Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
439/20.5PBEVR-A.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
OMISSÃO DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Omissão de fundamentação de despacho decisório que não seja de mero expediente (com excepção da situação prevista no nº 6, do artigo 194º e da decisão instrutória, esta face ao disposto nos artigos 308º, nº 2 e 283º, nº 3, do mesmo diploma) constitui mera irregularidade.
Ora, se integra uma irregularidade, o respectivo regime de arguição é o previsto no artigo 123º, nº 1, do CPP, estando vedado a este Tribunal da Relação o recurso ao consagrado no seu nº 2 pois, como refere Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, vol. II, 3ª edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 89, “ainda antes da arguição e mesmo que a irregularidade não seja arguida, pode oficiosamente ser reparada ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para aquele acto enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo” e, aliás, “mal se perceberia que, sendo a irregularidade o menos relevante dos vícios processuais, tivesse um regime mais devastador do que as nulidades relativas (estas, se não forem arguidas no prazo de 10 dias, ficam sempre definitivamente sanadas – arts. 120º e 105º nº 1 do CPP)” – vd. também, por todos, Ac. do STJ de 27/02/2013, Proc. nº 117/04.2PATNV.C1.S1 e Ac. R. de Lisboa de 01/03/2021, Proc. nº 401/19.0PLLRS.L1-9, consultáveis em www.dgsi.pt.

Não tendo o recorrente arguido a eventual invalidade da decisão no prazo de três dias a contar do conhecimento da irregularidade, requerendo que a Mmª Juíza da 1ª instância concretizasse o que agora vem afirmar foi omitido, a existir, sempre estaria sanada a irregularidade.

É que, cumpre dizer ainda, posto que se não está perante questão de conhecimento oficioso (e, também não, manifestamente, no âmbito de aplicação do nº 2, do artigo 379º), o seu conhecimento não competiria a este Tribunal sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância, porquanto, os recursos têm por objecto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Local Criminal de … – Juiz…, NUIPC 439/20.5PBEVR, foi proferido despacho, aos 24/11/2022, que rejeitou, por manifestamente infundada, ao abrigo do estabelecido no artigo 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do CPP, a acusação particular deduzida pelo assistente AA contra o arguido BB, em que a este imputava a prática, em autoria material e na forma consumada, de cinco crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal e quinze crimes de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1 e 183º, nº 1, alínea a), do mesmo Código.

2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o assistente, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

A- A Acusação Particular contém todos os elementos objectivos e subjectivos para ser recebida e o processo ser submetido a julgamento.

B- A ACUSAÇÃO PARTICULAR contém todos os elementos essências para ser recebida nomeadamente a identificação da Autoria dos factos denunciados, a narração especificada dos mesmos factos, a indicação das normas legais infligidas e as provas.

C- A Acusação particular deduzida pelo assistente não é omissa quanto à imputação dos elementos subjectivos, ao arguido.

D- E como tal deve ser RECEBIDA e submetida a julgamento.

E- A sentença/despacho recorrida não se encontra fundamentada e como tal é NULA.

F- A sentença/despacho recorrida violou o disposto no artº 311º e 285º ambos do CPP.

G- E, como tal deve ser REVOGADA.

NESTES termos e nos demais de direito deve a sentença recorrida ser REVOGADA e a ACUSAÇÃO PARTICULAR e o respectivo Pedido de Indemnização ser recebidos e submetidos a julgamento.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.

4. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, concluindo pelo seu provimento, aduzindo que o despacho recorrido enferma de irregularidade por falta de fundamentação que, embora não tendo sido arguida no prazo de três dias, deve ser reparada, nos termos do estabelecido no artigo 123º, nº 2, do CPP. Acrescenta que a fórmula verbal utilizada na acusação “o arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida”, caracteriza adequadamente o dolo genérico (e ainda a consciência da ilicitude ou censurabilidade da conduta), não compreendendo a tipicidade dos crimes de injúria e difamação imputados qualquer elemento característico do que usualmente se designa por “dolo específico”.

5. Respondeu também o arguido à motivação de recurso, concluindo pela manutenção da decisão revidenda.

6. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

7. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo arguido em que pugna por ser negado provimento ao recurso.

8. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.

Se, por ocasião do despacho a que se refere o artigo 311º, do CPP, poderia ter sido rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pelo assistente.

Convite ao aperfeiçoamento da acusação particular.

1. O despacho recorrido tem o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):

Veio o assistente deduzir acusação particular contra o arguido imputando-lhe a prática de 5 crimes de injúria e 15 crimes de difamação.

O assistente descreve os factos e, a final, refere ter o arguido agido "de forma livre e consciente bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida".

Considerando que a acusação particular era omissa quanto à imputação dos elementos subjectivos dos tipos, o Ministério Público não acompanhou a acusação particular, baseando-se, para além do mais, no acórdão Tribunal da Relação de Évora, de 12.01.2021, relator Nuno Garcia, que diz: "Sendo a acusação particular omissa quanto ao aspecto do elemento subjectivo dos crimes imputados à arguida, não pode tal falta ser colmatada por "aditamento" introduzido pelo Ministério Público, em virtude de tal "aditamento" consubstanciar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação particular, uma vez que é esse "aditamento" que completa a acusação particular e lhe confere o conteúdo "incriminatório" (cfr. artº 285º, nº 4, do C.P.P.).".

Ora,

O artigo 311º do CPP, que inicia o livro VII relativo ao julgamento, refere-se ao saneamento do processo, ou seja, ao conhecimento das questões que podem obstar à prossecução do processo. Caso nada obste, então será designado dia para a realização da audiência.

Dispõe este artigo:

«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

19) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n. º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infimdada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido:

G) Quando não contenha a narração dos factos;

c,) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime».

Portanto, aquando do saneamento do processo, e quando não tenha havido instrução, o juiz pode rejeitar a acusação se esta for manifestamente infundada e isso sucede quando ela não contiver a identificação do arguido, a narração dos factos, a indicação das normas legais ou das provas ou se os factos narrados não constituírem crime.

A acusação é condição indispensável ao julgamento, pois é nela que se fixa o objecto do processo. Daí que ela tenha que descrever, na integra, os factos imputados ao arguido e o(s) crime(s) que esses factos configuram. Ou seja, a acusação tem que se bastar a si própria, de forma a suportar uma eventual condenação. Daí a rejeição da acusação quando isto não ocorra. Ou seja, quando aquela acusação não possa determinar uma condenação.

Naturalmente, esta sindicância restringe-se à análise da acusação em si própria.

Ora,

Como é sabido, aplica-se à acusação particular a disciplina legal da acusação deduzida pelo Ministério Público, ex vi do n.º 3 do art. 285º do Código de Processo Penal.

Dispõe o art. 285.º I, que findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias, querendo, acusação particular.

A acusação deverá obedecer aos seguintes requisitos:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis;

d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação,

A omissão na acusação de alguma dessas matérias contidas nas referidas alíneas é cominada com nulidade que, porém, não é insanável, uma vez que não está taxativamente enumerada no art. 119.º do Código de Processo Penal.

Estabelece, todavia, o artigo 311.º, 2, a), do Código de Processo Penal, como se disse, que o juiz deve rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, sendo tal, por isso, de conhecimento oficioso.

Dito isto, entendo que a acusação particular não se encontra em condições de ser recebida porquanto as suas insuficiências não só não permitem uma efectiva defesa por parte do arguido como não permitem que uma decisão de mérito seja proferida sobre a mesma.

É necessário, quanto ao dolo, verter numa acusação uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do facto típico, acrescendo, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso), e que terá constar da peça acusatória.

Ademais, suportando tal entendimento, vejam-se os acórdãos do TR de Coimbra de 15/05/2019 (Vasques Osório), e 07/11/2018 (Jorge França), Évora de 17/12/2020 (Sérgio Corvacho).

De relevo, diz o acórdão de fixação de jurisprudência 1/2015 (DR de 27/1/2015) que,

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP».

Assim, quando a acusação particular deduzida pelo assistente, por um lado, não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjectivos do tipo, necessária para a verificação dos crimes imputados e, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, a acusação particular deve ser considerada manifestamente infundada por os factos nela descritos não constituírem crime nos termos do disposto no artigo 311º, n.º 2, a]. a) e n.º 3, al. d) do C.P.P.

Relativamente ao destino a dar ao processo,

Sabendo que a questão não está pacificada jurisprudencialmente,

Reputamos que rejeição da acusação pelo juiz de julgamento, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a) (e bem assim 3.º alínea d)) do CPP, é uma realidade diversa da simples declaração de nulidade da acusação.

Rejeitada a acusação entendemos que o juiz não deve determinar, ao abrigo do art, 122.º do CPP, a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correção da acusação pública, pelo Ministério Público, e, por maioria de razão, da acusação particular, pelo assistente.

Não é um acto processual previsto na lei e cremos que uma decisão nesse sentido que não só não respeitaria o disposto no art. 311.º, n.º 2, como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e ao assistente, e colocaria em causa as legítimas expectativas do arguido c as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

Verdadeiramente, o Juiz não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP ou ao assistente, para que este reformule, retifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais.

Pelo exposto, não se recebe a acusação particular deduzida pelo assistente.

Custas pelo assistente, que se fixam em 2 UC's, nos termos do artigo 514º nº 1 alínea f) do CPP.

Em consequência,

Considerando que o pedido cível especifica expressamente que o assistente "vem deduzir pedido cível pelos crimes particulares", declaro a instância cível extinta por inutilidade superveniente da lide.

Custas pelo demandante, se a elas houver lugar.

Notifique.

Apreciemos.

Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação

Sustenta o recorrente que o despacho recorrido (que denomina de “sentença/despacho”) não se encontra fundamentado, de onde advém a sua nulidade por falta de fundamentação.

Tem assento na Lei Fundamental – artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa – a imposição da fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, devendo esta ser feita na forma prevista na lei.

Por sua vez, estabelece-se no artigo 97º, nº 5, do CPP, que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

A falta de fundamentação da sentença integra nulidade, conforme resulta dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº1 alínea a), do CPP mas, a omissão de fundamentação de despacho decisório que não seja de mero expediente (com excepção da situação prevista no nº 6, do artigo 194º e da decisão instrutória, esta face ao disposto nos artigos 308º, nº 2 e 283º, nº 3, do mesmo diploma) constitui mera irregularidade.

Ora, se integra uma irregularidade, o respectivo regime de arguição é o previsto no artigo 123º, nº 1, do CPP, estando vedado a este Tribunal da Relação o recurso ao consagrado no seu nº 2 pois, como refere Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, vol. II, 3ª edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 89, “ainda antes da arguição e mesmo que a irregularidade não seja arguida, pode oficiosamente ser reparada ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para aquele acto enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo” e, aliás, “mal se perceberia que, sendo a irregularidade o menos relevante dos vícios processuais, tivesse um regime mais devastador do que as nulidades relativas (estas, se não forem arguidas no prazo de 10 dias, ficam sempre definitivamente sanadas – arts. 120º e 105º nº 1 do CPP)” – vd. também, por todos, Ac. do STJ de 27/02/2013, Proc. nº 117/04.2PATNV.C1.S1 e Ac. R. de Lisboa de 01/03/2021, Proc. nº 401/19.0PLLRS.L1-9, consultáveis em www.dgsi.pt.

Não tendo o recorrente arguido a eventual invalidade da decisão no prazo de três dias a contar do conhecimento da irregularidade, requerendo que a Mmª Juíza da 1ª instância concretizasse o que agora vem afirmar foi omitido, a existir, sempre estaria sanada a irregularidade.

É que, cumpre dizer ainda, posto que se não está perante questão de conhecimento oficioso (e, também não, manifestamente, no âmbito de aplicação do nº 2, do artigo 379º), o seu conhecimento não competiria a este Tribunal sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância, porquanto, os recursos têm por objecto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas.

De qualquer forma e apenas para sossego das consciências, cumpre consignar que, analisado o despacho recorrido (supra transcrito) constata-se a não verificação da apontada irregularidade de falta de fundamentação, porquanto o tribunal a quo elucida cabalmente as razões da sua decisão.

Inexistiria, pois, de qualquer modo, falta ou sequer deficiência de fundamentação do despacho revidendo.

Se, por ocasião do despacho a que se refere o artigo 311º, do CPP, poderia ter sido rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pelo assistente

Estabelece-se no artigo 311º nº 2, do CPP, que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente”.

A acusação considera-se manifestamente infundada, nos termos do nº 3, do mesmo artigo:

“a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

d) Se os factos não constituírem crime”.

O tribunal a quo rejeitou a acusação particular do assistente/recorrente considerando-a manifestamente infundada, por não conter os factos integradores dos elementos subjectivos dos imputados crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal e difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1 e 183º, nº 1, alínea a), do mesmo Código.

De acordo com o consagrado no nº 3 do artigo 285º, do CPP, é aplicável à acusação particular o disposto nos nºs 3, 7 e 8 do artigo 283º, sendo que do nº 3, alínea b) deste artigo resulta se impor que contenha a acusação pública os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo (ou tipos) criminal que se considere terem sido preenchidos.

Daí que na acusação particular pelo assistente deduzida se tenha igualmente de descrever a factualidade configuradora dos aludidos elementos.

Como é sabido, a importância da delimitação de um modo suficientemente rigoroso do objecto do processo prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, ainda que mitigada pelo princípio da investigação e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa - artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

E, uma vez que se está perante crimes que revestem natureza procedimental particular, o objecto do processo fixa-se precisamente com a acusação, constituindo esta uma das vertentes do princípio do acusatório.

Ora, o assistente, na peça acusatória que apresentou, descreveu a materialidade da conduta integradora dos crimes de injúria e difamação cuja prática imputa ao arguido. Quer dizer, os factos que preenchem o tipo objectivo dos crimes.

Porém, tinha de narrar igualmente os factos integradores dos elementos intelectual e volitivo do dolo.

Isto é, da imputação de tais factos ao agente a título de dolo, em qualquer das suas modalidades definidas no artigo 14º, do Código Penal – pois tais crimes só podem ser cometidos a título de dolo – que se consubstancia na vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas, incluindo os da consciência da ilicitude, encarada como puro elemento integrante da culpa (traduzidos na consciência, por parte do arguido, de que atingia a honra e consideração do ofendido e mesmo assim querendo dirigir-lhe essas expressões, sabendo que actuava contra direito) - neste sentido, vd. por todos, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/09/2017, Proc. nº 146/16.3 PCCBR.C1; Acs. R. de Évora de 14/07/2020, Proc. nº 788/15.4T9TMR.E1, 13/07/2021, Proc. nº 97/19.0T9SRP.E1, 21/06/2022, Proc. nº 418/19.5GHSTC.E1, 27/09/2022, Proc. nº 268/21.9GEALR-A.E1 e 27/09/2022, Proc. nº 105/20.0T8RDD.E1, consultáveis em www.dgsi.pt.

Não o dolo específico (animus injuriandi vil diffamandi), que não integra os elementos subjectivos destes ilícitos típicos (como elucida Faria e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 612, “(…) está hoje, perante a actual norma incriminadora, de todo em todo superada a antiga controvérsia no que tocava à exigência de um dolo específico. E superada no sentido de que se não pode conceber uma tal exigência. Basta uma actuação dolosa, desde que, obviamente, se integre em uma qualquer das modalidades definidas no art. 14º”), mas o dolo genérico, bastando a forma de dolo eventual.

Quer dizer, da acusação do assistente teria de constar que o arguido sabia, ao dirigir-se a terceiros, como fez, que estava a atribuir ao assistente factos ou sobre ele formular juízo, cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheia conhecia – conhecimento - e quis fazê-lo – vontade - (quanto aos crimes de difamação), bem como, dirigindo-se ao assistente, como fez, sabia que lhe estava a imputar factos ou vocalizar palavras, de cujo significado ofensivo do seu bom nome ou consideração estava ciente e quis fazê-lo (no que tange aos crimes de injúria).

O que se não mostra que integre a peça acusatória, pois nela apenas podemos ler: o arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida.

E, se bem que estes elementos se possam inferir dos factos, com recurso a presunções naturais ou às regras da experiência, daqui não resulta que se possa prescindir da narração desses factos que os integram.

Aliás, o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20/11/2014, in DR nº 18, I Série, de 27/01/2015, fixou já a seguinte jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.”

Explicitando-se no mesmo aresto que “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito (…) de forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (…)”.

Destarte, verificando-se, como se verifica, a omissão na acusação particular dos factos integradores dos elementos constitutivos do tipo subjectivo dos ilícitos imputados, não merece censura a decisão recorrida que a rejeitou, atento o preceituado no artigo 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alíneas b) e d), do CPP.

Convite ao aperfeiçoamento da acusação particular.

Considera ainda o recorrente, a título subsidiário (embora não perfeitamente expresso nas conclusões da motivação de recurso, mas resultando do corpo desta), que, entendendo o tribunal recorrido que “algum dos elementos subjectivos não estavam devidamente especificados deveria notificar o mesmo assistente para esclarecer ou rectificar essa lacuna ou omissão”.

Relativamente ao requerimento para abertura da instrução pelo assistente, constitui jurisprudência consolidada que se verifica uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação.

Ora, a propósito do primeiro, tem-se entendido que a solução do convite ao aperfeiçoamento aqui não se apresenta como admissível, já que o Ac. do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR nº 212, I Série A, de 04/11/2005, fixou jurisprudência nos seguintes termos: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, entendimento que também abrange a narração deficiente ou insuficiente - cfr. os Acs. do Tribunal Constitucional nº 636/2011 e nº 175/2013, disponíveis no seu sítio.

E, elucida-se cabalmente no primeiro do Tribunal Constitucional:

“Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação”, o nº 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do ato praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no nº 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo nº 2 do mesmo preceito. (…) fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução. A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afetar os direitos de defesa do arguido, porquanto a perentoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspetos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima.» (cfr., no mesmo sentido, também o Acórdão n.º 35/2012)” – fim de citação.

Estes fundamentos têm inteira aplicação no caso concreto (mutadis mutandis), pelo que defeso estava o convite ao aperfeiçoamento.

Termos em que, cumpre negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Évora, 28 de Março de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário).

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso)