Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
327/14.4TBABF.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR NEGLIGÊNCIA MÉDICA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O lesado por tratamento dentário defeituoso considera-se indemnizado dos danos patrimoniais daí resultantes se o lesante e a sua seguradora de responsabilidade civil suportarem o custo de novo tratamento dentário, realizado por terceiro, que produza o resultado pretendido.
2 – Nessas circunstâncias, atribuir-se ao lesado, cumulativamente, uma indemnização de montante equivalente ao preço que ele pagou pelo tratamento defeituoso, bem como às despesas de deslocação entre a sua residência (na Irlanda) e o consultório do lesante (em Portugal), violaria o disposto nos artigos 562.º e 566.º, n.º 2, do Código Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 327/14.4TBABF.E1

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(…) propôs a presente acção declarativa comum contra Dr. (…), Unipessoal, Lda. e (…), pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhe: A) A título de danos patrimoniais, a quantia de € 55.700,00, referentes à remoção e colocação de novos implantes e de exames efectuados e pagamento de todos os exames que a autora venha a realizar para controlar o estado dos implantes que possui e todas as despesas de deslocação e alojamento que efectuou a Portugal; B) € 12.500,00 a título de danos não patrimoniais; C) As despesas que a autora for obrigada a suportar, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos, que, por não se encontrarem ainda apuradas, devem ser consideradas em liquidação de sentença, ou as apresentadas pela autora até ao encerramento da audiência; D) Juros vencidos e vincendos, à taxa legal.

O réu (…) contestou, concluindo no sentido da sua absolvição do pedido. Pediu ainda a condenação da autora em multa e indemnização no montante de € 40.000,00 por litigância de má-fé. Requereu, finalmente, a intervenção acessória de AXA Portugal, Companhia de Seguros, S.A..

Na réplica, a autora, além do mais, ampliou o pedido, nos seguintes termos: A) Despesas médicas e de tratamento após 18.02.2014: € 500,00; B) Despesas de tratamento orçamentadas: € 29.800,00; C) Danos não patrimoniais sofridos após 18.02.2014: € 2.500,00; D) Valores devidos pela eliminação ou correcção da cicatriz da face da autora, só quantificável após a sua remoção ou correcção. Esta ampliação do pedido foi admitida.

Foi proferido despacho admitindo a intervenção passiva, mas a título principal, da AXA Portugal, Companhia de Seguros. S.A., actualmente AGEAS PORTUGAL – Companhia de Seguros, S.A..

A chamada contestou, concluindo no sentido da sua absolvição do pedido.

Teve lugar audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou:

A) Os réus Dr. (…), Unipessoal, Lda. e (…), solidariamente, a pagarem à autora, por danos patrimoniais, uma indemnização no montante de € 4.862,00;

B) A ré AGEAS PORTUGAL – Companhia de Seguros, S.A., a pagar à autora:

- Por danos patrimoniais, uma indemnização no montante de € 43.758,00 acrescida de juros legais após a citação, além da quantia, a liquidar, necessária à realização de procedimento de remoção da cicatriz da hemiface direita;

- A título de danos não patrimoniais, uma indemnização no montante de € 12.500,00 acrescida de juros legais contados desde o dia seguinte ao da notificação da sentença.

A ré AGEAS PORTUGAL – Companhia de Seguros, S.A. recorreu da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. Entende a ora recorrente que a Mm.ª Juiz do tribunal a quo apreciou de forma incorrecta a prova produzida, pelo que não deveria ter sido considerado provado o facto elencado sobre o número 60.

B. A ora recorrente não vislumbra como pôde o tribunal a quo ter considerado que resultou da prova produzida que a ora recorrida tenha gasto em deslocações e alojamento em Portugal o montante de € 5.000,00, porquanto não foi feita qualquer prova, nem documental nem testemunhal, nesse sentido.

C. Assim, deve ser alterada a matéria de facto considerada como provada, designadamente, o supra referido número 60, considerando-se o mesmo, na parte referente aos gastos da ora recorrida com deslocações e alojamento em Portugal, como não provado.

D. De qualquer forma, mesmo que tal montante tivesse resultado provado dos presentes autos, tal montante nunca deveria ter sido considerado pelo tribunal a quo como um dano patrimonial.

E. O tribunal a quo, ao decidir condenar a ora recorrente a pagar à ora recorrida o montante despendido com a realização do primeiro tratamento, no valor de € 12.500,00, e com as alegadas despesas decorrentes desse mesmo tratamento, no valor (não provado) de € 5.000,00, não fez uma correcta aplicação das normas de direto aplicáveis ao caso concreto.

F. Entende a ora recorrente, com o devido respeito, que o tribunal a quo não fez uma correta interpretação e aplicação das normas expressamente consagradas nos artigos 483.º, 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil.

G. De facto, o valor de € 12.800,00, alegadamente pago pela ora recorrida ao réu Dr. (…), e o valor de € 5.000,00, alegadamente despendido com deslocações e alojamento em Portugal, não são danos patrimoniais decorrentes do acto lesivo.

H. Os valores supra referidos são, tão só e apenas, um custo que a ora recorrida decidiu ter, não estando a ora recorrente obrigada a reconstituir a situação da ora recorrida como se o tratamento não tivesse acontecido, mas sim como se os danos não se tivessem verificado.

I. Assim, a indemnização a atribuir a título de danos patrimoniais não deve exceder o valor de € 30.820,00 (correspondente ao montante da condenação inicial subtraído dos valores de € 12.800,00 e € 5.000,00 – que, insista-se, não são danos patrimoniais).

J. Relativamente ao que aos danos não patrimoniais diz respeito, também o montante indemnizatório atribuído deve ser reduzido, porquanto o mesmo foi fixado excessivamente e afigura-se manifestamente exagerado perante os danos que resultaram provados.

K. De facto, deve ter-se em conta, na atribuição do montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais, um conjunto de factores do caso em concreto e não apenas e tão só o sofrimento da ora recorrida em termos gerais e a frustração da confiança depositada no réu médico.

L. Importa especificar em concreto em que se traduziu o sofrimento da autora.

M. Assim, resta concluir que o montante atribuído a título de danos não patrimoniais, além de exagerado, não se encontra devidamente fundamentado.

N. O artigo 496.º do Cód. Civil estipula no seu nº 1 que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”.

O. Pelo supra exposto, deverá ser atribuída uma indemnização à ora Recorrida a título de danos não patrimoniais, mas nunca fixados no valor de € 12.500,00.

P. Face a tudo quanto ficou exposto, a ora apelante pugna pela alteração da matéria de facto considerada como provada.

Q. Pugnando igualmente pela alteração do montante indemnizatório fixado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, por terem sido atribuídos valores indemnizatórios excessivos.

A recorrida contra-alegou, concluindo que:

1 – O recurso deverá ser rejeitado por extemporaneidade, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 638.º, conjugado com o disposto no n.º 7 do mesmo artigo, bem como com o disposto no n.º 1 do artigo 640.º, todos do CPC;

2 – Deverá ser rejeitada toda a impugnação da decisão proferida em 1.ª instância sobre a matéria de facto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 640.º, por incumprimento do ónus constante das alíneas a), b) e c) desse preceito legal;

3 – Caso assim não se entenda, deverá o recurso ser julgado improcedente, por todos os motivos expostos, quanto ao mérito dos argumentos aduzidos em sede de alegações.

O recurso foi admitido.

Esta Relação proferiu acórdão que, após julgar o recurso tempestivo, ordenou a baixa dos autos à 1.ª instância para que a Sra. Juíza que proferiu a sentença recorrida procedesse à reformulação desta indicando o ou os meios de prova com base nos quais julgou provado que, com deslocações e alojamento em Portugal, a recorrida despendeu a quantia de € 5.000 (ponto 60 da matéria de facto provada), analisando-os criticamente nos termos estabelecidos no n.º 4 do artigo 607.º do mesmo código.

O tribunal a quo procedeu conforme ordenado, tendo os autos subido novamente ao tribunal ad quem.


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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Inclusão, nos danos patrimoniais, do valor pago pela recorrida ao réu (…) como contrapartida pelo tratamento dentário por este efectuado;

3 – Inclusão, nos danos patrimoniais, do valor despendido pela recorrida com deslocações e alojamento em Portugal;

4 – Avaliação dos danos não patrimoniais.


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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

Do Dr. (…) e da Dr. (…), Lda.:

1. (…) é médico dentista com a cédula profissional n.º (…), da Ordem dos Médicos Dentistas, exercendo actividade na clínica que gira sob o nome comercial de “Instituto …” (art. 24.º, parte, da contestação de …).

2. É a Dr. (…), Unipessoal, Lda., gerida pelo réu, seu único sócio, que explora o (…) – Instituto (…) – fls. 281/178 (art. 47.º da petição inicial).

3. A Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P., atribuiu a licença n.º (…) ao (…) – Instituto (…), tendo como director clínico o Dr. (…), e tem como morada a Rua (…), Edifício (…), n.º (…), 8200-276 Albufeira – fls.191 (art. 48.º da petição inicial).

4. A Entidade Reguladora da Saúde, no âmbito das suas competências, identifica como “Prestadores” a entidade “Instituto (…) – Dr. (…), Unipessoal, Lda.” – fls. 193 (arts. 49.º e 50.º da petição inicial).

5. O réu (…) não controla o processo de fabrico do material usado no exercício da sua actividade (art. 21.º da contestação de …).

Da relação entre a autora e os réus:

6. No dia 19 de Setembro de 2009, (…), a autora, que vive na Irlanda, deslocou-se a Portugal e dirigiu-se à consulta do Dr. (…), na Rua (…), Ed. (…), loja …, 8200-276 Albufeira, no Instituto (…), para obter um esclarecimento especializado sobre os problemas dentários de que padecia. Este contacto ocorreu na sequência de um seu familiar ter consultado o mesmo médico dentista e foi também motivado pelo preço mais acessível praticado em relação aos praticados na Irlanda (arts. 1.º da petição inicial, 24.º da contestação de … e art. 5.º do Código de Processo Civil).

7. Após a consulta de observação e diagnóstico inicial, onde se efectuou a história clínica da paciente, o médico dentista requisitou os exames imagiológicos necessários (ortopantomografia e TAC da maxila e mandíbula com cortes de 1mm) (arts. 2.º da petição inicial e 25.º da contestação de …).

8. Ao tempo, a autora tinha na arcada superior os dentes 17 e 26, restaurados, apresentando-se desdentada a restante arcada superior. Havia perda de osso alveolar, por perda de periodonto em relação a cada um dos dentes. Na arcada inferior, tinha os dentes 35, 32, 31, 43, 44 e 47. Os dentes 35, 44, 47, 32 e 31, restaurados; o dente 35 com perda de osso alveolar e o 47 com alteração na sua posição intraarcada pela mesialização do mesmo por ausência do dente 46 muito tempo antes do exame – fls. 736/737. Usava prótese parcial removível acrílica superior e inferior – fls. 737/738.

9. Após analisar a situação clínica da autora, o médico dentista deu parecer positivo ao que a mesma lhe solicitara: a colocação de implantes dentários e reabilitação protética (art. 3.º da petição inicial e art. 5.º do Código de Processo Civil).

10. Os implantes dentários são dispositivos médicos previamente elaborados (art. 35.º da contestação de …). Os implantes escolhidos para o procedimento foram nobel replace (art. 37.º da contestação de …). A (…) define-se a si própria no site respetivo como líder mundial no campo das restaurações dentárias implanto-suportadas inovadoras para todas as indicações, desde um caso unitário até arcadas completas (art. 36.º (segundo) da contestação de …).

11. O plano de tratamento de fls. 148 junto pelo réu descreve uma série de procedimentos que terão incidido (cfr. o tempo verbal usado, em vez do futuro do modo indicativo), tanto na arcada superior como na arcada inferior, na sua total extensão:

- Não faz menção à paciente, ora autora, não menciona o nome desta ou qualquer dado identificador do paciente em causa;

- Não é feita referência à higiene oral;

- Não tem aposta data nem está assinado pelo responsável pela sua elaboração;

- Está redigido em língua portuguesa, idioma que a autora não domina nem percebe (arts. 48 a 53.º da réplica).

12. O procedimento de colocação dos implantes dentários seria sequencial e entre as várias fases a autora regressaria ao seu país de origem, o que foi explicado à autora (arts. 4.º da petição inicial e 26.º e 29.º da contestação de …).

13. Na mandíbula usaria uma prótese removível até ao momento da integração, quando se realizaria uma ponte provisória aparafusada cimentada de arcada inteira como transição para as pontes definitivas e coroas para os segmentos edentulos na mandibula (art. 38.º da contestação de …).

14. O réu também colocaria uma prótese temporária removível na maxila inicialmente e, à medida que que o plano de tratamento fosse decorrendo, esta seria rebasada e ajustada, até ao momento em que fosse possível passar à fase protética, onde seriam então usada uma prótese provisória retida pelos implantes dentários osteointegrados na arcada superior (artigo 39.º da contestação de …).

15. No dia 9 de Novembro de 2009, a autora veio a Portugal para colocar 6 implantes endoósseos osteointegrados na maxila – fls. 751 (arts. 6.º da petição inicial e 41.º da contestação de …).

16. No dia 16 de Dezembro foi realizada a segunda cirurgia, com a colocação de 5 implantes endósseos osteointegrados na mandíbula – fls. 741, linha 26; 751 (arts. 6.º da petição inicial e 41.º da contestação de …).

17. O réu não planeou as posições anatómicas da colocação dos implantes (fls. 739, linha 20), não tendo sido apresentadas pelo mesmo as guias cirúrgicas para a colocação dos implantes de acordo com as respetivas posições anatómicas superior e inferior – fls. 740, linha 1. O tempo inicialmente previsto de 18 meses para a reabilitação intraoral com implantes endoósseos é excessivo, segundo a leges artis – fls. 741, linha 12.

18. A distribuição dos implantes em ambas as arcadas não obedeceram a um critério biológico de forma a respeitar este princípio na reabilitação protética, tendo em conta que a autora possuía dentes em ambas as arcadas dentárias. O implante colocado na posição alveolar compatível com o dente 23 foi colocado numa posição muito para vestibular no sentido vestíbulo-palatino o qual contribui, por si só, para uma perda de osteointegração – fls. 727, linha 11 e fls. 730, linha 11.

19. As moldagens iniciais ou preliminares são efectuadas para obtenção das próteses provisórias que iriam ser colocadas no procedimento cirúrgico, por forma a estabelecer a função e estética adequadas. Estas próteses dentárias são elaboradas pelo técnico de prótese dentária, com base no molde obtido, e depois colocadas em boca (art. 34.º da contestação de …).

20. (…) enviou o molde da dentição (modelos de estudo em gesso) da autora para o laboratório de próteses para este criar as próteses. Contudo, o talhe não obedecia aos critérios de preparação dentária para reabilitações fixas – ausência de critérios de preparo incluindo ausência de convergência do talhe para oclusal e ausência de critérios de preparo a nível oclusal – fls. 739, linha 14 (art. 5.º da petição inicial).

21. Houve nova consulta no dia 10 de Fevereiro de 2010 para seguimento higienização – controlo de cicatrização e higiene oral; moldagem em silicone de adição para próteses fixa superior implantodentosuportada. Nessa altura, o autor detetou nos implantes na região dos dentes 13 e 23 alterações na osteointegração. De facto, pelo menos num dos implantes da arcada superior havia ausência de osteointegração – fls. 742, linha 21 e rx de fls. 746 (note-se que os anexos 3 e 4 correspondem ao mesmo rx, invertido – fls. 746, linha 7). Ainda assim, mantiveram-se as próteses prostodônticas (arts. 43.º, 44.º e 46.º da contestação de …).

22. No dia 24 de Fevereiro de 2010, houve nova consulta para higienização – controlo de cicatrização e higiene. Entrega e colocação em boca de prótese temporária fixa superior, tendo o réu anotado que os implantes 13 e 23 ainda não apresentavam o mesmo nível de osteointegração e por isso não foram colocados em carga nesta fase – fls. 745, linha 1. Não houve tratamento perante o diagnóstico de ausência de osteointegração – fls. 745, linha 11 (art. 47.º da contestação de …).

23. As próteses dentárias provisórias necessitaram de ajustes oclusais e no rebordo vestibular (art. 50.º da contestação de …).

24. Foi devido a uma discrepância de cerca de 1,5mm na oclusão (modo como a arcada superior encaixa na arcada inferior) e que motivou o desgaste que foi feito nas próteses com o objectivo de ficarem em consonância anatómica (art. 51.º da contestação de …).

25. Foi realizada nova consulta de controlo no dia 2 de Março de 2010 (art. 53.º da contestação de …).

26. Foi marcada nova consulta de avaliação para o dia 19 de Abril de 2010 (art. 54.º da contestação de …).

27. Como previsto, no dia 19 de Abril de 2010, a autora voltou a Portugal para consulta (arts. 7.º da petição inicial e 55.º da contestação de …).

28. Realizaram-se novas impressões para as próteses provisórias, que iriam fazer a transição para as definitivas (art. 9.º, parte, 10.º, 11.º, 13.º da petição inicial, e 62.º da contestação de …).

29. A autora retornou a Dublin (art. 14.º da petição inicial) e no dia 27 de abril, veio a Portugal para ajuste em boca e cimentação de prótese fixa implantodentosuportada inferior e ajuste de oclusal de próteses fixa superior. Usou-se uma ponte (…) acrílica fixa suportada pelos implantes e pilares (…) e ponte implantosuportada metaloacrílica. Tratou-se de colocação das próteses provisórias de transição das removíveis para as próteses definitivas. Não ficou marcada outra consulta, constituindo acto de omissão deixar dependente da paciente a marcação de novas consultas quando, segundo o réu, ainda estaria na fase provisória – fls. 746, linha 8 (arts. 15.º e 17.º da petição inicial e 63.º da contestação).

30. As duas reabilitações protéticas superior e inferior de resina acrílica não apresentam os critérios de estética adequados – fls. 743, linha 8 (arts. 21.º e 23.º da petição inicial).

31. A autora deixou de passar diariamente o fio dental (arts. 24.º e 25.º da petição inicial).

32. Desde a consulta em 27 de Abril de 2010 até 5 de Abril de 2011, não houve mais qualquer contacto com a paciente, nem foi marcada qualquer consulta (art. 67.º da contestação de …).

33. No dia 5 de Abril de 2011, a autora apresentou-se para consulta apenas motivada pela fractura de dentes da prótese (art. 69.º da contestação de …).

34. Foi constatado que o nível de higiene oral era muito pobre, devido ao facto de as próteses colocadas serem fixas e não permitirem a sua higienização As próteses provisórias foram removidas e reparadas (art. 70.º da contestação de …). Segundo o réu, mantinha-se a perimplantite (art. 73.º da contestação de …). O réu fixara as próteses, apesar dos sinais clínicos de perimplantite (art. 57.º da réplica).

35. A autora ficou com a ideia de que de que as próteses que colocara eram definitivas (art. 30.º da petição inicial) e sempre esteve presente em todas as consultas pedidas pelo réu (art. 59.º da réplica).

36. Durante o procedimento acompanhado pelo réu: a paciente nunca ficou sem dentes em boca (art. 52.º da contestação de …); a autora não informou de dores, sofrimento ou desconforto, ou que tivesse efectuado qualquer tipo de medicação anti-inflamatória ou analgésica. Não houve qualquer tipo de informação da toma de antidepressivos (art. 68.º da contestação de …).

37. Uma das advertências que os dentistas devem fazer aquando da colocação de implantes dentários é a necessidade da limpeza diária da boca com fio dental (art. 45.º da petição inicial).

38. Um dos pontos-chave da reabilitação com implantes prende-se com a higiene oral, e uma condição saudável do aparelho estomatognatico (arts. 27.º, 40.º e 74.º da contestação de …).

39. Outro ponto importante, e que no caso de pacientes residentes no estrangeiro, é a possibilidade do paciente estar disponível para ser observado e tratado nos prazos que se considerem exigíveis no contexto futuro. E que, poderia haver mais visitas do que as previstas, caso surgissem alterações no decorrer da reabilitação oral (art. 28.º da contestação de …).

40. Desde Abril de 2011 que a paciente não voltou a ser atendida no consultório do Dr. (...), por a mesma se ter recusado a fazê-lo, dadas as vicissitudes ocorridas em consequência do tratamento de que teve conhecimento total quando foi assistida na Irlanda por médico dentista, em Julho de 2011 (arts. 78.º e 79.º da contestação de …).

41. Em Julho de 2011, alguns dentes da prótese haviam-se partido, acabando mesmo por cair (arts. 26. e 31.º da petição inicial).

42. Após se verificarem as consequências da intervenção do réu, a autora ficou sem qualquer dente (art. 18.º da petição inicial).

Das comunicações:

43. Perante a situação, a autora enviou diversas mensagens por correio electrónico para o réu nos dias 11, 17 e 29 de Julho de 2011 – fls. 35-43 (repetido a fls. 287-295) e traduzidos a fls. 88-98 (repetidos a fls. 296-306) (art. 27.º da petição inicial).

44. Por email de 2 de Agosto de 2011, a 1.ª ré respondeu à autora, propondo melhorar os seus dentes acima dos implantes da (…) para (…), de um laboratório diferente e independente e sem custos, trataremos a situação dos implantes com a garantia (…), pagaremos as suas despesas com o voo e alojamento e, se desejar, providenciaremos um especialista diferente, também um conhecido professor universitário com uma pós-graduação na UCLA e doutoramento pela Universidade de Michigan. Também ficaríamos felizes de poder pagar pelas suas consultas e trabalhos na ponte que temporariamente solucionaram o seu problema (fls. 90), proposta que a autora recusou, por email de 15 de Agosto, alegando que devido à dor e sofrimento que eu enfrentei e à incompetência do vosso staff, não há maneira possível de eu voltar à vossa clínica ou alguma outra em Portugal para algum tipo de serviço que eu precise. Pediu o reembolso dos € 12.800,00 despendidos em Portugal. Em caso de recusa, adiantou que pediria em tribunal o montante de € 5.000,00 montante que custará colocar a minha boca saudável outra vez – fls. 93. Sem resposta, a autora voltou a enviar email no dia 4 de Setembro de 2011 – fls. 95 – de que obteve resposta o de dia 5 no qual a 1.ª ré solicitava que apresentasse a proposta por carta registada, a que não houve resposta da parte da primeira ré (arts. 34.º a 36.º da petição inicial e 80.º e 81.º da contestação de …).

45. No dia 26 de Julho de 2011, a autora foi consultada na Clínica (…), na Irlanda, tendo sido acompanhada pelo médico dentista e docente universitário na área, o Professor … (arts. 37.º e 38.º da petição inicial) e, numa segunda fase, pelo Dr. … (art. 38.º da petição inicial).

Da apreciação do trabalho do réu:

46. Na arcada superior, dois implantes tinham ausência de função e 5 com ausência de osteointegração; na arcada inferior, um com ausência de função e 2 com ausência de osteointegração – fls. 727, linha 1; linha 731, linha 18.

47. Na arcada superior, os dentes 17 (hemiarcada direita) e 26 (hemiarcada esquerda) apresentavam patologia cárie cavitada de envolvimento da totalidade da coroa anatómica e com tradução clínica ao nível da polpa dentária – fls. 727, linha 14. Na arcada inferior, os dentes 47, 44, 43 (hemiarcada inferior direita) e 35 (hemiarcada inferior esquerda) – fls. 727, linha 18. O dente 47 apresentava cárie coronária por mesial – fls. 727, linha 21. O dente 35 apresentava reação inflamatória crónica em consequência de processo canalar por necrose pulpar - fls. 727, linha 22; ainda https://www.123dentist.com/understanding-dental-lingo/, no que respeita à nomenclatura dentária que permite fazer correspondência entre o discurso constante no relatório pericial (que usa o sistema de notação FDI) e os documentos juntos subscritos pelos médicos irlandeses (que usam o sistema de notação de Palmer) e cuja tradução não reflete tal diferença quanto ao número dos dentes – cfr. fls. 51-56, 101-103 e 106-108; e rx de fls. 726.

48. As reabilitações protéticas colocadas pelo réu correspondem a reabilitação total superior e inferior implantosuportada e a “cobrir” os dentes superiores e inferiores presentes. O desenho de ambas as reabilitações a nível gengival não obedeceram ao princípio biológico de forma a permitir a higienização dos implantes, A arcada superior apresentou estado inflamatório generalizado da gengiva e acumulação de placa bacteriana causada pelo mau planeamento da reabilitação intraoral, incluindo o desenho da reabilitação protética – fls. 728, linha 15 e fotografias de fls. 729.

49. A prótese total superior, no maxilar, foi aparafusada em 4 implantes via parafusos temporários e anexada no sítio. Este modelo de prótese é projetado para ser usado como um dispositivo removível e jamais deve estar ligado aos implantes de forma permanente, como estavam. Assim, se um dispositivo destes é aparafusado na boca de um paciente, este não conseguirá limpar por dentro ou manter uma boa higiene oral.

50. Após remoção da prótese os molares superiores estavam com cáries abaixo da gengiva.

51. Ambas as próteses, seja no maxilar seja na mandíbula, eram consistentes com convencionais modelos removíveis e eram completamente inadequados para este caso. Ambas eram feitas de material de resina acrílica com um fio fortalecedor simples – fls. 65-67 e 68-82 (repetido a fls. 274-276 e 334-349), com tradução a fls. 101-103 e 106-108 (repetido a fls. 277-289 e 349) (arts. 43.º e 68.º da petição inicial).

52. A forma como foram colocadas as pontes – fixa e não removível – não permitiam a higienização dos tecidos orais (com ou sem uso de fio dental), o que causou diretamente as infeções, perimplantites (arts. 69.º e 70.º da petição inicial), com perda de osso em torno dos implantes (art. 71.º da petição inicial), e conduzindo a uma infeção generalizada da mucosa oral (art. 72.º da petição inicial).

53. O 2.º réu, ao contrário da imposição do princípio básico de tratamento de implantes, que é a remoção prévia de todas as fontes de infecção da boca do paciente, não tratou das infecções (arts. 73.º e 74.º da petição inicial).

54. A autora não recebeu qualquer autocolante identificativo dos implantes colocados. A autora não possui qualquer elemento identificativo dos implantes/próteses, que são essenciais para poder fazer a manutenção e /ou qualquer outro tratamentos a posteriori, pois só assim poderão ser identificados os materiais usados, e promover a aplicação do mesmo tipo de materiais e com o mesmo tamanho, evitando tratamentos invasivos que sem o documento identificativo (autocolante), são a única forma de saber qual o tratamento feito previamente (art. 75.º da petição inicial).

55. Após se verificarem as consequências da intervenção do réu, a autora ficou sem qualquer dente (art. 18.º da petição inicial).

Da cicatriz:

56. A autora apresenta uma cicatriz na zona anatómica em relação com o bordo inferior da mandíbula do lado direito na parte cutânea, o que lhe causa tristeza, embaraço e sofrimento (art. 83.º da petição inicial).

57. Esta cicatriz deveu-se à presença anterior de processo infeccioso com presença de fístula orofacial na zona identificada (dente 44) que a autora tentou tratar antes junto de médico de clínica geral, na Irlanda, por não ter associado a fístula a algum problema na boca, uma vez que ao tempo se queixava apenas da quebra das próteses – fls. 731, linha 11, e fotografia de fls. 731 (arts. 41.º, 84.º da petição inicial e art. 5.º do Código de Processo Civil).

58. O abcesso do dente pré-molar inferior direito foi a causa directa da secreção purulenta externa na pele da autora, que causou a cicatriz (art. 85.º da petição inicial).

59. A falha de tratamento das infeções resultou na cicatriz facial, a qual é possível remover, mas com custo não apurado. Foi fixado um dano estético de grau 1/7 tendo em conta a cicatriz e a dentadura removível agora usada pela autora – fls. 761 (arts. 86.º, 111.º e 124.º da petição inicial).

Dos danos:

60. A autora já suportou as seguintes despesas:

- Tratamento dentário prestado pelo réu, no montante de € 12.800,00;

- Deslocações e alojamento em Portugal, no montante de € 5.000,00;

- Tratamento dentário na Irlanda, no montante de € 620,00 (150,00 + 470,00) – fls. 44 (repetido a fls. 321), traduzido a fls. 111 (repetido a fls. 323); fls. 45 (repetido a fls. 322), traduzido a fls. 112 (repetido a fls. 324);

- Relatório médico do Professor (…) no montante de € 500,00 (art. 108.º da petição inicial).

61. O tratamento dentário orçamentado com vista a, dentro do possível, concretizar a reabilitação oral da autora, está orçado em € 29.700,00 (€ 26.700 + € 3.000), por parte de médico que exerce na Irlanda – fls. 354/355, traduzido a fls. 198 (repetido a fls. 356/357) (arts. 108.º, 109.º da petição inicial e 82.º da réplica).

62. O já mencionado tratamento dentário, iniciado na Irlanda e ainda não concluído, tem acarretado mais dores, incómodos e transtornos de várias ordens (art. 110.º da petição inicial).

63. A autora viveu meses com dores, edemas, abcesso e infeções (art. 113.º da petição inicial), que lhe causaram desconforto, incómodo refletindo-se, nomeadamente, em atividades como falar e comer, tendo sido fixado um quantum doloris de grau 2/7 e um prejuízo de afirmação pessoal de 1/5 e uma incapacidade permanente geral de 10 pontos, com incapacidade temporária geral total entre 9 e 15 de Novembro, 16 a 22 de Dezembro de 200[9] e 1924 dias de incapacidade geral parcial – fls. 760 (art. 114.º da petição inicial).

64. A autora sujeitou-se a uma cirurgia em que as suas gengivas foram cortadas e abertas, para remoção dos implantes inferiores, um procedimento evitável, não fora a conduta do 2.º réu (art. 115.º da petição inicial).

65. Toda esta situação causou abalo psicológico à autora, tendo mesmo tido crises de tristeza e ansiedade (art. 116.º da petição inicial), vivendo uma angústia (arts. 117.º a 119.º da petição inicial), o que fez com que a autora não se sentisse à vontade com outras pessoas (art. 120.º da petição inicial), retraindo-se de participar em atividades socias (art. 121.º da petição inicial).

66. Este sentimento de mau estar, embaraço e vergonha agudizou-se nas férias de 2013, pois a autora não tinha um conjunto de dentes num lado da boca (art. 122.º da petição inicial).

67. Dormia com dificuldade, pois todas estas situações causaram-lhe stresse (art. 123.º da petição inicial).

68. Os abcessos podem transformar-se em infecção perigosa para a vida – fls. 57-64 (repetido a fls. 265-272), traduzido a fls. 51-56 (repetido a fls. 259-264) (art. 127.º da petição inicial).

Das consequências do processo na esfera do réu:

69. Para preparar a contestação, o réu dispôs de tempo que poderia ter usado para trabalhar, no exercício da sua profissão (art. 93.º da contestação de …).

Do seguro:

70. O réu (…) tem a sua responsabilidade civil profissional transferida através de contrato de seguro (apólice n.º …) para a AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A. O capital garantido pela cobertura da Responsabilidade Civil Profissional é de € 300.000,00 por cada sinistro, sendo aplicável a franquia de 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, no mínimo de € 125,00 – fls. 146/453 a 462 (requerimento de intervenção provocada junto à contestação e art. 6.º da contestação da “Axa”).

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

- Que tenha sido entregue à autora o plano de tratamento de fls. 148, indicado como doc. 2 na contestação (art. 30.º da contestação de …).

- Que tivessem sido dadas todas as explicações ao longo do processo e que tivessem sido indicadas pelo réu datas para consultas subsequentes, além das indicadas acima (arts. 45.º e 46.º da contestação de …).

- Que a autora tivesse regressado a Portugal para outras consultas, além das já indicadas (art. 29.º da petição inicial).

- Que o réu tivesse proposto passar de novo para as próteses provisórias removíveis e tentar minorar os danos aos dentes pilares e implantes comprometidos e que tivesse sido a pedido da paciente que as próteses tivessem sido fixas (arts. 71.º e 72.º da contestação de …).

- Que o réu tivesse informado a autora de que as próteses e componentes eram provisórios e que teriam uso por “um curto e breve período de tempo” (art. 83.º da contestação de …).

- Que os serviços da ré tivessem comunicado à paciente por outra via que se apresentasse o mais rapidamente possível para consulta (arts. 75.º e 76.º da contestação de …).

- Que desde 27 de Abril de 2011, em consequência da situação relatada nos autos, o desconforto físico e psicológico causado à autora a tenham feito recorrer a medicamentos antidepressivos sob prescrição médica (arts. 22.º e 125.º da petição inicial).

- Que a infecção tivesse posto em perigo a vida da autora (art. 87.º da petição inicial).

- Que a autora tivesse temido pela sua vida (art. 127.º da petição inicial).

- Que a situação descrita tivesse tido como origem a conduta da autora quer quanto a hábitos de higiene quer quanto à frequência de consultas e que a imputação na presente acção ao réu tenha criado danos na confiança e reputação tanto do Instituto (…) e no trabalho desenvolvido pelo Dr. (…) com repercussões futuras no desenvolvimento da atividade (art. 92.º da contestação de …) e golpe para a autoestima e confiança profissional do Dr. (…); que o médico dentista tenha estado ausente do seu trabalho clínico uma semana, por motivos psicológicos ocasionados por este problema (art. 98.º da contestação de …).

- Que o gosto pessoal pela profissão, a sua confiança profissional e reputação perante a sociedade tenham sido completamente arrasadas por este processo (art. 99.º da contestação de …).

- Que a autora, com dolo, tenha omitido a ocorrência de factos relevantes para a decisão da causa (art. 101.º da contestação de …).

- Que o réu colabore de forma totalmente gratuita com a … (Associação da … do Algarve) sendo o dentista dos seus utentes desde 2006 (art. 95.º da contestação de …).

- Que o réu tenha trabalho solidário e social articulado com as instituições sociais e escolas do concelho, organizando acções de sensibilização e educação para a saúde oral desde 2004 (art. 96.º da contestação de …)

- Que o réu seja coordenador regional da ONG "(…)", que apadrinha jovens entre dos 11 e os 18 anos, e depois são acompanhados e tratados de todos os problemas de saúde oral nesse período de tempo, de forma também totalmente livre de custos (art. 97.º da contestação de …).


*


1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A recorrente sustenta que o ponto 60 da matéria de facto provada, no segmento em que dá como provado que a recorrida suportou despesas no montante de € 5.000,00 com deslocações e alojamento em Portugal, deve ser julgado não provado, por inexistência de meios de prova do mesmo.

O tribunal a quo, reconhecendo a inexistência de prova documental, formou a sua convicção exclusivamente com base nas regras da experiência, considerando, em síntese, o seguinte:

- A recorrida residia em Dublin, Irlanda, e deslocou-se 9 vezes a Albufeira, Portugal, por causa do tratamento dentário a que se submeteu;

- “Das pessoas ouvidas decorre que terá vindo de avião: não veio de carro, de autocarro ou de comboio, o que é compatível com a forma habitual através da qual as pessoas se deslocam na Europa, agora, como há 10 anos”;

- “Tendo em conta o número de viagens de avião, a necessidade de alojamento, pelo menos, por uma noite, a deslocação a Albufeira (cerca de 80 km a partir do aeroporto de Faro, ida e volta), a quantia enunciada não é exagerada, de acordo com as regras da experiência: em média, € 555,00 por viagem”.

A análise desta questão tem, como ponto de partida obrigatório, o disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil (CC): àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo. Cabia, pois, à recorrida o ónus da prova de que, como alegou no artigo 108.º da petição inicial, suportou uma despesa de € 5.000,00 em “deslocações e alojamento em Portugal”.

A primeira observação a fazer é a de que, logo em sede de ónus de alegação, a recorrida nem sequer discriminou quanto gastou com deslocações e quanto gastou com alojamento. Logicamente, não discriminou quanto lhe custou cada viagem, nem quanto lhe custou o alojamento de cada vez que esteve em Portugal para o tratamento dentário em questão. Não especificou que meio de transporte utilizou em cada viagem, nem a que tipo de alojamento recorreu e durante quantos dias. Limitou-se a alegar uma quantia como correspondendo ao somatório de uma multiplicidade de despesas que terá realizado.

No que concerne à prova das despesas em questão, a recorrida não apresentou um único documento. Ora, estamos perante despesas que, a terem sido realizadas, necessariamente deram origem a múltiplos documentos, nomeadamente bilhetes de avião e/ou outros meios de transporte que a recorrida tenha utilizado, recibos dos pagamentos efectuados e comprovativos de transferências bancárias ou de pagamentos com cartão de crédito ou de débito. Ainda que a recorrida já não tivesse os bilhetes de transporte e os recibos das quantias que pagou no momento da propositura da acção, ao menos documentos bancários comprovativos desses pagamentos poderia obter nessa altura, salva a hipótese, altamente improvável tendo em conta as regras da experiência, de ter pago a totalidade das despesas em causa em notas de banco. Portanto, é incompreensível que a recorrida não tenha apresentado prova directa, de natureza documental, das despesas em causa.

Mais, nem sequer prova indirecta a recorrida apresentou. Por exemplo, poderia ter obtido e apresentado uma tabela de preços de viagens de avião (admitindo que foi esse o meio de transporte por ela utilizado) entre Irlanda e Portugal na época em que o tratamento dentário foi realizado. Já seria um princípio de prova que, complementado com prova testemunhal, poderia fornecer uma base minimamente segura para o apuramento do custo aproximado das despesas com viagens (mas não com alojamento, como é óbvio). Porém, nem isso a recorrida fez. Em vez disso, após a deficiente alegação que acima descrevemos, a recorrida não cuidou, pura e simplesmente, de fornecer qualquer meio de prova das despesas em questão.

É certo que se provou que a recorrida residia na Irlanda e que o tratamento dentário ocorreu em Portugal, pelo que, obviamente, ela teve de se deslocar entre os dois países. Porém, a prova do montante que a recorrida despendeu nessas viagens, bem como no alojamento na hipótese de este último ter sido oneroso (não está excluído que a recorrida tenha ficado em casa de familiares ou amigos, por exemplo), é questão diversa. Da realização de deslocações não pode, sem mais, concluir-se que as mesmas, bem como um alojamento que nem sequer se sabe onde e em que circunstâncias ocorreu, implicaram o dispêndio de uma quantia determinada. Certamente as deslocações tiveram custos. O mesmo pode ter acontecido relativamente ao alojamento. Todavia, nem sequer com recurso ao disposto no artigo 566.º, n.º 3, CC – norma que o tribunal a quo não invocou, saliente-se – é legítimo chegar-se ao valor alegado pela recorrida e julgado provado na sentença. Mesmo o julgamento com base na equidade nos termos ali admitidos tem de se basear em meios de prova, ainda que dos mesmos não resulte o valor exacto dos danos. É o que resulta da parte final da norma. Ora, no caso dos autos, aquilo que temos é um absoluto vazio probatório, decorrente de a recorrida nem sequer ter tentado cumprir o ónus da prova de que despendeu € 5.000 com deslocações e alojamento. Perante isto, julgar-se provado este montante como correspondendo ao total das despesas efectuadas pela recorrida com deslocações e alojamento não é equidade, mas puro arbítrio, evidentemente inadmissível.

Concluindo, há que reconhecer razão à recorrente. Ao considerar provado o facto em causa, o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, pois não dispunha de meios de prova para o efeito.

Assim, o n.º 60 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

A autora já suportou as seguintes despesas:

- Tratamento dentário prestado pelo réu, no montante de € 12.800,00;

- Tratamento dentário na Irlanda, no montante de € 620,00 (150,00 + 470,00) – fls. 44 (repetido a fls. 321), traduzido a fls. 111 (repetido a fls. 323); fls. 45 (repetido a fls. 322), traduzido a fls. 112 (repetido a fls. 324);

- Relatório médico do Professor (…) no montante de € 500,00 (art. 108.º da petição inicial).

Passa a constar, como facto não provado, o seguinte:

- A autora suportou despesas no montante de € 5.000,00 com deslocações e alojamento em Portugal.

2 – Inclusão, nos danos patrimoniais, do valor pago pela recorrida ao réu (…) como contrapartida pelo tratamento dentário por este efectuado:

O tribunal a quo condenou a recorrente a pagar à recorrida, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 43.758,00 (correspondente a 90% dos mesmos danos atenta a franquia referida no n.º 70 dos factos provados), acrescida de juros legais após a citação, além da quantia, a liquidar, necessária à realização de procedimento de remoção da cicatriz da hemiface direita.

Constituem parcelas do referido montante indemnizatório global a quantia de € 11.520,00, correspondente a 90% dos € 12.800,00 pagos pela recorrida ao réu (…) como contrapartida pelos serviços médicos que este lhe prestou, bem como 90% dos montantes já despendidos ou a despender para a recorrida compreender a situação e proceder à sua reabilitação oral (cfr. página 33 da sentença recorrida).

A recorrente insurge-se contra a sua condenação no pagamento de 90% do montante despendido pela recorrida com a realização do tratamento levado a cabo pelo réu (…). Com razão, desde já adiantamos.

A recorrente conformou-se com a sua condenação a pagar 90% do custo do tratamento dentário que, à data da propositura da acção, a recorrida se encontrava a efectuar na Irlanda, bem como do exame que esta teve de realizar com o objectivo de apurar a sua situação clínica e do respectivo relatório. O referido tratamento tinha como objectivo a reabilitação oral da recorrida, isto é, a reparação dos estragos resultantes das más práticas médicas seguidas pelo réu (…) e a obtenção do resultado que a recorrida pretendia quando procurou os serviços deste último. No final desse tratamento, é suposto a recorrente ficar na situação em que se encontraria se o tratamento anterior tivesse sido bem feito, ou seja, se não tivesse ocorrido o evento gerador de responsabilidade civil obrigacional, pois conseguirá a sua reabilitação oral e terá pago a quantia de € 12.800,00. Ficará, assim, na situação prevista no artigo 562.º CC, de acordo com o qual quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Carece, pois, de fundamento atribuir, cumulativamente com a indemnização referida no parágrafo anterior (pagamento do custo do exame destinado a apurar a situação clínica da recorrida e do tratamento dentário realizado na Irlanda), uma outra, correspondente ao custo do tratamento efectuado em Portugal. Se receber aquilo que pagou em Portugal e nada pagar pelo exame e pelo tratamento que fez na Irlanda, a recorrida ficará a beneficiar de um tratamento dentário gratuito, coisa que, obviamente, não conseguiria se o tratamento a que se submeteu em Portugal tivesse sido bem feito e, portanto, não se tivesse verificado um facto gerador de responsabilidade civil obrigacional. Por outras palavras, beneficiará de um enriquecimento sem causa, por contrário ao disposto no já citado artigo 562.º CC, bem como no n.º 2 do artigo 566.º do mesmo código, o qual dispõe que, sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e aquela que teria nessa data se não existissem danos. A responsabilidade civil tem como finalidade reparar danos, colocando o lesado em situação idêntica, em toda a medida do possível, àquela em que ele se encontraria se não tivesse ocorrido o facto lesivo, e não proporcionar-lhe um enriquecimento, ou seja, colocá-lo numa situação mais favorável que aquela em que ele se encontraria se não tivesse ocorrido tal facto.

Concluindo, a sentença recorrida deverá ser revogada na parte em que condenou a recorrente a pagar 90% do custo do tratamento dentário efectuado pelo réu (…), no montante de € 11.520,00.

3 – Inclusão, nos danos patrimoniais, do valor despendido pela recorrida com deslocações e alojamento em Portugal:

Como vimos no ponto 1, não pode considerar-se provado que a recorrida suportou despesas no montante de € 5.000,00 com deslocações e alojamento em Portugal. Logo por essa razão, teria de revogar-se a sentença recorrida na parte em que condenou a recorrente no pagamento de 90% desse montante, ou seja, € 4.500,00.

Não deixaremos, ainda assim, de esclarecer que, mesmo na hipótese de se ter provado tal despesa, a mesma não seria indemnizável, por razões idênticas às da não inclusão do valor pago pela recorrida ao réu (…) na obrigação de indemnização. Ao beneficiar do pagamento, pela recorrente e pelos réus não recorrentes, respectivamente na proporção de 90% e de 10%, do custo do tratamento efectuado na Irlanda com vista à obtenção de resultado idêntico àquele que pretendia com o que o réu (…) efectuou, a recorrida ficará, do ponto de vista patrimonial, na situação que existiria se este último tratamento tivesse sido devidamente efectuado, isto é, se aquele réu tivesse cumprido devidamente a sua obrigação.

Saliente-se que o réu (…) não se obrigou a pagar as despesas de deslocação e alojamento da recorrida. Esta última escolheu tratar-se em local distante da sua residência por sua conta e risco, incorporando aquelas despesas no custo total que suportaria com o tratamento em Portugal. Ao receber uma indemnização correspondente ao custo do tratamento subsequente, na Irlanda, a recorrida ficará, do ponto de vista patrimonial, em situação idêntica àquela em que estaria se o primeiro tratamento tivesse sido realizado de forma correcta. Portanto, em caso algum as hipotéticas despesas com deslocações e alojamento da recorrida seriam indemnizáveis.

4 – Avaliação dos danos não patrimoniais:

A recorrente considera excessiva a indemnização por danos não patrimoniais fixada na sentença recorrida, no montante de € 12.500,00.

O n.º 1 do artigo 496.º CC estabelece que, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito. A primeira parte do n.º 4 do mesmo artigo dispõe que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º, a saber, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Resulta dos factos provados, nomeadamente dos n.ºs 41, 42, 46 a 53, 55 a 59 e 62 a 67 que, em consequência da desastrosa intervenção efectuada pelo réu (...) na dentição da recorrida, esta teve de suportar um sofrimento físico e emocional intenso. Mais, o simples facto de a recorrida ter de suportar dois tratamentos dentários sucessivos, qualquer deles muito invasivo, em vez de um só, como deveria ter acontecido se o réu (…) não tivesse cumprido defeituosamente a obrigação a que se vinculara, constitui um dano não patrimonial relevante, sabido, como é, que tratamentos desta natureza implicam, inevitavelmente, sofrimento físico e ansiedade. Sendo assim, a indemnização fixada pelo tribunal a quo por danos não patrimoniais não merece crítica, devendo manter-se.


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Sumário:

(…)


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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a recorrente no pagamento das quantias de € 11.520,00 e € 4.500,00 à recorrida a título de indemnização por danos patrimoniais; no mais, mantém-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente e da recorrida, na proporção do respectivo decaimento.

Notifique.


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Évora, 23 de Abril de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata