Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
432/16.2PAENT.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: DIFAMAÇÃO
INEXISTÊNCIA DE QUEIXA
ILEGITIMIDADE DO MP
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - A queixa não está sujeita a formalidades especiais, mas tem de expressar o desejo inequívoco de procedimento criminal contra o suspeito, por determinados factos.

II - Num inquérito relativo a dois crimes (de diferente natureza e protegendo bens jurídicos diversos) a queixa tem de os abranger a ambos: não só o crime de ameaça efectivamente denunciado (e relativamente ao qual o Ministério Público proferiu decisão de arquivamento), mas também o crime de difamação que se imputou na acusação particular.

III - E se foi participado apenas um crime de ameaça, não tendo o queixoso dado a perceber a intenção inequívoca de perseguição criminal pelo outro facto (crime de difamação), deve ser reconhecida a falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, relativamente ao crime da acusação particular, no recurso da sentença condenatória.

Sumariado pela relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 432/16.2PAENT, da Comarca de Santarém, foi proferida sentença em que se decidiu julgar a acusação particular deduzida pelo assistente LM procedente e, em conformidade, condenar o arguido V, como autor de um crime de difamação dos artigos 180.°/1 e 183.°/1, b), do CP, na pena de multa de 155 (cento e cinquenta) dias, à taxa diária de € 8 (oito euros), perfazendo o valor de € 1.240 (mil, duzentos e quarenta euros). Mais foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, e, em conformidade, condenado o mesmo arguido demandado a pagar ao assistente demandante, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 700,00 (setecentos euros).

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1) O presente recurso tem como objecto a sentença que julgou a acusação particular deduzida pelo assistente procedente e, em conformidade condenou o arguido pela prática de um crime de calúnia, p. e p. pelo artigo 183º nº 1 al. b) do Código Penal na pena de multa de 155 (cento e cinquenta) dias à taxa diária de 8 € (oito euros), perfazendo o valor de 1240,00 € (mil duzentos e quarenta euros), e julgou o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, em conformidade, condenando o arguido a pagar ao assistente a título de danos não patrimoniais a quantia de 700,00 € (setecentos euros), bem como no pagamento das respectivas custas criminais e em valor de 3 Ucs.

2) Tendo como fundamento o presente recurso:
a) A decisão proferida, julgando improcedente a questão prévia de queixa manifestamente infundada e da nulidade da acusação particular, ora suscitada pelo arguido em sede de contestação;

b) A nulidade da decisão proferida sobre a matéria de direito, por violação de normas jurídicas, erro na determinação de norma aplicável e a condenação do arguido por factos diversos e não descritos na acusação, nos termos e de acordo com o disposto nos artigos 379º nº 1 al. b), 410 e 412º nº 2 do CPP; e

c) A impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, por existirem concretos pontos de facto que estão incorrectamente julgados, bem como as concretas provas impõem decisão diversa da recorrida, nos termos e de acordo com o artigo 412º nº 3 al. a) e b) do CPP;

3) O ofendido apresentou uma denúncia, munido de uma carta e afirmando sentir-se ameaçado de morte e recear pela sua integridade física e, em lado algum, durante a fase de inquérito referiu sentir-se afectado ou infamado por expressões escritas naquela carta, nomeadamente o epíteto “porco”, razões pelas quais o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento e não acompanhou a acusação particular. Entendeu-se também aqui que, aquela carta, em concreto e considerando o contexto familiar em que surge trata-se de um conjunto de desabafos, de forma pouco cortês e mal-educada, mas que não integra a prática de crime.

4) Foi apresentada acusação particular com novos factos, não denunciados e de âmbito particular, qualificados juridicamente de forma diferente, peticionando assim o julgamento e condenação por um crime mais grave - o de publicidade e calúnia p. e p. pelo artigo 183º nº 1 als. a) e b) do Código Penal;

5) Na contestação o arguido insurgiu-se contra este procedimento criminal, invocando a existência de queixa manifestamente infundada, omissão insubstituível por acusação particular com factos novos e qualificação jurídica por crime mais grave, bem como uma acusação insuficiente por não se encontrar alegado o elemento subjectivo.

6) O assistente jamais denunciou ou fez queixa dos factos constantes da acusação, pelo que impediu o cumprimento do princípio da investigação em sede de inquérito do processo penal e os respectivos direitos de informação, defesa e contraditório.

7) O Tribunal “a quo” ao decidir que existia queixa bastante, prosseguindo o julgamento com aquela acusação particular violou a lei, as regras e princípios processuais de Direito Penal, desde logo, porque omitiu a sua pronúncia quanto à legalidade da acusação particular que contém factos novos e acusa por um crime diferente e também jamais se pronunciou quanto à falta de elemento subjectivos, no cumprimento e de acordo com os artigos 285º e 283º do CPP.

8) Esta acusação particular importa uma alteração substancial, face aos factos denunciados em inquérito e que foram investigados, implicando a condenação do arguido não por crime de difamação p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, mas pelo crime de publicidade e calúnia p. e p. pelo artigo 183. nº 1 al .b) do Código penal, o que configura uma nulidade da sentença, nos termos e de acordo com o artigo 379º nº 1 do CPP. Por outro lado, esta acusação particular não cumpre os requisitos legais, por não estar alegado quanto ao seu elemento subjectivo.

9) Omissões que não são passíveis de correcção, nem supridas oficiosamente, por o juiz não poder se substituir ao Ministério Público ou ao assistente, sob pena de se verificar uma alteração substancial dos factos, o que não foi decidido nos termos e de acordo com o artigo 311º e, posteriormente nos termos e de acordo com o artigo 338 nº 1 ou 368º do CPP;

10) Relativamente à queixa apresentada, é inequívoco que o assistente não manifesta qualquer vontade especificadamente pelos fatos de que alega ter sentido afetado, lesado ou difamado com tais palavras e que foram objecto de acusação particular. Segundo a lei e doutrina, a queixa exige uma manifestação de vontade especificadamente dirigida e em que tem de dar a perceber a intenção inequívoca do titular.

11) O principio da oficialidade da promoção processual sofre as limitações e excepções decorrentes da existência de crimes semi-públicos e dos crimes particulares, proclamando o artigo 48º a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, logo aí se ressalvam as restrições constantes dos artigos 49º a 52º, as quais conformam, justamente, as excepções a que o nº 2 do artigo 262º se refere.

12) Nos crimes semi-públicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; A queixa nos crimes semi-públicos, a constituição de assistente e a acusação particular, nos crimes particulares são pressupostos da admissibilidade do processo, neste sentido, pressupostos processuais que constituem limitações, em que a denúncia não substitui a acusação, mas tem necessariamente de a preceder e mesmo autênticas excepções nos crimes particulares ao principio da promoção oficiosa do processo penal.

13) Pelo que, o tribunal andou mal ao entender que a mera denúncia é bastante para este procedimento criminal, errou na aplicação da lei, visto que não se vislumbra qualquer queixa quanto aos especificados factos, o tribunal “a quo” violou o princípio da oficialidade e da promoção do processo penal, o princípio da investigação e do acusatório, devendo a sentença ser declarada nula e com todas as consequências legais.

14) Da análise e teor da sentença, considerando os depoimentos prestados em audiência de julgamento, entendemos que o Tribunal “a quo” errou ao proferir a decisão de facto que resulta da sentença, pelo que se impugna a matéria de facto nos termos e de acordo com o artigo 412º nº 3 al. a) e b) do CPP, erro de julgamento que, em nosso modesto entender traduz uma decisão diferente - a absolvição do arguido.

15) Impugnação que se faz por referência às declarações prestadas e gravadas, com excepção, curiosamente, das alegações desta defesa que não se vislumbra qualquer gravação e cuja irregularidade e ilegalidade ora se suscita, para os devidos efeitos legais.

16) Mais, se impugnam os FACTOS PROVADOS EM 1 E 6, pois que não foi o arguido que entregou a carta ao assistente, nem o arguido que a divulgou, ou a fez divulgar, por alguma forma ou meio.

17) O tribunal errou ao escrever-se na fundamentação da sentença (pág. 5) que o arguido sabia que enviando a carta à Joana ela daria conhecimento à ex-mulher e esta, por sua vez ao assistente, incorrendo assim num erro notório e contraditório entre os factos e a fundamentação.

18) Pelo que, face ao exposto, nos parece de todo imprescindível ficar a constar da matéria de facto provada que:

FACTO 1 - No mês de Junho de 2016, EP, mulher do assistente entregou uma carta escrita pelo arguido que lhe havia sido entregue pela ex-mulher do arguido, a testemunha AA;

FACTO 6 - A referida carta era dirigida á sua filha Joana e foi encontrada pela pela ex-mulher do arguido em cima da mesa da cozinha da casa de habitação do arguido,

9) E conforme se atesta dos depoimentos de todas as testemunhas, com conhecimento directos destes factos, cujos depoimentos estão designadamente: a) as declarações de arguido gravadas em CD e prestadas em julgamento no dia 12.06.2017 aos 15:12 até 16:08; b) as declarações do assistente - LM gravadas em CD em 12.06.2017 aos 16:12 a 16:42; c) as declarações da testemunha EP, mulher do assistente, gravadas em CD em 19.06.2017 aos 14:38 até 15:21 e, d) as declarações da testemunha, ex-mulher do arguido, AA gravadas em CD em 19.06.2017 aos 15:32 até 15:58;

20) Igualmente se impugna o FACTO 6 quando refere que o arguido “não se coibiu de lhos dar a conhecer”. Na sequência, o arguido não deu a conhecer qualquer teor ou conteúdo da carta ao assistente ou quaisquer outras pessoas. O arguido escreveu a carta para a sua filha que a sua ex-mulher encontrou na casa que ela já não habitava e, sem a presença ou consentimento do arguido levou esta carta, reteve-a pelo menos, desde Janeiro a Junho de 2016, após o que decidiu dá-la a conhecer às irmãs do arguido, entre as quais a esposa do assistente que, por sua vez a mostrou ao seu marido, aqui assistente.

21) O FACTO PROVADO EM 7, com o devido respeito NÃO FICOU PROVADO, bem pelo contrário. O aqui arguido nas suas declarações gravadas em CD em 12.06.2017 aos 15:12 até 16:08 apresentou perante o tribunal sete motivos para, no seu entender considerar o assistente de porco, que no dicionário significa um indivíduo de moral baixa, de mau caracter, que ofende a moral, o pudor, obsceno. Todos estes factos e motivações que o arguido questionou à sua ex-mulher, ao assistente e até a irmã/cunhada, foram confirmados por todos. Em audiência e julgamento, resultou provado que o arguido revelou a sua convicção, que o assistente, mulher do assistente, irmãs e ex-mulher sempre souberam, mas que afirmam nunca ter ligado ou valorado e cfr. as declarações do arguido, assistente, testemunha E e AA, cujas declarações estão acima descritas e indicadas.

22) Relativamente ao FACTO 8 na parte em que refere que o assistente é “até hoje pessoa fiel à sua esposa” e ao FACTO 9, impugnam-se, pois não foram sequer objecto de prova, para além de se tratarem de factos que não constam da acusação particular, o que igualmente se traduz num erro notório na apreciação da prova e excesso de pronúncia que aqui se invocam e, traduzem numa nulidade da sentença, nos termos e de acordo com o artigo 379º nº 1 e 410º nº 2 do CPP.

23) Quanto aos FACTOS 10, 11, 12, 13, 14, 16 e 17, pelas razões já expostas padecem igualmente de erro julgamento, devendo figurar no rol dos FACTOS NÃO PROVADOS, dado que o arguido na carta limita-se a revelar aquela que tem sido ao longo dos anos a sua convicção e que motivou o divórcio, não tendo o arguido propalado, nem quis propalar a carta, nem os factos aí constantes pois que nem sabemos se a carta seria entregue ou não à sua filha ou se esta munida da carta queria que ela fosse lida e entregue a terceiros.

24) Paralelamente, OS FACTOS NÃO PROVADOS descritos nas alíneas d., e. e f. FICARAM PROVADOS. O arguido contou o que viu, o assistente, e a ex-mulher admitiram que tais factos aconteceram. Conforme se pode ouvir pelos depoimentos, acima transcritos nesta parte. Mais, a ex-mulher confirmou que lhe chamou cabrão, circunstância relevante para o arguido e que, conforme relatou ao tribunal foi mais uma das razões pela qual entendeu ser verdade.

25) Ficou assim provada a convicção do arguido e o que ele viu, ora descrito em e. e f., ficando assim demonstrado que na referida carta, o arguido revelou a “sua verdade e opinião”, de uma forma pouco cortês, ousada é certo.

26) Pelo que, a factualidade dada como provada em 1, 6, 7, 8 “in fine”, 9, 10 a 14 e os factos d., e. e f. não provados foram mal julgados e deverão ser alterados, e consequentemente proferida decisão de absolvição do arguido.

27) Quanto à matéria de direito e enquadramento jurídico-penal, importa considerar que, para além do arguido não ter procedido a qualquer divulgação da carta, ou sequer a ter chegado a entregar ao seu destinatário, a verdade é que também ficou demonstrado que o arguido não conhecia a falsidade dos factos que imputou, bem pelo contrário, provado está é que todos conheciam há longos anos os factos em causa e que o arguido suspeitava que o assistente e a sua ex-mulher, tinham tido um relacionamento amoroso.

28) A calúnia trata-se da forma mais perversa dos crimes contra a honra, porquanto está nela vazada a actuação torpe daquele que, sabendo da falsidade, mesmo assim avança com a imputação dos factos. Logo, os elementos determinantes, para que se esteja perante uma calúnia, está não só na divulgação dos factos, bem como no reconhecimento que o agente sabia da falsidade das suas afirmações falsas. Falsa é toda a afirmação que, nos seus pontos essenciais se mostra falsa; exageros ou inexactidões sobre a realidade não essencial não são suficientes para integrar a falsidade.

29) Importa neste caso concreto, ponderar a dimensão do direito à livre informação e opinião e sua conjugação com o direito fundamental à honra e consideração pessoais/bom nome e reputação.

30) O artigo 26º da CRP consagra que “todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da sua personalidade, à capacidade civil, cidadania, bom nome, reputação, imagem, reserva da intimidade privada. Também no âmbito dos direitos, liberdades e garantias e no mesmo grau de hierarquia destes, encontra-se plasmada, no artigo 37º da CRP a liberdade de expressão e informação, que se concretiza no direito atribuído a todos de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos ou discriminações.

31) A liberdade de expressão assim definida encontra assento também nos artigos 19º e 29º nº 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, normais aplicáveis no ordenamento jurídico português e reflectidas na jurisprudência não só dos tribunais superiores como do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

32) Com efeito, a liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das principais condições para o seu progresso e desenvolvimento de cada indivíduo, devendo por isso ser preservada e respeitada, designadamente na confrontação com outros direitos fundamentais.

33) Pelo que, importava aqui que o tribunal “ a quo” tivesse recorrido ao principio da proporcionalidade aferir e neste caso concreto, os exactos termos de compressão de cada um dos direitos em análise - direito de expressão e informação, por um lado e direito à honra, por outro - ressalta a necessidade de procurar, em cada momento, a composição dos interesses em litígio, em obediência ao principio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de restrição de direitos fundamentais e segundo o qual se deve obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua optimização, traduzida numa mútua compressão, por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.

34) No caso concreto não existem dúvidas que o arguido escreveu aquela carta dirigida à sua filha Joana e aí proferiu e escreveu as afirmações descritas, sendo do conhecimento geral que o epíteto de “porco” é uma forma de insultar e que a expressão “interroga-te qual é que pode ser o vosso pai … és mais parecida com o LM poderá ter conotação negativa”, contudo não nos podemos restringir à definição linear das palavras em causa e, neste caso é patente que NÃO FICOU PROVADO terem sido usadas com o objectivo único de ofender o assistente.

35) Conforme foi decidido no Acordão do Tribunal da Relação de Évora de 05.06.2017 - Proc. 124/14.7PATNV-E1 in www.dgsi.pt não basta no plano objectivo que as palavras usadas sejam abstractamente susceptíveis de ofender o bom nome ou a reputação, exigindo-se que ofendam efetivamente, ou seja, que as palavras em causa devam considerar-se lesivas nas circunstâncias concretas em que foram proferidas.

36) Em segundo lugar há que proceder à indagação cuidada sobre o preenchimento do tipo no caso presente, sobre questão da relevância penal das palavras escritas pelo arguido.

37) As expressões escritas pelo arguido não podem ser descontextualizadas e retiradas das circunstâncias em que foram proferidas, considerando que só pode ser digno de tutela penal as expressões paradigmáticas de danosidade intolerável.

38) No caso presente, o arguido através de uma carta dirigida à sua filha e não veiculada ou entregue por si ou vontade sua, em que este aprecia criticamente a intervenção anterior da sua ex-mulher e do assistente, por factos que estes conheciam, toleraram e ignoraram durante vários anos terá de ser reconhecida a liberdade de expressão e critica que lhe está associado e concluir-se pela atipicidade neste caso concreto.

39) O que aqui está em causa é a livre expressão de opiniões, dado as situações que este ao longo dos anos foi observando e que lhe foram gerando as suspeitas que nunca conseguiu confirmar e que estes sempre conheceram. Mais, a carta não chegou a ser entregue pelo arguido à sua filha, maior, que não tendo sido parte jamais saberemos se chegou a conhecer a carta e consentir sequer que fosse divulgada, o que é um seu direito.

40) Os tribunais portugueses têm considerado e subvalorizado a liberdade de expressão no conflito entre direitos de personalidade e liberdade de expressão, tendo sido já condenado o Estado português por 8 vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, só por considerarem que poderiam ter sido utilizadas outras palavras ou expressões menos agressivas ou violentas.

41) Assim, neste caso concreto, temos que o arguido explicou ao tribunal ao suas sete razões para ter apelidado e entender que o assistente é um “porco”, entre as quais, as fundadas suspeitas que ele tinha um relacionamento extraconjugal com a esposa, pelo facto de ele quando confrontou o assistente, este lhe ter pedido para não contar à sua irmã, por entender que este é também responsável pelo seu divórcio, pelo sofrimento que os seus filhos sentiram com o divórcio, por esta situação o ter prejudicado na sua vida profissional. Paralelamente e devido a achar que estes tiveram o relacionamento amoroso, o arguido questiona a questão paternidade pelas razões expostas. Ora, o contexto desta carta, os conflitos familiares à data, os processos judiciais intentadas pela ex-mulher - divórcio, a queixa (ainda pendente) por violência doméstica, a regulação do poder paternal, acrescido do facto da ex-mulher ter encontrado a carta em Janeiro, a ter retido e só Junho decidir divulgá-la, bem como o facto destas circunstâncias serem do conhecimento de todos há vários anos e que sempre ignoraram, não podem ser deixados de ter em conta, não podendo afirmar-se que o arguido caluniou o assistente e o quis fazer. O arguido com a carta não quis, não pretendeu e não conseguiu ofender o assistente.

42) Pelo que, face a todo o exposto entendemos que não se verificam os elementos típicos deste ilícito criminal, devendo o presente recurso ser julgado procedente e a sentença declarada nula, revogada por outra que absolva o arguido da prática do crime que foi condenado.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:

“1. Nos crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o respectivo inquérito.

2. Porém, no que concerne à forma que a queixa tem de assumir, quer o Código Penal, quer o Código de Processo Penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto ( o que é reforçado pelo disposto no artigo 49.°, n° 3, do Código de Processo Penal).

3. Não se torna necessário por isso que a queixa seja como tal designada e tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto jurídico-penal.

4. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve e menciona.

5. No caso em análise, o assistente apresentou a sua queixa em 19/06/2016, junto do órgão de policia criminal juntando logo aí uma missiva na qual no seu entender lhe vinham imputados factos que seriam falsos e que constituíam a prática de crime, manifestando a sua vontade de proceder criminalmente contra o arguido, voltando a reiterar tal vontade em 09/09/2016.

6. Pelo que, salvo melhor entendimento, consideramos que o assistente exerceu tempestivamente o seu direito de queixa pelos factos que viriam a ser objecto da acusação particular, o que legitimou a intervenção do Ministério Público e após dedução de acusação particular pelo assistente, não assistindo assim razão ao recorrente.

7. Consideramos igualmente que, a sentença recorrida fez uma correcta apreciação da prova produzida em audiência, não se vislumbrando qualquer erro na formação da convicção do tribunal, que imponha a alteração da matéria de facto provada.

8. Pelo que, outra não a condenação do arguido pela prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.°, n." 1 e 183.° n.º 1 al. b) do Código Penal e não a sua absolvição.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu desenvolvido parecer no sentido da confirmação da sentença, mas não se pronunciou sobre a questão relativa ao exercício do direito de queixa.

Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. No mês de Junho de 2016, foi entregue ao assistente uma carta escrita pelo punho do arguido e da sua total autoria, na qual constam as seguintes afirmações:

2. "Quando vires o Rui ou o tio LM, interroga-te tu e o Tomás, qual é que pode ser o vosso pai ... Quanto a ti, eu acho que és mais parecida com o LM. Por isso na piscina da Moita, havia tanta cumplicidade entre a tua mãe e ele";

3. "Adúltera é muito pouco para alguém que ao longo de 22 anos me insultou, humilhou, reduziu a insignificante, comparando com outros, nomeadamente com o porco do LM";

4. "Que tu e o Tomás são filhos dela, eu posso afirmar que sim, porque os vi nascer. Quanto ao pai, as mulheres adúlteras, infiéis, prostitutas, etc, nunca se sabe.";

5. "A prostituta da tua mãe valia-se dos meus horários, para meter dentro da nossa casa, o primo, para na piscina se satisfazer com o cunhado. ".

6. A referida carta era dirigida à sua filha Joana e, não obstante a natureza dos factos, o arguido não se coibiu de lhos dar a conhecer,

7. Sabendo ele serem falsos.

8. O assistente foi sempre uma pessoa conhecida e respeitada, quer no meio profissional, quer no seu meio social, onde lhe é reconhecida autoridade moral e integridade familiar, sendo até hoje pessoa fiel à sua esposa.

9. O assistente nunca teve qualquer envolvimento amoroso, carnal ou sexual, com a sua cunhada e, então, esposa do arguido.

10. O arguido sabe que ao escrever a referida carta, referindo que a Joana e o Tomás são filhos do assistente, ao referir-se a este de "porco" e declarando que presenciou o assistente de mão dada com a sua então mulher, e de ter um caso com ela,

11. ... Imputa factos e formula juízos de valor que são ofensivos da honra e consideração do assistente.

12. E não obstante, não se absteve de o escrever, por forma a ser propalado, agindo consciente e livremente.

13. O arguido sabia que praticava o ilícito em causa, o que previu e quis, de forma intencional e voluntária.

14. As palavras escritas pelo arguido causaram no assistente ofensa à sua honra, sofrimento e perturbação na sua família.

15. O assistente padece de doença do foro oncológico, o que lhe agudiza a sua incapacidade para tolerar comportamentos semelhantes ao do arguido.

16. O assistente sentiu-se hostilizado, vexado, humilhado, desrespeitando e injustiçado.

17. Bem como perturbado e ansioso, o que lhe causou desequilíbrios morais.

18. O arguido estudou até ao 11.º ano de escolaridade e exerce a profissão de maquinista da C.P.. Vive com uma companheira que trabalha na "ABVE", numa casa arrendada. O arguido aufere o vencimento mensal de € 1.500 e a sua companheira o correspondente ao SMN. Paga de renda de casa o valor mensal de € 300, uma pensão para cada um dos dois filhos no valor de € 250 e uma prestação mensal ao Banco, por conta de empréstimo contraído para aquisição de habitação no valor global de € 600.

19. O arguido está desavindo com as suas irmãs.

20. Não tem antecedentes criminais.”

Consignaram-se como factos não provados os seguintes:

“a. Que o arguido tenha divulgado aos vizinhos da rua e em lugares públicos, como nas aulas de futebol que o seu filho Tomás frequenta, os factos constantes da carta;

b. Que o arguido tenha ameaçado de morte e agredido o assistente e a sua esposa;

c. Que o arguido tenha sido abordado na rua por conhecidos, dando-lhe nota do seu conhecimento sobre os factos e indagação;

d. Que o arguido ao redigir a referida carta se tenha limitado a contar a verdade, revelando e desabafando junto da sua filha Joana sobre o passado e as razões principais que motivaram a sua separação com a sua mãe;

e. Que o arguido tenha visto o assistente e a sua então mulher de mãos dadas nas piscinas da Moita …;

f. Que o arguido tenha presenciado, na festa dos 50 anos do assistente, em Setembro de 2010, a relação de cumplicidade e de satisfação que a sua mulher tinha com o assistente;

g. Que, por causa da actuação do arguido, o assistente tenha tido uma gastrite nervosa e causado graves desequilíbrios económicos.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a apreciar respeitam à (a) regularidade da queixa apresentada pelo assistente, à (b) impugnação da matéria de facto e (c) ao erro de subsunção.

(a) Da queixa apresentada pelo assistente
O recorrente começa por defender a inexistência de uma queixa contra si formulada relativamente ao crime da condenação. Reitera assim, em recurso, a posição manifestada na contestação, onde arguiu também as consequentes falta de legitimidade do Ministério Público e nulidade da acusação particular.

A questão prévia suscitada pelo arguido, agora renovada no recurso, mostra-se decidida no seguinte despacho judicial exarado em acta de audiência de julgamento:

“V, em sede de contestação suscitou a falta de queixa pelos factos e ilícitos criminais constantes da Acusação Particular, e subsequentemente, pela falta de legitimidade por parte do Ministério Público em promover o processo que veio a ser instaurado.

O Ministério Público pronunciou-se, considerando que o direito de queixa do ora assistente LM foi exercido no dia 19-06-2016, e subsequentemente, quando novamente foi ouvido, em 09-09-2016.

O assistente também se pronunciou, advogando pela posição assumida pelo Ministério Público e assim pela legalidade e tempestividade da queixa apresentada e da legitimidade do MP em promover o processo crime, da qual resultou a Acusação Particular por si deduzida.

Conforme resulta do disposto no artº 49º do CPP, quando o procedimento criminal depender de queixa é necessário que as pessoas que se apresentem como ofendidas deem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo penal.

Conforme resulta do auto de participação de fls. 4, datado de 19-06-2016, o ora assistente apresentou queixa contra o ora arguido, juntando um escrito do qual, no seu entender, advinham factos de natureza criminal. Posteriormente, através dos esclarecimentos prestados em 09-09-2016, o arguido complementou essa mesma queixa inicial.

Posto isto, consideramos existir queixa bastante para que o Ministério Público tivesse prosseguido com o inquérito e que deu lugar à acusação particular deduzida pelo assistente, atendendo à natureza particular dos factos que vieram a ser efectivamente apurados.

Consideramos, pois, não ser exigível ao cidadão comum que, logo que tenha conhecimento de qualquer situação que no seu entender consubstancie a prática de um crime, concretize com rigor esses mesmos factos e faça a competente qualificação jurídica dos mesmos, sendo que, de todo o jeito, logo na primeira oportunidade, em 19-06-2016, o arguido juntou a carta que veio a sustentar a acusação particular deduzida e que portanto foi aí que esta teve origem.

Pelo que, nos termos do disposto no artº 49º do CPP, considera-se existir queixa legal e oportuna quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado.

Notifique.”

O despacho que conheceu da questão mostra-se em grande parte correcto, mormente na sua fundamentação, mas já não nas conclusões a que chega.

Na verdade, da análise dos autos resulta que o assistente apresentou tempestivamente uma queixa e que o fez contra o arguido. No “auto de denúncia” que dá início ao processo pode efectivamente ler-se que “o lesado deseja procedimento criminal contra o suspeito”.

Mas do inquérito já não resulta, pelo menos de modo inequívoco, que a queixa apresentada tenha abrangido o crime da acusação particular. Tenha abrangido, no sentido de nela terem sido relatados, de uma forma mais ou menos completa mas necessariamente evidente, factos que realizem o crime imputado na acusação particular, e pelo qual o arguido veio afinal a ser condenado (crime de difamação dos arts. 180.°/1 e 183.°/1, b), do CP). É que no presente inquérito estariam em causa (ou teriam então de estar em causa) dois crimes, de diferente natureza e que protegem bens jurídicos diversos.

Na verdade, no auto de denúncia consta apenas o seguinte (e a transcrição é integral):

“O participante compareceu nesta Esquadra, a informar que de há uns tempos a esta parte, tem vindo a ser ameaçado de morte, pelo suspeito, ameaças esta efetuadas através de terceiros, que só agora fizeram questão de contar ao suspeito.

Junto se anexa uma carta redigida pelo suspeito, e entregue à esposa do lesado, pela esposa do suspeito.

O lesado declara recear pela sua integridade física, bem como dos seus familiares, bem como se sente coagido quanto à sua liberdade pessoal, motivo pelo qual deseja procedimento criminal contra o suspeito.”

Esta “manifestação de procedimento criminal contra o suspeito” consubstancia sem dúvida uma queixa, que a lei dispensa, também sem dúvida, de formalidades especiais. E essa concreta queixa foi apresentada contra o arguido.

Mas os factos nela relatados respeitam exclusivamente a outro crime, que não o de difamação.

E assim o inquérito seguiu contra o arguido, mas por esse outro crime, findo o qual o Ministério Público proferiu o despacho (de arquivamento) que segue:

“No Âmbito dos presentes autos, no dia 19.6.2016, pelas 16h04, LM apresentou queixa contra V. Para tanto, o queixoso afirmou, em síntese, que V tem vindo a ameaça-lo de morte. Contudo, essas ameaças nunca foram transmitidas de forma direta à sua pessoa. Ou seja, soube das ameaças porque a esposa daquele - AA- transmitiu-as à sua esposa EP. No ato de apresentação da queixa o denunciante Luís entregou uma alegada carta escrita por V, no qual aquele fazia referências à sua pessoa- manuscrito de fls. 19 a 24.

Os factos denunciados são, em abstrato suscetíveis de integrar o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153 e 155 alínea a), do Código Penal.

Ora, foram ouvidas as seguintes testemunhas: (…)
Não existem outras diligências úteis a realizar.

Deste modo, cumpre apreciar se face à prova produzida existem indícios suficientes da prática do crime de ameaça pelo arguido. Entendemos que a resposta é negativa. Senão vejamos.
(…)

Além do mais, a carta alegadamente manuscrita pelo arguido não contém qualquer palavra de cariz ameaçador, não se extraindo dali qualquer anúncio com a prática de determinado crime. Deste modo, a versão apresentada por AA não é corroborada por qualquer meio de prova alheio ao conflito e é contrariada pelo arguido V, pelo que não temos, assim, elementos probatórios que permitam ilidir a presunção de inocência de que aquele beneficia.

Neste sentido, não há qualquer possibilidade razoável de o arguido ser responsabilizado criminalmente por estes factos, tendo como suporte a reprodução das provas recolhidas no inquérito (a sua absolvição em julgamento seria uma certeza).

Deste modo, e por se nos afigurar não existirem quaisquer outras diligências complementares de efeito útil a ordenar, determino o arquivamento do processo nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.”

Mas, seguidamente, o Ministério Público considerou:

“No âmbito dos presentes autos resultou, ainda, que o denunciado terá manuscrito uma carta onde afirmou “o porco do LM” (vide fls. 10). A factualidade é suscetível de, em abstrato, integrar o crime de difamação. No entanto, em concreto, entendemos que não existem indícios. Com efeito, o ofendido em lado algum referiu ter-se sentido “afetado” ou infamado por tais palavras, daí que na denúncia que apresentou apenas tenha feito referência às ameaças- vide fls. 4 verso e fls. 26 verso (itálico nosso).

Só são crime as injúrias/difamações que, pela sua natureza e circunstâncias, sejam tidas na comunidade por graves. (…) a carta mais não é que um conjunto de desabafos, alguns proferidos de forma pouco cortês e mal-educada, mas que não integram a prática de crime. Em suma, entendemos que não existem indícios da prática de crime particular pelo arguido.

No entanto, uma vez que o assistente pode ter entendimento diverso, notifique-o para, querendo, em dez dias, deduzir acusação particular contra o arguido, nos termos do disposto no artigo 285.º, do Cód. Proc. Penal.” (itálico nosso)

Como se vê, é o próprio Ministério Público do inquérito que logo constata que o queixoso, “na denúncia que apresentou” apenas fez “referência às ameaças”. Mas atendendo ao teor da carta junta aos autos, completa depois o despacho de arquivamento com a decisão de notificar o assistente para dedução de acusação particular (por crime particular não incluído na denúncia inicial, repete-se).

É certo que o queixoso fez entrega da carta em causa, escrita pelo arguido e contendo dizeres ofensivos a si dirigidos (não só a si, mas também a si). Mas a entrega desse documento, no contexto da denúncia que realmente apresentou, não explicita mais do que a entrega de um “meio de prova” das ameaças participadas.

Tanto mais que, para além de não ter feito a mínima referência aos dizeres da carta na denúncia verbalizada - na vertente de (estar a) denunciar esta acção do arguido dirigida contra a sua honra e consideração social -, ainda acrescentou, pela positiva, “temer pela integridade física, bem como dos seus familiares, bem como se sente coagido quanto à sua liberdade pessoal, motivo pelo qual deseja procedimento criminal contra o suspeito.”

Integridade física e liberdade são os (únicos) bens cuja agressão o queixoso denúncia, e que considera atingidos. E é relativamente a esta ofensa que manifesta o desejo de procedimento criminal.

Das demais declarações que prestou no decurso do inquérito nada mais de verdadeiramente conclusivo se retira, no sentido de uma expressão/manifestação inequívoca de procedimento criminal pelo crime de difamação (ou, pelo menos, pelos factos que o realizam).

Daí que o arguido conclua agora no recurso que “o ofendido apresentou uma denúncia, munido de uma carta e afirmando sentir-se ameaçado de morte e recear pela sua integridade física e, em lado algum, durante a fase de inquérito referiu sentir-se afectado ou infamado por expressões escritas naquela carta, nomeadamente o epíteto “porco”, razões pelas quais o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento e não acompanhou a acusação particular”.

Independentemente da (ir)relevância deste “sentir” da lesão da honra pessoal por parte do visado para uma posterior afirmação sobre a tipicidade, o certo é que a apontada ausência dessa manifestação não pode deixar de relevar na avaliação do sentido e dos limites do concreto exercício do direito de queixa e do modo como foi exercido.

O Ministério Público, na resposta ao recurso, apresentou acertadas conclusões que, em tese, são de sufragar. Elas conduzem, porém, ao resultado oposto ao proposto.

Assim, afigura-se correcto afirmar, como se lê na resposta ao recurso, que “nos crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o respectivo inquérito”; que “no que concerne à forma que a queixa tem de assumir, quer o Código Penal, quer o Código de Processo Penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto (o que é reforçado pelo disposto no artigo 49.°, n° 3, do CPP)”; que “não se torna necessário por isso que a queixa seja como tal designada e tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto jurídico-penal”; e que “indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve e menciona”. Mas já não se acolhe a conclusão de que a queixa apresentada tenha abrangido o crime da acusação particular.

Como se decidiu no acórdão da Relação de Évora de 14-10-2014, em situação não exatamente igual à presente mas com considerações que interessam aqui, (acórdão que teve como relatora a ora adjunta), “o simples relato dos factos no auto elaborado pela PSP e, posteriormente, o teor dos depoimentos dos ofendidos colhidos durante o inquérito, desacompanhados de manifestação inequívoca de vontade no sentido de que o arguido fosse alvo de perseguição criminal pela prática dos factos susceptíveis de integrarem crimes de injúria agravada, que lhe vieram a ser imputados na acusação deduzida pelo MP., não são suficientes para conferir a este legitimidade para a promoção do processo relativamente àqueles ilícitos.” (itálico nosso)

Também no acórdão do STJ de 5-12-2007 se decidiu, com interesse para o presente, que o auto de notícia por detenção já não vale, porém, como denúncia de procedimento criminal por crime de natureza semipúblico - o de injúria agravada - se não incluir manifestação inequívoca da vontade do(s) ofendido(s) de procedimento criminal por tal crime, ainda que ofendido seja também o agente que elaborou e assinou esse auto” e que “não constando do auto de notícia por detenção, nem posteriormente, o registo de qualquer queixa pelo crime de injúria agravada, por qualquer dos agentes de autoridade ofendidos, não pode presumir-se que descrição dos factos integrantes desse ilícito criminal, no auto de notícia por detenção da arguida, equivale a queixa por tal crime, e, por conseguinte, não assumindo tal crime natureza pública, não tem o Ministério Público legitimidade para acusar, por tal crime.” (itálico nosso)

Voltando ao acórdão da Relação de Évora referido, transcreve-se, também com interesse para aqui, que a queixa “pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais (art. 246º nº 1 do CPP). Ponto é que, dos seus termos ou pelo menos dos que se lhe seguirem, resulte inequívoca a vontade de que sejam perseguidos criminalmente os agentes do facto ilícito noticiado.”

E em nota de rodapé, completa-se ali: “Como em sintonia vem sendo entendido na doutrina e na jurisprudência:

“Queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (…) No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto” Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral - As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, págs. 665 e 675.

“A noção de queixa tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui processualmente queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto. A queixa exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia, pois na queixa, além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda «uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente» (cf., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2.ª ed., Editorial Verbo, t. III, de p. 55 a p. 59).” AUJ 7/2011 (D.R, 1.ª s.,de 31/5/11).

“Já no que se refere à forma da queixa, o Código Penal é omisso, devendo entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. O que só é reforçado pelo disposto no n.º 1 do artigo 49.º ao acentuar que, quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.” AUJ 4/2012 (D.R., 1ª s., de 21/5/12 ).” (itálicos nossos)

Em suma, a avaliação do comportamento processual do queixoso no decurso do inquérito, no que à manifestação do seu desejo de procedimento criminal contra o arguido se refere, permite apenas concluir que este direccionou a sua queixa, inequivocamente contra o arguido, mas apenas por factos relativos ao crime de ameaça, uma vez que temia pela sua integridade física e liberdade, como sempre expressou, em todas as ocasiões em que foi ouvido.

No mais, ou seja, na parte referente ao crime de difamação, esse comportamento processual não foi suficientemente explícito e evidente, no sentido de “dar a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto” (por esse facto). Tanto mais que se trata(va) de um crime de natureza particular, em que a lei, ao nível máximo, “prefere subordinar o seu alto interesse ao mais alto e mais respeitável interesse familiar” e em que “a parte” tem de “demonstrar que sentiu violados os seus direitos” (Luis Osório, cit. por Germano Marques da Silva, em Direito processual Penal Português, 2013, I, p. 249).

Consigna-se por último, agora no que respeita à tempestividade da arguição da questão e do seu conhecimento em recurso da sentença, que se sufraga a jurisprudência expressa (designadamente) no acórdão do TRL de 29-11-2010 (Rel. Maria José Pinto), em que se decidiu:

“Para o enquadramento do problema que temos por correcto, afigura-se-nos dever atentar-se em que a legitimidade dos sujeitos processuais constitui um pressuposto processual. Com o acto da dedução de acusação por crime particular pelo Ministério Público, sem as necessárias condições de procedibilidade, o que se verifica é a inexistência de um pressuposto processual: o Ministério Público carece de legitimidade para a promoção do processo penal.

Ora o conhecimento dos pressupostos processuais obedece a um regime próprio, distinto do regime das nulidades, com excepção da violação do pressuposto da competência do tribunal e da propriedade da espécie do processo, que se enquadram no regime taxativo das nulidades, por estarem expressamente referenciados nas alíneas e) e f) do artigo 119.º.

Como diz Paulo Pinto de Albuquerque, os pressupostos processuais (em que inclui genericamente a legitimidade dos sujeitos processuais) “podem ser conhecidos oficiosamente ou a requerimento”, não sendo relevante a manifestação de vontade dos sujeitos processuais para efeito de sanação do vício da falta de um pressuposto processual, dada a sua “natureza pública”, e “devem ser conhecidos a todo o tempo”, ressalvado o caso julgado formal.

Também Germano Marques da Silva refere que, desde que a lei não disponha de modo diverso, a falta de qualquer pressuposto processual “pode ser conhecida a todo o tempo, ainda que a lei, por uma razão de ordem, obrigue à verificação da sua presença ou da sua falta em determinados momentos processuais”.

Devem, pois, ser oficiosamente conhecidos pela autoridade judiciária, consoante a fase em que o processo se encontre.

Deve aliás notar-se que, especificamente a propósito da legitimidade do Ministério Público, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/95 (Acórdão de 95.05.16, in DR I-A de 95.06.12), fixou jurisprudência no sentido de que «a decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento».

O que denota ser este um pressuposto processual que se mantém em aberto ao longo de toda a tramitação do processo penal, o que bem se compreende, maxime quando a questão da legitimidade surge com nova configuração em virtude de um distinto enquadramento jurídico da conduta imputada ao arguido no processo, em julgamento ou, mesmo, já em via de recurso, como sucedeu “in casu”.”

De tudo se conclui que, não tendo a queixa apresentada pelo assistente abrangido de modo claro e inequívoco o crime de difamação dos arts. 180.°/1 e 183.°/1, b), do CP, que tem natureza particular, há que reconhecer agora, e declarar, a falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal relativamente a esse crime, da acusação particular.

E procedendo assim a questão prévia suscitada pelo recorrente, resultando dessa procedência a revogação da sentença, fica prejudicado o conhecimento das duas questões sobrantes colocadas em recurso.

4. Pelo exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença condenatória na decorrência da falta de legitimidade do Ministério Público (arts. 48º, 49º e 242, nº 2 do CPP e 188.º/1 do CP).

Sem custas.

Évora, 20.02.2018
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)