Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
125/21.9T8OLH.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: CONTESTAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - se, em sede de contestação, não é deduzida defesa por impugnação nem são invocados factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo autor, não há lugar a audiência final para produção de prova sobre outros factos alegados nesse articulado;
- a pretensão de pagamento da dívida em prestações, nos casos em que não seja esse o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos, não assume relevância no âmbito da ação declarativa de condenação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…)
Recorrida / Autora: (…) – Sucursal da Sociedade Anónima Francesa (…), SA.
Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual a Autora formulou o seguinte pedido:
a) a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 1.058,04, acrescida de juros de mora vencidos (€ 37,32) e de imposto de selo sobre os juros vencidos (€ 1,49) e juros de mora vincendos e de imposto de selo sobre os juros vincendos, às taxas anuais de 29,26%, até efetivo e integral pagamento;
b) a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 24.507,98, acrescida de juros de mora vencidos (€ 192,04) e de imposto de selo sobre os juros vencidos (€ 7,68) e juros de mora vincendos e de imposto de selo sobre os juros vincendos, às taxas anuais de 6,5%, até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, invocou a celebração de dois contratos de financiamento de crédito, tendo disponibilizado quantias monetárias na conta bancária da Ré e ficando esta adstrita a proceder ao pagamento dos montantes financiados em prestações mensais. O que a Ré incumpriu, tendo a Autora declarado resolvidos ambos os contratos.
Em sede de contestação, a Ré declarou não negar a existência da dívida. Requereu fosse determinado um acordo prestacional para a pagar, de acordo com as suas possibilidades, dados os parcos recursos de que dispõe e as despesas que suporta, que elencou no referido articulado.
A Autora pronunciou-se no sentido de não aceitar qualquer acordo prestacional de pagamento da dívida.


II – O Objeto do Recurso
Foi proferido saneador-sentença julgando a ação totalmente procedente.
Inconformada, a R apresentou-se a recorrer, pugnando pela alteração da decisão recorrida. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos:
«1 - Veio a Recorrente apelar a um prazo mais longo para o cumprimento da sua obrigação.
2 - A ora Recorrente teve muitas dificuldades pessoais e familiares que a impossibilitaram de cumprir a sua obrigação com a Autora.
3 - O crédito que adquiriu inclui também um montante para efeitos de liquidação de dívidas que não foram contraídas pela própria.
4 - Por causa da crise pandémica a Ré não auferiu, nos últimos dezasseis meses, o seu rendimento na totalidade devido a baixas médicas consecutivas.
5 - A ora Recorrente tem muitas despesas mensais.
6 - Deveria o tribunal recorrido ter procedido à marcação de audiência de discussão e julgamento para que a Recorrente pudesse explicar-se perante um Juiz ou, de contrário, determinar o prolongamento do prazo para que a ora Recorrente pudesse liquidar sua dívida.
7 - Ao não o fazer violou o tribunal recorrido os artigos 2.º da Constituição Portuguesa, bem como o artigo 20.º, n.º 4, do mesmo diploma legal – acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- da não realização de audiência final;
- do direito da Recorrente ao prolongamento do prazo para pagamento da dívida.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. O autor é uma instituição de crédito.
CONTRATO DE CRÉDITO CELEBRADO EM 09.03.2006
2. Em 09.03.2006, no exercício da sua atividade comercial, o autor concedeu à ré crédito direto sob a forma de contrato de crédito em conta corrente.
3. Nos termos do contrato assim celebrado entre o autor e a ré, aquele emprestou a esta a dita importância de € 500,00, com juros à taxa nominal de 29,26% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como o imposto de selo de abertura de crédito e imposto de selo sobre tais juros serem pagos, nos termos acordados, em prestações, mensais e sucessivas no valor de € 25,00 cada uma, com vencimento, a primeira, em 01.04.2006 e as seguintes no dia 1 dos meses subsequentes.
4. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem logo dada pela ré para o seu Banco – mediante transferências bancárias a efetuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para a conta bancária, logo indicada pelo autor.
5. O contrato descrito no ponto 1 foi celebrado através de documento particular.
6. No decorrer do contrato e a menos que a autora pretendesse cessar a relação contratual, a ré poderia solicitar novos financiamentos ao abrigo do mesmo, sendo que caso o valor do saldo em dívida fosse igual ou superior a € 1.500,01, as prestações mensais de reembolso nunca poderiam ser de valor inferior a uma parte fixa e pré-estabelecida de valor igual a 5% do capital (de acordo com a cláusula 3.1. das Condições Gerais associadas ao contrato de crédito em conta corrente).
7. Para além do montante inicial de € 500,00, o autor concedeu novos financiamentos à ré nos seguintes termos:
(i) Em 30.05.2006, a quantia de € 22,00;
(ii) Em 15.08.2006, a quantia de € 28,00;
(iii) Em 29.09.2006, a quantia de € 250,00;
(iv) Em 28.02.2007, a quantia de € 327,00;
(v) Em 15.03.2007, a quantia de € 17,00;
(vi) Em 09.08.2007, a quantia de € 52,00;
(vii) Em 05.02.2008, a quantia de € 1.000,00;
(viii) Em 08.05.2008, a quantia de € 65,00;
(ix) Em 29.07.2008, a quantia de € 37,00;
(x) Em 02.07.2019, a quantia de € 1.000,00;
(xi) Em 30.09.2019, a quantia de € 1.000,00.
8. A ré não procedeu ao pagamento pontual das importâncias que se encontravam em dívida.
9. Em 20.11.2020, através de carta registada com aviso de receção, a autora interpelou a ré, concedendo-lhe um prazo adicional de 15 dias para que esta procedesse ao pagamento da importância em dívida, sob pena de o contrato se considerar resolvido.
10. A carta descrita no ponto 9 veio devolvida com a menção ‘objeto não reclamado’.
11. A autora procedeu à resolução do contrato em 30.12.2020.
12. Até à entrada da petição inicial, o capital em dívida ascende à quantia de € 1.058,04.
CONTRATO DE CRÉDITO CELEBRADO EM 16.12.2019
13. Em 16.12.2019, no exercício da sua atividade comercial, o autor concedeu à ré crédito direto sob a forma de contrato de crédito em conta corrente com a finalidade de renegociação de débitos anteriores.
14. O dito financiamento destinava-se a reunir num único empréstimo os montantes em dívida pela Ré, à data da aceitação do contrato pela Autora, provenientes de créditos por esta contraídos junto da Autora, no valor global de € 23.159,69.
15. Nos termos do contrato assim celebrado entre o autor e a ré, aquele emprestou a esta a dita importância de € 23.159,69, com juros à taxa nominal de 6,5% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, o prémio de seguro, bem como o imposto de selo de abertura de crédito e imposto de selo sobre tais juros serem pagos, nos termos acordados, em cento e vinte prestações, mensais e sucessivas no valor de € 295,20 cada uma, com vencimento, a primeira, em 01.02.2020 e as seguintes no dia 1 dos meses subsequentes.
16. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem logo dada pela ré para o seu Banco – mediante transferências bancárias a efetuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para a conta bancária, logo indicada pelo autor.
17. O contrato descrito no ponto 15 foi celebrado através de documento particular.
18. A ré apenas procedeu ao pagamento parcial da primeira prestação, nos termos descritos no ponto 15.
19. Em 20.11.2020, através de carta registada com aviso de receção, a autora interpelou a ré, concedendo-lhe um prazo adicional de 15 dias para que esta procedesse ao pagamento da importância em dívida, sob pena de o contrato se considerar resolvido.
20. A carta descrita no ponto 20. veio devolvida com a menção ‘objeto não reclamado’.
21. A autora procedeu à resolução do contrato em 30.12.2020.
22. Até à entrada da petição inicial, o capital em dívida ascende à quantia de € 24.507,98.
23. A presente ação foi intentada pelo autor em 12.02.2021.

B – O Direito
A Recorrente, reconhecendo a dívida perante a Recorrida, pretende seja fixado um plano para o respetivo pagamento. Para tanto, invoca dificuldades financeiras decorrentes dos reduzidos recursos que aufere e das despesas que suporta, que elencou na contestação.
Ora, a contestação é o articulado no qual o demandado apresenta a sua defesa contra a pretensão com que é confrontado pelo demandante – cfr. artigos 569.º e seguintes do CPC. A defesa pode ser por impugnação ou por exceção: por impugnação quando o contestante contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor; por exceção quando são alegados factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido – cfr. artigo 571.º/1 e 2, do Código de Processo Civil.
Seguindo de perto os ensinamentos de Alberto dos Reis[1], podemos concretizar que a defesa por exceção configura o exercício de um contra direito do réu cujo conteúdo consiste no poder de impugnar a ação; é um direito potestativo que visa anular o efeito jurídico pretendido alcançar com a ação; paralisa a ação, obsta a que o direito do autor, apesar de existente, produza os seus efeitos. Já a defesa por impugnação põe a claro que o direito de que se arroga o autor não existe, é a defesa direta, a negação dos factos. A impugnação pode operar-se por negação motivada quando se integram os factos articulados numa diferente versão fática, afirmando-se que o evento se processou de forma parcialmente diversa ou com diversa significação jurídica, consubstanciando uma contraversão ou contra exposição do mesmo facto.
«A negação dos factos integradora da impugnação pode ser uma negação direta (frontal, rotunda, completa) ou ser apenas uma negação indireta (qualificada ou per positionem). O réu, neste último caso, reconhece a realidade dos factos (ou parte deles) invocados pelo autor, mas dá-lhes uma versão diferente, contrariando assim a verificação dos factos constitutivos do direito do autor».[2] A defesa por exceção «trata-se da defesa que, sem negar propriamente a realidade dos factos articulados na petição, nem atacar isoladamente o efeito jurídico que deles se pretende extrair, assenta na alegação de factos novos, tendentes a repelir a pretensão do autor.»[3]
Assim, tendo em vista alcançar a absolvição total ou parcial do pedido, cabe ao demandado contradizer os factos alegados pelo demandante ou demonstrar que não conduzem ao efeito jurídico pretendido, ou invocar outros factos que impedem, modificam ou extinguem o direito do demandante.
No caso em apreço, a Recorrente reconheceu, na contestação, os factos invocados pela Recorrida e a dívida que deles decorre; mais invocou a sua impossibilidade de a solver, reclamando um plano prestacional de pagamento. Nestes termos, é manifesto que não deduziu defesa: não impugnou os factos alegados nem o efeito jurídico deles decorrente, nem trouxe à colação factos que impeçam, modifiquem ou extingam o direito da Recorrida à reclamada quantia monetária.
Por muito difícil que seja a situação económico-financeira da Recorrente, o que se lamenta, certo é que essa situação não impede, modifica ou extingue a dívida que decorre do incumprimento dos contratos de financiamento de crédito.
Na verdade, a Recorrente, enquanto devedora, está adstrita a cumprir a obrigação realizando a prestação pecuniária junto da Recorrida (cfr. artigo 762.º do Código Civil), devendo a prestação ser realizada integralmente e não por partes, exceto se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos (cfr. artigo 763.º/1, do Código Civil).
Por outro lado, a questão atinente à forma de pagamento da quantia apurada contende já com o cumprimento do sentenciado, com a execução da condenação judicial; ainda que o credor venha a aceitar o pagamento em prestações, tal circunstância não contende com o prévio reconhecimento judicial da dívida nem com a condenação da devedora no respetivo pagamento.
Por via de tal regime legal, quer de índole processual quer de índole substantivo, não poderia a ação ter outro desfecho que não fosse a condenação da Recorrente sem necessidade de realização da audiência final – os factos insertos na contestação não assumem relevo enquanto meio de defesa à pretensão esgrimida na petição inicial.
O que não contende com o disposto nos artigos 2.º e 20.º da CRP, pois o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva há-de operar-se segundo as regras processuais e substantivas vigentes, consentâneas que são (pelo menos aquelas a que nos referimos supra) com o modelo constitucional que nos norteia.
Inexiste, pois, fundamento para acolher a pretensão recursória em apreço.

Sem custas, dado a Recorrente beneficiar do apoio judiciário.

Concluindo:
(…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Sem custas.
Évora, 28 de outubro de 2021
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite


__________________________________________________
[1] Cfr. CPC Anotado, vol. III, pág. 32.
[2] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 288.
[3] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., página 291.