Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1089/11.2TBVNO-F.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: ACÇÃO PAULIANA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 12/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não detém o Administrador da Insolvência, representando a Massa Insolvente, legitimidade para propor acções de impugnação pauliana, estando tal tipo de acção restringido ao credor singular, devendo aquele fazer uso é do instituto da Resolução em Benefício da Massa.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1089/11.2TBVNO-F.E1 (1ª secção cível)




ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

A Massa Insolvente de (…) e (…), representada pela Administradora de Insolvência, intentou acção declarativa de condenação para impugnação pauliana contra (…) e (…), presentemente a correr termos na Comarca de Santarém (Santarém – Instância Central – Secção de Comércio – J2), peticionando que seja «decretada a ineficácia do Repúdio da Herança de (…), pela sua filha e Ré (…) com o consentimento do Réu, seu marido, (…), revertendo para a Massa Insolvente a quota-parte que lhe couber da herança objecto da presente acção», alegando, em síntese, que os réus foram declarados insolventes por sentença proferida em 06/07/2011, tendo a ré, com o consentimento do réu, em 29/06/2012, repudiado a herança do seu falecido pai, cujo óbito ocorreu em 01/06/2011, sendo esse repúdio efectuado com o intuito exclusivo de frustrar as possibilidades de satisfação dos créditos dos credores da massa insolvente.
Tramitado o processo veio em 26/05/2015 a ser proferida sentença pela qual se julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade activa e, em consequência, se absolveram os réus da instância.
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Irresignada, com esta decisão, veio a autora interpor o presente recurso e apresentar as respectivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
1. A questão a decidir no presente recurso versa apenas sobre saber se a autora, como massa insolvente que é, tem ou não legitimidade para figurar como autora em acção de impugnação pauliana movida nos termos gerais do Código Civil, entendendo a Douta sentença recorrente que não e a recorrente que sim.
2. O actual regime do CIRE não veda à recorrente a possibilidade de lançar mão da impugnação pauliana, conforme o instituto geral de garantia das obrigações, como previsto nos art.ºs 610º e seguintes do Código Civil.
3. O regime que foi suprimido da actual legislação de insolvência não foi aquele referido no art.º 610º do CC, mas antes um outro, com desenho jurídico diferente que, desde logo, invertia o ónus da prova a favor da massa insolvente e já no decurso dessa anterior lei falimentar se entendia que a massa insolvente quando figurava como autora em acção pauliana, para beneficiar dessa inversão do ónus da prova tinha o ónus de alegar que essa acção era proposta nesses termos especiais e não nos termos gerais do Código Civil, sendo por isso, obrigatória a conclusão que poderia usar um outro regime, especial ou geral, caso o dissesse ou não;
4. Nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 9º, 10º e 11º do Código Civil, caso o instituto jurídico previsto no art.º 610º e seguintes do mesmo código estivesse vedado à massa, haveria o legislador de ter consagrado a solução mais coerente e acertada – in casu, e por obrigação decorrente destas normas, considerando a força normativa do Código Civil, seria o facto de estar obrigado à previsão legal expressa dessa proibição.
5. Isto é, haveria o legislador de ter esclarecido de forma expressa, e no próprio CIRE, que a garantia geral das obrigações prevista nos artigos 610º e seguintes do Código Civil, estava vedado às massas insolventes. Ao não o ter feito, e de acordo com as mesmas regras supra citadas, estas impõem que o intérprete conclua que o mesmo legislador, por força da lei, dotado de um pensamento adequado e coerente, o não o quis.
6. Estamos em face de dois institutos jurídicos completamente diferentes - a resolução do negócio e a impugnação pauliana - quer quanto à sua natureza, quer quanto aos seus requisitos objectivos e subjectivos e quanto aos efeitos que produzem.
7. A ser assim, o regime do art.º 610º do Código Civil haverá de aproveitar a todos os que não estejam expressamente inibidos de o fazer e que reúnam os requisitos legais aí previstos para o accionar em seu proveito.
8. O instituto da resolução previsto no CIRE está balizado temporalmente e desde logo sindicado ao conhecimento pelo AI de factos concretos e determinados para o efeito. Salvo o devido respeito, seria, de uma violência interpretativa e inusitada entender-se que, nos casos em que o AI venha a conhecer deles fora dessa baliza temporal, também não possa lançar mão de predito meio geral civilístico de garantia das obrigações e deixe completamente de poder actuar em benefício dos credores (como representante que é de todos os créditos reclamados e aglutinando em si própria a totalidade do activo líquido e ilíquido da insolvente), nos termos da lei geral, isto é, como qualquer credor ou entidade civil, singular ou colectiva.
9. A ser assim, e continuando a ressalvar o devido respeito, nesses casos forçados apenas a título de raciocínio, sem se aceitar tal solução, seremos a concluir que a massa insolvente está dotada de menos garantias patrimoniais gerais que uma qualquer entidade, não se afigurando esta uma solução lógica e coerente face ao ordenamento jurídico vigente.
10. A recorrente entende que o legislador com o instituto da resolução dos negócios jurídicos (nas vertentes condicional e incondicional) quis, efectivamente, oferecer às massas insolventes um meio efectivo e célere de garantir os créditos e de liquidação do património, mas apenas nos casos em que a AI possa agir dentro desse período temporal, designadamente porque, dentro desse prazo logrou reunir conhecimento suficiente para o efeito.
11. Mas, fora esses casos, desse período temporal, nada poderá impedir o AI de lançar mão dos meios de garantia gerais como previstos na lei geral civil, no Código Civil, designadamente, o instituto do art.º 610º e seguintes do Código Civil.
12. Pelo exposto, entende a recorrente que as art.ºs 9º, 10º e 11º e 610º do Código Civil e 121º e seguintes do CIRE se encontram violados na decisão recorrida.
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Apreciando e decidindo

Como se sabe o objecto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, caberá apreciar se o Administrador da Insolvência em representação da Massa Insolvente detém legitimidade para intentar acção pauliana.
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Para apreciação da questão há que ter em conta o circunstancialismo descrito supra, no relatório, que nos dispensamos de transcrever de novo.

Conhecendo da questão
A recorrente não se conforma coma a decisão recorrida, por entender que para além de beneficiar do (novo) célere instituto da resolução dos negócios jurídicos de garantia de créditos, instituído no CIRE, não deixou de poder lançar mão do meio de garantia geral, como é o instituto da impugnação pauliana consagrado no artº 610º e segs. do C. Civil.
Não obstante a argumentação trazida pela recorrente, entendemos ser de sufragar a posição expressa na decisão impugnada, que acolheu o entendimento jurisprudencial firmado no Ac. do TRC de 10/07/2014 (processo 1012/12.7TBPMS-G.C1, disponível em www.dgsi.pt) na qual se fez constar:
«Com a publicação do CIRE, como resulta do Parágrafo 41.º do Preâmbulo do DL 53/2004, que o aprovou, considerou-se, dada a ineficácia, em muitos casos, do mecanismo da impugnação pauliana, dada a maior dificuldade em, designadamente, provar os requisitos da má fé do terceiro adquirente, que era necessário ir mais além do que anteriormente previsto e alargar os casos em que seria possível recorrer, desde logo, à resolução de negócios em benefício da massa insolvente em detrimento da ação de impugnação pauliana.
Como se lê em tal preâmbulo, ali se refere o seguinte:
“A finalidade precípua do processo de insolvência – o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência – poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de atos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente. Importa, portanto, apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa.
A possibilidade de perseguir esses actos e obter a reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente é significativamente reforçada no presente diploma.
No atual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má-fé do terceiro quanto a alguns deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedida, sempre que o administrador entenda resolver o ato em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a «resolução em benefício da massa insolvente» -, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património”.
Concomitantemente, consagrou-se no CIRE um regime muito mais amplo ao direito de resolução por iniciativa do administrador da insolvência, como resulta dos artigos 120.º e 121.º do CIRE e limitou-se o recurso à impugnação pauliana aos casos previstos no artigo 127.º do CIRE, em que se consagra como regra a impossibilidade de os credores a ela recorrerem relativamente a actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência e mesmo em caso de existência de acções de impugnação pauliana pendentes à data da resolução, prevalece esta, ficando aquelas suspensas e só poderão prosseguir se a resolução vier a ser julgada ineficaz, como decorre do n.º 2 deste preceito.
Do que urge concluir que o regime consagrado no CIRE confere prevalência à actuação do administrador da insolvência na resolução de actos do insolvente sobre a impugnação pauliana a exercer pelos credores, retirando-se a estes a possibilidade de, a título individual, recorrer a esta no caso de prévia resolução do acto, radicando o fundamento da prevalência da resolução em benefício da favor de todos os credores, em que esta se traduz, por contraste com a impugnação pauliana, que apenas aproveita ao credor que dela lança mão, ficando no regime consagrado no CIRE, a impugnação pauliana confinada aos casos especiais referidos no seu artigo 127.º, podendo, assim, concluir-se que o recurso à impugnação pauliana foi quase vedado – mais não é do que uma possibilidade residual – dando-se prevalência à resolução em benefício da massa insolvente que, assim, sai reforçada no regime adoptado no CIRE – neste sentido, vejam-se Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, (Reimpressão), Vol. I, Quid Juris, 2006, a pág. 450; Fernando de Gravato Morais, Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, 2008, a pág. 205 e Catarina Serra, O Novo Regime Português Da Insolvência, 4.ª Edição, Almedina, 2010, a pág.s 96 e 97.
Aqui chegados, uma outra conclusão importa retirar de toda esta diferente filosofia que está inerente ao CIRE no concernente à prevalência da resolução em benefício da massa insolvente sobre a impugnação pauliana, qual seja a de que esta apenas está à disposição de um credor e não do administrador e que foi suprimida a anterior “impugnação pauliana colectiva”, ou seja, a que era permitida pelos artigos 159.º, n.º 1 e 160.º do CPEREF, em benefício da massa falida.
Como refere F. Gravato Morais, ob. cit., a pág.s 196 e 197 “… foi suprimida a impugnação pauliana colectiva, ou seja, em benefício da massa insolvente.
Por outro lado, os actos presumidamente celebrados de má fé pelos seus participantes, para efeito da impugnação pauliana colectiva – pois era nesse domínio que eles relevavam (art.º 158.º do CPEREF) -, são agora incluídos no leque de atos resolúveis incondicionalmente (art.º 121.º do CIRE). Ganha-se com isso em eficácia e em celeridade, embora a perseguição dos actos em causa esteja dependente da actuação diligente e não temerária do administrador da insolvência.
Portanto, admite-se apenas a impugnação pauliana singular, sendo que os seus efeitos aproveitam ao respectivo credor que se socorreu dessa via. Decorre do exposto que o administrador da insolvência não tem legitimidade para propor uma acção de impugnação pauliana.”.
O mesmo defende Catarina Serra, ob. cit., a pág. 99, quando ali afirma que “a impugnação pauliana está na exclusiva disponibilidade dos credores”, ficando reservada para o administrador a actuação a nível da resolução a favor da massa insolvente.
Opinião que é, igualmente, a sustentada, por Cura Mariano, in Impugnação Pauliana, Almedina, 2004, págs. 273 e 274, que ali conclui:
“Actualmente, após a entrada em vigor do C.I.R.E., aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir”».

Efectivamente, tem sido esta a posição da jurisprudência que temos por maioritária, para não dizer unânime, já que desconhecemos entendimento divergente, conforme transparece do consignado nos seguintes excertos:
- No CIRE prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a resolução em benefício da massa insolvente –, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património. Decorrentemente deste regime, associado ao facto de ter deixado de existir uma impugnação pauliana colectiva (que era especial do processo de falência), após a entrada em vigor do C.I.R.E., aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir. (Ac. do TRC de 11/03/2014 no processo 32/12.6TBSTR.C1 disponível em www.dgsi.pt);
- A impugnação pauliana é um instituto que, nos termos da lei geral (art. 610º do CC), apenas está na disponibilidade dos credores e, portanto, não existindo actualmente no CIRE (ao contrário do que acontecia anteriormente) qualquer norma que atribua ao administrador da insolvência legitimidade para esse efeito, impõe-se concluir que tal legitimidade não existe - (Ac. do TRC de 16/06/2015 no processo 529/10.2TBRMR-S.C1, disponível em www.dgsi.pt);
- No âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o administrador da insolvência carece de legitimidade para instaurar acção de impugnação pauliana ou para nela intervir. Tal regime justifica-se por ter deixado de existir a chamada impugnação pauliana colectiva, e o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ter passado a proibir o recurso dos credores à impugnação pauliana no decurso do processo quanto a actos objecto de resolução pelo administrador da insolvência, prevendo-se a reconstituição do património do devedor por meio de um instituto específico – a resolução em benefício da massa insolvente –, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de atos prejudiciais a esse património. Homologado o plano de insolvência e encerrado o processo de insolvência, deixa a massa insolvente de ter interesse na prossecução da acção para declaração de nulidade de negócios jurídicos celebrados pelo insolvente – (Ac. do TRE de 25/06/2015 no processo 600/13.9TBRMR.E1, disponível em www.dgsi.pt);
- Não prevendo o CIRE, versus o anterior CPEREF, a acção de impugnação pauliana com efeitos colectivos – em benefício de todos os credores –, falece ao administrador, em representação da massa insolvente, legitimidade activa para instaurar acção de tal jaez - (Ac. do TRC de 22/09/2015 no processo 2587/13.9TBFIG-E.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Temos de concluir, assim, que não detêm o AI, representando a Massa Insolvente, legitimidade para propor acções de impugnação pauliana, estando tal tipo de acção restringido ao credor singular, sendo certo, que nada foi invocado na petição para não se ter feito uso do previsto instituto da Resolução em Benefício da Massa, quando pelas datas em que ocorreram, a declaração de insolvência e o repúdio da herança, se verifica que ainda não tinham decorrido dois anos sobre a data em que foi decretada a insolvência (faltava até mais de um ano para tal prazo expirar), não se presumindo existir qualquer óbice prescricional, designadamente o previsto no artº 123º n.º 1 do CIRE, à actuação via resolução, ou pelo menos tal óbice não foi invocado, apesar do que é referido na conclusão 10ª.
Irrelevam as conclusões da recorrente, sendo de julgar improcedente a apelação e de confirmar a decisão impugnada.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Évora, 03 de Dezembro de 2015

Mata Ribeiro

Sílvio Teixeira de Sousa

Rui Machado e Moura