Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
168/20.0T8RMR.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do Código Civil, por decisão judicial, tem que fazer-se considerando os princípios da jurisdição voluntária, tendo em conta essencialmente os interesses que a norma visa proteger.
2 – Consequentemente, também a alteração ou a extinção da situação de arrendamento por essa via constituída devem fazer-se com recurso aos mesmos princípios.
3 – As decisões tomadas em processo de jurisdição voluntária, embora por natureza alteráveis, obrigam as partes e vinculam o tribunal enquanto não forem alteradas em sede própria.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I
O autor, A., instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra a Ré M., sua ex-mulher, peticionando que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento constituído judicialmente entre si e a Ré, relativamente à casa de morada de família, e que esta seja condenada a pagar-lhe o montante de €800,00 a título de rendas vencidas e não pagas, bem como as rendas que se vencerem na pendência da presente acção e até efectiva entrega do imóvel, e ainda a quantia de €5.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Alegou para tanto, em resumo, que por decisão proferida no âmbito do processo de divórcio que dissolveu o seu casamento foi atribuído à Ré o direito de arrendamento da anterior casa de morada de família, pelo período por que perdurasse a obrigação do Autor de pagar a pensão de alimentos à filha comum, tendo sido estipulada uma contrapartida financeira a cargo da Ré e em favor do Autor no valor de €80,00, que esta nunca pagou, num total de dez rendas em falta no valor de €800,00 até à data de entrada em juízo da presente acção.
Diz ainda que esta circunstância o tem deprimido, causado tristeza e angústia, danos que deverão ser ressarcidos pela Ré.
II
Devidamente citada, a Ré contestou, defendendo-se essencialmente com a alegação de que as rendas mencionadas pelo Autor se encontravam pagas por o Tribunal ter ordenado o seu desconto nos termos do art. 48º do RGPTC, em incidente de incumprimento de responsabilidades parentais, uma vez que o Autor não pagava os alimentos devidos à filha comum, acumulando dívida no montante de €5.670,00.
Termina a Ré pedindo a consequente absolvição do pedido.
Respondeu ainda o Autor, defendendo a improcedência da defesa da Ré, por o crédito de pensão de alimentos não ser titulado pela Ré e, por isso, não poder ser compensado com o seu, invocado nestes autos.
III
Veio a ser proferida sentença, que decidiu favoravelmente à posição do Autor (só julgou improcedente o que se refere ao pedido de indemnização por danos morais).
É o seguinte o decidido, na parte em que atendeu os pedidos do Autor:
a) Declarar a resolução do contrato de arrendamento constituído entre o Autor A. e a Ré M. por decisão judicial datada de 2019/09/11 e proferida no âmbito do processo de divórcio n.º 1042/18.5T8AVR que correu termos no Juízo de Família e Menores de Aveiro – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, sobre o prédio misto, sito em (…), composto por cultura arvense, oliveiras, casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial urbano (…) e o artigo matricial rústico (…), da Freguesia de (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da freguesia de (…);
b) Condenar a Ré M. a restituir ao Autor A. o prédio melhor referido no ponto a) supra, livre de pessoas e bens;
c) Condenar a Ré M. a pagar ao Autor A. a quantia de €800,00 a título de rendas vencidas e não pagas entre setembro de 2019 e junho de 2020, respeitantes ao contrato referido no ponto a) supra, bem como todas as rendas vencidas a partir de julho de 2020 em diante até trânsito em julgado da presente sentença;
d) Condenar a Ré M. a pagar ao Autor A. a quantia mensal de €80,00 pelo período de tempo em que se mantenha na sua disponibilidade o prédio urbano após o trânsito em julgado da presente sentença e até à sua efetiva entrega ao Autor.
IV
Contra o assim decidido, reagiu a Ré através do presente recurso de apelação, que termina com as seguintes conclusões:
a. Vem o presente recurso a interpor da douta sentença proferida que condenou a R., nos seguintes termos: “Declarar a resolução do contrato de arrendamento… Condenar a R. a restituir ao autor o prédio livre de pessoas e bens… Condenar a R. a pagar ao A. a quantia de €800,00 a título de rendas vencidas e não pagas…. Condenar a R. a pagar ao A. a quantia mensal de €80,00 pelo tempo que se mantenha na sua disponibilidade o prédio urbano após o trânsito em julgado da presente acção…”
b. Com a qual a Ré não concordou pelo que ora se recorre,
c. Entende a R., e ao contrário do decidido do Meritíssimo Juiz a quo, que as rendas se devem considerar pagas,
d. Nada devendo a R. ao A a título de rendas pelo uso de casa morada de família.
Ora vejamos,
e. No seguimento do processo de divórcio com o nº 1042/18.5T8AVR que decorreu no Tribunal de família e menores de Aveiro, procedeu-se à atribuição da casa morada de família à R. por entender aquele tribunal, que a casa seria mais necessária àquela do que ao A. pois tinha um rendimento mensal baixo e necessitava desta para residir com a sua filha menor, ficando assim onerada com o pagamento das despesas da casa como a luz, água, eletricidade e televisão e uma compensação ao autor de 80,00€ (oitenta euros) mensais,
f. Resultando desta decisão um contrato de arrendamento, celebrado por via judicial,
g. Pois, do casamento entre R. e A. nasceu B., relativamente à qual no ano de 2012, se procedeu à regulação das responsabilidades parentais,
h. A que deu origem ao processo nº 110/12.1TBRMR que decorreu no tribunal judicial de Rio Maior,
i . No qual o A. ficou obrigado a pagar à filha menor de ambos a quantia de 70,00€ (setenta euros) a título de pensão de alimentos;
i. Que o A. nunca pagou;
j. Pelo que a R. intentou ação de incumprimento das responsabilidades parentais, a que deu origem ao apenso 110/12.1TBRMR-A, no qual ficou provado que o A. se encontrava em dívida na quantia de 5200,00€ (cinco mil e duzentos euros),
k. No entanto mesmo com esta condenação o A. continuou sem pagar a pensão de alimentos devido à sua filha menor,
l. Pelo que a A. se viu obrigada a instaurar nova ação de incumprimento das responsabilidades parentais a que deu origem ao processo nº 110/12.1TBRMR-B,
m. Pois desde o acordo da regulação das responsabilidades parentais, homologado por sentença, em 29/02/2012, o R. nunca pagou a pensão de alimentos ali estipulada e devida à sua filha menor.
n. No processo nº 110/12.1TBRMR-B que decorreu no tribunal de Família e menores de Santarém – Juiz 3, foi proferida sentença que se transcreve:
”i - julgar verificado o incumprimento por A. da obrigação de prestação de pensão de alimentos à filha B., respeitante ao mês de novembro de 2019 a janeiro de 2020 (inclusive) no montante total de 210,00€ em cujo pagamento se condena, absolvendo-o do mais peticionado;
ii - ordenar o desconto do montante mensal global de €70,00 a título de pensão de alimentos devidos aos filhos na renda (compensação pelo uso da casa da morada de família),
iii - ordenar o desconto do montante mensal de €10,00 na renda (compensação pelo uso da casa de morada de família), até perfazer o montante de €210,00 referido em 1. “
o. Sentença esta que transitou em julgado a 05/03/2020,
p. Em cumprimento da sentença referida em 18. a R. não pagou as rendas pelo uso da casa morada de família, diretamente ao A.
q. Mas sim pagava o valor da pensão de alimentos devida à filha pelo A. com a renda que lhe teria que pagar,
r. Então com esta situação a R. não compensou a sua obrigação de pagamento das rendas com o crédito devido à sua filha
s. Ao invés, o valor da renda pelo uso da casa de morada de família que a R. teria que pagar ao A., no montante de 80,00€, pagaria à sua filha menor de modo a ser cumprida a obrigação de A. a pagar a pensão de alimentos à filha, e a proceder ao seu sustento,
t. Neste caso substituía-se ao A. no pagamento da pensão de alimentos,
u. Sendo este desconto efetuado como se de penhora de créditos,
v. O que é permitido e legalmente previsto conforme disposto no art. 48.º al. c) do RGPTC,
w. Pelo que a sentença proferida no âmbito dos autos de incumprimento das responsabilidades parentais nº 110/12.1 TBRMR-B, decidiu pelo desconto das quantias devidas a titulo de pensão de alimentos no valor das rendas;
x. Decisão na qual a R. confiou e por isso cumpriu,
y. Da mesma Sentença foi junta cópia simples aos autos de que ora se recorre, de modo a comprovar nos mesmos a razão pela qual a R. não pagava a renda diretamente ao A.;
z. No entanto o Meritíssimo Juiz a quo decidiu que tal desconto na renda não poderia proceder, considerando-o enquanto compensação de créditos prevista no art. 847.º do Código Civil, pois o mesmo crédito era titulado pela filha menor e não pela R.
aa. Pelo que considerou que as rendas não se encontravam pagas,
bb. Por conseguinte declarou a resolução do contrato de arrendamento celebrado judicialmente.
cc. E condenou a R. a restituir ao autor o prédio objecto do contrato de arrendamento que se discutiu nos autos de que se recorre
dd. Condenando ainda a R. a pagar as quantias devidas a título de rendas vencidas e não pagas, na quantia de 800,00€
ee. Contudo, e salvo o devido respeito, o desconto da pensão de alimentos no valor da renda não deverá ser entendido enquanto compensação de créditos, nos termos do art. 847.º do CC mas sim enquanto penhora de créditos nos termos do art. 48.º do RGPT,
ff. Devendo assim a decisão proferida na Douta Sentença ser alterada e, por conseguinte, considerarem-se as rendas peticionadas pagas, por desconto do crédito, conforme cumprimento da sentença proferida no processo 110/12.1TBRMR-B,
gg. Nada a R. devendo ao A. a título de rendas pelo uso da casa morada de família,
hh.E nessa senda absolver a R. da Resolução do contrato de arrendamento, por falta de fundamento,
V
Pelo Autor, recorrido, não foi apresentada resposta às alegações de recurso.
VI
A sentença recorrida deu como provada a seguinte factualidade, que entendeu relevar para a decisão da causa:
1. O prédio misto, sito em (…), composto por cultura arvense, oliveiras, casa de habitação de rés-do-chão e logradouro encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial urbano n.º (…) e o artigo matricial rústico n.º (…), da Freguesia de (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…) da freguesia de (…), com registo de aquisição pelo Autor no estado de casado no regime de comunhão de adquiridos com a Ré em 1991/02/04, por doação de J..
2. No âmbito do processo de divórcio n.º 1042/18.5T8AVR que correu termos no Juízo de Família e Menores de Aveiro – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, em que figuravam como Autor e Ré os aqui Autor e Ré, respetivamente, foi proferida sentença judicial datada de 2019/09/11 com o seguinte teor, no que ao caso releva:
“(…) FACTOS PROVADOS
1- O autor e a casaram no dia 60/09/1990 [data no original], sem convenção antenupcial.
2- Desse casamento nasceu B., em 30 de Janeiro de 2005 (assento de nascimento de folhas 67 e 68). (…)
(…) entende o Tribunal que é mais necessária a casa de morada de família à , do que ao autor, pois tem um rendimento mensal baixo como o do autor e necessita desta para residir com a filha menor.
Assim, decide-se atribuir a casa de morada de família à ré. (…) afigura-se-nos que a deve ser onerada com o pagamento das despesas da casa, como a da luz, água, eletricidade, e televisão e uma compensação ao autor de 80,00 mensais.
Esta atribuição da casa de morada de família, mantém-se enquanto o pai se encontrar obrigado a pagar a prestação de alimentos à filha nos termos do artigo 190 do Código Civil, mesmo que esta atinja a maioridade, desde que continue a estudar.
DECISÃO
Face ao exposto, decido atribuir a casa de morada de família à M., tendo esta que pagar ao autor, a título de compensação 80,00 mensais e de suportar as despesas com a água, luz, eletricidade, televisão e gás, da casa de morada de família (…)”.
3. A Ré não pagou ao Autor qualquer das dez rendas vencidas até ao mês de julho de 2020, num total de € 800,00.
4. No âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais n.º 110/12.1TBRMR, que correu termos no extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, em que figuravam como Requerente o Ministério Público e Requeridos os aqui Autor e Ré, respetivamente, foi proferida sentença judicial homologatória de acordo de regulação das responsabilidades parentais relativas à menor B., filha destes últimos, datada de 2012/02/29 com o seguinte teor, no que ao caso releva:
“(…) SEXTO
O pai pagará a título de pensão de alimentos devidos à menor a quantia de 70,00€ (setenta euros), quantia essa que pagará à mãe até ao dia 08 de cada mês por transferência bancária para o nib (…), com início no mês de Março próximo (…)”.
5 - No âmbito do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais n.º 110/12.1TBRMR-A, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Santarém – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, em que figuravam como Requerente o Ministério Público, em representação da menor B., e Requerido o aqui Autor, respetivamente, foi proferida sentença judicial datada de 2019/12/04 com o seguinte teor, no que ao caso releva:
“(…) DECISÃO
Termo em que, julgo procedente o presente incidente de incumprimento e, em consequência, julgo verificado o incumprimento por A. da obrigação de prestação de pensão de alimentos à filha B., respeitante aos meses de maio de 2013 a outubro de 2019, inclusive, no montante total de cinco mil quatrocentos e sessenta euros, em cujo pagamento se condena (…)”.
6 - No âmbito do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais n.º 110/12.1TBRMR-B, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Santarém – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, em que figuravam como Requerente a aqui Ré, em representação da menor B., e Requerido o aqui Autor, respetivamente, foi proferida sentença judicial datada de 2020/03/05 com o seguinte teor, no que ao caso releva:
“(…) DECISÃO
Termos em que, julgo parcialmente procedente o presente incidente de incumprimento e, em consequência, decido:
i. julgar verificado o incumprimento por A. da obrigação de prestação de pensão de alimentos à filha B., respeitante ao mês de novembro de 2019 a janeiro de 2020 (inclusive), no montante total de 210,00, em cujo pagamento se condena, absolvendo-o do mais peticionado;
ii. ordenar o desconto do montante mensal global de 70,00 a título de pensão de alimentos devidos aos filhos na renda (compensação pelo uso da casa da morada de família);
iii. ordenar o desconto do montante mensal de 10,00 na renda (compensação pelo uso da casa de morada de família), até perfazer o montante de 210,00 referido em 1. (…)”.
VII
Tendo presente que o objecto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (cfr. arts. 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir na presente apelação traduzem-se na apreciação do mérito das decisões impugnadas, em face das razões da apelante e considerando a factualidade disponível e o Direito aplicável ao caso.
*
VIII
APRECIANDO E DECIDINDO:
A situação jurídica a que o Autor nestes autos de processo comum pretendeu reagir, e extinguir, foi constituída por sentença judicial, proferida no processo de divórcio que dissolveu o casamento entre ele e a aqui Ré (processo n.º 1042/18.5, do Juízo de Família e Menores de Aveiro, J1).
Nesse processo, por sentença proferida a 11 de Setembro de 2019, foi decidido como consta do ponto 2 da matéria de facto provada:
- “Atribuir a casa de morada de família à M., tendo esta que pagar ao autor, a título de compensação 80,00 mensais e de suportar as despesas com a água, luz, eletricidade, televisão e gás”.
Essa atribuição da casa de morada de família foi acompanhada de uma estipulação adicional:
Esta atribuição da casa de morada de família, mantém-se enquanto o pai se encontrar obrigado a pagar a prestação de alimentos à filha nos termos do artigo 190 do Código Civil, mesmo que esta atinja a maioridade, desde que continue a estudar.”
Anote-se que, uma vez que a referida menor, filha do casal, nasceu em 30 de Janeiro de 2005 (cfr. ponto 2 da matéria de facto provada) só atingirá a maioridade a 30 de Janeiro de 2023.
Para fundamentar o decidido, diz a sentença que (…) entende o Tribunal que é mais necessária a casa de morada de família à , do que ao autor, pois tem um rendimento mensal baixo como o do autor e necessita desta para residir com a filha menor”; (…) afigura-se-nos que a deve ser onerada com o pagamento das despesas da casa, como a da luz, água, eletricidade, e televisão e uma compensação ao autor de 80,00 mensais.”
Escreveu-se já então nos fundamentos dessa decisão que “a capacidade da ré para pagar uma compensação ao autor é muito limitada uma vez que não tem um ordenado mensal e o autor nem sequer tem cumprido com o pagamento da prestação de alimentos à filha”.
Isto porque na verdade desde 2012/02/29, por decisão proferida no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais n.º 110/12.1TBRMR, que correu termos no extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, estava o autor obrigada a pagar pensão de alimentos a sua filha, por transferência para a conta da ora ré:
“O pai pagará a título de pensão de alimentos devidos à menor a quantia de 70,00€ (setenta euros), quantia essa que pagará à mãe até ao dia 08 de cada mês por transferência bancária para o nib (…), com início no mês de Março próximo (…)”
Importa sublinhar que a atribuição da casa de morada de família, que neste caso correu no processo de divórcio, constitui um procedimento nominado, previsto actualmente no art. 990º do Código de Processo Civil em vigor, e anteriormente no art. 1413º do anterior CPC.
Reza este art. 990º o seguinte:
1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
2 - O juiz convoca os interessados ou ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.os 1, 5 e 6 do artigo 931.º, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º.
3 - Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo.
4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso”.
Esta atribuição da casa de morada de família, como decorre desde logo da sua inserção sistemática, constitui um processo de jurisdição voluntária, nos quais, como é sabido, o julgador “não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a decisão que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987º CPC) e cujas “resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração” (cfr. art. 988º CPC).
Recordamos estas normas e estes princípios para melhor compreensão da decisão de atribuição da casa de morada de família acima citada, dos seus contornos, dos seus fundamentos e da sua natureza. Como é patente, ela baseou-se num conjunto de factores que o tribunal ponderou, numa avaliação dos interesses em jogo, já que acordo de vontades entre autor e ré não existia.
Foram decisivas as considerações sobre as dificuldades económicas da ré e as prementes necessidades de habitação dela e de sua filha, também filha do autor.
Por conseguinte, também ficou consignada a estatuição de que tal situação duraria “enquanto o pai se encontrar obrigado a pagar a prestação de alimentos à filha nos termos do artigo 190 do Código Civil, mesmo que esta atinja a maioridade, desde que continue a estudar”.
É evidente a preocupação de proteger os interesses da filha, deixando claro que não se trata de uma simples atribuição da casa à mãe; e este segmento também faz parte da decisão de atribuição da casa (o tribunal estabeleceu essa condição no arrendamento).
Dito isto, é altura de aludir à sede substantiva onde o julgador tem que encontrar orientação para esta atribuição, e que vem a ser o art. 1793º do Código Civil:
Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”
Como se constata, o que nesta norma se previu é a constituição de uma relação locativa cujo facto genético é um acto de autoridade do Estado, uma decisão judicial.
Há a constituição forçada de um arrendamento, que fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, designadamente a fixação e obrigação de pagamento de renda, podendo o tribunal definir, ouvidos os cônjuges, as condições do “contrato”.
Repare-se que, dada a origem do vínculo, totalmente diverso da génese usual dos contratos (um acordo de vontades entre as partes), tem existido por vezes na doutrina relutância em aceitar a sua qualificação como contrato.
Pinto Furtado escreve a págs. 38 do seu “Arrendamentos Vinculísticos” (Almedina, 1984) que “o arrendamento previsto neste artigo não reveste a natureza jurídica de contrato, sendo de caracterizar como um arrendamento judicial, um acto judicial”.
E o Acórdão da Relação de Lisboa de 21-05-1998, relatado por Ponce Leão, disponível em www.dgsi.pt e no BMJ n.º 447-fls. 550 declara:
“O arrendamento decretado ao abrigo do art. 1793 CC não reveste a natureza de contrato mas de acto judicial, caracterizando-se como arrendamento judicial.
E a decisão que o constitui, não se esgotando em tal constituição mas conformando o próprio conteúdo, pode fazer apelo ao elemento culpa do divórcio uma vez que a consagração do advérbio "nomeadamente" no n. 1 daquele normativo representa uma cláusula genérica susceptível de o considerar.”
Não entrando em aprofundamentos doutrinários sobre a natureza contratual ou não da situação de arrendamento em causa, sublinhamos porém o ponto que se nos afigura decisivo, e que vem a ser a sua origem: é uma sentença que tem efeito constitutivo de tal relação. E a decisão tomada obedece aos critérios próprios da jurisdição voluntária.
Compreende-se por isso a conclusão de que para alteração do que foi determinado na sentença, ou para conhecer da sua caducidade, tem essa questão que ser suscitada ao tribunal, e este terá que decidir, novamente tendo em conta “os termos gerais da jurisdição voluntária”. É o que resulta dos números 2 e 3 do art. 1793º do Código Civil.
E afigura-se que o tribunal em referência tem que ser aquele onde a decisão foi proferida; o n.º 4 do art. 990º CPC aponta para essa dependência, determinando a apensação quando já exista processo anterior.
Só desta forma será possível a ponderação de todos os factores e interesses a considerar, de acordo com os princípios da jurisdição voluntária; por isso entendemos que o pedido de alteração ou de declaração de caducidade do arrendamento assim decidido tem que ser deduzido em face do processo que o decidiu; existe para esses pedidos uma clara competência por conexão.
Recorde-se de novo que os processos de jurisdição voluntária, nos quais se inserem os pedidos de atribuição de casa de morada de família, não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, não estão limitados pelas concretas alegações das partes, podendo o julgador adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cfr. o disposto nos artsº 986º e segs. do C.P.C.); tanto basta para concluir que também a sua alteração ou extinção devem obedecer aos mesmos princípios, não podendo ser objecto de processo comum, onde eles não vigoram.
Contra esta conclusão pode argumentar-se que o art. 1793º alude a fazer caducar o arrendamento “quando circunstâncias supervenientes o justifiquem” e que o regime fixado “pode ser alterado”, apelando aos termos gerais da jurisdição voluntária, mas ao mesmo tempo estatui que o dito arrendamento “fica sujeito às regras do arrendamento para habitação”, e visto que o Autor pretende a resolução do contrato esta pretensão será admissível através do processo comum.
Entendemos porém que esse segmento normativo “fica sujeito às regras do arrendamento para habitação” não pode significar a possibilidade de alterar ou extinguir o arrendamento em causa por uma via que ignore os interesses e os princípios que estiveram na base da decisão judicial que o constituiu, sob pena de aceitação de situações como esta que aqui se conhece: a decisão tomada na sentença recorrida choca frontalmente com a decisão tomada na atribuição da casa de morada de família quando esta referiu que essa atribuição “mantém-se enquanto o pai se encontrar obrigado a pagar a prestação de alimentos à filha nos termos do artigo 190 do Código Civil, mesmo que esta atinja a maioridade, desde que continue a estudar”.
É certo que tal decisão foi produzida em processo de jurisdição voluntária e como tal é por natureza alterável (cfr. art. 988º CPC).
Todavia, também é certo que enquanto não for alterada ela se impõe e vincula, nomeadamente o tribunal e as partes, que a terão que acatar (cfr. art. 619º, n.º 1, do CPC); o caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos e com a mesma força e eficácia.
Portanto, julgamos que não podia a sentença recorrida ter decidido a resolução do arrendamento em questão, por isso lhe estar vedado pelos termos da decisão de atribuição desse arrendamento, transitada em julgado, e por tal pretensão ter sido deduzida através de meio processual inadequado.
E julgamos também que não podia condenar a ré a pagar ao autor os €800 que considerou em dívida e os €80 correspondentes a cada mês que se vencesse, dado o teor da decisão proferida no âmbito do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais n.º 110/12.1TBRMR-B, do Juízo de Família e Menores de Santarém – Juiz 3, datada de 2020/03/05, quando esta determinou “ii. ordenar o desconto do montante mensal global de 70,00 a título de pensão de alimentos devidos aos filhos na renda (compensação pelo uso da casa da morada de família); iii. ordenar o desconto do montante mensal de 10,00 na renda (compensação pelo uso da casa de morada de família), até perfazer o montante de 210,00 referido em 1. (…)”.
Como é evidente, esta decisão, tomada ao abrigo do art. 48º do RGPTC, para reagir ao incumprimento por parte do aqui autor no pagamento da pensão de alimentos a sua filha menor (chegou a acumular dívida no montante de €5.670,00) obriga a ré a não entregar ao autor a quantia de €80 que de outro modo estava obrigada a entregar-lhe como compensação pela atribuição da casa de morada da família.
O art. 48º, n.º 1, al. c), do RGPTC estatui que para efectivação da prestação alimentícia o tribunal pode determinar que as rendas que o devedor devia receber sejam deduzidas por quem haja de as pagar, de forma satisfazer a dívida (“a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas”), tendo sido isso mesmo o que foi determinado.
Por conseguinte, a ré não podia entregar ao autor essas importâncias, dada a decisão judicial proferida no processo de incumprimento; e o facto provado no n.º 3 dos factos provados (“A Ré não pagou ao Autor qualquer das dez rendas vencidas até ao mês de julho de 2020, num total de € 800,00”) não equivale de modo nenhum a aceitar que ela tem em dívida essas quantias.
No caso, a expressão “não pagou ao Autor” significa apenas que não lhe entregou a ele essas quantias; mas já sabemos que não o podia fazer, porque assim tinha sido determinado por decisão judicial. E para saber se essas mesmas quantias estão em dívida não basta a constatação de que não as entregou ao autor, é necessário proceder à liquidação nos autos de incumprimento da RRP, para verificar o que por essa via foi pago pelo autor da sua própria dívida ali em execução (dada a dimensão desta, a importância deduzida pela ré estará ainda certamente muito longe de atingir os montantes necessários).
Deste modo, conclui-se também que não podia a sentença recorrida ter condenado a ré pagar ao autor, como o sentido claro de lhe entregar a ele esses valores, a quantia de €800, correspondente aos meses de renda que considerou já vencidas, e €80 por cada mês que se vencesse daí em diante, por tal decisão chocar frontalmente com o decidido no incidente de incumprimento das responsabilidades parentais n.º 110/12.1TBRMR-B, do Juízo de Família e Menores de Santarém – Juiz 3, que afectou essas quantias à satisfação coactiva das responsabilidades parentais do autor.
O recurso interposto apresenta-se, portanto, como procedente, impondo-se reconhecer a razão da recorrente.
Perante tudo o exposto, entendemos que a sentença recorrida não pode subsistir, e decidimos em consequência a revogação do decidido e a sua substituição pela absolvição da ré.
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DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a presente apelação e em consequência revogar a sentença recorrida.
Custas da fase recursal pelo apelado, como parte vencida, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 9 de Junho de 2022
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier