontra de baixa médica, não tendo condições para regressar a curto prazo ao trabalho.

41. Recebe a título de compensação pela baixa médica o montante mensal de €628,50.

42. Como consequência directa e necessária dos factos referidos nos pontos 17 a 25, o demandante Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, no exercício da sua actividade, prestou a CM os primeiros socorros traduzidos nos serviços e cuidados de saúde seguintes: exames radiológicos e outros meios complementares de diagnóstico e tratamento em episódio de urgência a politraumatismo com perda de conhecimento a que se refere o ponto 26.

43. Os serviços e cuidados de saúde referidos no ponto anterior tiveram um custo de €144,21.

44. O arguido não tem antecedentes criminais (fls. 514).

45. A situação financeira do agregado familiar de origem do arguido foi marcada por dificuldades e mesmo pobreza, sendo o pai, durante a sua infância, o único elemento activo, trabalhando na área da construção civil. A mãe, neste período teve problemas de saúde, tendo assim a irmã mais velha a assumir um papel de apoio nos seus cuidados.

46. O ambiente familiar em que cresceu foi marcado por violência da figura paterna, a qual num contexto de consumo excessivo de álcool, infligia maus tratos à esposa e filhos.

47. O arguido cresceu influenciado por uma visão muito tradicional dos papéis masculino e feminino.

48. O arguido iniciou o percurso escolar em idade normal e concluiu o 4º ano com cerca de 10 anos de idade, tendo iniciado posteriormente actividade laboral como ajudante num talho, sendo nesta área que fez toda a sua carreira profissional.

49. Aos 19 anos o arguido iniciou o seu primeiro relacionamento conjugal, tendo-se casado um ano após o início da vivência comum. Desta relação resultou um filho, actualmente com 37 anos de idade.

50. Posteriormente constituiu novo agregado familiar com CM. A situação financeira do casal manteve sempre um quadro modesto, comparticipando JJ nas várias despesas. Contudo, foi-se verificando um progressivo desinvestimento nesta contribuição, que foi sendo assumida primordialmente pela esposa.

51. A nível pessoal e social o arguido funciona num registo muito auto centrado, não aceitando assim ideias diferentes das suas, operando nestas situações num registo de agressividade verbal e/ou física, sobretudo em contexto familiar, optando no relacionamentos sociais e laborais por se afastar. Denota dificuldade em controlar os seus impulsos.

52. As dificuldades nos relacionamentos mais próximos foram extensíveis à sua família de origem, com quem não manteve contacto regular durante um período de 30 anos.

53. Desvaloriza as consequências da sua conduta referida nos pontos 1 a 13.

54. Esteve hospitalizado em virtude dos ferimentos graves decorrentes da tentativa de suicídio que efectuou após os factos descritos nos pontos 14 a 25. Apresenta vários problemas ao nível da marcha e lesões em algumas vértebras que o impedem de estar demasiado tempo de pé ou sentado, contribuindo ainda para problemas ao nível do controlo dos esfíncteres.

55. A sua reclusão viria a aproximá-lo da irmã mais velha, JR, e da progenitora.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar é a da medida da pena.

Pugna o arguido pela redução das penas parcelares e da pena única, rematando com uma proposta de pena não superior a oito anos e dez meses de prisão.

Fundamenta a sua pretensão na circunstância de o tribunal ter incorrido em erro de direito no que respeita à pena correspondente ao crime de homicídio agravado tentado ao ter feito intervir na determinação da moldura abstracta a agravação prevista no artigo 86º do RJAM e, no caso da determinação da pena parcelar correspondente ao crime de violência doméstica, ao ter indevidamente atendido a uma actuação do arguido reiterada durante aproximadamente trinta e um anos, quando apenas se comprovaram ofensas cometidas no período de dois anos.

(a) Da pena correspondente ao crime de violência doméstica do artigo 152.º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal

Começando pela sub-questão elencada em segundo lugar, consigna-se que o arguido não recorreu de facto, ou seja, não pretendeu impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal.

No entanto, nas suas conclusões 15ª e 16ª, faz uma referência à matéria de facto: “15ª- não resultou provado que o arguido tivesse infligido maus tratos físicos e psicológicos à ofendida durante os cerca de 31 (trinta e um) anos que viveram em comunhão de leito, mesa e habitação; apenas resultou provado que a partir do ano de 2010 e durante o ano de 2011, o arguido efetivamente infligiu maus tratos à ofendida; 16ª- O artigo 13º da matéria de facto provada, cujo conteúdo versa sobre a verificação do elemento subjetivo do tipo de crime em causa (representação e vontade), na parte final, não está em consonância com a restante matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido, ou seja,”(…) o que pretendeu e fez de forma reiterada durante aproximadamente, 31 (trinta e um) anos.”

O recorrente visa a redução da pena, argumentando que o tribunal incorreu em erro de julgamento ao ter procedido a uma avaliação de uma conduta delituosa ao longo de trinta e um anos, quando se demonstraram factos ocorridos em apenas dois.

Sinaliza a este propósito, embora não a nomeando como tal, uma contradição na matéria de facto provada, ou seja, o vício do art. 410º, nº2, alínea b) do Código de Processo Penal.

Estão essencialmente em causa, aqui, os factos descritos nos pontos 1., 3. e 6. a 13. da matéria de facto provada no acórdão.

No ponto 1. consignou-se que “durante aproximadamente trinta e um anos, o arguido viveu em comunhão de leito, mesa e habitação com CM”. Em 3. descreveu-se que “em data não concretamente apurada, o arguido JJ começou a exercer violência física, a ameaçar e a ofender verbalmente CM”. E nos pontos seguintes concretizam-se alguns episódios de violência, ocorridos em 2010 e 2011.

Mas já em 13., se enuncia como provado que “ao agir da forma descrita, o arguido JJ sabia que molestava (…), o que pretendeu e fez de forma reiterada durante aproximadamente, trinta e um anos”.

Da estruturação da matéria de facto, como aliás sucede na globalidade dos casos, por razões de lógicas e metodológicas, aos enunciados fácticos relativos ao tipo objectivo, seguem-se aqueles que respeitam ao tipo subjectivo. Assim, também aqui, no ponto 13. se procedeu à narração dos factos relativos ao elemento subjectivo do crime, ou seja, aqueles que realizam o tipo subjectivo (doloso).

Acontece que aí surge também um enunciado referente ao tipo objectivo – “o que fez de forma reiterada durante aproximadamente, trinta e um anos”.

Nos enunciados iniciais, onde se procedeu à descrição dos factos que realizavam o tipo objectivo, afirmara-se contudo que o arguido e vítima coabitaram como cônjuges “durante aproximadamente trinta e um anos”, e que “em data não concretamente apurada, o arguido começou a exercer violência física, a ameaçar e a ofender verbalmente” a ofendida. Concretizaram-se depois alguns episódios de violência ocorridos no período de dois anos.

Daqui resulta que se afirma que a conduta delituosa se iniciou em momento não determinado do decurso de 31 anos (de relação conjugal) e, simultaneamente, que esse mesmo comportamento perdurou ao longo desses 31 anos, o que não deixa de ser contraditório, na medida em que se trata de afirmações que se contrariam entre si por uma delas se reportar a um período necessariamente mais duradouro.

No entanto, não chega a ocorrer vício do art. 410º nº 2, concretamente uma contradição insanável.

A contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão ocorre quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados. É uma “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a decisão probatória e a decisão. Ou seja, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 71).

Acontece que a contradição diagnosticada se apresenta como resolúvel, se se atentar agora na integralidade do acórdão. Dito de outro modo, o texto da decisão permite clarificar a insanabilidade aparente.

Na verdade, a motivação dos factos provados explica que a prova do facto descrito no ponto 13. decorreu como “uma consequência lógica dos factos provados anteriores”. Ou seja, no ponto 13, descrevem-se os factos integrantes do tipo subjectivo – que, como se disse, são comummente narrados após descrição dos factos relativos ao tipo objectivo –, e foram apenas estes que ali se pretenderam descrever. Pois será o “saber” e “querer” os factos do tipo objectivo que poderá ter resultado (probatoriamente) como consequência lógica de um comportamento que se exteriorizou, e, não, também esse comportamento externo do agente (o qual exigiria justificação diversa)

Assim, resulta do próprio texto do acórdão que o tribunal terá dito mais do que queria, ao ter aditado aos factos do dolo o segmento final “o que fez de forma reiterada durante, aproximadamente, trinta e um anos”. Pelo que se determina que esta expressão deixe de constar do acórdão, mais concretamente dos factos provados descritos no ponto 13. (sendo ainda dispensável a sua inclusão nos factos não provados), passando o ponto 13. a terminar nos vocábulos “o que pretendeu”.

Assim se restabelece a coerência lógica ao texto do acórdão.

Fica agora inequívoco que, como afinal defende o recorrente na sua conclusão 15ª, não resultou provado que o arguido tivesse infligido maus tratos físicos e psicológicos à ofendida durante os trinta e um anos que viveram em comunhão de vidas; apenas resultou provado que o fez a partir de data indeterminada, o que, no contexto geral do episódio de vida narrado (provado), só pode revelar tê-lo feito seguramente nos anos de 2010 e 2011.

E será, pois, este o período temporal a atender em sede de medida da pena.

Vejamos, então, como se fundamentou a pena parcelar no acórdão: “O crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de dois a cinco anos – artigo 152.º, n.º 2, do CP. - O grau de ilicitude do facto é elevado, atento o lapso temporal extenso durante o qual foram praticados os factos. O modo de execução do facto insere-se na tipicidade própria do crime praticado, sem qualquer particularidade no caso concreto. As suas consequências são graves, tendo em conta os danos que provocou à ofendida. - O dolo é directo. - O arguido encontra-se social e profissionalmente inserido. - Não tem antecedentes criminais. - No que concerne à sua conduta posterior aos factos, tem dificuldade em percepcionar, de forma consistente, o dano causado à vítima. - As necessidades de prevenção geral são elevadas, atentas as repercussões ocasionadas no tecido social pela prática deste tipo de ilícito. Ponderadas estas circunstâncias, o tribunal entende aplicar a pena de prisão de 3 anos e 4 meses pela prática de um crime de violência doméstica.”

No acórdão destaca-se “o lapso temporal extenso durante o qual foram praticados os factos”, não sendo agora claro se se está, ou não, a pensar no período temporal mais alargado, sendo ambos passíveis da adjectivação empregue pelo senhor juiz relator, se bem que um dos lapsos seja manifestamente mais “extenso” do que o outro.

No entanto, mesmo atendendo-se tão só ao período de dois anos, o grau da ilicitude sempre se apresentaria como justificativo da pena já encontrada, a atentar desde logo na forma de execução, na medida da reiteração, no dolo directo, intenso e persistente. Pois, como se provou, o arguido desferia murros e bofetadas na face e cabeça da ofendida, empurrava-a, apertava-lhe e torcia-lhe os braços provocando-lhe fortes dores físicas; desferiu-lhe um murro no nariz que exigiu tratamento hospitalar; desferiu um pontapé na perna quando a ofendida banhava o neto; disse-lhe que ela tinha amantes e que a cortava às postas; apertava-lhe os braços e encostava uma das mãos à cara da mesma; perseguia-a, dirigindo-se ao local onde ela trabalhava dizendo que se a visse com alguém a matava; cerrou a mão e levantou o braço na direcção da face da mesma dizendo que a cortava às postas.

Mais se comprovou que o arguido desvaloriza as consequências da sua conduta, o que, mesmo em agente primário e num direito penal que não visa uma imposição interna de valores através da coacção da pena, não pode deixar de se repercutir também contra ele.

Pois sendo certo que o direito penal se deve bastar com uma mera aceitação ou identificação da pessoa com os princípios e valores que a ordem jurídica consagra, sendo apenas de exigir do arguido, através do direito e do processo penal, uma “adaptação externa à legalidade” (assim, Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, 1995, p. 383), a desvalorização dos factos por parte do agente do crime não deixa de acentuar as exigências de prevenção especial.

A pena fixada resultou, pois, de uma adequada execução do processo aplicativo, que permitiu a adequada ponderação dos princípios da culpa e da prevenção, no quadro constitucional da proibição do excesso, mostrando-se efectivamente elevadas tanto as exigências de prevenção geral como as de prevenção especial, como destacado no acórdão.

Interpretaram-se correctamente as finalidades da pena, sendo que, como se sabe, “a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral”, devendo a pena “ser medida basicamente com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto” e o limite mínimo da moldura de prevenção geral será em concreto definido “pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode estender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica”. Respeitou-se também o papel reservado à culpa de “incontestável limite de medida da pena assim encontrada”. (Anabela Rodrigues, A determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, 1995, p. 570-576).

Deve, pois, manter-se a pena parcelar correspondente ao crime de violência doméstica do artigo 152.º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal aplicada no acórdão.

(b) Da pena parcelar correspondente ao crime de homicídio qualificado tentado

O acórdão procede à integração jurídica dos factos provados (descritos em 14. a 28.) nos artigos 131.º, 132.º, nºs 1 e 2, alínea b), 22.º, 23, nºs 1 e 2, e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal e faz ainda aplicação da agravante do artigo 86.º, nºs 3 e 4 da Lei nº 52006 (Regime Jurídico das Armas e suas Munições).

A integração dos factos provados na previsão dos arts 131º e 132º, nºs 1 e 2 – b), não foi objecto de impugnação.

Com efeito, a alínea b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal elege como exemplo-padrão a conduta praticada sobre cônjuge, e o arguido aceita que a prática dos factos contra a vítima sua mulher caracterizou, no concreto caso, uma circunstância reveladora de especial censurabilidade ou perversidade do agente e crime de homicídio qualificado.

Não deixa, no entanto, de se consignar que esta decisão se afigura, também aqui, correcta, o que se afirma na medida em que interessa ainda à decisão da sub-questão colocada agora no recurso.

Interessa também a compreensão do tipo do art. 132º do Código Penal, bem como uma pronúncia definitiva sobre a correcção do enquadramento dos factos provados nesta norma.

Assim, a “qualificação” afirmada no acórdão assentou em circunstâncias encontradas nos factos provados que integram (positivamente) a cláusula geral de agravação constante do n.º 1 do art. 132º do Código Penal e (simultaneamente) o exemplo-padrão previsto na alínea b) do nº 2.

Na verdade, a uma interpretação do tipo assente numa presunção de qualificação (se bem que elidível) quando em presença de um dos exemplos-padrão previstos no nº 2, preferimos o reconhecimento da especial censurabilidade ou perversidade do agente pela positiva e a par da identificação de qualquer uma das alíneas do n.º 2 do art. 132º.

Dito de outro modo, importa confirmar o preenchimento da previsão do nº 1. Isto, independentemente de se reconhecer que o “efeito padrão” possa “fornecer o indício da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, p.67). Fornece o indício que, precisamente por o ser, carece de complementação.

Divergimos assim, nesta parte e com todo o respeito, daquela que nos parece ser a construção do Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 10-12-2008 (Rel. Pires da Graça), no sentido de que “a partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, como “efeito de indício”, interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado”. Esta, também a posição defendida por Teresa Serra: “o efeito dos exemplos-padrão fundamenta como que uma presunção ilidível” implicando a “contraprova do efeito de indício” (Homicídio Qualificado, loc cit, 2000, p. 87).

Não deixa de se dar nota ainda da jurisprudência (ao que cremos, uniforme) no sentido da não indispensabilidade da verificação de um exemplo-padrão, podendo a qualificação do homicídio resultar de um circunstancialismo equivalente e igualmente revelador da especial censurabilidade ou perversidade – assim: STJ 09-06-2011, Pais Martins; STJ 14-10-2010, Manuel Braz; STJ 27-05-2010, Souto Moura; STJ de 10-12-2008, Pires da Graça; STJ 16-09-2008, Henriques Gaspar, entre muitos; no entanto, contra, no sentido do princípio da legalidade/tipicidade impedir o alargamento a circunstâncias diferentes das referidas na lei, pode ver-se Fernanda Palma (Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pp. 49-50): “a função do nº 2 só pode ser vista como uma correcção descritiva do conteúdo normativo do nº 1, uma função de precisão do nº 1 (…) a inclusão de circunstâncias análogas é difícil, já que a sua não referência pelo legislador faz pressentir uma rejeição dessas circunstâncias”.

Sinaliza-se também a controvérsia sobre o fundamento da revelação da especial censurabilidade ou perversidade, que, segundo uns, assentará no tipo de ilícito e, de acordo com outros, no tipo de culpa.

Figueiredo Dias pronuncia-se no sentido dos exemplos-padrão constituírem elementos do tipo de culpa, mas concluindo não haver “objecções de princípio a que se defenda que a agravação da culpa é em todos os casos suportada por (ou se reflecte necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo de ilícito” (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, p. 27).

Já Fernanda Palma distingue nas circunstâncias do nº 2 do art. 132º duas espécies: “circunstâncias relativas ao modo de ser objectivo da acção e circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente da acção” e conclui que, também nesta segunda espécie de circunstâncias, “embora o íntimo do agente surja em primeiro plano como objecto de valoração, também o desvalor por elas indiciado é directamente desvalor da acção”. Para Fernanda Palma, o conjunto das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º é, todo ele, definidor de um grau mais grave de ilícito. Mas, no sentido em que essas circunstâncias terão que “pesar na censurabilidade ou perversidade do agente” é que se podem considerar como relativas à culpa, sendo a gravidade da culpa o fundamento da agravação (loc. cit. pp. 43-45).

O arguido foi condenado por crime de homicídio do art. 131º, mas no tipo qualificado do art. 132º, procedendo-se, no acórdão, à agravação da pena ainda por via da aplicação do art. 86º, nº3 do RGAM.
O recorrente impugna esta (nova) agravação.

Defende que, por ter cometido o crime na pessoa da sua mulher, mas também fazendo uso de uma arma, o seu comportamento preencheu cumulativamente uma outra circunstância agravante, para além da prevista na alínea b) do nº 2 do Art. 132º, a da alínea h), pelo que não se justificaria a agravação prevista no art. 86º, nº3 do RGAM.

E assiste-lhe razão, na parte em que se insurge contra a agravação da pena abstracta por via da Lei da Armas. Contudo, essa razão não deriva nem depende de uma efectiva aplicação da alínea h) do nº 2 do art. 132º ao caso concreto, como impropriamente advoga.

Na verdade, o nº 3 do art. 86º não pode ser aplicado ao tipo de crime de homicídio qualificado do art. 132º do Código Penal, assim sucedendo independentemente da circunstância ou do exemplo-padrão de que a qualificação resultar ser ou não o previsto na alínea h).

Desde logo, assim o impõem exigências de compatibilização lógico-valorativa.

Dispõe o nº3 do artigo 86º do RJAM, que “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso da arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso e porte de arma”.

Numa interpretação literal, pareceria que a desaplicação da norma aos casos de crime do art. 132º dependeria de uma efectiva aplicação da alínea h) ao caso concreto. Pois só nesta se faria referência a instrumento utilizado na prática do crime, ou seja, a utilização de arma.

Só que, independentemente de ser (ou não) feita aplicação do exemplo-padrão em causa, a partir do momento em que se procede à integração da conduta delituosa no tipo de homicídio qualificado - fazendo-o apenas à luz do nº 1 ou ainda por qualquer das alíneas do nº 2 - deixa de fazer sentido lógico-valorativo o accionamento da agravante da lei das Armas.

O art.132º, nº 2, alínea h) prevê como exemplo-padrão de circunstância qualificativa do homicídio a prática do facto com utilização de “meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”. Não refere expressamente a utilização de arma, especificamente de arma branca, de faca, mas a “utilização de meio particularmente perigoso”, o que pressupõe no entanto a utilização de um instrumento na prática do crime.

De acordo com a doutrina mais avalizada (assim, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2012, p. 68), exigindo a lei que esse instrumento seja particularmente perigoso, ele devem revelar-se com uma “perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar” e “não cabem no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas, ou vulgares instrumentos contundentes”.

A seguir-se esta doutrina, com acolhimento também nalguma jurisprudência (por exemplo, no acórdão STJ 03.07.2008, Rel. Rodrigues da Costa), a arma sub judice permaneceria fora do exemplo-padrão, entendendo-se não ser de reputar como suficientemente perigosa.

Já no caso de se adoptar posição contrária – teoricamente menos favorável ao arguido por apontar no sentido de que a arma que utilizou seria meio particularmente perigoso – deveria o agente ser punido à luz do art. 132º do Código Penal e, inquestionavelmente, apenas por este. Pois a lei já preveria a agravação em função do uso da arma, o que afastaria inquestionavelmente a aplicação do nº 3 do art. 86º do RGAM, como expressamente resulta da norma.

O art. 86º, nº 3 funcionaria assim, por referência ao crime do art. 131º (ou a outros tipos de homicídio não qualificado), nos casos ditos intermédios, em que o crime fora cometido com arma mas não “especialmente perigosa”.

Dito de outro modo, para realidades reveladoras de maior ilicitude e/ou de maior culpa, o Código Penal prevê uma pena específica, logicamente a mais grave (do homicídio qualificado). E sendo esta já a pena aplicável a uma determinada realidade, não haverá lugar à aplicação do nº 3 do art. 86º (logicamente a incidir sobre o tipo-base), pois já ocorreu agravação por via do próprio tipo (qualificado). Agravação que é sempre superior à que resultaria da pena prevista no art. 131º após incidência do art. 86º, nº 3 do RGAM.

Nos casos em que o agente deva ser punido pelo art. 132º do Código Penal, apenas esta norma será a aplicável. E assim sucede, independentemente da alínea pela qual o tipo qualificado se realize. Já que, por um lado, não é indispensável à realização do tipo o preenchimento efectivo de um dos exemplos-padrão e, pelo outro, podem até confluir vários exemplos-padrão no mesmo caso.

E nas situações em que “concorram os elementos constitutivos de mais de um exemplo-padrão, ambos com revelo para a qualificação da atitude do agente como especialmente censurável ou perversa, um tal concurso só poderá ter efeito, se dever tê-lo na determinação da medida da pena” (Figueiredo Dias, loc. cit. p.79).

Discorre Teresa Serra que os artigos 131º, 132º, 133º do Código Penal “não contêm verdadeiros tipos de crimes, mas apenas regras modificativas da moldura penal do homicídio”. A ocorrência de uma das circunstâncias é logo “decisiva para a determinação da moldura abstracta, sendo a(s) outra(s) tomada em consideração como agravante, na fixação da medida concreta da pena” (Homicídio Qualificado, 2000, p. 102).

Na situação sub judice, o arguido seria já punido pela pena do homicídio qualificado, independentemente da sua conduta integrar ainda a agravante da alínea h). E, caso a integrasse também – isto é, se a arma que utilizou fosse valorável como meio particularmente perigoso – seria incontroversa a conclusão de que deveria ser punido apenas pelo crime do art. 132º do Código Penal.

Para casos menos graves, em que a arma utilizada não atinge o patamar da especial perigosidade, não pode ser outra a solução, que não seja também a da desaplicação do art. 86º, nº 3 do RGAM.

Pois, de contrário, no entendimento de que a não aplicação da alínea h) conduziria à agravação do nº 3 do art. 86º, chegar-se-ia à solução aberrante de punir mais severamente comportamentos de menor ilicitude e/ou de menor culpa.

Do critério gradativo que é possível descortinar nos preceitos legais em análise, da sua inevitável compatibilização lógico-valorativa, resulta que a agravação da pena prevista no art. 86º, nº 3 do RGAM não é aplicável ao crime do art. 132º do Código Penal.

Assim sendo, tem razão o recorrente quando defende que, relativamente ao crime de homicídio qualificado tentado, a pena abstracta a considerar é a de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses, conforme resulta dos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2 b), 23.º, nº 1, e 73º, n.º 1 a) e b) do Código Penal (mas não por ter incorrido na alínea h) do nº 2 do art. 132º).

Por indevida aplicação do disposto no artigo 86.º, nºs 2 e 3, do RJAM.E, o acórdão fixou a pena única dentro de uma moldura abstracta de 3 anos, 2 meses e 12 dias a 22 anos 2 meses e 20 dias.

De tudo resulta a necessidade de reponderar agora a pena parcelar pelo homicídio qualificado tentado, à luz da nova moldura.

A utilização de arma será agora valorada como circunstância agravante geral, ponderação em que já não deverão entrar as circunstâncias computadas no juízo prévio sobre a especial censurabilidade e perversidade do agente (as do nº 1 e do nº 2 b) do art. 132º).

Fazendo-se aplicação da doutrina mais relevante (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, e Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995), e de acordo com jurisprudência constante, deve atender-se a finalidades exclusivamente preventivas da pena, sendo de manter a apreciação das demais circunstâncias valoradas no acórdão.

Valem aqui as considerações gerais já supra efectuadas em (a), devendo ter-se presente o conhecido “resumo” de Figueiredo Dias, “toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81)

Assim sendo, e tendo ainda em conta que a intervenção do tribunal de recurso, em matéria de pena, se deve ater à fiscalização do processo aplicativo realizado em primeira instância, à detecção de erros de procedimento, de violações de normas ou de desrespeito pelos princípios, cumprirá tão só reajustar a pena dentro nova moldura, já que foi apenas na definição desta que se detectou desconformidade legal.

Reduz-se esta pena parcelar anteriormente fixada para 8 (oito) anos de prisão, que se considera satisfazer, no caso, as exigências de prevenção, quer geral, quer especial, e respeitar o limite da culpa.

(c) Da reformulação do cúmulo jurídico

A moldura penal do cúmulo passa a ser, agora, de 8 a 11 anos e 4 meses de prisão (art. 77º, nº 2 do Código Penal).

Como dá nota Figueiredo Dias, “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280).

Ainda segundo o autor, a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização” (loc. cit.).

Na fixação da pena única o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77º, nº1 do Código Penal), o que exige uma especial fundamentação “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291).

Na conhecida lição de Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (loc. cit.).

No caso sub judice, o arguido, conta 58 anos de idade e não tem passado judiciário. Os crimes em concurso ocorreram em circunstâncias que encontram alguma conexão fenomenológica. No caso do crime de violência doméstica, a reiteração do comportamento, não sendo embora elemento imprescindível à realização do tipo formal, não deixa de ter sido de algum modo sopesada na avaliação do tipo material. Também a qualidade da vítima (mulher-cônjuge), funcionou já como circunstância qualificativa especial. Por último, a negatividade da desvalorização das consequências da conduta por parte do arguido – o que, em princípio, acentuará as exigências de prevenção especial - sofrerá alguma mitigação decorrente duma maior debilidade actual do arguido (“esteve hospitalizado em virtude dos ferimentos graves decorrentes da tentativa de suicídio que efectuou após os factos descritos e apresenta vários problemas ao nível da marcha e lesões em algumas vértebras que o impedem de estar demasiado tempo de pé ou sentado, contribuindo ainda para problemas ao nível do controlo dos esfíncteres”) e de uma aproximação à família de origem (“a sua reclusão viria a aproximá-lo da irmã mais velha e da progenitora.”).

Considera-se, por tudo, que a pena única se deve fixar próximo do ponto médio da moldura abstracta mas não acima dele, ou seja, em nove anos e seis meses de prisão.

4. Face ao exposto, acordam na Relação de Évora em:

- Julgar parcialmente procedente o recurso;

- Reduzir a pena parcelar pelo crime de homicídio qualificado tentado para 8 anos de prisão;

- Fixar a pena única em 9 anos e 6 meses de prisão;

- Manter, no mais, o acórdão.

Sem custas.

Évora, 07.01.2014

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

(1) - Sumariado pela relatora
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