Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
496/14.3PAPTM.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: ARMA BRANCA
APLICAÇÃO DEFINIDA
FACTOS CONCRETOS
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I – O conceito “aplicação definida” referido na al. d) do nº 1, do artigo 86º da Lei nº 5/2006, Regime Jurídico das Armas e Munições, contido na expressão «armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse» tem, necessariamente, que levar em conta os concretos factos em análise nos autos e não bastar-se com uma designação abstracta.
II – Se o exame à faca afirma que a mesma se designa como «faca de escuteiro» e pode «ser afecta ao exercício de funções domésticas, desportivas ou florestais» não resulta desta caracterização abstracta que, no caso concreto, a faca apreendida tem aplicação definida ou que o arguido pode ser classificado como “escuteiro”, “doméstico”, “desportista” ou trabalhador “florestal” se, já com um cadastro assinalável, se entretém na via pública de uma cidade, alcoolizado, a partir garrafas de vidro.
Assim, não é lícita a detenção em ambiente urbano de uma designada “faca de escuteiro” com 20 cm.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 496/14.3PAPTM.E1

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No Tribunal Judicial de Portimão – 1º J. Criminal - correu termos o processo comum singular supra numerado contra BB, filho de (…), imputando-lhe a prática de factos susceptíveis de consubstanciar, em autoria material, um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo Art. 86, nº l, alínea d), da Lei n. 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos Arts. 2º, n. 1, alínea m), 3º, n. 1 e 2 alinea f) e 4º, n. 1, todos do referido diploma legal.
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A final - por acórdão datado de 13 de Maio de 2014 - veio a decidir o Tribunal recorrido julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência, decidiu condenar o arguido BB, pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo Art. 86, n. 1, alinea d), da Lei n. 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de duzentos e cinquenta dias de multa, à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de mil duzentos e cinquenta euros e a que correspondem cento e sessenta e seis dias de prisão subsidiária, bem como no mais legal.
Foi determinada a perda a favor do Estado Português da faca apreendida e sua oportuna destruição.
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A Digna Procuradora-Adjunta da República, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida nos autos que condenou o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86°, na 1 al, d) da Lei na 5/2006 de 23.2, na pena de 250 dias de multa, à razão diária de € 5,00, perfazendo o montante global de € 1 250,00, tendo ainda determinado a perda a favor do Estado Português e oportuna destruição da faca apreendida, a cobro do disposto no art. 109°, na 1 e 3 do Código Penal, atenta a sua natureza proibida.
2. O Ministério Público entende que o arguido deveria antes ter sido absolvido do ilícito por que foi acusado em face dos elementos existentes nos autos, que não foram valorados pelo Tribunal a quo, e que permitem concluir que a detenção da faca em apreço não integra a prática do crime de detenção de arma proibida.
3. Na verdade, do relatório pericial constante de fls. 50-52 impunha uma decisão diversa
4. Da leitura do mencionado relatório verifica-se que a faca apreendida se trata de uma arma branca com bainha para colocação no cinto, com uma lâmina de 20,8 cm e comprimento total de 31,8 cm, sendo uma faca tipo escuteiro com gume numa das faces e serrilha que se encontra em mau estado de conservação e com todas as características de fabrico, podendo ser utilizada no auxílio de diversas funções domésticas, desportivas ou florestais
5. Com base do sobredito relatório o Tribunal deveria ter dado como provado que no dia 8 de Abril de 2014, pelas 15 h 42m, na Avenida …, o arguido ocultava na sua posse, na zona da cintura, uma faca tipo escuteiro, com gume numa das faces e serrilha, com o comprimento total de trinta e um virgula oito centímetros e comprimento de lâmina de vinte virgula oito centímetros.
6. E em face de tal factualidade impunha-se concluir que a detenção da faca em apreço nos autos não é subsumível na previsão do crime de detenção de arma proibida.
7.Tendo uma lâmina com 20,8 cm, a faca apreendida, que o arguido transportava consigo, constitui uma arma branca, nos termos do art. 2°, n. 1 al. m), 1 a parte da Lei 5/2006 de 23/2 (na medida em que se trata de objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto- contundente, de comprimento igualou superior a 10 cm).
8. Contudo, não releva para efeito de preenchimento do tipo de crime previsto no art. 86°, n. 1 al. d) da Lei n° 5/2006 de 23.2
9. Estabelece o art. 86°, n. 1 al. d) do citado diploma legal que quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, ... ( ... ), é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias
10. No que concerne ao segmento da norma que interessa para os autos (outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, ...) tem vindo a ser entendido que o preenchimento do tipo exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) não terem aplicação definida; b) possuírem aptidão para serem usadas como arma de agressão e c) o seu portador não justifique a sua posse
11. Ora no caso em apreço, a faca apreendida tem aplicação definida, podendo ser afecta ao exercício de funções domésticas, desportivas ou florestais, como se alcança do relatório pericial junto aos autos
12. Uma vez que a detenção da faca não integra o crime de detenção de arma proibida, deverá ser revogada a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido do crime por que foi condenado, devendo ainda proceder-se à restituição da faca, uma vez que não resulta da factualidade apurada que tenha sido usada para a prática de qualquer ilícito criminal
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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. No dia 08 de Abril de 2014, pelas 15h42m, na Avenida …, o arguido ocultava na sua posse, na zona da cintura, uma faca "de mato", com o comprimento total de trinta e um vírgula oito centímetros e comprimento de lâmina de vinte vírgula oito centímetros.
2. Agiu o arguido deliberado, livre e conscientemente, bem sabendo que não era permitir deter ou utilizar a referida arma.
3. O arguido conhecia a natureza da referida arma e que a mesma se destina a ser utilizada exclusivamente como arma de agressão.
4. Por decisão proferida em 26.06.1996, no processo n. 56196TBPTM, do 1° Juízo do Tribunal Judicial de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 28.01.1996, de um crime de furto qualificado, na pena de vinte meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos.
5. Por decisão proferida em 14.01.1999, no processo n. 94/98, do 2° Juízo do Tribunal de Círculo de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 15.10.1995, de um crime de furto qualificado, na pena de cinco meses de prisão, substituída por igual tempo de multa.
6. Por decisão proferida em 28.01.1999, no processo n. 18/97, do 1° Juízo do Tribunal de Círculo de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 16.1 0.1995, de um crime de furto qualificado, na pena de dois anos e um mês de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de quatro anos.
7. Por decisão proferida em 28.01.1999, no processo n. 628/99.0TBPTM, do 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 16.10.1995, de um crime de furto qualificado, na pena de dois anos e um mês de prisão.
8. Por decisão proferida em 21.05.2001, no processo n. 978/99.5TBPTM, do 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 21.09.1995, de vinte e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, bem assim como na pena de cem dias de multa.
9. Por decisão proferida em 21.10.2003, no processo n. 5/03.0TBPTM, do 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 31.12.2002, de um crime de furto, na pena de um ano de prisão.
10. Por decisão proferida em 19.04.2008, no processo n. 413/04.9GEPTM, do 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 07.08.2004, de um crime de roubo e um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos.
11. Por decisão proferida em 04.07.2001, no processo n. 702/08.3P APTM, do 10 Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, o arguido foi condenado pela prática, em 30.03.2008, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de cento e oitenta dias de multa.
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B.1.2 - E como não provados os seguintes factos: «Não se provaram os restantes factos constantes do auto de notícia e aditamento de fls. 3, 4 e 39, bem assim como as condições pessoais e económicas do arguido, nem quaisquer outros susceptíveis de influir na decisão na causa ou com relevância para a mesma
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B.1.3 – Dado que não houve impugnação factual torna-se desnecessário reproduzir a fundamentação de facto do tribunal recorrido.
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Cumpre conhecer.
O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
A Digna recorrente centra a sua insatisfação num único ponto que se qualifica como matéria de integração jurídica e que constitui o objecto do recurso: a arma usada pelo arguido tem aplicação definida.
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B.2 – Apesar de se ter afirmado supra que não houve impugnação factual, certo é que a Digna magistrada recorrente invoca – conclusões 3ª a 7ª - um erro notório de apreciação probatória porquanto dos factos provados não ficou a constar que a arma usada pelo arguido era uma arma com fins declarados no relatório pericial de fls. 50-52 e, como tal, deveria ter sido dado como provado que «No dia 8 de Abril de 2014, pelas 15 h 42m, na Avenida …, o arguido ocultava na sua posse, na zona da cintura, uma faca tipo escuteiro, com gume numa das faces e serrilha, com o comprimento total de trinta e um virgula oito centímetros e comprimento de lâmina de vinte virgula oito centímetros».
E tem toda a razão quanto à expressão “uma faca tipo escuteiro, com gume numa das faces e serrilha”, que deve ficar a constar de um novo facto.
O que acarreta a existência de um outro erro notório na apreciação da prova, o do facto dado como provado em 3) quando se afirma que a arma “se destina a ser utilizada exclusivamente como arma de agressão”.
Assim e nesta parte é o recurso procedente e deve alterar-se a matéria de facto da seguinte forma:
- adita-se o facto 1-a) com a seguinte redacção: «a faca referida em 1 também é conhecida como “tipo escuteiro, com gume numa das faces e serrilha»;
- altera-se a redacção do facto provado sob 3) da seguinte forma: «O arguido conhecia a natureza da referida arma e que a mesma pode ser utilizada como arma de agressão, para fins domésticos, desportivos ou florestais».
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B.3 – O arguido vem condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições) como detentor de uma arma equiparada pelo legislador a arma da classe E para efeitos punitivos.
E o legislador, nessa alínea d) refere de forma expressa «outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse»
A Digna magistrada recorrente argumenta com a não integração dos factos neste tipo penal porquanto se tem entendido que três requisitos são necessários a essa integração: a) não terem (as armas) aplicação definida; b) possuírem aptidão para serem usadas como arma de agressão e c) o seu portador não justifique a sua posse.
Daqui conclui que “no caso em apreço, a faca apreendida tem aplicação definida, podendo ser afecta ao exercício de funções domésticas, desportivas ou florestais» e «uma vez que a detenção da faca não integra o crime de detenção de arma proibida, deverá ser revogada a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido do crime por que foi condenado, devendo ainda proceder-se à restituição da faca, uma vez que não resulta da factualidade apurada que tenha sido usada para a prática de qualquer ilícito criminal» (conclusões 10ª a 12ª).
Isto é, a Digna recorrente entende que aqueles três requisitos explicitamente referidos no alínea d) devem ser vistos como critérios exclusivamente abstractos e que a mera “aplicação definida” resultante de um nome comum, popular ou de caracterização geral, é bastante para se concluir que a arma é lícita por inverificação de um requisito tido por cumulativa.
Este apelo a um critério abstracto suscita – e sempre suscitaria – várias perplexidades práticas.
Desde logo o definir como “escuteiro”, “doméstico”, “desportista” ou trabalhador “florestal” um indivíduo com um cadastro já considerável que se entretém na via pública de uma cidade, alcoolizado, a partir garrafas de vidro.
Na situação – que tem de ser concreta – qual a “aplicação definida” de uma «faca de mato»? Mesmo fardado de tal, poderia o arguido ser tido como “escuteiro” para dar cobertura ao outro nome da arma, “faca de escuteiro”?
Estas perplexidades implicam que a “aplicação definida” referida na al. d) do nº 1, do artigo 86º da Lei nº 5/2006, Regime Jurídico das Armas e Munições, contida na expressão «armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse» tem, necessariamente - partindo de uma base de caracterização abstracta da arma – que levar em conta os concretos factos em análise nos autos.
E, nas circunstâncias do caso, a faca usada pelo arguido não tinha aplicação definida, podia ser usada como arma de agressão e o mesmo não tinha justificação bastante para a sua posse.
Não há, pois, que alterar a decisão do tribunal recorrido nesta parte, mantendo-se a condenação.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
- adita-se à matéria de facto provada o facto 1-a) com a seguinte redacção: «a faca referida em 1 também é conhecida como “tipo escuteiro, com gume numa das faces e serrilha»;
- altera-se a redacção do facto provado sob 3) da seguinte forma: «O arguido conhecia a natureza da referida arma e que a mesma pode ser utilizada como arma de agressão, para fins domésticos, desportivos ou florestais»;
- declara-se o recurso improcedente quanto ao mais.
Notifique. Sem tributação.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 20 de Fevereiro de 2018
João Gomes de Sousa (relator)
António Condesso