Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
958/20.3PBFAR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: MEDIDA DA PENA
CONCURSO DE CRIMES
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Na determinação da pena do concurso estabelece a lei que se considerem, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 1, do Código Penal), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o artigo 71º, nº 1, do mesmo Código Penal, bem como os fatores elencados no nº 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes (e porque aqui se atende a tais fatores referidos ao conjunto dos factos, enquanto que nas penas parcelares esses fatores foram considerados em relação a cada um dos factos singulares, intocado fica o princípio da proibição da dupla valoração).
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

No Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 958/20.3PBFAR, do Juízo Central Criminal de … (Juiz …), e mediante pertinente acórdão, foi decidido:

“a) Absolver arguido AA da prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1, do Código Penal.

b) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), e nº 4, do Código Penal, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão;

c) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), e nº 4, do Código Penal, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão;

d) Condenar o arguido AA na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão.

e) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contactar com BB, bem como de se aproximar da sua residência ou local de trabalho, pelo período de 4 anos e 3 meses, nos termos do artigo 152º, nº 4, do Código Penal, sendo de aplicar mecanismos de controlo à distância caso o arguido venha a ser libertado antes do terminus da pena acessória.

f) Atribuir, nos termos do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, a BB uma reparação pelos prejuízos causados, que se fixa em 5.000,00 euros, ficando o arguido responsável pelo seu pagamento.

g) Ordenar a recolha de amostras de ADN do arguido, a fim de se proceder à sua inserção na base de dados de perfis de ADN, em obediência ao disposto no artigo 8º, número 2, da Lei 5/2008, de 12 de fevereiro.

h) Condenar o arguido no pagamento das custas, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça, acrescida dos encargos a que a atividade do mesmo houver dado lugar”.

*

Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão, formulando na respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. O douto acórdão recorrido, ao condenar o arguido na pena de prisão em que o condenou, fez aplicação incorreta do Direito, violando os princípios da proporcionalidade e da adequação da pena ao tipo de ilícito cometido.

2. A aplicação de uma pena de prisão efetiva ao recorrente excede as necessidades exigidas pelas teorias legalmente acolhidas, para justificar os fins das penas.

3. De acordo com o artigo 70º, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

4. Ao aplicar ao arguido uma pena principal de 4 anos e 3 meses de prisão, o Tribunal a quo fez errada aplicação do Direito, nomeadamente dos artigos 70º e 71º do Código Penal.

5. É suficiente, adequada e proporcional, de forma a assegurar os fins das penas, a aplicação ao arguido de uma pena de prisão suspensa na sua execução por igual período.

6. No caso dos autos, o Tribunal a quo deveria ter realizado um juízo de prognose favorável, em relação ao comportamento futuro do arguido, pois dos factos dados como provados nada indica que, após fevereiro de 2020 e até à presente data, o arguido tenha procurado a vítima ou tenha praticado atos da mesma natureza.

E mais,

7. O arguido não tem antecedentes criminais pela prática do mesmo crime.

8. O recorrente é jovem (28 anos), o que o beneficia numa futura reintegração social.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida na parte em que condena o arguido na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, e portanto ser aquela decisão revogada e substituída por outra suficiente, justa, adequada e proporcional numa pena de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, e assim dê ao arguido uma maior probabilidade de se reintegrar na sociedade”.

*

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que o mesmo é de improceder (mas não formulando “conclusões”).

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo também no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Atendendo às conclusões apresentadas pelo recorrente, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem (nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal), são duas, em breve síntese, as questões suscitadas no presente recurso:

1ª - A determinação da medida concreta da pena (pena que o recorrente considera exagerada e desproporcional).

2ª - A suspensão da execução da pena (entende o recorrente que a pena deve ser suspensa na sua execução).

2 - A decisão recorrida.

O acórdão revidendo é do seguinte teor (quanto aos factos - provados e não provados - e no tocante à motivação da decisão fáctica):

“1 - Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. BB e o arguido começaram a namorar no ano de 2015.

2. Àquela data, BB tinha uma filha, CC, nascida em .../.../2012, sendo esta filha de DD.

3. Cerca de dois a três meses depois de começarem a namorar, e no ano de 2015, quando se encontravam na Urbanização ..., em ..., o arguido desferiu uma bofetada na face de BB.

4. Cerca do mesmo período de tempo referido em 3. e igualmente no mesmo local, o arguido, porque BB foi cumprimentada por um ex-namorado, desferiu-lhe bofetadas na face, em número não apurado, mas superior a duas, só cessando a sua conduta quando o nariz de BB começou a sangrar.

5. Passados cerca de três meses do início do namoro, AA começou a pernoitar com BB na casa do pai desta, na Urbanização ..., onde também residia a sua filha.

6. Em dia não apurado do ano de 2015, cerca das 18:00/19:00 horas, e já quando o arguido pernoitava na residência da sua namorada, o arguido, apercebendo-se que BB havia rececionado uma mensagem telefónica de um amigo, apelidou-a de puta e vaca, acusou-a de querer estar com outros homens, tendo desferido estaladas na sua face, puxado o seu cabelo e desferido joelhadas na barriga e zonas lombares daquela.

7. Noutro dia, ainda em 2015, mas posteriormente ao acontecido em 6., e quando BB e o arguido se encontravam na via pública, na Urbanização ..., o arguido desferiu duas estaladas na face de BB, ficando esta com marcas dos dedos nas faces.

8. Já em 2016 os pais de BB decidiram mandá-la para os ..., de forma a afastá-la do arguido, onde aquela permaneceu três meses, regressando em data não concretamente apurada, mas entre abril e junho.

9. Regressada a Portugal, BB foi de imediato residir com o arguido na casa da mãe deste, situada no ....

10. No final do Verão de 2016, no interior da residência que partilhavam, o arguido, com as duas mãos, apertou o pescoço de BB, vindo esta a perder os sentidos e caído ao solo.

11. Enquanto permaneceram a viver em casa da mãe do arguido, o casal foi tendo sucessivas discussões, vindo o arguido, em datas e locais não apurados, mas também na via pública, a puxar a BB, impedindo-a de se afastar ou gritando-lhe para se calar, sendo que a apelidava de puta e vaca.

12. Ainda no decurso do ano de 2016, o casal saiu de casa da mãe do arguido e arrendou um quarto junto ao supermercado ..., sito na ..., em ....

13. Durante os dois a três meses em residiram no quarto referido em 12., em número de vezes não apurado, mas múltiplas, o arguido desferiu bofetadas e socos na face de BB, bem como a atingiu noutros locais do corpo, causando-lhe hematomas.

14. Em algumas das vezes referidas em 13., e em consequência das agressões perpetradas pelo arguido, BB ficou com os olhos inchados, o que impedia a sua normal abertura.

15. Ainda no ano de 2016, BB terminou o relacionamento amoroso com AA e passou a residir em casa de EE, onde se manteve durante cerca de dois a três meses.

16. Algum tempo depois de estar a residir no local referido em 15., BB e o arguido retomaram o contacto, vindo a reatar o namoro.

17. Entretanto, BB passou a residir em casa da avó materna da sua filha.

18. Na noite da passagem de ano de 2016 para 2017, BB e o arguido foram dormir no Hotel ..., em ....

19. Tenda BB recebido uma chamada telefónica do pai da sua filha, tal desagradou ao arguido que passou a desferir-lhe socos e chapadas na face, costelas e costas.

20. Em 1 de Janeiro de 2017 BB foi novamente viver com o arguido para casa da mãe deste, no ....

21. Entretanto, BB engravidou, tendo FF, também filho do arguido, nascido no dia .../.../2017.

22. Durante o período de gravidez, o arguido chegou a retirar dinheiro a BB, contra a vontade e sem o conhecimento desta, o que levou a que aquela não tivesse dinheiro para comprar comida.

23. Quando estava grávida de cerca de 6 meses, o arguido usou o cartão multibanco de BB para fazer um levantamento de dinheiro, e quando aquela o confrontou com tal, o arguido desferiu uma estalada na face que causou sangramento no lábio.

24. Ao longo de todo o período de gravidez, em número de vezes não apurado, mas por múltiplas vezes, o arguido desferiu bofetadas nas faces de BB.

25. Quando BB estava no oitavo mês de gravidez, o arguido fez embater uma porta da residência contra aquela, atingindo-a quer na face quer no corpo.

26. Já após o nascimento do filho em comum, o arguido começou a consumir substâncias estupefacientes.

27. Em janeiro de 2019, BB saiu da casa onde morava com o arguido, cessando a relação, tendo ido viver para uma casa sita no ..., em ..., apenas mantendo contacto com o arguido por motivos relacionados com o filho de ambos.

28. Em dia não apurado, mas no período entre Janeiro e Fevereiro de 2020, o arguido acompanhou BB e o filho até à paragem de autocarro, e quando aquela conversava com ele sobre a sua vida e nomeadamente sobre amigos seus, ficou irritado e disse-lhe que ela não tinha vergonha, que o tinha deixado para andar com outros, após o que lhe desferiu um soco que a atingiu na face.

29. Quando o arguido desferiu o soco, BB trazia o filho ao colo, tendo este ficado a chorar.

30. Nesse mesmo período de tempo, o arguido teve conhecimento que BB namorava com um rapaz, e no dia 24 de fevereiro de 2020, por não pretender que BB deixasse o filho conviver com o namorado, combinaram encontrar-se junto da Urbanização ....

31. Quando se encontraram, o arguido dizendo que a matava a ela e ao namorado, encostou à têmpora de BB um objeto metálico, de cor ..., que aparentava ser uma arma de fogo.

32. Depois, o arguido pediu a BB que não apresentasse queixa, dizendo-lhe que não pretendia fazer-lhe mal, mas que se ela deixasse o filho conviver com o seu namorado matava este.

33. Já no dia seguinte, 25 de fevereiro de 2020, e por múltiplas vezes, o arguido telefonou para o restaurante do pai de BB, e onde esta trabalha, quer a apelidando de puta quer dizendo que se deslocaria ao local e a matava, incendiando o restaurante.

34. Nas situações supra descritas, o arguido quis molestar o corpo e a saúde da sua namorada e companheira, sabendo e querendo, desse modo, causar-lhe dores e sofrimento, o que efetivamente conseguiu.

35. Sabia ainda que a ofendia na sua honra e consideração, bem como sabia que, ao praticar os factos no interior da residência, diminuía as suas possibilidades de defesa ou fuga, causando-lhe sentimentos de insegurança, vulnerabilidade e humilhação.

36. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

37. O arguido é o segundo de uma fratria de três de um agregado familiar de um estrato socioeconómico mediano.

38. Os progenitores separaram-se quando tinha 12 anos.

39. Deixou de estudar aos 11 anos, não tendo encetado qualquer atividade formativa ou profissional.

40. Entretanto, o arguido frequentou ações de formação no IEFP.

41. Em 2016, e alternando períodos de atividade e inatividade, começou a trabalhar na ….

42. Em 2021 o seu modo de vida era precário, tendo-se afastado do seu agregado familiar.

43. No final de 2021 compareceu na DGRSP, onde informou estar a diligenciar para integrar uma Comunidade Terapêutica, tendo referido ser adito de heroína.

44. No processo n.º 1259/12...., do extinto 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de …, foi condenado por sentença transitada em julgado em 30/6/2014, por factos praticados em 12/11/2012, pela prática de um crime de roubo, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução, estando a pena extinta.

45. No processo n.º 1197/14...., do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial de …, foi condenado por sentença transitada em julgado em 6/10/2017, por factos praticados em 20/11/2014, pela prática de três crimes de roubo, na pena única de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.

2 - Factos Não Provados

Não se logrou provar que:

a) Sempre que BB falava com um amigo de sexo masculino o arguido apodava-a de puta e vaca.

b) BB tenha vivido com o arguido em casa da ex-sogra.

c) Na noite da passagem de ano de 2016 para 2017 o arguido tenha desferido pontapés no corpo da BB, a tenha chamado de mentirosa e dito que ela andava metida com o outro ou que ia ter com esse.

d) O arguido chegou a colocar-se junto ao ..., local onde BB trabalhava, tendo os seguranças tido de o expulsar do local.

e) O arguido tenha perseguido BB, nomeadamente aquando dos factos ocorridos junto à escola de enfermagem.

f) O arguido, no dia 5 de setembro de 2020, se tenha aproximado de GG, na Rua ..., em ..., desferido uma cabeçada na cabeça daquele e, após, retirado o telefone que aquele trazia na mão.

g) O arguido tivesse feito seu aquele telemóvel.

3 - Fundamentação da Matéria de Facto

A convicção do Tribunal acerca da matéria de facto dada como provada e como não provada fundou-se no conjunto da prova produzida recorrendo às regras de experiência e fazendo-se uma apreciação crítica da mesma.

Sendo certo que o arguido não compareceu à audiência de julgamento, o Tribunal valorou as declarações que BB prestou nos termos previstos no art.º 271º do Código de Processo Penal. As declarações daquela, à data ainda nem constituída na qualidade de assistente, transmitem serenidade, clareza, transparência e coerência, sendo evidente que não existe efabulação nos factos descritos ou sendo sequer patente animosidade para com o arguido. Sendo claro que foi evidente que a assistente não foi capaz de precisar as datas concretas em que os factos ocorreram ou quantas vezes o arguido a agrediu fisicamente, ou quantas bofetadas ou murros desferiu em cada vez que a agrediu, o seu depoimento mostrou-se impressivo ao retratar uma vivência de cerca de 4 anos, quer enquanto namorados quer já vivendo em condições análogas às dos cônjuges, com coabitação, em que, logo passados dois a três meses do início da relação, o arguido perpetrou a primeira agressão física. A testemunha também foi descrevendo os sucessivos locais onde residiu, quer com o arguido quer sem ele, sendo evidente que houve situações de agressões físicas que foram mais marcantes e violentas, e outras já por si banalizadas, quase como se considerasse que sofrer estaladas sucessivamente, desde que uma por dia ou uma por discussão fosse algo aceitável e normal de suceder numa relação, o que é bastante demonstrativo de que como a relação se desenvolveu.

Sendo que inexiste qualquer prova documental das lesões que BB declarou ter sofrido, o Tribunal deu-lhe inteira credibilidade, até porque as demais testemunhas inquiridas em sede de audiência prestaram depoimentos corroborantes do por aquela declarado.

Resultando das declarações de BB que os factos ocorreram sem que ninguém os presenciasse, aquela também referiu que várias vezes as suas lesões eram visíveis para terceiros, quer familiares quer colegas de trabalho, pois que eram na face.

Sendo evidente que à data que as declarações para memória futura ocorreram já haviam decorrido mais de 5 anos sobre a primeira agressão física perpetrada pelo arguido, o hiato temporal tornou quase impossível estabelecer uma data concreta para cada facto relevante, no entanto, as declarações da testemunha inculcam certeza de que durante todo o período da relação, desde 2015 a Janeiro de 2019, data em que saiu da residência da mãe do arguido, onde ambos residiam com o seu filho, o arguido foi agredindo física e psicologicamente a sua namorada, companheira e mãe do seu filho, num relacionamento desde sempre abusivo, o que era do conhecimento do pai de BB bem como da família que foi em tempos sua família de acolhimento, e a quem trata por pais adotivos, e mesmo de amigas.

Sendo que as testemunhas inquiridas pelo Tribunal se mostraram isentas, sem demonstrar qualquer sentimento desvalioso para com o arguido, todas chegaram, ao longo dos anos e em momentos distintos, a visualizar o arguido a agredir a BB ou a visualizar marcas de agressões no corpo daquela ou ouviram aquela contar as agressões de que era vítima. Foi isso que a testemunha HH veio relatar, ao declarar que presenciou o arguido a desferir um pontapé na perna de BB, que ficou vermelha no local atingido, e que tendo estado a viver algum tempo com a BB, uma vez que os seus pais foram a família que acolheu a BB na infância, esta se mostrava muito assustada, ao ponto de terem de a acompanhar até ao local de trabalho, tendo também confidenciado que o arguido a ameaçava.

Do depoimento de II, pai de BB, resultou que o mesmo chegou a visualizar marcas de agressões no corpo da filha, incluindo um hematoma num dos olhos, e tal quando ela residia consigo, sendo que, posteriormente ao nascimento do filho de ambos voltou a ver hematomas, quer no braço quer no pescoço da filha. Do seu depoimento resultou também que foi devido à relação abusiva que mandou a filha viver para ..., de onde não soube dizer quando ela voltou porquanto quando o fez foi de imediato viver com o arguido, sem sequer contar aos pais.

A perceção da existência de uma relação de abuso foi também o que a testemunha JJ, mãe da BB, relatou ao Tribunal, pois que embora nunca tenha presenciado qualquer agressão à filha, tal era o que resultava dos relatos que esta lhe fazia, tendo, quer antes do nascimento do filho do casal quer posteriormente, visto hematomas na face e pernas da sua filha, sendo que em alguns dos relatos a filha chorava e mostrava-se nervosa e com medo do arguido.

EE, a quem BB se refere nas declarações prestadas como sendo sua mãe adotiva, confirmou que a BB, após ter regressado … esteve a viver na sua casa, e tal porque não tinha onde ficar. Que foi nessa altura que a sua filha HH viu o arguido a bater na BB e que viu hematomas no seu corpo, tendo aquela dito que eram consequência das agressões perpetradas pelo arguido. Como a BB também referiu que ele a ameaçava, foi preciso começar a ir levá-la e buscar ao trabalho, embora pouco tempo depois ela tivesse deixado a sua casa e retomado a relação com o arguido.

Já a testemunha KK, amiga de BB, e próxima da mesma desde que se deu a rutura definitiva da relação dela com o arguido, declarou que em dia que não soube precisar encontrou aquela a chorar, tendo-lhe contado que o arguido lhe tinha encostado uma arma à cabeça, e que ele a ameaçava e chamava de puta e vaca.

Ou seja, resultando da conjugação de todos os depoimentos, que BB não tinha grande proximidade com a família, seja a biológica seja a afetiva, pateteando-se falta de proximidade e contacto, é evidente que muitos dos factos relatados por ela não podem ter sido do conhecimento daqueles. No entanto foi evidente que todos, ao longo dos anos, foram tendo conhecimento do que se passava, ainda que não o perguntassem ou BB não contasse, tendo sido até decidido que aquela iria deixar Portugal. No entanto, tal não foi obstáculo a um rápido regresso e a um retomar da relação, sendo referidos sucessivas visualizações de hematomas no corpo de BB.

O que as testemunhas referem ter visto e ouvido ao longo dos anos corrobora o que BB declarou nos autos, sendo que a descrição do estado emocional que foram notando em BB ao longo dos anos, também se mostra compatível com os factos que descreve, sendo evidente que todas as testemunhas depuseram no sentido de estarem perante uma pessoa emocionalmente fragilizada, com medo e assustada.

Assim, entendeu o Tribunal dar inteira credibilidade ao declarado por BB, assim se considerando como provados os factos, tendo-se ainda atendendo ao teor dos documentos de fls. 248 e ss., de onde resultam o nome completo dos menores, bem como a data de nascimento e filiação.

Relativamente aos factos considerados provado em 34 a 36, os mesmos resultaram da valoração objetiva dos factos praticados pelo arguido, pois que sendo factos internos da consciência do agente, e não os assumindo o arguido, os mesmos terão, de acordo com regras de inferência e de experiência comum, de resultar das condutas objetivamente assumidas, pelo que, não pode haver qualquer dúvida de que, face à forma como o arguido atuou, e sabendo ele a relação afetiva que mantinha com BB bem como que esta era a mãe do seu filho, o mesmo sabia que a magoava quer física quer psicologicamente, bem como que tal conduta lhe estava vedada e era proibida e punida por lei.

O Tribunal valorou ainda o teor do relatório social constante de fls. 120 e ss., que foi solicitado a outro processo pendente contra o arguido, ao que foi necessário o Tribunal recorrer de forma a apurar algo sobre as condições pessoais do arguido, uma vez que o arguido, voluntariamente, não compareceu em julgamento e não foi possível detê-lo para o fazer comparecer, como resulta das atas do julgamento.

Teve-se ainda em conta o seu certificado de registo criminal.

Relativamente aos factos não provados, tal resultou de não ter sido feita prova da sua ocorrência, e tal quer em relação a BB, pois que não referiu a sua ocorrência, quer em relação aos factos que se referem a GG.

No que concerne àqueles factos, e que são aqueles pelos quais foi deduzida acusação nos presentes autos, apenas se logrou a inquirição do agente policial que recebeu uma denúncia. Já o denunciante, e que seria o único com conhecimento direto e pessoal dos factos, não se logrou inquirir, pelo que não foi assim produzida qualquer prova de que tais factos tivessem ocorrido”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da determinação da medida concreta da pena.

Alega-se, na motivação do recurso, e em breve resumo, que é demasiado elevada, exagerada e desproporcional, a pena em que o arguido foi condenado, atendendo a que o arguido não voltou a perpetrar factos da mesma natureza relativamente à ofendida (nem sequer a tendo procurado), olhando à ausência de antecedentes criminais do arguido pela prática de crimes de idêntica natureza da dos crimes destes autos, e ponderando ainda a juventude do arguido (com apenas 28 anos de idade).

Cumpre decidir.

Apesar da falta de clareza que perpassa toda a motivação do recurso nesta vertente (nomeadamente não se sabendo, com rigor, se o recorrente questiona a medida concreta das penas parcelares e da pena única, ou se questiona apenas esta última), esta instância recursória analisará a medida concreta de todas as penas de prisão aplicadas (penas parcelares e pena única).

O arguido foi condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, e pela prática de outro crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão.

Os crimes de violência doméstica em causa, previstos e punidos pelo artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal, são punidos, em abstrato, com pena de 2 anos a 5 anos de prisão.

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

Por outro lado, o artigo 71º do mesmo Código Penal estipula que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como escreve Claus Roxin, em passagens perfeitamente consonantes com os princípios basilares do nosso direito penal (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, Tradução da 2ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada. (…) A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade”.

Mais acrescenta o mesmo autor (ob. citada, pág. 101): “certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.

Por fim, salienta ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103) que “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.

Passemos, visto o caso em apreço nestes autos, à concretização destes enunciados, sendo certo que, para o efeito, o tribunal deverá atender “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (artigo 71º, nº 2, do Código Penal).

Assim, tem de ponderar-se:

- O grau de culpa (o arguido atuou com dolo direto e intenso).

- O grau de ilicitude com que o arguido agiu (ponderando o modo de atuação do arguido, o desvalor da sua ação e os resultados da sua conduta, a ilicitude é muito elevada).

- O facto de o arguido não possuir antecedentes criminais por crime de violência doméstica (o arguido possui duas condenações anteriores, pela prática de diversos crimes de roubo, datadas de 2014 e 2017, em penas de prisão suspensas na respetiva execução).

- As exigências de prevenção geral, que são muito elevadas, num contexto temporal em que os crimes de violência doméstica cometidos em Portugal, e as suas nefastas consequências para as vítimas, causam justificado alarme social.

- As condições de vida do arguido (que não possui atividade profissional definida), a sua personalidade (espelhada nos factos delitivos em apreço nestes autos), e, bem assim, a sua fraca inserção familiar e social (cfr. factos dados como provados no acórdão revidendo sob os nºs 39 a 43).

Sopesados todos esses elementos, na sua globalidade complexiva, entendemos adequadas as penas parcelares aplicadas ao arguido no acórdão recorrido (3 anos e 3 meses de prisão e 2 anos e 9 meses de prisão - ambas situadas abaixo do limite médio da moldura penal abstrata prevista para os crimes cometidos -).

Subscreve-se, pois, o que vem consignado no acórdão revidendo a propósito da determinação da medida concreta das penas parcelares: “na determinação da medida da pena cumpre ponderar as seguintes circunstâncias: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente: quanto a este aspeto há que ter em consideração que existem factos que foram praticados durante os anos de 2015 até início de 2019, sendo que aí ocorreram agressões físicas que causaram lesões com alguma gravidade; já em 2020, os factos revelam particular gravidade, face ao arguido ter usado um objeto que foi percecionado pela ofendida como sendo uma arma de fogo; o que, no conjunto, permite concluir por um grau de ilicitude já médio/alto; o arguido ter atuado sempre com dolo direto, ou seja, na forma mais gravosa das três modalidades do dolo; a circunstância do arguido ter mantido ao longo de toda a sua vida adulta um comportamento desviante, como resulta do teor do seu certificado de registo criminal, de onde resulta ter sido condenado pela prática de crimes de roubo, um praticado em 2012 e outros em 2014. Consideram-se, para além destes fatores, as exigências de prevenção geral e especial, que são elevadas, na medida em que a violência doméstica é um dos atuais flagelos da nossa sociedade, pelas proporções que atinge, inclusive nas camadas mais jovens, e pela falta de atuação atempada das autoridades. Em termos de prevenção especial, impõe-se que o arguido se consciencialize da gravidade dos seus atos, que os factos objetivamente considerados demonstram não possuir, e assuma a responsabilidade pelos seus comportamentos. Tudo visto e ponderado, entende-se

como justa, adequada e proporcional à culpa do arguido e às exigências de prevenção as penas de: - 3 anos e 3 meses de prisão (factos 3 a 27); - 2 anos e 9 meses de prisão (factos 28 a 33)”.

Face ao que vem de dizer-se, e quanto à medida concreta das duas penas parcelares, é de manter o decidido em primeira instância, sendo o recurso de improceder.

*

Em cúmulo jurídico das duas penas parcelares aplicadas, o Tribunal a quo estabeleceu a pena única em 4 anos e 3 meses de prisão.

A moldura abstrata da pena do concurso tem como limite máximo a soma das penas de prisão concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, nº 2, do Código Penal).

No caso destes autos, o limite máximo da pena a ponderar é de 6 anos de prisão (soma das penas parcelares aplicadas ao recorrente), e o limite mínimo dessa mesma pena é de 3 anos e 3 meses de prisão (pena parcelar mais elevada).

Dentro da moldura abstrata assim encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 1, do Código Penal), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o artigo 71º, nº 1, do mesmo Código Penal, bem como os fatores elencados no nº 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes (e porque aqui se atende a tais fatores referidos ao conjunto dos factos, enquanto que nas penas parcelares esses fatores foram considerados em relação a cada um dos factos singulares, intocado fica o princípio da proibição da dupla valoração).

Como bem salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2011, págs. 291 e 292), tudo deve passar-se, por conseguinte, “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

No caso, é acentuada a gravidade do ilícito global (além do mais, os factos praticados pelo arguido e ora em apreciação ocorreram num período de tempo que decorre entre 2015 e 2020).

No contexto da personalidade unitária do arguido, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos é reconduzível a um desvalor que radica, claramente, na personalidade (do arguido), manifestamente desconforme aos valores sociais que o direito penal tutela.

Na verdade, apesar das anteriores condenações, pela prática de diversos crimes de roubo (condenações datadas de 2014 e 2017 - cfr. factos dados como provados no acórdão revidendo sob os nºs 44 e 45 -), o arguido não mudou o respetivo percurso de vida, denotando, assim, acentuados problemas de integração pessoal e social.

Pelo que fica exposto, e tendo também em devida conta os elementos diretamente conexionados com as condições de vida do arguido, tem-se como adequada a pena única fixada em primeira instância - 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão (próximo do limite médio da moldura do cúmulo) -.

Também aqui andou bem o Tribunal de primeira instância, cuja argumentação se subscreve: “ponderando-se, em conjunto, a ilicitude dos factos praticados, o dolo intenso e direto com que o arguido atuou, o percurso de vida do arguido e os seus antecedentes criminais, nos termos já supra explanados, bem como a sua personalidade manifestada na matéria provada em audiência de julgamento, e a culpa que se demonstra, considera-se ajustada a pena de 4 anos e 3 meses de prisão”.

Improcede, assim, nesta primeira parte (medida concreta da pena), o recurso do arguido.

b) Da suspensão da execução da pena.

Alega o recorrente que a pena estabelecida nestes autos deve ser suspensa na sua execução.

Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no artigo 50º, nº 1, do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Como é sabido, não são considerações de culpa que interferem na decisão que agora nos ocupa, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.

A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, e não qualquer correção ou melhora das conceções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zift, uma questão de “legalidade” e não de “moralidade” que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência” (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2011, págs. 343 e 344).

Como muito bem esclarece este professor (mesma obra, pág. 344), “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime (...). Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”.

Acresce que está em causa, no instituto da suspensão da execução da pena, não uma qualquer “certeza”, mas apenas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida. O tribunal deve correr risco “prudencial” (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade. Existindo, porém, razões sérias para questionar a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (cfr. ainda o Prof. Figueiredo Dias, ob. citada, págs. 344 e 345).

A suspensão da execução da pena de prisão assenta, pois, num prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, prognóstico efetuado no momento da decisão. Tal juízo de prognose fundamentar-se-á, cumulativamente, na ponderação da personalidade do agente e das circunstâncias do facto (ainda que essas circunstâncias sejam posteriores ao facto e mesmo que já tenham sido valoradas em sede de medida concreta da pena).

Ou seja, no referido juízo de prognose há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste mesmo facto.

O arguido/recorrente já foi condenado criminalmente, por duas vezes:

- Por sentença transitada em julgado em 30-06-2014, pela prática de um crime de roubo, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução;

- Por sentença transitada em julgado em 06-10-2017, pela prática de três crimes de roubo, na pena única de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução.

Ora, face a tal percurso criminal do arguido, que já foi condenado anteriormente em penas de prisão (ainda que suspensas na sua execução) e que, apesar disso, não infletiu os seus comportamentos delituosos, e avaliando toda a factualidade apurada nos presentes autos, não é razoável formular um juízo de prognose positiva no sentido de que a censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não sendo, assim, de aplicar o instituto da suspensão da execução da pena.

Por um lado, não podemos fazer um juízo de prognose favorável no que respeita à conduta futura do arguido, que permita alicerçar a convicção de que a simples ameaça do cumprimento da pena de prisão será suficiente para cumprir as finalidades de prevenção especial existentes in casu.

Ou seja, e no concernente às necessidades de prevenção especial, nada nos permite concluir que o arguido deixará de praticar factos com relevância penal, da mesma natureza da dos crimes destes autos ou de qualquer outra natureza.

Por outro lado, no tocante às necessidades de prevenção geral, a comunidade dificilmente compreenderia que um arguido, com o passado criminal do arguido destes autos, e perante crimes de violência doméstica que, na sua globalidade complexiva, atingem um grau de gravidade muito expressivo, sobretudo pelo clima de medo e de tensão que, objetiva e fundadamente, gerou na ofendida, fosse punido com uma pena que não a de prisão efetiva.

Em suma: analisados os factos, vista a conduta do arguido, anterior e posterior à prática dos mesmos, e ponderadas quer a personalidade do arguido quer as suas condições de vida, concluímos que só uma pena de prisão efetiva assegura, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Assim, subscreve-se, também aqui, o que consta do acórdão revidendo: “perante o que resulta do seu certificado de registo criminal, bem como das suas condições pessoais, é patente que o arguido tem apresentado um percurso existencial pouco estruturado, sedo que foi já condenado por crimes que exigem, para a sua verificação, a prática de violência contra terceiros, sendo que, tendo sido condenado em penas de prisão suspensas na sua execução, parte dos factos ora em apreciação foram cometidos durante a vigência dessas penas, o que demonstra que existe uma propensão para a prática de atos violentos. Assim, entendemos que o percurso existencial do arguido é no sentido de que a simples ameaça da execução da pena não se mostra adequada nem a satisfazer as exigências de prevenção geral nem as exigências de prevenção especial, pelo que se impõe a sua não aplicação”.

Em conclusão: não é de suspender a execução da pena de prisão aplicada ao recorrente.

Face a tudo o predito, é totalmente de improceder o recurso interposto pelo arguido.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se integralmente o acórdão revidendo.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de setembro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Edgar Gouveia Valente