Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
221/12.3JBLSB-F.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: MEDIDA DE COAÇÃO
INCUMPRIMENTO
ALTERAÇÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 11/15/2016
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: N
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Verificando-se o incumprimento das obrigações resultantes da sujeição do arguido à medida coactiva de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE), impunha-se ao tribunal, desde logo e antes de tudo, recolher elementos concretos sobre o paradeiro do arguido e notificar o Ex.mo Advogado, defensor do arguido, para se pronunciar, querendo, sobre a promoção de agravamento da medida coactiva, e só depois, verificada a culpa do arguido no incumprimento das obrigações resultantes da sujeição à medida de coacção vigente, e ponderadas as exigências cautelares, sendo o caso, aplicar a pretextada prisão preventiva.
II - Constitui nulidade insanável, nos termos previstos no art. 119.º, alínea c) do CPP, a decisão que, sem proceder às diligências referidas e perante o incumprimento da medida coactiva de OPHVE, procede de imediato ao agravamento da medida coactiva para prisão preventiva.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 221/12.3JBLSB-F.E1

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos de processo comum em referência, o arguido, BB, por acórdão de 29 de Janeiro de 2016 (sob recurso), foi condenado na pena única de 12 anos e 6 meses de prisão.

2 – Por despacho de 10 de Maio de 2016, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido decidiu nos seguintes termos:
«III - O arguido BB foi condenado nos presentes autos, por acórdão proferido em 29/01/2016, ainda não transitado em julgado, na pena única de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico entre as penas parcelares por que foi cominado [pela prática, em concurso real, dos seguintes crimes:
(…)
Ao arguido BB foi aplicada a medida coativa de prisão preventiva, em 10/10/2013, que foi substituída pela medida de coação de OPHVE, em 12/02/2014. Desde 15/09/2014, o arguido foi autorizado a exercer atividade laboral, na recolha e comercialização de madeira, pedido que teve motivações de ordem económica e ocupacionais, nomeadamente para diminuir o impacto do confinamento habitacional. Em 17/11/2014, esta autorização judicial foi alargada, passando o arguido a poder circular entre vários locais/localidades para cumprimento da atividade laboral.
Proferido o acórdão e em relação ao estatuto coativo do arguido BB foi decidido que o mesmo continuaria a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida coativa de OPHVE (cfr. fls. 10158 e 10159).
Sucede que no dia 05/02/2016, o arguido não regressou à habitação às 17h: 15m (cfr. relatório da GGRSP, a fls. 10173 a 10174, 1184 e 1185), sendo a monotorização eletrónica interrompida, não mais regressando o arguido BB, encetando a fuga e abandonando o território nacional.
É, pois, manifesto que o arguido BB violou as obrigações impostas pela medida de coação de OPHVE a que se encontrava sujeito, pondo-se em fuga, procurando eximir-se à ação da justiça e à execução da pena em que eventualmente possa vir a ser condenado em termos definitivos.
Neste contexto e considerando a gravidade dos crimes imputados ao arguido BB, estando em causa criminalidade violenta e organizada, deferindo o promovido pela Digna Procuradora da República, decide-se aplicar ao mesmo arguido a medida coativa de prisão preventiva (cfr. art°. 203°, nºs. 1 e 2, al. a), do C.P.P.).
Notifique e comunique-se à DGRSP.
Diligencie-se pela emissão de MDE e pela remessa às autoridades competentes, em conformidade com o promovido.»

3 – O arguido interpôs recurso deste despacho.
Pretende a revogação do despacho «recorrido devendo o mesmo ser substituído por decisão que mantenha a medida OPHVE anteriormente fixada, agora em morada confidencial, ou outra medida por Vossas Excelências julgada necessária e adequada mas que não comprometa a segurança e integridade física do arguido, antes a salvaguarde, como é de Direito e de Justiça».
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1º O douto tribunal ad quo concluiu, sem outra averiguação e sem ouvir o próprio arguido, que este pôs-se «…em fuga, procurando eximir-se à ação da justiça e à execução da pena em que eventualmente possa vir a ser condenado em termos definitivos.». Trata-se de um pré-juízo que não corresponde à verdade, que os factos e a própria lógica não consentem.
2º. Ao alterar a medida de coacção para prisão preventiva no despacho recorrido, o douto tribunal ad quo não cuidou, como devia ter feito in casu, de ordenar aos serviços competentes para que estes tomem as medidas necessárias para acautelar a integridade física do arguido na prisão, nomeadamente prendendo-o em estabelecimento onde ela não seja colocada em risco.
3º. A «gravidade dos crimes imputados» e o facto estar «…em causa criminalidade violenta e organizada.» não se agravaram com o julgamento e decisão. Pelo contrário, o próprio douto tribunal ad quo julgou não provados boa parte dos factos da acusação e dos crimes pelos quais os arguidos vinham indiciados, desde logo o de associação criminosa, absolvendo boa parte dos que estavam presos preventivamente e o ora recorrente foi condenado essencialmente por crimes contra o património – furto qualificado e explosão, pelo que a fixação e a manutenção da medida de OPHVE ocorreu estando em causa mais crimes, mais graves e de forma organizada, que o próprio tribunal ad quo considerou não provada. A alteração ocorreu no sentido da atenuação, não do agravamento, razão pela qual estes fundamentos em concreto não podem justificar o agravamento da medida de coacção e pelo contrário, aconselham a sua manutenção.
4º. Em abstracto o único fundamento seria a «violação das obrigações impostas pela medida de coação de OPHVE», cuja verdadeira causa não foi apurada, porque o douto tribunal ad quo não ouviu o ora recorrente.
5º. Em abstracto (cfr. art. 203º n. 1 do C.P.P.), a violação das obrigações impostas por uma medida de coacção «pode» justificar a sua revisão e alteração e essa alteração «pode» até, também em abstracto, ser no sentido da prisão preventiva (cfr. art. 203º n. 2 a) do CPP). Mas não tem que. Importa averiguar as causas da violação em concreto e se elas realmente justificam, ou não (cfr. arts. 193º e 203º n. 2 do CPP), a sua revisão e em que medida.
6º. O art. 203º n. 1 do C.P.P. impõe expressamente que sejam apurados e ponderados os motivos da violação, até porque, «A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.», como estatui o art. 28º n. 2 da C.R.P.
7º. Para tanto o arguido tem que ser ouvido, ou pelo menos deve ser-lhe dada oportunidade para isso.
8º. A prévia audição do arguido nestas circunstâncias não é só um requisito formal incontornável – que in casu não foi respeitado - é um requisito material imprescindível para uma boa, justa e adequada decisão. O arguido pode ter algo a dizer, pode ter algo a explicar, pode ter algo a requerer, é imprescindível que seja chamado a fazê-lo... Tem o direito a ser ouvido antes de uma decisão tão grave ser tomada e, in casu¸ tinha de facto algo a dizer, algo a explicar e algo a requerer.
9º. Não obstante estar em paradeiro actualmente desconhecido, o arguido tem um defensor que pode e deve ser notificado. Pode pronunciar-se, por escrito, através dele, conforme abundante jurisprudência, incluindo deste Venerando Tribunal, tem ensinado. Frisando sempre o direito e necessidade do arguido ser ouvido antes de lhe ser alterada a medida de coacção, especialmente num caso tão grave quanto a fixação de prisão preventiva.
10º. Por outro lado, cautelarmente importa frisar que não existia a «impossibilidade» de audição ressalvada no mesmo art. 194º n. 3 do C.P.P. e, de resto, ela nem sequer foi mencionada, e muito menos «devidamente fundamentada» no despacho recorrido. A prévia audição do arguido foi simplesmente omitida.
11º. Nos termos dos arts. 60º, 61º, 112º n. 3, 113º n. 9, 194º n. 4 do C.P.P. e 28º n. 1 da C.R.P., o arguido ora recorrente deveria ter sido notificado para ser ouvido antes da decisão recorrida, tal como deveria ter sido notificado da promoção do M.P. datada de 3/5/2016 que a antecedeu (tanto mais quanto foi lavrada em sentido oposto à promoção de 21/4) e até do expediente que ela refere. Nada disto aconteceu.
12º. Só depois de estar devidamente habilitado com todos os factos necessários para a boa ponderação de uma decisão tão grave – e para isso teria que ouvir o arguido – é que o douto tribunal ad quo poderia verificar a real necessidade, adequação e proporcionalidade para alterar a medida de coacção;
13º. O arguido, que em 15/9/2014 já estava autorizado a exercer actividade laboral, passou, a partir dessa data, «a poder circular entre vários locais/localidades para cumprimento da atividade laboral», estando, por isso, na prática, confinado à permanência na habitação com vigilância electrónica apenas durante o período nocturno, situação reconhecidamente favorável e que constituiu uma oportunidade de ressocialização que o arguido realmente aproveitou para esse escopo, estando também naturalmente empenhado a dela tirar o máximo partido para os efeitos do disposto no art. 80º do Código Penal, ciente de que, por via da confissão que fizera (em ambos os processos), não poderia deixar de ser condenado nos termos da legislação em vigor no nosso país.
14º. Ciente ab initio de que seria condenado, tendo entretanto sido até condenado, numa pena de prisão efectiva (por acórdão não transitado), o arguido só tinha razões para se empenhar em manter a situação de OPHVE em que se encontrava durante o maior período de tempo possível, o que poderia acontecer ainda por muitos meses. Objectivamente não era do interesse o arguido ou de qualquer pessoa no seu lugar procurar, pelo menos nesta altura, «eximir-se à ação da justiça», «encetando (um)a fuga». Muito pelo contrário! E pessoalmente, depois de tanto ter colaborado com a Justiça, depois de ter reorganizado a sua vida de acordo com a lei, também não.
15º. As razões que justificam a ausência e o paradeiro desconhecido do arguido são outras, são graves e estavam já sugeridas e até presentes nos autos, tendo agora sido claramente particularizadas por requerimento de fls., apresentado em 3/6/2016, que se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais.
16º. Foram razões de segurança que obrigaram o arguido a ter que se ausentar, precipitadamente, contra a sua vontade e contra os seus próprios interesses, de estratégia processual, de saúde (dos seus familiares), de equilíbrio na sua vida e até económicos.
17º. Como aparece reflectido nos autos em vários momentos, ao longo do processo o arguido ora recorrente sofreu – bem como a sua família – sérias ameaças por parte de alguns outros arguidos e ainda hoje, mesmo estando o arguido ausente de casa desde Fevereiro, tendo até os arguidos que estavam presos preventivamente separados nos diversos estabelecimentos prisionais sido definitivamente absolvidos, a sua habitação identificada nos autos é regularmente rondada por estranhos e familiares do recorrente vão continuando a receber ameaças que lhe são dirigidas…
18º. Poucos dias antes da derradeira sessão de julgamento no processo n.º 27/13.2JBLSB, que correu termos na Inst. Central – Secção Criminal no Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal e que está relacionado com os presentes autos e à ordem do qual estavam presos preventivamente boa parte dos arguidos deste, a filha do arguido foi perseguida e a sua mulher agredida e ameaçada em ordem a que o ora recorrente permanecesse em silêncio, o que o levou a ausentar-se intempestivamente para paradeiro desconhecido, tendo o arguido pedido a dispensa da sua presença, a qual lhe foi concedida.
19º. O arguido ora recorrente não tinha razões para se eximir à ação da justiça, mas tinha, e tem, razões para ter a protecção dela e para manter o seu paradeiro confidencial.
20º. A medida de prisão preventiva ora aplicada não é adequada ao caso e não é necessária, pelo contrário, é até contraproducente. A Justiça e o bem comum exigem, nesta fase, que o arguido ora recorrente seja protegido, não que seja preso preventivamente.
21º. A medida anteriormente fixada e que esteve em vigor sem quaisquer vicissitudes durante mais de dois anos e meio deve ser mantida, com alteração da morada do arguido, que deve passar a ser confidencial. O que requer.
22º. Caso assim não se entenda, no que não se concede, deve ser expressamente ordenado aos serviços competentes que a medida de prisão preventiva que porventura seja fixada deverá ser cumprida em estabelecimento prisional onde a vida e a integridade física do arguido não seja colocada em risco.
Preceitos violados:
Arts. 60º, 61º n. 1 b), 112º n. 3, 113º n. 9, 191º n. 1, 193º, 194º n. 4 e 203º n. 1 do C.P.P, o art. 28º n. 1 in fine e n. 2 da C.R.P., e os princípios da necessidade e da adequação atrás referidos.»

4 – O recurso foi recebido, por despacho de 15 de Julho de 2016.

5 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em primeira instância respondeu ao recurso.
Defende a confirmação do julgado.
Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1º - No dia 10 de Maio de 2016 foi proferido despacho de alteração da medida de coacção, de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica, para a de prisão preventiva uma vez que o arguido desde 5 de Fevereiro de 2016 ausentou-se da sua residência sem dar conhecimento ao tribunal ou à DGR-SP, colocando-se em fuga, procurando eximir-se à acção da justiça e à execução da pena em que eventualmente pudesse vir a ser condenado.
2° - Inconformado com tal despacho veio o arguido recorrer do mesmo, alegando, em síntese, tal decisão, proferida nos termos do artigo 203° do Código de Processo Penal não foi antecedida de qualquer averiguação, nomeadamente a audição do próprio arguido, e que, pese embora sendo desconhecido o seu paradeiro não inviabiliza o contraditório, já que podia o seu defensor ser notificado para o mesmo efeito;
- e que o Tribunal não cuidou de acautelar a sua integridade física no estabelecimento prisional, o que se impunha, face às especificidades do caso, tendo sido perseguido, bem como a sua família, para impedir que o mesmo preste declarações.
3° - Ora, o arguido BB havia já estado sujeito a prisão preventiva, a qual foi mais tarde substituída pela medida coactivo de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica, medida essa que foi sucessivamente reexaminada nos termos do artigo 213º do Código de Processo Penal e mantida nos seus precisos termos, tendo a última das reapreciações ocorrido na data do acórdão proferido nos presentes autos.
4° - O arguido foi ainda autorizado a manter a sua actividade laboral, o que não impediu que pouco tempo após a leitura do acórdão, se pusesse em fuga.
5° - Não colhem, os argumentos do arguido de que teve de se ausentar porque a sua vida/saúde, bem como dos familiares estavam em risco. É que o arguido encontra-se sozinho no estrangeiro, sendo que a sua família está em Portugal, e, segundo as suas próprias declarações, à mercê dos que lhe querem fazer mal.
6° - Por outro lado, o julgamento há muito que terminou, pelo que não faz sentido que queiram "calar" o arguido. E, Por outro lado ainda, caso fosse colocado em cumprimento de pena, assistia-lhe o direito de requerer à Direcção Geral dos Serviços Prisionais, a mudança de estabelecimento, a fim de impedir que o mesmo esteja recluso na mesma prisão que os demais arguidos/aqueles que pretende evitar.
7° - Quanto ao contraditório: "A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada... ".
8° - O arguido já se encontrava sujeito a uma medida de coacção detentiva, pelo que não foi surpreendido pela agravação da mesma, face ao incumprimento da OPH, quando se colocou em fuga;
9° - O que o arguido veio alegar na missiva que juntou aos autos, na sequência da consulta dos autos, através do Citius, efectuada pelo seu defensor, fê-lo quando se apercebeu da emissão dos MDE e MDI e por orientação deste último;
10° - Aquando da detenção, em cumprimento dos MDE ou MDI para execução da prisão preventiva, será o mesmo ouvido, nos termos do preceituado no art° 254°, nº 2 do CPP, podendo dizer o que lhe aprouver, em sua defesa.»

6 – Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta, é de parecer que o recurso não merece provimento.

7 – O arguido replicou reiterando o alegado.

8 – O objecto do recurso respeita a saber se o despacho recorrido é nulo, por violação, designadamente, do disposto nos artigos 60,º, 61.º n.º 1 alínea b), 112.º n.º 3, 113.º n.º 9, 191.º n.º 1, 193.º, 194.º n.º 4 e 203.º n.º 1, do CPP, e do artigo 28.º n.os 1 e 2, da CRP.
II

9 – Incidências processuais relevantes:
(i) o arguido recorrente foi submetido à medida de coacção de prisão preventiva, por despacho de 10 de Outubro de 2013;
(ii) a prisão preventiva foi substituída pela medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE), por despacho de 12 de Fevereiro de 2014;
(iii) o arguido foi autorizado a exercer actividade laboral na recolha e comercialização de madeira, por despacho de 15 de Setembro de 2014;
(iv) tal autorização foi alargada, autorizando-se o arguido a circular entre vários locais/diversas localidades, por despacho de 17 de Novembro de 2014;
(v) o arguido foi condenado, por acórdão de 29 de Janeiro de 2016 (de que foi interposto recurso), na pena de 12 a nos e 6 meses de prisão;
(vi) decidiu-se então que o arguido continuaria a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito à medida de coacção de OPHVE;
(vii) no dia 5 de Fevereiro de 2016, o arguido não regressou à habitação às 17:15h, tendo sido interrompida a monitorização electrónica;
(viii) o arguido não mais regressou à habitação;
(ix) o arguido encontra-se em parte incerta, fora do território nacional;
(x) em sequência, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido, sob promoção do Ministério Público, sem prévia audição do arguido, e com apelo ao disposto no artigo 213.º n.os 1 e 2 alínea a), do CPP, ponderando estar em causa criminalidade violenta e organizada, decidiu aplicar ao mesmo arguido a medida de coacção de prisão preventiva.

10 – Dispõe o artigo 203.º, do Código de Processo Penal (CPP) – epigrafado de violação das obrigações impostas:
«1 - Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coacção previstas neste Código e admissíveis no caso.
2 - Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 193.º, o juiz pode impor a prisão preventiva, desde que ao crime caiba pena de prisão de máximo superior a 3 anos:
a) Nos casos previstos no número anterior; ou
b) Quando houver fortes indícios de que, após a aplicação de medida de coacção, o arguido cometeu crime doloso da mesma natureza, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.»

11 – Dispõe o artigo 28.º n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – epigrafado de prisão preventiva:
«A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.»

12 – Dispõe o artigo 32.º n.º 5, da CRP – epigrafado de garantias do processo criminal:
«O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios subordinados ao princípio do contraditório.»

13 – Dispõe o artigo 61.º n.º 1 alínea b), do CPP – epigrafado de direitos e deveres processuais [do arguido]:
«O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de […] ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte».

14 – Dispõe o artigo 212.º n.os 2 e 4, do CPP – epigrafado de revogação e substituição das medidas [de coacção]:
«[…] As medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação. […] A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada. […]»

15 – Dispõe o artigo 119.º alínea c), do CPP – epigrafado de nulidades insanáveis:
«Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais […] a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência […]».

16 – Procurando seguir um alinhamento preclusivo, vejamos das razões de dissensão do recorrente relativamente ao decidido na instância.

17 – Não se configurando o processo penal como um processo de partes, não constituindo articulados as tomadas de posição de cada um dos sujeitos processuais, nem a falta de resposta a cada um acarretando qualquer efeito cominatório (acórdão, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22-04-2009, Processo 458/07.7JACBR-C.C1, disponível, como os mais citandos, em www.dgsi.pt), certo é que seja o carácter excepcional da prisão preventiva, seja a imposição do contraditório, maxime da audição do arguido, impostos pela normação acima referenciada, previnem a comutação, rectius o agravamento, da medida coactiva, sem prévia audição do arguido, cominando tal omissão com o vício de nulidade insanável.

18 – Em decorrência, e no caso, face ao verificado incumprimento das obrigações resultantes da sujeição do arguido à medida coactiva vigente, de OPHVE, impor-se-ia, desde logo e antes de tudo, recolher elementos concretos sobre o paradeiro do arguido (via autoridades policiais, mesmo com eventual recurso à Interpol) – diligência que os autos não certificam – e, de par (mesmo antecipando resposta de tais autoridades), fazer notificar o Ex.mo Advogado, defensor do arguido, para se pronunciar, querendo, sobre a promoção de agravamento da medida coactiva.

19 – É que o Mm.º Juiz não podia, sem lesão de tais princípios (designadamente do princípio do contraditório) e normação, decidir pelo agravamento da medida de coacção (ademais com aplicação de uma medida de carácter excepcional), sem apreciar os concretos motivos da violação que, é sabido, há-de ser culposa.

20 – Como sublinha o Conselheiro Maia Costa, em anotação ao artigo 213.º, do CPP, no «Código de Processo Penal – Comentado», Almedina, 2014, pág. 878:
«[…] o juiz deverá, após a apreciação em concreto dos “motivos” da violação, conjugados com a gravidade do crime imputado, ponderar, à luz dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, se existe uma maior exigência cautelar e consequentemente necessidade de “reforço” das medidas de coacção, impondo outra ou outras medidas de coacção que sejam admissíveis no caso. A violação deverá ser sempre culposa

21 – Assim, o despacho revidendo não pode deixar de ser declarado nulo e, como tal revogado, com determinação de que, na instância, seja substituído por decisão que (i) diligencie pelo conhecimento do paradeiro do arguido, e, de par, (ii) faça notificar o arguido, designadamente através do respectivo defensor, da promoção do Ministério Público no sentido da comutação da medida coactiva, só depois, verificada a culpa do arguido no incumprimento das obrigações resultantes da sujeição do arguido à medida coactiva vigente, de OPHVE, e com os ditos critérios, cabendo ponderar as exigências cautelares e, sendo caso, a aplicação da pretextada prisão preventiva.

22 – Como assim, o recurso merece provimento.

23 – Não cabe tributação – artigo 513.º n.º 1, do CPP, a contrario sensu.
III

24 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, BB, declarando-se nulo e, como tal revogado, o despacho recorrido. com determinação de que, na instância, seja substituído por decisão que (i) diligencie pelo conhecimento do paradeiro do arguido, e, de par, (ii) faça notificar o arguido, designadamente através do respectivo defensor, da promoção do Ministério Público no sentido da comutação da medida coactiva, só depois, verificada a culpa do arguido no incumprimento das obrigações resultantes da sujeição do arguido à medida coactiva vigente, de OPHVE, e com os ditos critérios, cabendo ponderar as exigências cautelares e, sendo caso, a aplicação da pretextada prisão preventiva; (b) sem tributação.

Évora, 15 de Novembro de 2016
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto, com voto de vencido)
Fernando Ribeiro Cardoso (presidente da Secção)


Proc. 221/12.3JBLSB-F.E1
Negaria provimento ao recurso, concretamente, no que respeita à questão que fez vencimento, em síntese, pelas seguintes razões:
1) Entendemos que não resulta do artigo 212 n.º 4 do CPP - quando aí se estabelece que a revogação das medidas de coação tem lugar, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, “devendo estes ser ouvidos” - que este direito de audição tenha que ser presencial, por um lado, porque este direito a ser ouvidos respeita ao arguido, mas também ao Ministério Público, pelo que não se vê, em face dos termos desse preceito, porque razão haveria de haver uma diferença de tratamento (isto, a menos que se entendesse que o Ministério Público também haveria de ser ouvido pessoalmente, o que não se aceita nem se vê que tenha qualquer fundamento legal), por outro lado, o art.º 61 do CPP - que trata dos direitos e deveres processuais - autonomiza o direito do arguido a “estar presente” (nos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito) e o direito do arguido a ser ouvido, sempre que deva ser tomada qualquer decisão que pessoalmente o afete, direito este que fica salvaguardado com a audição, por escrito, do respetivo defensor, pois que este exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este (art.º 63 n.º 1 do CPP), o que - repete-se - não é o caso;
2) Mesmo que assim não se entendesse - e se entendesse que o arguido, no respeito pelo princípio do contraditório, teria que ser ouvido presencialmente (o que não entendemos) - sempre se dirá que consideramos que esta situação configura um caso de manifesta impossibilidade, suficientemente fundamentada, da audição - presencial - do arguido, que se colocou nessa situação, ausentando-se para parte incerta do estrangeiro, ou seja, colocando-se, objetiva e comprovadamente, na impossibilidade de ser ouvido presencialmente;
3) De qualquer modo - e entendendo-se, como entendemos, que o arguido teria que ser ouvido, através do seu defensor, dando-lhe oportunidade de exercer o contraditório relativamente ao pedido de revogação da medida e das razões em que se baseava tal pedido - o seu defensor não foi ouvido.
Todavia, esta falta de audição - a omissão de uma formalidade que a lei prevê - não integra qualquer das nulidades previstas nos art.ºs 119 a 120 do CPP, designadamente, a prevista no art.º 119 n.º 2 al.ª c), pois que, pelas razões acima expostas, não estamos perante uma qualquer diligência à qual a lei imponha a comparência do arguido ou do seu defensor.
A omissão dessa formalidade integra uma mera irregularidade, face ao disposto no art.º 118 n.ºs 1 e 2 do CPP - a inobservância de uma disposição legal que a lei não comina como nulidade - irregularidade que, não tendo sido tempestivamente arguida, nos três dias seguintes ao seu conhecimento, se tem como sanda, ex vi art.º 123 n.º 1 do CPP.
Conheceria, consequentemente, do fundo da questão.
Diga-se ainda que não se vê que desta interpretação resultem beliscados, de modo desproporcionado, os direitos de defesa do arguido ou o exercício do contraditório, por um lado, porque o arguido teve oportunidade de arguir a omissão da sua audição, teve oportunidade de recorrer da decisão - e aí demonstrar a incorreção do despacho recorrido, designadamente, a falta de razões para a revogação da medida antes aplicada - e teve oportunidade (que mantém) de requerer a sua audição, a qualquer momento, e esclarecer as razões do seu procedimento e, em última análise, demonstrar que não há razões para que lhe seja aplicada (ou mantida) a medida de coação aplicada.
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Évora, 15/11/2016
(Alberto João Borges)