Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1030/21.4T8STR.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE DOS PRAZOS DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do C.P.C., impõe que se tenha chegado à conclusão que a formação da decisão devia ter sido em sentido diverso daquele em que se julgou, emergindo de um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas, o que se veio a verificar no caso em apreço, pois, no que tange ao ponto 8 dos factos dados como provados, existiu erro notório na apreciação da prova carreada para os autos.
- Não é inconstitucional a estatuição dos prazos legais de 10 e 3 anos a que aludem, respectivamente, os nºs 1 e 3 do artigo 1817.º, aplicáveis ex vi do artigo 1873.º, ambos do Código Civil, para que o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 1030/21.4T8STR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) intentou a presente ação de investigação da paternidade contra (…), alegando, em síntese, que a sua mãe e o pretenso pai, aqui R., mantiveram entre si relações sexuais durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do A. e que apenas em 2021 teve conhecimento que o R. seria seu pai. Termina pedindo que seja reconhecido que o R. é seu pai, para todos os efeitos legais.
Devidamente citado para o efeito veio o R. apresentar a sua contestação, na qual excepcionou a caducidade do direito de acção, alegando ainda que o relacionamento que teve com a mãe do A., consistente num único acto sexual, foi conhecido pelo A. pelo menos antes de 1/6/2015, pois que o A. e a sua mãe falaram nisso com a irmã do R., a qual faleceu na indicada data de 2015.
Foi proferido despacho saneador, tendo-se identificado o objecto do litígio e identificados os temas de prova.
De seguida, veio a ser realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença pela M.ma Juiz a quo, a qual julgou improcedente a excepção de caducidade do direito à acção invocada pelo R. e julgada procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, foi declarado que o A., (…) é filho do R., (…), com todas as consequências legais, ordenando-se que seja feito o competente averbamento no respetivo assento de nascimento do A. no que respeita àquela paternidade e avoenga paterna.

Inconformado com tal decisão dela apelou o A., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
a) Alega o Recorrido que apenas teve conhecimento de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação no ano de 2021, alegando para o efeito que a sua mãe – (…) – lhe contou da existência do Recorrente no decurso de uma cerimónia fúnebre, não tendo existido qualquer conversa sobre tal facto durante os restantes 46 anos da sua vida.
b) Acontece que tais factos não correspondem à verdade, o Recorrido tinha conhecimento do Recorrente pelo menos em data anterior a 1 de Junho de 2015, data em que a irmã do Recorrente faleceu. Senão vejamos:
c) Em data anterior a 1 de Junho de 2015 o Recorrente e a sua mãe deslocaram-se a casa da irmã do Recorrente com o objectivo desta o pressionar a assumir a paternidade.
d) Tais factos foram devidamente confirmados pela Testemunha – Dr. (…) – no âmbito da sua inquirição enquanto testemunha na audiência de julgamento, como se comprova através da audição da respectiva gravação.
e) Daqui resulta que o Recorrido tinha conhecimento da existência do Recorrente desde antes de 1 de Junho de 2015 e que ainda assim não intentou a acção judicial no prazo de 3 anos, tendo o seu direito caducado.
f) É a própria mãe do Recorrente – (…) – que, inquirida como testemunha na audiência de julgamento, alega que conhecia a irmã do Recorrente, que lhe havia contado da existência do seu filho, bem como, que na cidade de Santarém é sabido que o Recorrido é filho do Recorrente, como se comprova através da audição da respectiva gravação.
g) Em face do depoimento que foi prestado pelo Dr.(…) e pela Sra. (…), resulta que o Recorrido sabia de factos que poderiam levar à investigação da paternidade pelo menos em data anterior a 1 de Junho de 2015.
h) Mesmo sabendo da existência de tais factos não logrou intentar a respectiva acção judicial, tendo o direito do Recorrido caducado nos termos da alínea c) do número 3 do artigo 1817.º do Código Civil.
i) Em face de tal facto deve ser dado como não provado que o Recorrido “apenas teve conhecimento que o Réu (…) seria seu pai no ano de 2021, em data não concretamente apurada.”
j) Devendo ser dado como provado que o Recorrido sabia que o Recorrente seria seu pai em data anterior a 1 de Junho de 2015, não tendo contudo intentado a respectiva acção judicial no prazo de três anos, tal como previsto na alínea c) do número 3 do artigo 1817.º do Código Civil.
k) Facto esse que leva à improcedência da acção de reconhecimento da paternidade por se ter verificada por provada a procedência da excepção de caducidade do direito à acção. Caso tal não aconteça, deve este douto Tribunal ad quem considerar que:
l) O Recorrido não teve conhecimento de quem era o seu pai nos dez anos posteriores à sua maioridade porque não quis.
m) O Recorrido – segundo a sua mãe – nunca quis saber quem era o seu pai, veja-se para tanto o que foi dito pela sua mãe – (…) – no seu depoimento prestado no tribunal a quo, como se comprova através da audição da respectiva gravação.
k) Do depoimento da mãe do Recorrido – (…) – resulta que o Recorrido não intentou a acção de reconhecimento da paternidade porque não quis, desconsiderando assim, o ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento da paternidade.
l) Tal desinteresse – incumprimento da previsão do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil – criou no Recorrente a confiança que o Recorrido já não viria a exercer o pedido de reconhecimento da paternidade.
m) A confiança que foi criada pelo Recorrido no Recorrente deveu-se ao facto do Recorrido não ter intentado a acção judicial nos 10 anos posteriores à sua maioridade.
n) Deveu-se ao facto da acção judicial ter sido intentada 28 anos depois da maioridade do Recorrido.
o) O exercício do direito tardio, para além de estar prescrito e caduco – n.º 1 como da alínea c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil – encontra-se também obstaculizado uma vez que o Recorrido está a atuar em abuso de direito – artigo 334.º do Código Civil – na modalidade de supressio.
p) A supressio é um dos “subtipos do venire contra factum proprium”. Traduzem o comportamento contrário do titular do direito que o vem exercer depois de uma prolongada abstenção. A abstenção prolongada no exercício de um direito, pode, em certas circunstâncias, suscitar uma expectativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá exercer ou que haja renunciado ao próprio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram, ou a certo modo do seu exercício.
q) A actuação do Recorrido – visto que sobre ele recaia o ónus de diligência processual – criou a legitima e razoável expectativa que o Recorrido não iria exercer ou que havia renunciado ao direito.
r) Daí que se diga que, ao ter interposto a acção de reconhecimento da paternidade 28 anos depois da sua maioridade, o Recorrido age em claro abuso de direito, na modalidade de supressio.
s) Mais se diz que, prevê o Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 401/2011 que, é “legítimo que o legislador estabeleça prazos para a propositura da respectiva acção de investigação da paternidade, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada do investigante, não sendo injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar, através de um regime de imprescritibilidade uma situação de incerteza indesejável.” Por isso, “o prazo de 10 anos após a maioridade ou emancipação, consagrado no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, revela-se como suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma acção de investigação da paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada.” Assim, “não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelos direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.”
t) Após análise do referido Acórdão do Tribunal Constitucional e da actuação do Recorrido resulta claro que:
i) O Recorrido poderia ter tido conhecimento, logo aos 18 anos de idade, sobre a existência do Recorrente.
ii) O Recorrido não quis saber da existência do Recorrente.
iii) A actuação do Recorrido demonstrou um claro desinteresse do mesmo quanto ao conhecimento do seu progenitor e reconhecimento da paternidade.
iv) Mesmo sabendo que sobre si recaia um ónus de diligência quanto à iniciativa processual, o Recorrido preferiu nada dizer e assumir o seu desinteresse no reconhecimento da paternidade.
u) A actuação do Recorrido é condenada, uma vez que, não é possível prolongar o desinteresse do Recorrido, através de um regime de imprescritibilidade o que levaria a uma situação de incerteza indesejável.
v) Não tendo o Recorrido intentado a acção judicial de reconhecimento da paternidade – nos 10 anos posteriores à maioridade – por factos que lhe são imputáveis, o direito do Recorrido prescreveu, não podendo o mesmo vir agora requerer o reconhecimento da paternidade.
w) Em face de tal facto, deve este douto Tribunal ad quem dar como provado que:
i) O ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da paternidade recai sobre Recorrido.
ii) O Recorrido demonstrou desinteresse em querer saber quem era o seu pai, uma vez que, poderia ter sabido da existência do seu pai em qualquer momento, escolhendo, contudo, apenas obter esse conhecimento 28 anos após a sua maioridade.
iii) A ser verdade que o Recorrido não teve conhecimento da existência do Recorrente no prazo de 10 anos após a sua maioridade, tal deveu-se ao desinteresse do Recorrido.
iv) Se o Recorrido tivesse demonstrado algum interesse em saber quem era o Recorrente, bastar-lhe-ia ter perguntado à sua mãe quem era o Recorrente e, ao mesmo tempo, requerido o reconhecimento da paternidade no prazo de 10 anos após a sua maioridade.
v) O prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil não foi pelo Recorrido cumprido por factos que lhe são imputáveis, daí que, esteja o Recorrido impedido de recorrer à previsão da alínea a) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil.
x) Em face de tais factos, deve este douto Tribunal considerar que o desinteresse do Recorrido, o incumprimento do prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, a actuação em abuso de direito e a violação do princípio constitucional da segurança jurídica do Recorrente, levam a que o pedido do Recorrido devesse ser declarado improcedente e, por conseguinte, a Sentença de fls… revogada e o Recorrente absolvido do pedido.
z) Assim, nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. reverendíssimas douta e sapientemente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido e declarado procedente e, consequentemente ser revogada a presente sentença colocada em crise, com as legais consequências daí advenientes, fazendo-se assim, a tão costumeira Justiça.
Pelo A. foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos junto das Ex.mas Juízes Adjuntas (cfr. artigo 657.º, n.º 2, do C.P.C.).
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável ao recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo R., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal a quo a prova (testemunhal) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada e não provada;
2º) Saber se está verificada a excepção de caducidade do direito de acção invocada pelo R., face aos prazos estipulados no artigo 1817.º, nºs 1 e 3, alínea c), do Código Civil;
3º) Se assim não se entender, saber se a conduta do A. – ao ter interposto a presente acção de reconhecimento da paternidade 28 anos depois de ter atingido a maioridade – integra a figura do abuso de direito, prevista no artigo 334.º do Código Civil.

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal a quo e que, de imediato, passamos a transcrever:
1. (…) nasceu em 22-03-1976, na freguesia de Marvila, concelho de Santarém.
2. Foi registado na Conservatória do Registo Civil de Santarém, em 22-04-1976, como filho de (…), encontrando-se a sua paternidade omissa.
3. A mãe do Autor e o Réu mantiveram relação sexual de cópula completa em 1975, entre finais de maio e meados de setembro (primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor).
4. E foi na sequência de essa relação sexual de cópula completa que (…) engravidou, gravidez de que veio a nascer (…).
5. (…) apenas manteve relações sexuais, na altura, com o Réu.
6. No relatório pericial apurou-se que “O estudo dos polimorfismos de ADN nuclear efetuado não permite excluir (…) da paternidade de (…), filho de (…). – Utilizando o programa Famílias 3, a análise probabilística de (…) ser o pai de (…), filho de (…), por comparação com outro indivíduo ao acaso da população, conduziu a um índice de parentesco (paternidade) IP=18 656 958 209 633.”
7. Concluiu-se que “Deste modo, o IP previamente determinado conduziu a uma probabilidade W=99,999999999995%, considerando uma probabilidade a priori de 0,5”.
8. O A., em data não concretamente apurada, mas nos anos de 2014 ou 2015, teve conhecimento que o R. (…), era o seu pai (alterada a redacção neste aresto – cfr. fls. 11).

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pelo R., ora apelante – saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal a quo a prova (testemunhal) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada e não provada – importa dizer a tal respeito que a pretensão daquele assenta na alteração do ponto 8 dos factos provados, o qual deverá receber resposta negativa (“não provado”), alteração essa que tem por base o teor da prova que foi carreada para os autos, nomeadamente testemunhal, tendo sido a mesma objecto de gravação.
Ora, a este respeito, o n.º 1 do artigo 662.º do C.P.C., estipula o seguinte:
- “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o artigo 640.º do C.P.C. especifica ou concretiza qual o ónus que incumbe ao recorrente quando pretender impugnar a matéria de facto, sendo que a alínea b) do nº1 do referido preceito legal é bem clara nesta matéria ao mencionar (também aqui) que o recorrente deve especificar quais os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, não se contentando o legislador nesta matéria com uma mera faculdade (como por exemplo “podiam dar lugar” em vez de “impunham”), mas antes consagrando um imperativo.
Ora, no caso dos presentes autos, houve gravação dos depoimentos testemunhais prestados em julgamento e, por isso, o R. podia impugnar, com base neles, a decisão da matéria de facto, seguindo, naturalmente, as regras impostas pelo citado artigo 640.º do C.P.C..
Com efeito, verifica-se que, como vimos supra, o recorrente indicou, nas suas alegações e conclusões de recurso, quais os concretos meios probatórios que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, identificando os depoimentos testemunhais e concretizando ainda com exactidão as respectivas passagens da gravação de tais depoimentos, sendo que, por isso, deu cumprimento, nesta parte, ao estatuído no n.º 1, alíneas a), b) e c) e n.º 2, alínea a), do já citado artigo 640.º do C.P.C..
Assim, no que tange à resposta dada ao ponto 8 dos factos provados, impugnada pelo R., ora apelante – e após audição de todas as gravações da prova realizadas – verifica-se que a mesma recebeu uma resposta positiva tendo por base, apenas, o depoimento prestado pela testemunha (…), a qual é mãe do A. e, por isso, tem um interesse directo (ainda que legítimo…) na procedência desta acção.
No entanto, o referido depoimento foi deveras titubeante e pouco assertivo, pois, ao ser-lhe perguntado, nomeadamente, a data de nascimento do filho, aqui A., respondeu qual o dia e o mês, mas não sabia o ano. Por outro lado, relativamente à idade actual deste filho, disse que tinha 43 quando, na realidade, ele tem 46 anos de idade.
Além disso, quanto à identidade do pai do A., a dita testemunha, (…), disse que, ao longo dos anos que passaram, nunca contou ao filho, porque este nunca lhe perguntou quem era o pai.
Todavia, adiantou ainda que, já no ano de 2021, o filho, aqui A., perguntou-lhe, no funeral de uma amiga (?), quem era o seu pai, tendo ela respondido que o seu progenitor era o Réu.
Ora, não nos parece razoável e credível, de todo, que, sem mais, em plena pandemia de Covid-19 e com várias restrições de aglomerados de pessoas em funerais, fosse aquele o sítio ou o local mais indicado para o A. perguntar à dita testemunha, sua mãe, quem era, afinal o seu pai!
Por outro lado, a testemunha (…) não identificou o nome da sua falecida amiga e a data da sua morte (apenas referindo que foi em 2021), não especificando também as razões pelas quais o seu filho, aqui A., estava presente no dito funeral (era também amigo dela?), bem como em que circunstâncias, em concreto – e num local que se quer de profundo recato – o A. lhe fez a pergunta de quem era o seu progenitor…
Por fim, sempre se dirá que Santarém é uma cidade de província, em que as pessoas se conhecem (ainda que de vista), e vivendo o A., com sua mãe, e o R. nessa cidade não é crível que tal facto – do R. ser o pai do A. – não fosse aí comentado há vários anos, nomeadamente em locais públicos pelos mesmos frequentados, cafés, restaurantes, etc. (é um dado da experiência…).
Acresce que a testemunha (…), amigo do R. há cerca de 30 anos, confirmou, no seu depoimento, várias conversas tidas com o R., em 2014 ou 2015, nas quais o A. e a sua mãe foram visitar a irmã do R., de nome (…), com o objectivo desta pressionar o R. no sentido de o mesmo vir a assumir a paternidade do A.
Mais acrescentou a dita testemunha que a referida (…) terá falecido em meados de 2015, mas sabia, como muitas outras pessoas, por lhe ter sido contado pela mãe do A., que este era filho do R., tendo confrontado o irmão com tal facto, o que motivou atritos entre eles, já que o R. lhe dizia que não tinha a certeza de que o A. pudesse ser seu filho biológico.
Ora, a mãe do A. confirmou no seu depoimento que, entre as várias pessoas que sabiam que o A. era filho do R., estava a irmã do R., que era sua amiga e, por isso, lhe tinha contado a situação.
Nestes termos, resultam sérias dúvidas sobre a credibilidade e a fiabilidade do depoimento global da testemunha (…), ao contrário do que sucedeu com o depoimento da testemunha (…), que foi sereno, preciso e, por isso, credível – o que nos leva a crer que a identidade do progenitor do A. lhe foi revelada pela dita testemunha, sua mãe, em data não concretamente apurada, mas seguramente em 2014 ou 2015, não tendo ocorrido no alegado funeral da amiga da mãe do R. no ano de 2021 – pelo que forçoso é concluir que terá de ser alterado o ponto 8 dos factos provados, o qual passa a ter a seguinte redacção:
8. O A., em data não concretamente apurada, mas nos anos de 2014 ou 2015, teve conhecimento que o R. (…) era o seu pai.

Analisando agora a segunda questão levantada pelo R., ora apelante – saber se está verificada a excepção de caducidade do direito de acção invocada pelo R., face aos prazos estipulados no artigo 1817.º nºs 1 e 3, alínea c), do Código Civil – haverá que referir a tal propósito que cabe ao investigante o ónus de alegar os factos que demonstrem que, só após ter decorrido o prazo de 10 anos sobre a respectiva maioridade, teve conhecimento de facto ou circunstância essencial e decisiva para desencadear a propositura da acção, já que não lhe era exigível que a tivesse proposto antes de ter adquirido conhecimento do facto superveniente invocado (cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 9/3/2017, disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, o citado artigo 1817.º do Código Civil (na redacção actual introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1/4) – aplicável à paternidade por via do disposto no artigo 1873.º – estipula o seguinte:
«1 - A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
(…)
3 - A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos:
(…)
c) Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.
No caso em apreço, constata-se que o A., na sua petição inicial, invocou que só em 2021 é que teve conhecimento, através da sua mãe, que o R. era o seu pai e, por via disso, nesse mesmo ano, intentou a presente acção.
Todavia, como vimos, resulta da factualidade apurada que o A. não fez prova nos autos de que tal conhecimento (sobre a identidade do progenitor) apenas tenha chegado aos seus ouvidos em 2021 – a fim de poder beneficiar do prazo alargado de 3 anos a que alude a alínea c) do n.º 3 do citado artigo1817.º – sendo certo que ficou provado que o mesmo tinha conhecimento de tal situação, ou seja, do R. ser o seu pai, desde os anos de 2014 ou 2015, apenas tendo instaurado a presente acção em 2021, passados que estavam mais de 3 anos sobre o prazo previsto no referido n.º 3 do artigo 1817.º, pelo que, indubitavelmente, temos por verificada a excepção de caducidade do direito de acção invocada pelo R. e, por isso, a presente acção terá forçosamente de naufragar com base em tal requisito legal.
Por outro lado, o R. invocou a excepção de caducidade do direito da acção proposta pelo A., tendo por base, também, o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil – pois o A. instaurou esta acção quando já tinha 45 anos, quando só o poderia ter feito até aos 28 anos – sendo que, em resposta, sustentou o A. que tais prazos sempre se mostram materialmente inconstitucionais, pois violam os artigos 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1, todos da Constituição da República.
Ora, porque esta questão em discussão nos presentes autos se encontra subtraída à disponibilidade das partes, cumpre apreciar, desde já, da eventual caducidade do direito de acção, nos termos do n.º 1 do citado artigo 1817.º, como decorre do disposto no artigo 333.º, n.º 1, do Código Civil.
Como sabemos, tal questão tem sido objecto de tratamento diverso na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e, aqui, importa salientar o Ac. do STJ de 29/11/2012, (relator: Tavares de Paiva), disponível in www.dgsi.pt., o qual traça, de uma forma que se nos afigura sucinta e elucidativa, os aspectos mais relevantes dessa controvérsia e as duas posições que a seu respeito têm sido desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência.
Uma no sentido de estamos perante interesses inalienáveis da pessoa, como seja o direito à identidade pessoal, nele incluindo o direito de conhecer e ver reconhecida a sua ascendência biológica, configurando, por isso, um direito de índole pessoalíssimo e como tal imprescritível consagrado constitucionalmente consagrado, pelo que o estabelecimento de prazos de caducidade, sejam eles quais forem a condicionar a instauração da acção de investigação de paternidade/maternidade traduzem restrições desproporcionadas ao direito de identidade pessoal e ao direito de integridade moral violadoras da Constituição. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 10/01/2012, de 24/05/2012, de 17/04/2008 e de 08/06/2010, bem como o Ac. da R.G. de 06/11/2014, todos disponíveis in www.dgsi.pt. e, ainda, os Prof. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira “Curso de Direito de Família”, II, 1, 139, 2006.
A outra posição vai no sentido do estabelecimento de prazos se estribar em princípios de certeza e segurança jurídicas, argumentando que a possibilidade de instauração da acção a todo tempo implicaria uma situação de incerteza prolongada por muito tempo sobre o pretenso pai e herdeiros, as dificuldades, perdas ou envelhecimentos das provas e a instrumentalização da acção como incentivo para caça às fortunas – cfr., entre outros, neste sentido, o Ac. supra citado de 29/11/2012, que aqui seguimos de perto, e ainda os Acórdãos do mesmo STJ de 15/05/2014, 20/06/2013, 09/04/2013 e 13/09/2012, bem como os Acórdãos da R.G. de 10/06/2014, 10/07/2014 e 30/06/2016, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Estas posições assentam em pontos de vista muito positivos e o julgador, perante os argumentos bem construídos, a favor duma ou doutra posição, tem de fazer uma opção que nem sempre é fácil.
Assim é que se a posição que defende que o direito a investigar a paternidade é imprescritível, sendo injustificada qualquer limitação temporal, considerando que o direito ao reconhecimento da filiação biológica (ou natural) é pessoalíssimo, incluindo o direito à identidade genética, sendo irrepetível e com dimensão permissiva alcançar a “história” e identidade próprias, já que aquele factor genético condiciona a personalidade e por isso estriba-se na protecção de um direito fundamental constitucionalmente consagrado como de identidade pessoal previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que adquire a dimensão de desenvolvimento da personalidade e um relevante valor social e moral. Nessa medida e para quem defende esta posição o direito a investigar a paternidade seria assim imprescritível, sendo injustificada qualquer limitação temporal que equivaleria à limitação de um direito de personalidade pois que o conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de auto-definição individual, permitindo ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afectiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como salienta Guilherme de Oliveira, “saber quem sou exige saber de onde venho” (“Caducidade das acções de investigação”, pág. 51).
No entanto, desde já adiantamos, não é esta a posição que perfilhamos!
E, desde já, passamos a explicar porquê:
Impõe-se, no entanto, e para a melhor perceber a questão aqui em causa e justificar a nossa opção, explicar a evolução legislativa ao nível do supra citado dispositivo e que prevê a existência de prazos de caducidade, agora sujeita ao regime recentemente imposto pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, questão essa que não é nova.
Na verdade, e pese embora com referência à redacção do artigo 1842.º dada pela Lei n.º 21/98, de 12 de Maio (anterior por isso à agora em vigor), a caducidade do direito de impugnar a paternidade (ou de a investigar como in casu sucede) mereceu longo tratamento jurisprudencial, acabando por ser julgada (ainda que com um voto de vencido do Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira), no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 609/2007, de 11 de Dezembro, a inconstitucionalidade da norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de impugnação da paternidade, um prazo de um ano a partir da maioridade ou emancipação, ou posteriormente, dentro de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.
Escreveu-se, então, nesse acórdão:
«São conhecidas as razões que se costumam invocar para justificar a caducidade da acção de impugnação da paternidade presumida: o perigo do enfraquecimento das provas e o dano resultante de uma insegurança prolongada em matéria tão sensível. No que se refere, especialmente, à impugnação da paternidade do marido, avulta uma outra razão, como seja, a protecção da família conjugal.
E, nesta sede, vincando, a possibilidade de, contrariamente ao defendido, no que concerne à caducidade do direito de investigar a paternidade, as pretensões de constituição de vínculos novos poderem merecer um regime diferente da pretensão de impugnar vínculos existentes, defendem os mesmos Ilustres Autores citados (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., pp. 139 e seguintes) que, as razões que levam a defender a imprescritibilidade das acções de investigação não parecerão tão líquidas para as acções de impugnação.
Assim, no que concerne a estas acções, pode-se ler que “se me parece hoje claro que a investigação da paternidade deve ser imprescritível, não me parece tão líquido que a impugnação da paternidade (do marido ou do perfilhante) deva ser assim tão livre”, na medida em que “as impugnações agridem um estado jurídico e social prévio, que pode ter uma duração e uma densidade consideráveis” (ob. cit., pp. 139-140).
No entanto, atento o disposto no artigo 1859.º, verifica-se que a impugnação da perfilhação obedece a um regime totalmente diverso, concedendo legitimidade para agir não só ao perfilhante e perfilhado mas também a qualquer pessoa que tenha interesse moral ou patrimonial na sua procedência e ao Ministério Público. Estabelece-se, ainda, o regime de imprescritibilidade para essa impugnação que pode ser intentada a todo o tempo, mesmo depois da morte do perfilhado.
As razões apontadas no sentido da imprescritibilidade das acções de investigação da paternidade ou maternidade não são, sem mais, inteiramente transponíveis para as acções de impugnação. (…)
Com efeito, no caso sub judicio, estamos perante uma acção de impugnação da paternidade (e não uma acção de investigação) que pode ser intentada, como vimos, não só pelo filho mas também pela mãe e pelo marido da mãe, sujeita a um prazo de caducidade que já não é determinada por factos estritamente objectivos (tal como a maioridade ou emancipação do investigante) mas também por um elemento subjectivo – conhecimento pelo filho ou marido da mãe de circunstâncias susceptíveis de indiciar a inexistência de vínculo biológico.
Não tem o regime legal da caducidade, porém, sido isento de críticas. A propósito do mesmo, por exemplo, escreveu Guilherme de Oliveira o seguinte:
“(…) os prazos estabelecidos no direito português deveriam ser mais longos. A decisão de impugnar é fundamental e difícil para qualquer um dos titulares: o marido desencadeia ou ratifica a desagregação familiar; a mulher faz o mesmo e assume publicamente a violação da fidelidade conjugal; o filho decide com base em factos que chegam ao seu conhecimento por interpostas pessoas, anos depois do seu nascimento, com a agravante possível de algumas relações subsistentes com o marido da mãe lhe tolherem a vontade.
Além disto, a perempção devia ceder perante alterações excepcionais e graves da vida familiar que tornassem injusta e inútil a subsistência do vínculo: a prática de ofensas muito graves contra o marido, imputáveis ao filho, que afectassem desesperadamente a relação paternal, ou a ocorrência de outros factos ponderosos tais que a manutenção do vínculo acabasse por ser gravemente lesiva dos interesses do filho” (Critério…, cit., pág. 390).
No estabelecimento de prazos curtos, no que diz respeito à acção da mãe e do marido desta acarreta tem, no entanto, sido vista a vantagem de tutelar os interesses do próprio filho em não ver indefinidamente pendente o risco de afastamento da presunção legal de paternidade. (…)
… o “direito fundamental à identidade pessoal” e o “direito fundamental à integridade pessoal” ganhando uma dimensão mais nítida, como, ainda, “o direito ao desenvolvimento da personalidade”, leva, em si, a que não se coloquem desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais consubstanciados na aludida identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, pelo que as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil estão, outrossim para a disposição contida no artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código.
Não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições.
A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade, tal como se prefigura na norma em apreço, para as acções de estabelecimento de filiação.
Com efeito, como bem acentua o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto na sua alegação, “o único interesse que poderia invocar-se em contraponto ao direito fundamental do filho a conhecer e determinar juridicamente a sua verdadeira paternidade biológica seria o da ‘harmonia’ e estabilidade da vida e da família conjugal.”
Tal interesse não poderá, no entanto, prevalecer, face ao princípio da proporcionalidade, pois que tais limitações específicas ao direito de agir contra supostos progenitores casados (ao tempo do nascimento ou apenas no momento do reconhecimento), embora com antecedentes no nosso sistema jurídico, traduzem-se em efeitos discriminatórios, constitucionalmente vedados, contra os filhos concebidos fora do casamento.
(…)
Consequentemente, quer no plano da sua justificação, quer no plano dos seus efeitos, a solução em causa não pode hoje ser constitucionalmente admissível por se revelar desproporcionado, violando também o disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa».
Porém, há que atender à circunstância do mesmo Tribunal Constitucional (v.g., no Acórdão n.º 179/10, de 12 de Maio), ter vindo a julgar não inconstitucional a norma que prevê o prazo de caducidade da acção de impugnação de paternidade quanto intentada pelo marido [alínea a) no n.º 1 do artigo 1842.º]. Aí esgrimiram-se os seguintes argumentos:
«Entendeu-se, em suma, conferir adequado relevo à diferença que existe entre a investigação de paternidade, em que está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação de paternidade, em que o que importa é a definição do estatuto jurídico do impugnante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal. Assim, visto que o prazo do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil para a impugnação da paternidade por parte do pai presumido se conta a partir de um facto subjectivo (o «conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade»), considerou-se ser este um prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de impugnar.
Importa assim sublinhar, na esteira da jurisprudência já citada, a diferença de situações que ocorre entre o caso agora em presença e aquele que foi tratado Acórdão n.º 609/07: por um lado, o direito do filho a conhecer a sua filiação biológica; por outro, o direito do progenitor registado à auto-conformação da identidade, quando este tenha motivos para duvidar da sua paternidade biológica e pretenda esclarecer a sua posição social e jurídica em relação ao filho presumido.
Por todo o exposto, aderindo à jurisprudência fixada no Acórdão n.º 589/07, já referido, considera-se que o prazo definido no artigo 1842º n.º 1 alínea a) do Código Civil para a impugnação da paternidade por parte do pai presumido, é um prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de acção».
Tendo presente o conflito jurisprudencial deixado transcrito, tendemos a concordar com aqueles que entendem que a Constituição não impõe necessariamente a imprescritibilidade do direito de impugnar a paternidade na esteira dos argumentos acolhidos reiteradamente pelo Tribunal Constitucional (ver, entre muitos, os acórdãos n.ºs 587/07; 445/2011, de 11/10/2011; 446/2011, de 11/10/2011; 476/2011, de 12/10/2011; 545/2011, de 16/11/2011 e 106/2012, de 06/03/2012 e 247/2012 de 22/05/2012, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.) que se harmoniza, aliás, com a posição que vem sendo adoptada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), seguindo a rota traçada pelo legislador ordinário que estabeleceu limites temporais à propositura das referidas acções.
Neste contexto, a caducidade enquanto figura extintiva de direitos, pelo seu não exercício em determinado prazo, procura satisfazer os interesses da certeza e estabilidade das relações jurídicas, os quais exigem a sua rápida definição, impulsionando os titulares dos direitos em presença a exerce-los num espaço de tempo considerado razoável, sob a cominação da sua extinção.
E isto porque é do interesse público que se estabeleça o mais breve que seja possível a correspondência entre a paternidade biológica e a paternidade jurídica, fazendo funcionar o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante o maior tempo possível a vida dos seus sujeitos. O meio para tutelar estes interesses atendíveis, públicos e privados (segurança para o investigado e sua família) ligados à segurança jurídica é precisamente a consagração de prazos de caducidade para o exercício do direito em causa. Esses prazos funcionam como um meio de induzir o titular do direito inerte ou relutante a exercê-lo com brevidade, não permitindo um prolongamento injustificado duma situação de indefinição, tendo desta forma uma função compulsória, pelo que são adequados à protecção dos apontados interesses, os quais também se fazem sentir nas relações de conteúdo pessoal, as quais, aliás, têm muitas vezes, como sucede na relação de filiação, importantes efeitos patrimoniais.
Estes princípios são merecedores de tutela constitucional – interesse público na certeza e segurança jurídica – sempre presente em toda a regulamentação jurídica e intimamente ligado à consagração de qualquer prazo para o exercício de um direito (cfr. o artigo 20.º da CRP). Ou seja a protecção do direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no citado artigo 26.º, n.º 1, da CRP, não exige a imprescritibilidade das acções de investigação e de impugnação paternidade. O que é necessário é que o prazo concedido não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e ponderado desses direitos – não os dois anos inicialmente contemplados, mas os dez anos. O Ac. do STJ de 29/11/2012, a que acima se aludiu, não deixa, igualmente, de realçar, neste ponto essencial, o vertido no acórdão n.º 247/2012, de 22/5/2012 que o novo regime resultante da redacção introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 01.04, alia a previsão do prazo previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil – um prazo geral de 10 anos, contados a partir do facto objectivo – a maioridade do investigante – com prazos especiais, contados a partir de factos subjectivos, dependentes do conhecimento dos factos motivadores da propositura de uma acção de investigação. Esse prazo garante – na normalidade das coisas – ao pretenso filho o tempo de reflexão necessário para decidir sobre a eventual propositura da acção de investigação. Não obstante, o regime de prazos instituídos pela citada Lei n.º 14/2009 prevê ainda prazos especiais, que apenas começam a contar a partir da data do conhecimento dos factos que possam constituir o fundamento da acção de investigação. Esses prazos de três anos, contam-se a partir da ocorrência de um dos seguintes eventos, previstos nas várias alíneas do n.º 3 do artigo 1817.º, a saber: a) ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a paternidade ou maternidade do investigante; b) ter o investigante tido conhecimento, após decurso do prazo previsto no nº 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a ação de investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso progenitor; c) em caso de inexistência de maternidade ou paternidade determinada, ter o investigante tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem a investigação.
O aludido prazo de dez anos tem, pois, vindo a ser considerado razoável pelo Tribunal Constitucional e não contraria a jurisprudência do Tribunal dos Direitos do Homem cujo critério de julgamento é o de que os prazos não sejam impeditivos da investigação e não criem ónus excessivos em termos probatórios para as partes – ver o acórdão n.º 247/2012, de 22.05.2012 do Tribunal Constitucional, fazendo-se alusão ao acórdão n.º 401/2011 (reproduzidos no acórdão do STJ de 09.04.2013), onde se escreve que o Tribunal Constitucional reconheceu no citado aresto interesses gerais ou valores de organização social em torno da instituição familiar que podem justificar a consolidação definitiva na ordem jurídica de uma paternidade, porventura não correspondente à realidade biológica, a partir do decurso de um determinado lapso de tempo. Nessa situação estarão os interesses da segurança e da certeza jurídicas respeitantes ao comércio jurídico em geral, que exigem a estabilização das relações de filiação já estabelecidas. Os referidos valores exigem que as relações de parentesco sejam dotadas de estabilidade, impondo-se aos interessados o ónus de agirem rapidamente, de forma a clarificarem as relações de parentesco existentes. Tais considerações mantêm toda a validade nos casos em que ocorreu posse de estado. E, assim, é uma opção válida do legislador pretender a segurança jurídica. Acrescenta que é também essa a exigência mínima que decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que aceita a sujeição das acções de estabelecimento da filiação ao cumprimento de determinados pressupostos, entre eles a exigência de prazos, desde que não se tornem impeditivos do uso do meio de investigação em causa, ou representem um ónus exagerado (assim, se referiu no caso Mizzic, Malta). A existência de um prazo limite para a instauração duma acção de reconhecimento judicial da paternidade não é, só por si, violadora da Convenção, importando verificar se a natureza, duração e características desse prazo resultam num justo equilíbrio entre o interesse do investigante em ver esclarecido um aspecto importante da sua identidade pessoal, o interesse do investigado e da sua família mais próxima em serem protegidos de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima ocorridos há já muito tempo, e o interesse público da estabilidade das relações jurídicas – o que é sustentado pela jurisprudência do TEDH.
Desta forma, através da conciliação do prazo geral de dez anos com estes prazos especiais de três anos, o actual regime de prazos para a investigação da filiação mostra-se suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real possibilidade de exercício do seu direito.
Cremos, assim, que o artigo 1817.º, nºs 1 e 3, do Código Civil não viola o direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º da Constituição da República, nem é desproporcional e, por isso, não viola os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao direito a constituir família (cfr. artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1, da CRP).
Resulta, assim, da conjugação dos artigos 1817.º, n.º 1 e 1873.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1/4, que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, estabelecendo-se no n.º 3 do citado artigo 1817.º um conjunto de situações em que, excepcionalmente, se admite a investigação para além do prazo geral de dez anos que está fixado no n.º 1 de tal preceito legal.
Vejam-se também, neste mesmo sentido – ou seja, da norma constante dos nºs 1 e 3 do artigo 1817.º do CC, relativa aos prazos aí fixados, não ser inconstitucional – os Acórdãos do TC n.º 1000/14, de 18/05/2016 e n.º 394/2019, de 3/7/2019, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional,pt., bem como, entre outros, os Acórdãos do STJ de 3/5/2018, 5/6/2018, 7/11/2019, 10/12/2019 e 24/11/2020 e, ainda, os Acórdãos desta Relação de 21/4/2016, 14/9/2017, 28/9/2017 e 11/1/2018 (este último em que o signatário interveio na qualidade de 2º Adjunto), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Pelo exposto, atentas as razões e fundamentos acima explanados, forçoso é concluir que os prazos a que aludem os nºs 1 e 3 do artigo 1817.º do Código Civil, para a propositura da acção de investigação de paternidade, não são inconstitucionais e, por via disso, mostra-se verificada a excepção de caducidade do direito de acção invocada pelo Réu, o que, inexoravelmente, acarreta, também por esta via, a improcedência da presente acção interposta pelo Autor.
Nestes termos, resulta claro que a sentença recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, julga-se improcedente, por não provada, esta acção, absolvendo-se o R. do pedido.
Face à procedência desta segunda questão recursiva fica prejudicada o conhecimento e apreciação da terceira questão suscitada pelo R., ora apelante.
***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)
***

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pelo R. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida nos exactos e precisos termos supra explanados.
Custas pelo A., ora apelado, em ambas as instâncias (cfr. artigo 527.º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
Évora, 02 de Março de 2023
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Anabela Luna de Carvalho (revendo a minha posição doutrinária e jurisprudencial anterior)



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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, págs. 286 e 299).