Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
154/15.1T8TVR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ACÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO REGISTRAL
RECUSA DE ACTO DE REGISTO
TRATO SUCESSIVO
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A inscrição prévia e a continuidade das inscrições constituem um pressuposto do processo de registo, uma vez que o registo lavrado sem apresentação prévia ou com violação da continuidade das inscrições é nulo e a manifesta nulidade do facto constitui fundamento de recusa do registo.
II - Os registos provisórios, enquanto tal, são insusceptíveis de violar o princípio do trato sucessivo, designadamente na dimensão da continuidade das inscrições.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Proc. nº 154/15.1T8TVR.E1
Portimão


Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório.
1. O Estado Português, representado pelo Ministério Público, impugnou em juízo o despacho do Senhor Conservador do Registo Predial e Comercial de Tavira que recusou a conversão em definitiva da inscrição provisória por natureza, da acção de impugnação de justificação notarial que correu termos com o nº 2338/09.2TBFAR.
Em síntese, alegou que por sentença proferida em 2 de Julho de 2014, já transitada em julgado, na acção de impugnação de justificação notarial, sob a forma de processo comum ordinário, que corre termos na Instância Local de Tavira com o n° 2338/09.2TBFAR foi a acção julgada totalmente procedente e, em conformidade, foi ordenado: “I) Declarar que os réus e as pessoas habilitadas no seu lugar não adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade dos prédios identificados na escritura de justificação outorgada no dia 19 de Julho de 2006, no Cartório Notarial de Vilamoura, e respectivo aditamento outorgado por escritura datada de 14 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de Vilamoura; 2) Ordenar o cancelamento de quaisquer registos operados com base na mencionada escritura de justificação notarial e respectivo aditamento; 3) Condenar os habilitados no lugar dos réus no pagamento da totalidade das custas.
Solicitado o registo da decisão, o Exmo. Sr. Conservador do Registo Predial e Comercial de Tavira, recusou a inscrição solicitada porquanto o prédio em causa está inscrito definitivamente a favor de terceiros que não os Réus na aludida acção, referindo ademais que essa inscrição a favor de terceiros já se encontrava lavrada antes da propositura da acção que corre termos na Instancia Local de Tavira com o n° 2338/09.2TBFAR, concluindo pela nulidade do registo por violação do trato sucessivo com a consequente recusa do registo nos termos dos artigos 68° e 69°, n° 1, al. d), do CRP.
Atendendo a que o facto apresentado a registo se trata de decisão de tribunal já transitada em julgado, a decisão recorrida contende com a força do caso julgado pelo que ao não lavrar o registo em causa o Exmo. Sr. Conservador extravasou as competências a que está adstrito.
O registo solicitado, ao contrário do vertido no despacho recorrido, não é nulo porquanto a decisão que foi apresentada a registo versa sobre facto inscrito anteriormente ao direito definitivamente inscrito a favor de pessoa diversa dos Réus na aludida acção não violando assim o princípio do trato sucessivo.
Conclui pela revogação da decisão recorrida, ordenando-se a feitura do registo conforme determinado judicialmente.
O Senhor Conservador do Registo Predial e Comercial de Tavira proferiu despacho de sustentação onde reitera as razões da recusa, tendo suscitado ainda a questão prévia da intempestividade da impugnação judicial.

2. Remetidos os autos a juízo e considerados devidamente instruídos, foi proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:
“(…), julgo procedente o presente recurso contencioso interposto pelo Estado Português e, consequentemente, revogo a decisão da Conservatória do Registo Predial e Comercial de Tavira, de 19 de Fevereiro de 2015, que recusou a conversão da inscrição da acção de impugnação de justificação notarial que correu termos na Instância Local de Tavira com o n° 2338/09.2TBFAR, determinado a sua substituição por outra que proceda à feitura do registo provisoriamente por dúvidas”.

3. Recorre desta sentença o Senhor Conservador do Registo Civil (“ad hoc”, no Registo Predial), da Conservatória do Registo Civil e Predial de Tavira, formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:
Assim sendo, e por se entender, manterem-se integralmente, os pressupostos que ditaram o Despacho de Recusa, que recaiu, sob o pedido de conversão em definitivo (Ap. 2534, de 2015/02119), da Ap. 3684/01.07.2010, as quais incidem sob o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n° …/20070307-Freguesia de Faro (Sé), por violação do princípio do trato sucessivo, corporizado, na não intervenção processual de titular inscrito naquele prédio, (como é profusa, na Jurisprudência Registral-Predial: Pº R.P. 74/2003-DSJ-CT, in BRN 11-2/2005; Pº 36/96 RP4, in BRN na 5/1997; e na Doutrina Registral-Predial, MOUTEIRA GUERREIRO, Revista Sciencia Juridica, 1985, nOs 97/198, p.436), consideram-se violadas as seguintes normas, do Código do Registo Predial:
-artº 1.º - (Fins do registo);
- artº 7.° - (Presunções derivadas do registo)
-artº 16º alínea e) II parte - (Causas de nulidade);
-artº 34°, n° 4 - (Princípio do trato sucessivo);
-artº 68° - (Princípio da legalidade);
-artº 69º, n° 2 - (Recusa de registo);
-art.° 101.º, n° 3 (averbamentos especiais)
-artº 71º (Despacho de recusa e provisoriedade)
-artº 141º (Prazos e legitimidade);
Na medida em que, ao que parece, considerando regularmente tramitada, (e até eventualmente transitada) a acção principal (o dito Processo n° 2338/09.2TBFAR, do então Tribunal Judicial de Faro), mesmo sem que nela tenha sido promovida a intervenção processual de titular inscrito no Registo Predial, a considerou merecedora, senão da conversão em definitivo, da respectiva inscrição predial, pelo menos, da revogação da recusa de conversão em definitivo, dessa inscrição, e a sua substituição por outra que proceda à feitura do registo provisório por dúvidas, sendo sabido que tal averbamento, pelo facto de não poder ser feito provisório, é sempre recusado nos termos do art. 69.°, n. ° 2 (2. a parle), do C.R.P, quando não possa ser feito definitivamente; e;
Fazendo tábua rasa, do Principio da Legalidade, e dos fins do registo, e até dos prazos para recorrer da dita recusa, como se disse, recurso que se mostrava já extemporâneo, pretender, com o trânsito em julgado, de uma decisão judicial, sobrepassar aqueles outros Princípios, enformadores da confiança, e da boa-fé públicas, no instituto do Registo Predial, e reflexamente do tráfego/comércio jurídico regulares, inerentes ao mesmo Registo Predial, protegidos, para além de outros, pelos artigos acima indicados;
Sendo inegável que, ao Conservador, está vedada a apreciação do mérito das decisões judiciais que, uma vez transitadas em julgado, se impõem quanto aos seus efeitos materiais, existem no entanto principias estruturantes do sistema predial, cuja não verificação, ainda que a respeito de caso julgado, poria em causa o próprio sistema, e, em última ratio, a própria finalidade do registo predial, plasmada no artigo 1°, do C.R.P.;
Por isso,
Considerando-se que, ao caso, outra coisa não restará que, face ao exposto, e ao constante do Processo:
I-Determinar que foi correcto, o aludido Despacho de Recusa, pelos fundamentos nele expostos;
II-A (determinação da) reformulação/revogação da sentença recorrida, em conformidade;
III-E, porque a acção principal, Processo nº 2338/09.2TBFAR, do então Tribunal Judicial de Faro, já terá avançado, até uma fase, em que, já não será possível ser chamado o referido titular inscrito, consequentemente, a (determinação da) aceitação, por parte do Tribunal recorrido, de que caberá uma nova demanda/acção/processo, em que tenham intervenção processual, todos os titulares inscritos, do prédio objeto da acção, à data do registo, como também se refere nesse Despacho;
-Assim se fazendo JUSTIÇA.”
Respondeu o Ministério Público defendendo a confirmação da decisão recorrida.
Observados os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objecto do recurso.
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo do conhecimento de alguma das questões nestas suscitadas vir a ficar prejudicada pela solução dada a outras – cfr. artºs 635º, nº 4, 639º, nº 1, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil; assim, considerando as conclusões da motivação do recurso, importa decidir:
- se é intempestiva a impugnação do despacho de recusa;
- se a inscrição da acção nos termos determinados pela decisão recorrida viola o princípio do trato sucessivo;
- se ocorre impossibilidade legal de registar a acção nos termos determinados pela decisão recorrida.

III. Fundamentação.
1. Factos.
A decisão recorrida fundamentou-se nos seguintes factos que julgou provados:
1. Por sentença proferida em 2 de Julho de 2014, já transitada em julgado, na acção de impugnação de justificação notarial que o Estado Português instaurou contra José (…) e Isabel (…) que correu termos na Instância Local de Tavira com o n° 2338/09.2TBFAR foi a acção julgada totalmente procedente e, em conformidade, decidido:
“I) Declarar que os réus e as pessoas habilitadas no seu lugar não adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade dos prédios identificados na escritura de justificação outorgada no dia 19 de Julho de 2006, no Cartório Notarial de Vilamoura, e respectivo aditamento outorgado por escritura datada de 14 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de Vilamoura;
2) Ordenar o cancelamento de quaisquer registos operados com base na mencionada escritura de justificação notarial e respectivo aditamento;
(...)"
2. Solicitado o registo da decisão, o Exmo. Sr. Conservador do Registo Predial e Comercial de Tavira recusou a conversão da inscrição da acção em vigor com os seguintes fundamentos:
«Nos termos da regra contida no art. 34°, n° 4, do Código do Registo Predial (CRP) -PRINCIPIO DO TRATO SUCESSIVO -, verifica-se que o prédio está definitivamente inscrito a favor de pessoa diversa dos Réus.
Com efeito, no momento em que foi pedido e lavrado o registo da ação ora em apreço na CRP de Faro (AP. 3684 DE 2010/07/01 - Acção - Provisório por natureza) já se encontrava inscrita a aquisição do prédio a favor de … (AP.4136 DE 2009/04/07 - Aquisição - Compra em processo de execução movida a José … e Isabel …).
Ao que tudo indica, e em cumprimento do mencionado preceito legal, o registo da acção agora decidida favoravelmente quanto a parte do pedido, deveria ter sido qualificado de provisório por dúvidas por falta de intervenção na acção daquele titular definitivamente inscrito - artigo 34°, n° 4 (...).
Contudo, verifica-se agora o trânsito em julgado da decisão em análise.
O registo lavrado em violação do princípio do trato sucessivo é nulo, conforme prevê o art. 16°, e), 2a parte do CRP. Art. 68° e 69°, n° 1, d), do CRP».
3. Tal decisão de recusa foi notificada ao tribunal através de ofício de 26-02-2015.
4. O Ministério Público, em representação do Estado Português, foi notificado do despacho de recusa pelo tribunal em 27-03-2015.
5. Por requerimento apresentado em 21-04-2015 na Conservatória do Registo Predial e Comercial de Tavira o Estado Português, representado pelo Ministério Público, interpôs recurso contencioso do despacho de recusa referido em 2.
6. Dá-se aqui como integralmente reproduzido o teor das descrições- averbamentos e anotações constante de fls. 13 a 17 dos autos, bem da sentença proferida em 2 de Julho de 2014 na acção de impugnação de justificação notarial, sob a forma de processo comum ordinário, que correu termos na Instância Local de Tavira com o n° 2338/09.2TBFAR constante de fls. 30 e seguintes.

2. Direito.
2.1. Se é intempestiva a impugnação do despacho de recusa.
Considera o Recorrente extemporânea a impugnação judicial do despacho de recusa, porque este se presume notificado ao apresentante em 2/3/2015 e a impugnação foi apresentada em 21/4/2015 e, assim, para além do prazo de trinta dias previsto pela lei.
Os despachos de recusa devem ser notificados ao apresentante, podem ser impugnados mediante a interposição de recurso hierárquico para o conselho directivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área de circunscrição a que pertence o serviço de registo e o prazo para a interposição de recurso hierárquico ou de impugnação judicial é de 30 dias a contar da referida notificação (artºs 71º, 140º, nº1 e 141º, nº1, todos do Código de Registo Predial, doravante designado por CRP).
Relativamente à identificação das normas aplicáveis e sua interpretação, quanto a este ponto, o Recorrente tem razão, por delas decorrer, como anota, que a impugnação judicial do despacho de recusa deve ser intentada no prazo de trinta dias após a notificação ao apresentante.
Importa ver os factos; o apresentante foi o Ministério Público e a decisão recorrida considerou provado que este foi notificado do despacho de recusa em 27/03/2015 e que a impugnação foi interposta através de requerimento em 21/4/2015 (pontos 4 e 5 dos factos julgados assentes pela decisão recorrida), concluindo que a impugnação foi tempestiva porque entre aquela primeira data e esta última não decorreram mais de trinta dias. A decisão ajusta-se aos factos provados.
O Recorrente fundamenta a extemporaneidade da impugnação em pressupostos de facto diferentes; no seu dizer, a notificação ao apresentante ocorreu em 2/3/2015.
O direito aplica-se aos factos discriminados como provados na sentença (artº 607º, nº 3, do Código de Processo Civil, doravante designado por CPC); a única via de, em recurso, se alterar os factos discriminados como provados na sentença é mediante a impugnação da matéria de facto (artºs 640º e 662º, ambos do CPC).
O Recorrente não impugnou os factos julgados provados pela decisão recorrida e, assim, a sua pretensão assenta em factos que não se provam e, como tal, não podem ser considerados na decisão.
Demonstrando-se nos autos que o despacho de recusa foi notificado ao apresente em 27/03/2015 e impugnando este tal despacho por requerimento de 21/4/2015, a impugnação é tempestiva, por observar o referido prazo de 30 dias.
Improcede o recurso quanto a esta questão.

2.2 Se a inscrição da acção nos termos determinados pela decisão recorrida viola o princípio do trato sucessivo.
O despacho de recusa teve como fundamento a violação do princípio do trato sucessivo e o Recorrente considera que se mantém integralmente os pressupostos que ditaram o despacho de recusa.
Sob a epígrafe, princípio do trato sucessivo, dispõe o artº 34º do CRP que:
“1 - O registo definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os onera.
2 - O registo definitivo de aquisição de direitos depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite, quando o documento comprovativo do direito do transmitente não tiver sido apresentado perante o serviço de registo.
3 - A inscrição prévia referida no número anterior é sempre dispensada no registo de aquisição com base em partilha.
4 - No caso de existir sobre os bens registo de aquisição ou reconhecimento de direito suscetível de ser transmitido ou de mera posse, é necessária a intervenção do respetivo titular para poder ser lavrada nova inscrição definitiva, salvo se o facto for consequência de outro anteriormente inscrito.”
A inscrição prévia e a continuidade das inscrições constituem um pressuposto do processo de registo, o registo lavrado sem apresentação prévia ou com violação do trato sucessivo é nulo e a manifesta nulidade do facto constitui fundamento de recusa do registo [artºs 16º al. e) e 69º, nº1, al. d), ambos do C.R.P.].
“O princípio do trato sucessivo pretende assegurar a continuidade do registo, e garantir a quem possui uma inscrição de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido a certeza de que não pode haver nova inscrição definitiva lavrada sem a sua intervenção.
(…)
Através da continuidade, o princípio garante a certeza da história da situação jurídica da coisa desde o início (descrição), até ao momento de cada novo ato de registo, exigindo e traduzindo um nexo ininterrupto de continuidade entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre a coisa.[1]
Mas os registos susceptíveis de violar o princípio do trato sucessivo, em caso de existir sobre os bens registo de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido ou de mera posse e neles não intervir o titular inscrito, são os definitivos (34º, nº4 do CRP) e não os factos levados a registo a título provisório uma vez que estes têm, em princípio e salvo disposição em contrário, um prazo de vigência de seis meses, no termo do qual caducam se não forem convertidos em definitivos ou renovados (artº 11º, do CRP).
A decisão recorrida determinou o registo provisório por dúvidas da decisão proferida na acção de impugnação de justificação notarial que correu termos na Instância Local de Tavira com o n° 2338/09.2TBFAR, em cujo dispositivo se declarou que os réus e as pessoas habilitadas no seu lugar não adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade dos prédios identificados na escritura de justificação outorgada no dia 19 de Julho de 2006, no Cartório Notarial de Vilamoura, e respetivo aditamento outorgado por escritura datada de 14 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de Vilamoura e se ordenou o cancelamento de quaisquer registos operados com base na mencionada escritura de justificação notarial e respetivo aditamento.
Porque se trata dum registo provisório o seu ingresso nas tábuas é insusceptível de violar o princípio do trato sucessivo.
Improcede o recurso quanto a esta questão.

2.3 Se ocorre impossibilidade legal de registar a acção nos termos determinados pela decisão recorrida.
Na consideração que a conversão em definitivos, no todo ou em parte, dos registos provisórios, deverão ser registadas por averbamento e que este acto não é susceptível de ser qualificado como provisório por dúvidas, defende o Recorrente a impossibilidade legal da efetivação do registo determinado pela decisão recorrida, porque a acção se mostra registada como provisória por natureza pela AP. 3684 de 2010/07/01.
Dispõe o artº 101, nº1, do CRP que:
“1 - São registados por averbamento às respectivas inscrições os seguintes factos:
(…)
2 - São registados nos mesmos termos:
(…)
d) A conversão em definitivos, no todo ou em parte, dos registos provisórios;
(…)
3 - Podem ser feitos provisoriamente por dúvidas os averbamentos referidos no n.º 1 e provisoriamente por natureza os averbamentos de factos constantes do mesmo número que tenham de revestir esse caráter quando registados por inscrição.
(…)”
Os averbamentos destinam-se a completar, actualizar ou a restringir as inscrições (artº 100º, nº1, do CRP) e sendo esta a sua causa/função compreende-se que a conversão em definitos de registos provisórios não haja de fazer-se provisoriamente, pois que nenhuma completude, actualização ou restrição resultaria, enquanto tal, para a inscrição.
Por observar esta disciplina, o argumento a contrario extraído pelo recorrente da interpretação do nº 3 do preceito em análise, a nosso ver, justifica-se; se a lei depois de enunciar separadamente os factos que deverão ser levados ao registo por averbamento à inscrição, se reporta apenas aos enumerados no nº 1 como susceptíveis de o serem provisoriamente é porque quis excluir os restantes factos (previstos no nº 2) de averbamento provisório.
“Do artigo 101º, nº3 do CRP, resulta que só os averbamentos constantes do nº 1, do artigo 101º do CRP poderão ser provisórios por dúvidas, pela razão de só esses terem a natureza intrínseca de inscrição. Da mesma forma, só esses averbamentos constantes do nº 1, poderão ser realizados provisoriamente por natureza, se o acto que lhes deu origem admitir essa tipologia de inscrição (como por exemplo, o contrato promessa).”[2]
Assim, o Recorrente tem, a nosso ver, razão quando afirma a impossibilidade legal de registar por averbamento provisório por dúvidas, a conversão em definitivo do registo provisório (por natureza) da acção.

Mas tal não significa que não possa lavrar o registo provisório por dúvidas como judicialmente determinado e isto porque lhe incumbe, a nosso ver, ex officio afastar o obstáculo legal que obsta, como dito, ao registo da acção.
No sistema registral vigora o princípio da legalidade (artº 68º do CRP), segundo o qual, a “viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos neles contidos”.
Como explica Mónica Jardim, a “função qualificadora, desempenhada pelo conservador português é o meio indispensável para que o princípio da legalidade actue, e consiste em comprovar a legalidade da forma e de fundo dos documentos apresentados, tanto por si sós, como relacionando-os com os eventuais obstáculos que o Registo possa opor ao assento pretendido”.[3]
Qualificando o ato o conservador pode admiti-lo a registo (definitiva ou provisoriamente) ou recusar o registo nos casos enumerados pelo artº 69º, cuja redacção é a seguinte:
1 - O registo deve ser recusado nos seguintes casos:
a) [Revogada];
b) Quando for manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados;
c) Quando se verifique que o facto constante do documento já está registado ou não está sujeito a registo;
d) Quando for manifesta a nulidade do facto;
e) Quando o registo já tiver sido lavrado como provisório por dúvidas e estas não se mostrem removidas;
f) [Revogada];
g) Quando o preparo não tiver sido completado.
2 - Além dos casos previstos no número anterior, o registo só pode ser recusado se, por falta de elementos ou pela natureza do acto, não puder ser feito como provisório por dúvidas.
3 - No caso de recusa é anotado na ficha o ato recusado a seguir ao número, data e hora da respectiva apresentação.”
Não se orientando a função qualificadora do conservador por critérios de conveniência ou de oportunidade, mas pela estrita observância do princípio da legalidade, decorre por efeito deste, que o registo, em princípio, deve ser feito e o juízo de qualificação que conduza a um acto negativo só pode ocorrer nos casos taxativamente previstos, como emerge com clareza da expressão “o registo só pode ser recusado” (nº 2).
Da norma em referência decorre também, a nosso ver, um princípio de adequação formal ou de aproveitamento dos actos registrais, segundo o qual o conservador não pode deixar de realizar o registo ainda que o não possa exarar nos exactos termos em que lhe é requerido; é o que resulta, a nosso ver, da redacção do nº 2, ao consagrar que ainda que outro seja o pedido de registo, o conservador deverá efectuá-lo como provisório por dúvidas – adequação formal do pedido à tipologia do acto legalmente possível – caso não ocorra nenhum dos motivos de recusa taxativamente enumerados (nº 1), esteja na posse dos elementos necessários para o efeito e a natureza do acto a tal não se oponha.

No caso dos autos, não se coloca qualquer obstáculo à efectivação do registo susceptível de integrar uma qualquer das alíneas do nº 1 da norma em referência, como não se coloca a questão da falta de elementos necessários à efectivação do registo, restando, pois apreciar, se a natureza do acto obsta à feitura do registo como provisório por dúvidas (nº 2), constituindo este, por inexistência daqueles, o único fundamento de recusa ainda em aberto.
A acção cujo registo provisório por dúvidas vem recusado é uma acção de impugnação de justificação notarial que visou a declaração da inexistência do direito de propriedade a que os Réus se arrogaram na escritura impugnada; por se tratar duma acção negatória do direito de propriedade está sujeito a registo (artº 3º, nº 1, al. a) e 2º, nº 1, al. a), ambos do CRP).
O registo é efectuado por inscrição e é provisório por natureza (artº 91º e 92º, nº 1, al. a), ambos do CRP); ocorrendo outro motivo de provisoriedade – existência de motivos que obstem ao registo do ato tal como é pedido e que não sejam fundamento de recusa (artº 70º, do CRP) – o registo é efectuado simultaneamente como provisório por natureza e por dúvidas.
Estando a acção sujeita a registo por força da lei e permitindo esta que o registo seja lavrado como provisório não se vê que a determinação judicial do registo da acção como provisório comporte um acto que, pela sua natureza não possa ser feita por dúvidas é que, se bem vemos, uma coisa é a natureza do acto outra a forma do acto e se é certo, como supra referido, que se reconhece a impossibilidade legal de registar por averbamento provisório por dúvidas, a conversão em definitivo do registo provisório (por natureza) da acção, esta impossibilidade constitui, na nossa acepção, uma questão de forma do acto e não uma questão que decorra da sua natureza.
O registo da (decisão) acção provisório por dúvidas, tal como determinado pela decisão sob recurso, não comporta um registo que, por natureza, não pode ser feito provisório por dúvidas e sendo este inverificado fundamento de recusa que agora justifica o recurso demonstrada fica a sua improcedência.

Ainda assim, não se pode olvidar, que tendo a acção ingressado no registo como provisória por natureza (ap. … de 2010/07/01) não pode agora, mantendo-se aquele, registar-se (inscrever-se) como provisória por dúvidas – o mesmo facto não pode registar-se duas vezes (artº 69º, nº 1, al. c), do CRP).
Mas como se acentua no parecer do Instituto dos Registos e Notariado, junta aos autos a fls. 57 e o Recorrente, aliás, reconhece “o registo da acção enferma de erro, por ter sido lavrado com base em título insuficiente para a prova legal do facto”.
De facto, a acção de impugnação judicial da justificação notarial que documentou a inscrição da aquisição do prédio a favor de Isabel (…) e José (…) foi proposta pelo Estado apenas contra estes e em 1/7/2010, data em que foi requerido e lavrado o registo da acção (ap. 3684 de 2010/07/01) já se encontrava inscrita a aquisição do prédio, por compra, a favor de José Manuel … (ap. 4136 de 2009/04/07 – Aquisição – Compra em processo de execução movida a José … e Isabel …), pessoa diversa do autor e dos réus na acção portanto, exigindo o princípio do trato sucessivo, na dimensão da continuidade das inscrições, que o registo da acção fosse lavrado provisoriamente por natureza (artº 92º, nº 1, al. a), do CRP) e por dúvidas, uma vez que a falta de intervenção na acção do terceiro adquirente (…), não constituindo motivo de recusa, obstava ao registo do facto tal com era pedido (artºs 69º e 70º do CRP).
O registo assim lavrado é nulo porque lavrado com base em título insuficiente para a prova legal do facto registado (artº 16º, al. a) do CRP), o título só seria suficiente para a prova do facto registado se o registo tivesse sido lavrado como provisório por natureza e por dúvidas, caso em que, removidas estas, ou seja convencido na acção o terceiro adquirente da nulidade ou ineficácia da escritura de justificação, o registo poderia adquirir a sua plenitude, com a conversão em definitivo (artº 101º, nº 4, do CRP).
Ora, a lei registral estabelece, como principio, o dever de iniciativa do conservador rectificar os registos inexactos e os registos indevidamente lavrados, logo que tome conhecimento da irregularidade, como é o caso dos registos que enfermem de nulidade nos termos da alínea b) do artigo 16º (artº 121, nºs 1 e 2, do CRP).
Tendo o Recorrente tomado conhecimento da irregularidade do registo, resultante da sua indevida realização, deverá ex officio proceder à sua rectificação e cancelado este nada obstará ao registo da acção determinado pela decisão recorrida, por inscrição, atento o anotado princípio de adequação formal ou aproveitamento dos actos registrais.
Em conclusão, não havendo fundamento para recusa e devendo ser rectificado oficiosamente o facto que obsta ao registo da acção tal como determinado pela decisão recorrida, não se vê como dar razão ao Recorrente.
Improcede, pois, o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº 7, do CPC):
I – A inscrição prévia e a continuidade das inscrições constituem um pressuposto do processo de registo, uma vez que o registo lavrado sem apresentação prévia ou com violação da continuidade das inscrições é nulo e a manifesta nulidade do facto constitui fundamento de recusa do registo.
II - Os registos provisórios, enquanto tal, são insusceptíveis de violar o princípio do trato sucessivo designadamente na dimensão da continuidade das inscrições.
III – Por efeito do princípio da legalidade, que rege a função qualificadora do conservador, o registo, em princípio, deve ser feito e só pode ser recusado nos casos taxativamente previstos no artº 69º do CRP.
IV – Do nº 2 do artº 69º do CRP, decorre um princípio de adequação formal ou de aproveitamento dos actos registrais, segundo o qual o conservador não pode deixar de realizar o registo ainda que o não possa exarar nos exactos termos em que lhe é requerido.
V- A mesma acção não pode ser objecto de dois registos (inscrições), mas o conservador não pode recusar o segundo pedido de registo se o primeiro registo for nulo, por lhe incumbir então ex officio promover o cancelamento do registo nulo, por rectificação.

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Évora, 9/2/2017
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho__________________________________________________
[1] Parecer da PGR de 19/5/2000, disponível em www.dgsi.pt
[2] Rui Januário e António Gameiro, Direito Registral Predial, pág. 180.
[3] Escritos de Direito Notarial e Direito Registral, Almedina, 2015, pág. 460.