Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
354/13.9JAFAR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A lei processual não impõe a busca da verdade absoluta, e, por isso, as autoridades judiciárias, mormente o juiz, não dispõem de um poder ilimitado de produção de prova (quer quanto ao modo de produção da prova, quer no tocante ao momento de produção da mesma).

II - No plano da produção da prova, o princípio do contraditório representa a tradução, em termos objetivos, da imparcialidade jurisdicional (não faria sentido ter-se um juiz imparcial se não fosse também imparcial a busca do material probatório que há de constituir a base para a condenação ou a absolvição).

III - A prova, por princípio, obtém-se atempadamente, com o contributo dialético dos diferentes sujeitos processuais, e não no “último momento” (por diligências determinadas pelo juiz no decurso da audiência de discussão e julgamento). Mais: o juiz não deve nunca, a nosso ver, ordenar a realização de diligências para obtenção de elementos probatórios em satisfação, sem mais, de uma mera exigência defensiva de uma previsível absolvição do arguido.

IV - Resulta das regras da experiência que as “conversas"via “Facebook"e os “sms” enviados dos telemóveis são, atualmente,um palco para verificação das mais variadas e imprevistas situações, constituindo como que uma “realidade alternativa” (uma “realidade virtual”), onde, muitas vezes, as coisas não são o que aparentam ser.

V - Nesta perspetiva, e nesses suportes de comunicação, perguntar a uma rapariga de 12 anos se “é virgem”, ou sugerir encontros com a mesma para “estar aos beijos”, deixa fundadas dúvidas sobre a real existência, por banda de quem faz a pergunta e a sugestão, do conhecimento e da vontade de se estar a praticar um qualquer crime.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 354/13.9JAFAR, da Comarca de Faro (Faro - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 1), em que é arguido TS, foi decidido, por sentença datada de 02-02-2016, absolver o arguido da prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171º, nº 3, al. b), do Código Penal.

Inconformado com a decisão absolutória, dela interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (em transcrição):

“1º - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados, a qual decidiu absolver o arguido TS da prática, como autor material, de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art. 171º, nº 3, al. b), do Código Penal.

2º - No caso, como decorre do próprio texto da decisão recorrida, que o arguido conhecia os elementos objetivos do tipo objetivo do sobredito crime, a douta sentença recorrida considerou que o arguido não atuou com dolo.

3º - O tribunal prescindiu da presença do arguido e não ordenou a sua presença, sem justificar o motivo. Assim como, desconhecendo o contexto das mensagens ou tendo dúvidas sobre a consequência das mesmas, não ordenou a inquirição da ofendida.

4º - Omitindo essa apreciação, a douta sentença recorrida padece do vício de omissão de pronúncia, e encontra-se afetada pela subsequente nulidade, nos termos previstos no art. 379º, nº 1, al. c), do Cód. P. Penal, o que integra também o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício esse que é manifesto em face do próprio texto da decisão recorrida.

5º - Por outro lado, o princípio estabelecido no art. 127º, do Cód. P. Penal, impõe ao tribunal que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, aprecie a prova segundo as regras de experiência e a livre convicção, com respeito por critérios objetivos e de lógica racional, com obediência a critérios de experiência comum.

6º - Todavia, no caso, perante os restantes factos que deu como provados e os que constam dos documentos que valorou, resulta do próprio texto da douta decisão recorrida que o Tribunal, ao considerar provado que o arguido enviou as mensagens que constam do ponto 1 a 9, o teor das mensagens, de conteúdo objetivamente obsceno, violou aquele princípio da livre apreciação da prova estabelecido no art. 127º do Cód. P. Penal, olvidando as regras de experiência comum, e interpretando este normativo legal como não impondo a consideração dessa regras.

7º - Na verdade, e, no caso, atendendo às qualidades do arguido, ao teor das mensagens, aliciando-a para um encontro num local recatado para dar beijos e questionando-a se era virgem, essas regras de experiência devem levar a considerar que o arguido ao menos se mostrou totalmente indiferente perante a possibilidade de cometer de molestar sexualmente a menor de 14 anos.

8º - Ao dar como provado que o arguido atuou sem dolo e que as mensagens possuem teor neutro, não possuem cariz obsceno, incorreu ainda o Tribunal em erro notório na apreciação da prova, o qual resulta do próprio texto da decisão recorrida em conjugação com aquelas regras de experiência comum (art. 410º, nº 2, al. c), do Cód. P. Penal.

9º - Face a todo exposto, a decisão em crise violou os artigos 127º, 368º, nº 2, 374º, nº 2, 379º, nº 1, al. c), 410º, nº 2, als. b) e c), todos do Cód. de Proc. Penal.

10º - Assim, julgando-se procedentes aqueles vícios que afetam a douta sentença recorrida, deverá a mesma ser anulada, e, não se encontrando gravada a prova nem constando dos autos todos os elementos necessários para a decisão, nomeadamente o apuramento dos factos necessários à determinação da medida da pena, requer-se que o Venerando Tribunal da Relação determine o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos previstos no art. 426º, nº 1, do Cód. P. Penal”.
*
O arguido não respondeu ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo pela procedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar e corridos os vistos, foi designada data para conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.
Duas questões, em muito breve síntese, são suscitadas no recurso interposto pelo Ministério Público, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

1ª - Saber se o tribunal a quo não procedeu, como lhe incumbia, à realização de todas as diligências probatórias necessárias (audição do arguido e reinquirição da ofendida). Na opinião expressa no recurso, tal configura nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal), e ainda o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al. a), do mesmo diploma legal).

2ª - Saber se, perante os factos que deu como provados, o tribunal recorrido devia ter concluído, por presunção judicial (ou seja, recorrendo às regras da experiência comum), pela prova dos factos que teve como não provados. A Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente vê aqui o vício do erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal), e também violação do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do mesmo diploma legal).

2 - A decisão recorrida.
A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“Factos provados:
Com relevo para a decisão a proferir, provaram-se os seguintes factos:

1. Entre Novembro e Dezembro de 2013, o arguido encetou conversa, via Facebook, com a menor B, de 12 anos de idade, nascida a 26/04/2001, fazendo elogios às fotos que a mesma tinha postado naquela rede social e dizendo-lhe “és gata, manda-me um pedido”.

2. Nos meses acima mencionados, o arguido tinha 28 anos de idade.

3. As fotos que a menor tinha na respetiva página do Facebook eram suas e não de outras jovens com aparência mais velha.

4. Porém, no respetivo perfil da rede social Facebook, o arguido apresentava-se acompanhado de um jovem adolescente menor, supondo B, num momento inicial, que fosse este último o adolescente que a havia contactado.

5. Depois, no dia 30/11/2013, via Facebook, o arguido pediu à menor o seu número de telemóvel e encetou contactos com a mesma também via sms.

6. Entre as 08:20 e as 15:02 horas, do dia 02/12/2013, o arguido, do seu telemóvel com o número 913----, enviou à ofendida, para o seu telemóvel com o nº 911---, catorze sms, entre elas as seguintes:

- “eu tenho piercing na língua bebe, sabias?”;
- “já não dizes nd princesa”;
- “Hum ok. Olha, por tras la do campo tem um mato msm fixe para la tar aos bjs XD;
- “Era um bom sítio para nos irmos bebe”.

7. Às 14:44:12 horas, nesse mesmo dia, o arguido enviou um sms do seu número de telemóvel para o número de telemóvel da menor, dizendo-lhe que tinha 22 anos de idade.

8. B. sempre se apresentou como uma jovem de 12 anos de idade, tendo inclusive enviado do seu telemóvel para o telemóvel do arguido, em 02/12/2013, às 14:47:24, a seguinte sms:

- “axas normal um homem de 22 anos falar assim com uma rapariga de 12 anos?”.

9. O arguido perguntou à menor se ela era virgem, tendo aquela respondido afirmativamente.

Mais se apurou que:

10. O arguido provém de um grupo familiar constituído pelos pais, um irmão mais velho já autónomo e outro com 16 anos de idade e a cargo de familiares, na sequência do falecimento da progenitora, há 3 anos.

11. Por motivos de limitações da capacidade parental, associada a debilidade mental ligeira de ambos os progenitores, foi precocemente entregue, juntamente com o seu irmão mais velho, aos cuidados dos avós paternos.

12. Durante o processo de crescimento, o arguido usufruiu de um ambiente familiar estável, quer em termos económicos, quer em termos de estruturação familiar, assente em valores de solidariedade, partilha e responsabilidade.

13. Em termos escolares/formativos, registou dificuldades de aprendizagem, decorrentes de défice ao nível do seu desenvolvimento cognitivo, o que viria a determinar o seu encaminhamento para o ensino profissionalizante.

14. Obteve como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade, no curso profissional de operador de impressão.

15. Após o estágio profissional, iniciou atividade profissional numa gráfica em Olhão.

16. Encontra-se atualmente desempregado, desempenhando atividades esporádicas no ramo da construção civil.

17. Desde Janeiro de 2015 frequenta curso de formação profissional de pastelaria, usufruindo de uma bolsa de formação, no montante de € 216,00.

18. Vive com a avó paterna, de quem continua a depender economicamente.

19. No contexto laboral, é referenciado como empenhado e assíduo.

20. Em termos afetivos, situa a primeira experiência de cariz amoroso/sexual aos 16 anos de idade, com namorada do seu grupo etário.

21. Posteriormente teria um relacionamento de namoro e posterior vivência marital durante 4 anos, junto do agregado da companheira.

22. Da relação mencionada em 20 teve um filho, atualmente com 7 anos de idade, com quem não contacta há cerca de 2 anos.

23. Perante os técnicos da DGRSP, contextualizou os factos subjacentes ao processo como de cariz situacional e com reduzida e algo embotada consciência do interdito e das consequências para a vítima.

24. Os défices cognitivos que apresenta e a vivência recente de perdas de pessoas de referência assumiram-se como fator de risco comportamental.

25. No processo n.º ---/02.3PBFAR, por acórdão transitado em julgado em 06/01/2004, o arguido foi condenado na pena de €100,00 dias de multa, pela prática, em 30/05/2002, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º do Cód. Penal.

26. No processo n.º ---/05.6PBFAR, por acórdão transitado em julgado em 29/10/2007, o arguido foi condenado na pena única de 2 anos e 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, pela prática, em Agosto 2005, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 e 2, 204.º, n.º 2, al. f) e 73.º do Cód. Penal, e ainda pela prática, em Novembro de 2005, de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo art.º 359.º, n.º 1 e 2 do Cód. Penal.

Factos não provados:
Com relevo para a decisão a proferir, não se provaram os seguintes factos:

A) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que molestava sexualmente, através de conversas/escritos, uma jovem menor de 14 anos de idade, o que quis e conseguiu.

B) Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Motivação:
O tribunal apreciou livremente a prova, à luz das regras da experiência comum (art.º 127.º do CPP), designadamente os documentos juntos aos autos e as declarações para memória futura da menor B., que foram prestadas de forma que se afigurou coerente, espontânea e genuína e, por isso, foram merecedoras de crédito.

O arguido faltou à audiência de julgamento e os mandados emitidos com vista a assegurar a sua comparência não foram cumpridos, razão pela qual o tribunal não pôde contar com as suas declarações para o apuramento da verdade material.

Dito isto, cumpre concretizar a formação da convicção do tribunal, após a pertinente ressalva à possibilidade de se darem como provados factos atinentes ao nascimento dos sujeitos processuais sem que se encontrem juntos aos autos documentos autênticos, dada a ausência de prova tarifada em processo penal.

No que tange à idade do arguido nos meses de Novembro e Dezembro de 2013, valoraram-se o teor do TIR que o mesmo prestou e a fotocópia do cartão de cidadão do mesmo, que se encontra junta aos autos a fls. 88, donde se retira que o mesmo nasceu em 20/08/1985 e, por isso mesmo, naquela ocasião tinha 28 anos (facto n.º 2).

Quanto à idade da menor, ao período em que decorreram as conversas entre a mesma e o arguido via Facebook, bem como ao tipo de abordagem feita por este último àquela, valorou-se o teor do auto de fls. 141 (quanto aos dados de identificação), concatenado pelas declarações prestadas por B. (facto n.º 1).

Na medida em que a menor afirmou que as fotografias que constavam do seu perfil do Facebook eram suas, essa é a situação normal e não foi infirmada por qualquer outro meio de prova, o tribunal convenceu-se da veracidade do facto n.º 3.

Conjugando o teor do documento junto a fls. 35 com as declarações da menor, deu-se como provado que, quando foi inicialmente abordada pelo arguido, B. supôs que tivesse sido o adolescente que se encontrava junto ao arguido na sua “foto de perfil” do Facebook a contactá-la, por o arguido ser consideravelmente mais velho (cf. parte inferior de fls. 35) – facto n.º 4.

Foram igualmente as declarações da menor que levaram o tribunal a dar como provado que foi via Facebook que o arguido lhe pediu o seu número de telemóvel e começou a encetar contactos com a mesma também por sms. Quanto à data em que tal sucedeu, valorou-se essencialmente o documento de fls. 20, cujo teor foi confirmado pela menor. Assim sendo, deu-se como provado o facto n.º 5.

Considerando que B. confirmou que o seu número de telemóvel era o que constava da acusação (911----), que do auto de exame de fls. 18 e ss. resulta que as sms eram trocadas entre o referido número e o 913--- e ainda que do auto de apreensão de fls. 89 resulta que foi apreendido ao arguido um telemóvel que continha no seu interior um cartão da operadora Vodafone a que corresponde o último número mencionado, não se suscitaram dúvidas ao tribunal sobre o facto de as sms que constam de fls. 18 e 19 terem sido trocadas entre a menor e o arguido.

Assim, e considerando que B. confirmou o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 19 e 20, como correspondendo às mensagens trocadas entre ambos nas datas mencionadas em tais documentos, resultaram provados os factos n.º 6 a 8.

Uma vez que as declarações prestadas pela menor se revelaram espontâneas e foram absolutamente consonantes com a prova documental recolhida no processo, revelaram-se ainda idóneas e suficientes para a demonstração de que o arguido lhe tinha perguntado se ela era virgem e esta tinha respondido que sim (facto n.º 9).

No que tange à atuação livre, deliberada e consciente do arguido, com vontade de molestar sexualmente a menor, cremos que a prova produzida não é concludente, na medida em que o teor das mensagens trocadas com a mesma não revela que aquele quisesse propriamente satisfazer os seus instintos libidinosos à custa da ofensa da sua autodeterminação sexual, sendo que as únicas mensagens com apelo à sexualidade se resumem a uma em que a questionou sobre se era virgem (em contexto não concretamente apurado) e a uma outra em que lhe sugeriu um encontro para darem uns beijos.

Ora, fora de um contexto ou de uma conversa sequenciada que revelasse claramente o desejo de o arguido se encontrar com a B. para com ela manter um contacto íntimo e a eventual prática de atos sexuais de relevo, não se afigura que tenha representado que as duas mensagens sobreditas eram passíveis de molestar sexualmente a menor e, ainda assim, tenha atuado como atuou perante uma jovem menor de 14 anos de idade com a intenção de satisfazer os seus impulsos sexuais, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (factos não provados A e B).

Os factos atinentes às condições pessoais e económicas do arguido (factos n.º 10 a 24) foram dados como provados com base no teor do relatório social junto aos autos a fls. 237 e ss. (elaborado após entrevista dos técnicos da DGRSP ao arguido, entrevistas com elementos da sua esfera familiar e amigos e contacto com a entidade que lhe ministra formação profissional).

Finalmente, para dar como provados os antecedentes criminais do arguido (factos n.º 25 e 26), o tribunal estribou-se no respetivo certificado de registo criminal, que se encontra junto aos autos a fls. 246 e ss.”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Das diligências probatórias.

A Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente entende que o tribunal a quo não procedeu, como devia, à realização de todas as diligências probatórias necessárias, pois que prescindiu da presença do arguido (não ordenando a sua presença em audiência e não justificando o motivo para isso), e, além disso, não reinquiriu a menor ofendida (que havia prestado nos autos declarações para memória futura).

A Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente qualifica tais invocadas omissões como constituindo, por um lado, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, e, por outro lado, a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia.

Cabe decidir.

Como bem esclarecem Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em Processo Penal”, Editora Rei dos Livros, 7ª ed., 2008, págs. 72 e 73), ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existe uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Verifica-se tal vício quando, no dizer dos mesmos autores (ob. e local citados), “a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.

Ou, por palavras idênticas, e seguindo ainda os referidos autores e a jurisprudência por eles referenciada (ob. e local citados), existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando “se faz formulação incorreta de um juízo, em que a conclusão extravasa as premissas, ou quando há omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão”.

Com o devido respeito, nada disto tem a ver com a questão suscitada, nesta vertente, na motivação do presente recurso.

Com efeito, a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente não alega que a matéria de facto (dada como provada e como não provada na sentença revidenda) seja insuficiente para a decisão (absolutória) obtida em primeira instância.

Nem alega que a Mmª Juíza tenha omitido pronúncia sobre quaisquer factos, quer alegados pelos sujeitos processuais (constantes da acusação ou da contestação), quer resultantes da discussão da causa.

O que a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente entende, isso sim, é que o tribunal a quo não procedeu, como devia, à realização de determinadas diligências destinadas à produção de prova (tendo prescindido da presença do arguido e não tendo reinquirido a ofendida).

Ora, como é bom de ver, lavra-se aqui em manifesta confusão, porquanto a materialidade fáctica (provada e não provada), constante da sentença revidenda e resultante da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, é suficiente e bastante para a absolvição do arguido da prática de um crime de abuso sexual de crianças (de que estava acusado), e não ocorreu qualquer omissão de pronúncia, pelo mesmo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão.

Saber se o tribunal de primeira instância devia ou não ter procedido, oficiosamente, à realização de mais diligências probatórias, é questão diferente (e que trataremos de seguida), nada tendo a ver, como se nos afigura evidente, com o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Posto o que precede, não ocorre o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Invoca a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, com fundamentos idênticos aos que acabámos de analisar a propósito do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ou seja, o tribunal a quo não procedeu, como se impunha, à realização de determinadas diligências probatórias).

Compulsados os autos, verificamos:
- Na acusação que deduziu contra o arguido (fls. 174 a 177), o Ministério Público indicou prova documental (considerada e analisada na sentença recorrida, análise essa que não está questionada na motivação do presente recurso) e prova testemunhal.

- A prova testemunhal consistia apenas no depoimento da menor ofendida, já prestado nos autos em “declarações para memória futura”.

- Foi recebida a acusação e foram designadas datas para a realização da audiência de discussão e julgamento (fls. 208).

- O arguido não apresentou contestação nem indicou testemunhas.

- Na primeira data designada para a audiência de discussão e julgamento, o arguido faltou e não justificou a sua falta, tendo sido condenado em multa (pela falta injustificada - cfr. fls. 244 e 245 -).

- Nessa primeira data, e com a concordância do Ilustre defensor oficioso do arguido e da Exmª Magistrada do Ministério Público, deu-se início à audiência de discussão e julgamento, por se considerar não ser imprescindível a presença do arguido desde tal início (artigo 333º, nº 2, do C. P. Penal).

- Assim, nessa mesma data, e com a concordância (expressa) do Ilustre defensor oficioso do arguido e da Exmª Magistrada do Ministério Público, foram dadas “por integralmente reproduzidas na presente audiência de julgamento as declarações para memória futura anteriormente prestadas por B. - art. 356º, nº 2, al. a), do C. P. Penal” (cfr. fls. 245).

- Depois, já no fim dessa primeira audiência, a Mmª Juíza ditou para a ata o seguinte despacho: “afigura-se conveniente a presença do arguido na segunda data de julgamento já designada, para efeitos de ponderação de uma eventual sanção aplicável. Assim, e porque o arguido faltou injustificadamente à presente audiência de julgamento, determino a emissão de mandados de detenção e condução do arguido (…) para a próxima sessão de julgamento” (cfr. fls. 245).

- Em conformidade com tal despacho, foram emitidos mandados de detenção, para comparência do arguido, e tais mandados foram enviados, para cumprimento, à PSP.

- Na segunda data designada para a audiência, o arguido voltou a não estar presente, por não ter sido localizado pela PSP (não tendo sido possível dar cumprimento aos mandados de detenção em causa).

- Em face de tal circunstância, e depois de aberta a audiência de discussão e julgamento, a Mmª Juíza ditou para a ata o seguinte despacho: “uma vez que não foi possível dar cumprimento aos mandados de detenção e condução do arguido, oficiosamente emitidos pelo tribunal, dou por finda a produção de prova, concedendo a palavra para alegações” (cfr. fls. 253).

- Logo após a prolação de tal despacho (que não foi objeto de qualquer invocação, reclamação, oposição ou manifestação de discordância), a Exmª Magistrada do Ministério Público e o Ilustre defensor oficioso do arguido usaram da palavra para, “em alegações orais, exporem as conclusões de facto e de direito que hajam extraído da prova produzida” (cfr. fls. 254).

- Findas as alegações, foi designada data para leitura da sentença.

- Só na motivação do presente recurso, e não antes, a Exmª Magistrada do Ministério Público suscitou as questões agora em apreciação.

Em face deste resumo das pertinentes incidências processuais, cumpre dizer, desde logo, que era ao Ministério Público, e não à Mmª Juíza, que incumbia, em primeira linha, tomar a iniciativa da realização das diligências processuais alegadamente omitidas, pedindo ao tribunal que as mesmas fossem efetivadas.

É certo que, como é sabido, não existe no âmbito do processo penal, contrariamente ao que sucede no domínio do processo civil, um verdadeiro ónus de prova, em sentido formal, que recaia sobre qualquer sujeito do processo.

Vigora aqui o princípio da aquisição da prova, ligado ao princípio da investigação, donde resulta que são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem importar a sua origem, devendo o tribunal, em último caso, investigar e esclarecer os factos, na procura incessante da verdade material, como determina o artigo 340º, nº 1, do C. P. Penal.

Porém, e a nosso ver, atenta a estrutura acusatória do processo penal e a posição institucional do tribunal, a produção oficiosa de meios de prova pelo tribunal, à luz do aludido princípio da investigação, deve ter um papel residual, não podendo o tribunal determinar a produção de provas sem curar de saber dos sujeitos processuais e das regras processuais.

A esta luz, repete-se, cabia à Exmª Magistrada do Ministério Público (que esteve presente nas duas audiências de discussão e julgamento, e que interpôs o presente recurso) requerer a produção dos meios de prova que reputasse convenientes, não podendo, posteriormente, face a um resultado processual desfavorável (absolvição do arguido), escudar-se em alegadas inações e atitudes omissivas do tribunal.

Em segundo lugar, não se vê qual o resultado prático que, em boa verdade, seria alcançado com a realização das pretendidas diligências probatórias.

A audição do arguido visaria, ao que parece resultar da motivação do recurso, que o mesmo se autoincriminasse, confessando os elementos subjetivos do crime de que estava acusado. Ora, uma tal visão das possíveis declarações do arguido é utópica (e até ilógica), pois dificilmente o arguido viria à audiência confessar uma sua atitude interna criminosa (no fundo, confessar o dolo), podendo até o arguido, pura e simplesmente, não prestar quaisquer declarações (e sem que o seu silêncio o pudesse desfavorecer - cfr. o disposto no artigo 343º, nº 1, do C. P. Penal -).

A reinquirição da menor ofendida teria idêntico propósito: averiguar da existência de uma atuação dolosa por banda do arguido. Só que, também aqui não vislumbramos como possa a ofendida ir além do que já disse no depoimento que prestou “para memória futura”, depoimento (constante dos autos) pormenorizado, completo e exaustivo.

A menor ofendida, como se nos afigura evidente, não consegue ir além da descrição da factualidade objetiva (daquilo que objetivamente sucedeu), não sabendo (nem podendo) esclarecer os factos que, na sentença revidenda, foram dados como não provados (“o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que molestava sexualmente, através de conversas/escritos, uma jovem menor de 14 anos de idade, o que quis e conseguiu. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei”).

Em terceiro lugar (e decisivo), mesmo a existir qualquer nulidade na invocada atitude omissiva do tribunal recorrido, e não sendo esta insanável (como não é - cfr. o disposto no artigo 119º do C. P. Penal -), a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente (que, aliás, esteve presente nas audiências de discussão e julgamento) devia tê-la arguido, nos termos e no prazo previstos no artigo 120º, nº 3, do mesmo diploma legal.

Dito de outro modo: não se tratando de nulidade da sentença (tais nulidades, essas sim, devem ser arguidas e conhecidas no recurso interposto da sentença - e arguidas no prazo do recurso -, conforme preceituado no artigo 379º, nº 2, do C. P. Penal), mas antes de nulidade cometida na audiência de discussão e julgamento, onde estava presente a Exmª Magistrada do Ministério Público ora recorrente, tal nulidade devia ter sido tempestivamente arguida e, não o tendo sido, tem de considerar-se como sanada.

Por último, cumpre fazer algumas considerações adicionais, ainda a propósito do que, nesta vertente, está alegado na motivação do recurso interposto pelo Ministério Público:

1º - A lei processual não impõe a busca da verdade absoluta, e, por isso, as autoridades judiciárias, mormente o juiz, não dispõem de um poder ilimitado de produção de prova (quer quanto ao modo de produção da prova, quer no tocante ao momento de produção da mesma).

2º - O processo penal português tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento, bem como os atos instrutórios que a lei determinar, subordinados ao princípio do contraditório.

3º - No plano da produção da prova, o princípio do contraditório representa a tradução, em termos objetivos, da imparcialidade jurisdicional (não faria sentido ter-se um juiz imparcial se não fosse também imparcial a busca do material probatório que há de constituir a base para a condenação ou a absolvição).

4º - A prova, por princípio, obtém-se atempadamente, com o contributo dialético dos diferentes sujeitos processuais, e não no “último momento” (por diligências determinadas pelo juiz no decurso da audiência de discussão e julgamento). Mais: o juiz não deve nunca, a nosso ver, ordenar a realização de diligências para obtenção de elementos probatórios em satisfação, sem mais, de uma mera exigência defensiva de uma previsível absolvição do arguido.

Em face de tudo o que vem de dizer-se, improcede a primeira vertente do recurso interposto pelo Ministério Público.

b) Das regras da experiência.

Alega a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente que, perante os factos que o tribunal recorrido deu como provados na sentença sub judice (os factos objetivos praticados pelo arguido), tal tribunal devia ter concluído, por presunção judicial (por uso das regras da experiência), pela prova dos factos que teve como não provados (os elementos atinentes ao dolo).

Por conseguinte, entende a Exmª Magistrada do Ministério Público que está aqui configurado o vício do erro notório na apreciação da prova, e, bem assim, existe aqui uma clara violação do princípio da livre apreciação da prova.

Cumpre decidir.
É certo que os factos dados como provados numa determinada sentença do foro criminal não têm todos, necessariamente, de se basear em prova direta dos mesmos.

Mais: o meio probatório, por excelência, ao qual o julgador recorre para determinar a verificação dos processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo é a chamada prova indiciária (ou por presunção judicial), plasmada nos denominados juízos de inferência (juízos decorrentes da lógica normal das coisas, das regras da experiência comum).

Na verdade, excetuando uma manifestação espontânea do arguido, confessando a prática dos factos, só um acertado juízo de inferência por parte do juiz pode enquadrar o pensamento íntimo mais profundo do ser humano, as suas cognições e intenções.

Como bem se escreve na Ac. do T.R.P. de 23-02-1983 (in BMJ, nº 324, pág. 620), “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”.

Por outras palavras: na maioria dos casos, o dolo, o conhecimento do seu sentido ou significação, acaba por ser dado como provado por intuição e convição do tribunal, sem que haja testemunhas - nem as há - disso mesmo. O dolo, em função da sua natureza, e na generalidade dos casos, surge provado, pois, como circunstância conatural dos factos que constituem os elementos objetivos do crime.

No caso vertente, a Mmª Juiz deu como provado que o arguido, entre outros atos (sem natureza ou conotação sexual evidentes), fez o seguinte (cfr. factos provados na sentença revidenda sob os nºs 1 a 9):

- Encetou conversa, via “Facebook”, com a menor ofendida.

- Pediu à ofendida o respetivo número de telemóvel.

- Enviou à ofendida, para o aludido número de telemóvel, 14 “sms”, e, num deles, o arguido perguntou à menor se ela era virgem (tendo ela respondido afirmativamente), e, noutro, sugeriu à menor um encontro, para darem uns “beijos”.

- O arguido sabia a idade da menor (uma rapariga de 12 anos), e disse à mesma que ele tinha apenas 22 anos de idade (quando, efetivamente, tinha já 28 anos).

Daqui, destes factos objetivos (dados como provados), entende a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente que tem de concluir-se, com recurso às regras da experiência comum, que “o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que molestava sexualmente, através de conversas/escritos, uma jovem menor de 14 anos de idade, o que quis e conseguiu”; e ainda que: “mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei” (factos tidos como não provados na sentença revidenda).

Neste mesmo ponto, e ao contrário, entendeu a Exmª Juíza que, “fora de um contexto ou de uma conversa sequenciada que revelasse claramente o desejo de o arguido se encontrar com a B. para com ela manter um contacto íntimo e a eventual prática de atos sexuais de relevo, não se afigura que tenha representado que as duas mensagens sobreditas eram passíveis de molestar sexualmente a menor e, ainda assim, tenha atuado como atuou perante uma jovem menor de 14 anos de idade com a intenção de satisfazer os seus impulsos sexuais, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (factos não provados A e B)”.

A nosso ver, e com o devido respeito por diferente opinião, assiste inteira razão à Exmª Juíza nos considerandos que formula.

Com efeito, o arguido e a menor “conheceram-se”, no “Facebook”, e, posteriormente, com assentimento mútuo, “trocaram” os números de telemóvel e enviaram “sms” um ao outro, apresentando-se o arguido como tendo 22 anos de idade e a ofendida como tendo 12 anos, e, num desses “sms”, o arguido questionou se a ofendida era virgem (ao que ela respondeu que sim), e, noutro “sms”, sugeriu um encontro para darem “uns beijos”.

São estes, pois, os dois “sms”, que, inquestionavelmente, podem considerar-se como possuindo alguma conotação sexual.

Só que, e em nossa opinião, essa conotação sexual não é de grau suficiente para nos revelar que, necessariamente, o arguido atuou com a consciência e a intenção de “satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que molestava sexualmente, através de conversas/escritos, uma jovem menor de 14 anos de idade”.

A concreta atuação do arguido, vista no meio onde decorreu (iniciou-se no “Facebook” e continuou via “sms”), e analisada em conjunto, não nos permite afirmar, sem dúvida, que o arguido tinha conhecimento dos elementos típicos da infração ou que ocorram aqui os elementos (intelectual e volitivo) do dolo.

A conclusão contrária (pretendida na motivação do recurso) não é imposta pelas regras normais da experiência (sobretudo do que é comum nos “conhecimentos” através do “Facebook”), isto é, a conclusão inversa à obtida pela Mmª Juíza não decorre, com a necessária e exigível segurança, da utilização da prova indiciária (da prova por presunção judicial - prova, como acima se disse, plasmada em juízos de inferência, em juízos decorrentes da lógica normal das coisas, das regras da experiência comum -).

Como bem escreve a este propósito (uso de presunções judiciais) o Prof. Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, 1986, Vol. II, págs. 289 e 290), “(...) a verdade final, a convicção, terá que se obter (neste caso) através de conclusões baseadas em raciocínios, e não diretamente verificadas; a conclusão funda-se no juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando (…). Por outro lado, um indício revela com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes”.

As ilações derivadas das regras da experiência (o uso das referidas presunções judiais) não podem, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, em matéria de prova em processo penal, em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Ora, a esta luz, também este tribunal de recurso, como, aliás, qualquer cidadão de média formação e de são entendimento, subscreve as legítimas dúvidas e as assertivas hesitações constantes da decisão recorrida quanto à prova dos elementos subjetivos do crime.

A partir da atuação objetiva do arguido, e sem mais, não é óbvio (não é da experiência comum) que o arguido soubesse que estava a molestar sexualmente a menor ofendida, que tenha pretendido satisfazer os seus instintos libidinosos, ou que soubesse que incorria na prática de um crime.

Na verdade, resulta das regras da experiência que as “conversas” via “Facebook” e os “sms” enviados dos telemóveis são, atualmente, um palco para verificação das mais variadas e imprevistas situações, constituindo como que uma “realidade alternativa” (uma “realidade virtual”), onde, muitas vezes, as coisas não são o que aparentam ser.

Nesta perspetiva, e nesses suportes de comunicação, perguntar a uma rapariga de 12 anos se “é virgem”, ou sugerir encontros com a mesma para “estar aos beijos”, deixa fundadas dúvidas sobre a real existência, por banda de quem faz a pergunta e a sugestão, do conhecimento e da vontade de se estar a praticar um qualquer crime.

Posto o que precede, não merece provimento, também neste segmento, o recurso interposto pelo Ministério Público.
*
A Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente trata a apontada desconformidade entre o seu entendimento e o entendimento expresso na sentença revidenda, a propósito do uso das regras da experiência, nos seguintes termos:

- A sentença enferma de erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal).

- A sentença viola o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do C. P. Penal).

No dizer de Simas Santos e Leal Henrique (ob. citada, pág. 77), existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”.

O erro notório na apreciação da prova revela-se, pois, quando existem distorções de ordem lógica entre os factos provados e os factos não provados, ou quando ocorre uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável (e, por isso, incorreta), e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

A incongruência entre os factos (provados e não provados) tem de resultar de uma descoordenação factual patente, que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade de espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja ela natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou seja ela verificável no plano da “realidade das coisas”, apreciada não por simples projeções de probabilidade, mas segundo as “regras da experiência comum”.

Por sua vez, o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no artigo 127º do C. P. Penal (“salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”), deve ser entendido, entre outras possíveis dimensões, e para o que aqui nos interessa, como implicando a exigência de uma apreciação racional e crítica da prova, baseada nas regas da lógica e da experiência comum, de tal sorte que a apreciação da prova há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos, e, portanto, suscetível de motivação e de controlo.

Nesta ordem de ideias, o juiz, no exercício do seu múnus de julgar e em obediência ao dito princípio, tem sempre de deixar explicitados os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a sua convicção se formasse em determinado sentido ou valorasse de certa forma os diversos meios de prova.

Como escreve Maia Gonçalves (in “Código de Processo Penal Anotado”, 9ª ed., pág. 322), “a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

Assim definidas, em abstrato, as duas patologias de que, na opinião da Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente, padece a sentença sub judice, e perante o que acima se expôs, logo se conclui que nenhuma delas se verifica in casu.

É que, por um lado, quer o vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal, quer a violação do princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do mesmo diploma legal, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal da Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente e a convicção que o tribunal a quo firmou sobre os factos, e, por outro lado, a perspetiva dos factos e das provas dada por tal tribunal encaixa-se, como acima se disse, numa razoável e lógica compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas.

Na razoabilidade das perceções permitidas pelas regras da experiência, é aceitável a conclusão formada pelo tribunal de primeira instância sobre os factos (provados e não provados) relativos ao arguido.

Não existe, pois, qualquer elemento retirado da própria decisão que indicie ter existido erro, e muito menos erro notório, na apreciação da prova, bem como o processo de formação da convição do tribunal, devidamente explicitado na sentença revidenda, não contende com a exigência de uma apreciação racional e crítica da prova, nem conflitua com as regas da lógica e da experiência comum, de tal modo que se deva ter como violado o princípio da livre apreciação da prova.

Assim, e face a tudo quanto ficou dito, é totalmente de improceder o recurso interposto pelo Ministério Público.

III - DECISÃO.

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se, consequentemente, o decidido na sentença revidenda.

Sem custas, por o Ministério Público estar isento do seu pagamento.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 25 de outubro de 2016

João Manuel Monteiro Amaro
Maria Filomena de Paula Soares