Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
81/12.4IDEVR.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CULPA
VÍCIOS DA DECISÃO
PAGAMENTO
Data do Acordão: 05/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - No âmbito da criminalidade tributária, a questão da afectação das verbas devidas ao Estado ao pagamento de outras despesas da sociedade, designadamente salários de trabalhadores, não releva ao nível da ilicitude mas pode relevar ao nível da culpa, pois os fins ou motivos do agente interessam ao juízo da culpa.
II - Não configura insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (vício do art. 410.º do Código de Processo Penal) a circunstância das razões do arguido não terem integrado o tema da prova, quando esses factos foram invocados apenas em recurso, não o tendo sido anteriormente, nem na contestação, nem no julgamento.
III - O pagamento parcial da dívida fiscal já após consumação do crime não releva para “conversão” do ilícito penal em ilícito de mera ordenação social.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 81/12.4IDEVR.E1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo n.º 81/12.4IDEVR do 1º juízo do Tribunal Judicial de Montemor-O-Novo foi proferida sentença em que se decidiu Condenar a arguida “A” como autora de um crime de abuso de confiança fiscal do art.º 105.º n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T. na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de 900,00 € (novecentos euros) e o arguido B como autor de um crime de abuso de confiança fiscal do art.º 105.º n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de 600,00 € (seiscentos euros).
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido B, concluindo:
“1 - O arguido foi condenado pela prática do crime de abuso de confiança fiscal na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 6,00€, num total de 600,00€, p.p. pelo artigo 105º nº 1 e nº 2 do RGIT.
2 - A conduta típica do nº 1 do art. 105º do RGIT, reconduz-se agora à não entrega à administração tributária, no prazo legalmente previsto, de prestação tributária deduzida, o certo é que a “apropriação”, pese embora tenha sido eliminada do texto da lei, está nele implícita, pelo que continua a fazer parte do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal.
3 - O arguido não se apropriou da prestação tributária corresponde à quantia de 7.635,91€.
4 - O arguido como sócio gerente da arguida A, não entregou as prestações tributárias de, por dificuldades de tesouraria, afectar recursos ao pagamento das necessidades correntes da arguida sociedade, designadamente, ao pagamento de fornecedores e ao pagamento dos salários dos trabalhadores.
5 - Sendo o crime de abuso de confiança fiscal doloso, é necessário que o agente tenha representado a violação da relação de confiança que consiste no dever de entregar a prestação tributária deduzida e não a queira entregar, no caso concerto, o elemento subjectivo do crime não se verifica.
6 - O arguido não criou voluntariamente a situação de não entrega das prestações tributárias, mas sim as condições de mercado, que ao provocarem quebra nos proventos da sociedade arguida, aquele teve a necessidade de afectar os recursos para a sobrevivência da empresa e postos de trabalho, criou-se um verdadeiro direito de necessidade.
7 - Nos termos do disposto nº 1 do art. 36º do C. Penal “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos … satisfazer o dever … de valor igual ou superior ao dever … que sacrificar”.
8 - Como salienta o Prof. Taipa de Carvalho “… não pode, sem mais, negar-se a existência de um verdadeiro conflito de deveres, e eventual exclusão da ilicitude penal, na hipótese em que o patrão, na impossibilidade de pagar os salários e os impostos, cumpre o dever jurídico-laboral de detrimento do dever jurídico-penal fiscal”, Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, parte Geral, Volume II, Publicações Universidade Católica, 2004, pag. 222.
9 – A sociedade arguida efectuou por sua iniciativa vários contactos com o serviço de finanças de Montemor-O-Novo, no sentido de proceder ao pagamento da divida em prestações, doc. 1.
10 - Antes da sociedade arguida e arguido terem sido notificados da acusação deduzida pelo Ministério Publico, requereu, em 29/11/2012, junto da Autoridade Tributária dos Serviços de Finanças de Montemor-O-Novo, o pagamento em 12 prestações da quantia em divida, alegando dificuldades financeiras da sociedade arguida, nomeadamente, de receber dos alunos referentes a cursos que já foram concluídos, doc. 2.
11 - Após o decurso da notificação da sentença, a sociedade arguida procedeu ao pagamento da quantia de 750,00€, apenas se encontrando a quantia de 6.885,91€, em divida, não constituindo processo-crime, doc. 3.
12 - Por força do então preceituado art. 105º do RGIT, na presente data os elementos subjectivos e objectivos tipificados no dito preceito legal não se encontram preenchidos, pelo que deverá ser revogada a Douta sentença, e por conseguinte, o arguido absolvido.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:
“1 - Alega o recorrente, por um lado, que não actuou com dolo e por outro que atuou no âmbito de um conflito de deveres.
2 - Contudo tais questões não podem ser conhecidas pelo Tribunal para que se recorre, porquanto ambas implicam uma alteração à matéria de facto dada como provada.
3 - No primeiro caso, que não se desse como provado que o recorrente agiu com dolo, no segundo, que se dessem como provados factos que permitam concluir pela actuação no âmbito de um conflito de deveres.
4 - Sucede porém que o recorrente não recorreu da matéria de fato dada como provada, ou pelo menos não o fez nos termos legais, pelo que não pode tal pretensão ser apreciada.
5 - Compulsadas as conclusões do recorrente resulta manifesto que o mesmo não cumpriu qualquer das exigências legais plasmadas no art.º 412º, n.º 3 e 4 do CPP., e consequentemente, sendo estas que delimitam o recurso, não podem estas questões ser apreciadas. 6 - Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in CCPP., “As conclusões delimitam o âmbito do recurso e, havendo questões discutidas na motivação, mas não resumidas nas conclusões, elas não integram o objecto do recurso e, por isso, não podem ser conhecidas pelo tribunal de recurso”.
7 - Em todo o caso sempre se dirá que não deve o recorrente confundir dolo com os motivos que levaram à prática do ilícito.
8 - Não só não se deu como provado que o recorrente não tenha procedido à entrega do imposto por se ver obrigado a afectar tal valor ao pagamento de necessidades da empresa, como tal motivação não afasta o dolo, releva apenas para a medida concreta da pena.
9 - A causa de exclusão da ilicitude conflito de deveres não é aqui aplicável, como tem sido entendimento pacífico da Jurisprudência, porque o dever de cumprir com os impostos, enquanto dever social e veículo de redistribuição de riqueza se sobrepõe ao dever de pagar os vencimentos e aos fornecedores das empresas para as manter a laborar.
10 - O crime de abuso de confiança fiscal, consuma-se com a apropriação do valor do imposto recebido, a qual se dá com a sua não entrega nos cofres do Estado no prazo legal para o efeito.
11 - O pagamento posterior apenas releva, nos casos a que se reporta o art.º 22º do RGIT., o que não é o caso, primeiro porque a verdade tributária não foi reposta, e segundo, ainda que tivesse sido, tinha de o ser até à decisão final o que aqui não aconteceu ou no prazo nela fixado, o que também não aconteceu por não ter sido fixado qualquer prazo.
12 - Pelo que o pagamento efectuado pelo recorrente apenas teria relevância para efeitos da medida da pena se tivesse sido feito até à decisão final, feita a cabal prova em sede de julgamento, que não nesta sede, como pretende o recorrente, pois a lei define momentos próprios para a junção de documentos e o Tribunal de recurso é uma instância de reapreciação e não de julgamento.”
Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. A arguida A é uma sociedade comercial por quotas que iniciou a sua actividade no ano de 2005 e que tem como objecto social a formação profissional, recursos e serviços pessoais à comunidade; a prestação de serviços informáticos e o comércio e representação de cursos de formação, produtos, equipamentos e acessórios;
2. O arguido B é sócio-gerente da dita sociedade desde a constituição desta;
3. No exercício da sua atividade comercial, a 1ª arguida deduziu às remunerações pagas aos seus trabalhadores e às rendas pagas a senhorio, a título de Imposto Sobre o Rendimento de Pessoas Singulares e a título de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (retenção na fonte), no decurso do mês de Janeiro de 2012, a quantia de 7.635,91 €, quantia pecuniária essa que o arguido B, no âmbito dos seus poderes de gestão, devia ter entregue nos cofres do Estado no respectivo prazo legal, o que não fez;
4. Já decorreram mais de 90 dias desde o final do prazo para entrega voluntária de tal importância.
5. Notificados nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, os arguidos não procederam, no prazo legal, ao pagamento global da quantia a que se alude supra e acréscimos legais;
6. O arguido B quis e conseguiu integrar a quantia em dinheiro referida no património da sociedade arguida, sabendo que não lhe pertencia e que a devia entregar ao Estado, e outrossim, que desse modo causava a este um desfalque patrimonial de igual valor.
7. Em tudo agiu o arguido no interesse e em nome da arguida A.
8. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
9. Do CRC do arguido B resulta que o mesmo foi julgado e condenado:
- por sentença transitada em julgado em 28.01.2013, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 7,00 € o que perfaz o total de 700,00 €, pela prática em 01.09.2009 de um crime de abuso de confiança contra a segurança social;
- por sentença transitada em julgado em 07.03.2013, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 10,00 €, tendo ficado dispensado de pena, pela prática em 18.09.2011 de um crime de abuso de confiança fiscal;
10. Do CRC da sociedade arguida resulta que a mesma foi julgada e condenada, por sentença transitada em julgado em 07.03.2013, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 12,00 €, tendo ficado dispensada de pena, pela prática em 18.09.2011 de um crime de abuso de confiança fiscal.”
Foi ainda consignada a inexistência de factos não provados.

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a apreciar reportam-se exclusivamente a matéria de direito. E não se detectando, no caso, a ocorrência de vício do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (que seria sempre de conhecimento oficioso - AFJ de 19.10.95), a matéria de facto é de considerar estabilizada.
Assim, o âmbito do recurso circunscreve-se à matéria de direito e, nesta, ao erro de subsunção: na alegação do arguido recorrente, os factos provados não realizariam o crime da condenação.
A invocada falta de preenchimento do tipo de crime fundar-se-ia na concreta incompletude do tipo objectivo, decorrente de uma ausência do elemento “apropriação”, e do tipo subjectivo, por ausência de dolo.
Precisando, a (a) ausência do elemento “apropriação” decorreria da afectação das verbas não entregues ao pagamento de despesas da sociedade (também arguida), alegando também o recorrente que (b) o pagamento entretanto efectuado da quantia de 750,00€, pela sociedade arguida, já após notificação da sentença condenatória, baixara a divida fiscal para 6.885,91€, comutando a conduta ilegal em contra-ordenação.
Por outro lado, a (c) ausência de voluntariedade na não entrega das verbas devidas ao Estado relacionar-se-ia com um alegado (d) conflito de deveres à luz do qual o arguido teria agido.
O recorrentes foi condenado como autor do crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105º, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (lei nº 15/2001, de 5 de Junho), que pune, ao que ora interessa, “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e a que estava legalmente obrigado a entregar”.
Vejamos, então, se as questões que suscita levam a que claudique o juízo sobre o preenchimento do tipo de crime efectuado na sentença, única questão que o recorrente problematiza em recurso, desdobrada nos itens que se passam a tratar.
(a) Da ausência de preenchimento do tipo objectivo por ausência de apropriação das verbas, que terão antes sido supostamente empregues no pagamento de dívidas da empresa.
Alega o recorrente a ausência de um elemento do tipo – a apropriação – uma vez que os dinheiros não entregues ao Estado terão sido canalizados para o pagamento de dívidas da empresa (pagamento a fornecedores e de salários a trabalhadores).
No âmbito da criminalidade tributária, a questão da afectação das verbas devidas ao Estado ao pagamento de outras despesas da sociedade devedora tem sido recorrentemente problematizada como pretensamente justificativa da conduta. A jurisprudência tem vindo, no entanto, a desconsiderar genericamente a relevância desse facto ao nível da ilicitude, reconhecendo-lhe também diminuta significância ao nível da culpa.
A nossa posição, não é exactamente coincidente com a jurisprudência maioritária e quase uniforme, e encontra-se expressa nos acórdãos TRE de 20.12.2012 e de 04.04.2014, publicados em www.dgsi.pt.
Parte, muito sumariamente, do reconhecimento de que os fins ou motivos do agente do crime, os sentimentos manifestados no facto, as suas concretas razões, interessam sempre ao juízo da culpa e não podem ser excluídos do julgamento e da sentença.
Do mesmo modo, também a afectação (ilícita) de verbas destinadas ao Estado ao pagamento de salários de trabalhadores ou a outras dívidas da sociedade interessa ao juízo de culpa, podendo constituir atenuante, ou mesmo, em determinadas situações extremas ou casos-limite, configurar um conflito de deveres desculpante. Pois num direito penal do facto que é também o direito penal da culpa, a prevenção não pode ocupar também o espaço que à culpa é reservado.
Só que a aplicação do direito na sentença teria de decorrer de factos que se encontrassem nos “factos provados” (públicos e notórios à parte). Só os enunciados linguísticos apresentados na sentença como factos provados podem fundamentar uma decisão de direito.
Sucede que, no caso presente, nenhum dos factos “novos” que o recorrente agora invoca se encontram na sentença. Eles não podem ser, então, agora em recurso, objecto de ponderação.
Na verdade, mau grado o reconhecimento de uma potencial relevância abstracta dos factos em causa, não é sequer concretamente equacionável uma eventual insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (vício do art. 410º do Código de Processo Penal), que poderia decorrer do tribunal de julgamento ter indevidamente ignorado as razões ou os motivos do arguido. É que o arguido não apresentou contestação, nem alegou tais razões em julgamento. Estes factos ficaram fora do objecto do processo e não integraram o tema da prova.
Os factos alegados só agora em recurso nunca o foram anteriormente, podendo e devendo tê-lo sido, pelo arguido e/ou a sua defesa, no momento próprio, ou seja, na fase de julgamento.
Assim sendo, a Relação não pode agora atribuir-lhes qualquer relevância, pois o recurso, sempre no seu arquétipo de remédio jurídico, não se destina a substituir ou a completar o julgamento de 1ª instância.
Mostrando-se definitivamente estabilizada a matéria de facto descrita na sentença, falece logo na base a pretensão do recorrente por falta de fundamento de facto, não sendo assim visionável o propalado erro de subsunção.
Embora já desnecessário à decisão do recurso, não deixa de se consignar que se acompanha porém a jurisprudência, que se crê aqui uniforme, na parte em que a circunstância em causa nunca excluiria a ilicitude.
A utilização que o arguido possa ter dado aos dinheiros desviados e não entregues ao Estado seria juridicamente inconsequente para o efeito da completude do tipo de ilícito. E os factos provados realizariam sempre o tipo de ilícito da condenação, em qualquer das interpretações conhecidas da norma incriminadora em causa.
Assim, mesmo na leitura mais exigente que considera que a “apropriação”, se bem que não expressamente referida no tipo, constitui um seu elemento implícito devendo ler-se como uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias (neste sentido, Susana Aires de Sousa, Os crimes Fiscais, 2009, pp 121 e 305), bastaria a demonstração de que os valores recebidos tiveram afectação diferente daquela a que se destinavam, qualquer que ela fosse.
Afectar os valores do Estado a outras despesas/dívidas da empresa é utilizá-los como se fossem próprios. Traduz apropriação. Apropriar não implica aforrar, guardar para si, nem tão pouco exige afectação a determinada(s) finalidade(s) com exclusão de outra(s).
Num entendimento mais de acordo não só com a literalidade da norma como com a sua evolução histórica – no sentido de o actual art. 105º do RGIT constituir um crime de omissão pura (assim, o anterior art. 24º do RJIFNA dispunha que “quem se apropriar total ou parcialmente de prestação tributária…”) –, a consumação verificar-se-ia logo com a “não entrega da prestação no prazo fixado por lei, independentemente do destino que for dado aos montantes não entregues – gastos pessoais, vida empresarial, benefícios de terceiros…” (Carlos Adérito Teixeira, Sofia Gaspar, Comentário às Leis Penais Extravagantes, Org. P. P. Albuquerque, José Branco, II, p. 468). O tipo não exigiria então, sequer, o elemento da apropriação.
Em qualquer uma destas interpretações, repete-se, a factualidade provada preenche o tipo de ilícito da condenação, que ocorre independentemente do efectivo destino que o recorrente tenha ou não dado às verbas não entregues.
E estando provado que o arguido, no prazo e nas condições exigidas por lei, não procedeu à entrega ao Estado das prestações tributárias devidas, é quanto basta para o preenchimento do tipo de ilícito de abuso de confiança fiscal.
(b) Do pagamento da quantia de 750,00€ entretanto efectuado pela sociedade arguida
Este pagamento foi realizado já após notificação da sentença condenatória aos arguidos.
Pretende o recorrente que a consequente redução da divida fiscal para 6.885,91€ (na sequência desse pagamento), comutaria a conduta ilegal em contra-ordenação.
O que já deixámos dito em (a) demonstra que o pagamento em causa ocorreu muito depois do momento da consumação do crime pelo que nunca teria a virtualidade de poder converter o ilícito penal imputado em ilícito de mera ordenação social.
O limiar mínimo de punição, fronteira de relevância típica que integra o tipo de ilícito, é um elemento do tipo de ilícito que se considera realizado no caso, pois é irrelevante para esse efeito um pagamento parcial efectuado já após a consumação do crime.
Como nota o Ministério Público na resposta ao recurso, o pagamento posterior apenas releva nos casos a que se reporta o art.º 22º do RGIT, cuja previsão não se encontra preenchida pois não foi reposta a verdade tributária e, ainda que o tivesse sido, não o fora até à prolação da sentença ou no prazo nela fixado.
Assim sendo, o pagamento apenas relevaria na medida da pena e se tivesse sido feito até à decisão final, o que não sucedeu.
(c) Do preenchimento do tipo subjectivo e (d) do conflito de deveres
O recorrente considera não ter actuado de forma dolosa, mas sim condicionado com uma justificação para a não entrega dos valores devidos ao Estado que lhe “retiraria” o dolo.
O abuso de confiança fiscal é um crime doloso, devendo o dolo abranger todos os elementos do tipo objectivo de ilícito.
Também aqui a evolução legislativa foi no sentido de abandonar um dolo específico, bastando-se hoje o tipo com o dolo genérico, em qualquer uma das modalidades do art. 14º do Código Penal (anteriormente, o art. 24º do RJIFNA dispunha “quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial…”).
Mais uma vez, são os factos provados, que o recorrente não impugnou, que ditarão em grande medida a sorte do recurso, também nesta parte.
De tudo o que já ficou dito e, particularmente, da matéria de facto provada retira-se que o arguido sabia e queria todos os actos que objectivamente praticou. Agiu, pois, com dolo do tipo. O tipo de ilícito encontra-se preenchido também na sua componente subjectiva.
E mesmo a (só agora) alegada actuação no quadro de dificuldades financeiras supostamente inviabilizante do cumprimento das obrigações fiscais seria circunstância a relevar, não ao nível do dolo (dolo do tipo), mas ao nível da culpa. Ela nada teria a ver com as componentes volitiva e intelectual do dolo.
No entanto, como se disse, tal circunstância não integra a matéria de facto provada e não foi sequer trazida à discussão da causa em julgamento. Por todo o exposto, soçobra também a ponderação de um eventual conflito de deveres, cuja abordagem mais aprofundada fica, assim, prejudicada em recurso.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.
Custas pelo recorrente que se fixam em 4UC.


Évora, 20.05.2014

Ana Maria Barata de Brito
Maria Leonor Vasconcelos Esteves