Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
675/13.0TBVNO.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA CONTRATUAL
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No caso de, num contrato de seguro, se convencionar a cláusula claims made e existir sucessão de seguradoras, não sendo certo se a participação do sinistro foi regularmente feita, deve a acção prosseguir contra as duas seguradoras.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 675/13.0TBVNO.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) propôs uma acção contra Dr. F. (…) e Companhia de Seguros (…).
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A 2.ª R. (entretanto substituída por Seguradores Unidas S.A.) invocou a sua ilegitimidade por força de nos anos de 2010 e 2011 a responsabilidade civil profissional dos Advogados não estar transferida para si mas antes para a Arch Insurance Company (Europe) Ltd..
Foi ordenada, após requerimento nesse sentido, a intervenção da Arch Insurance.
Esta defende que deve ser absolvida do pedido com fundamento na falta de cobertura temporal das apólices que titulam o seguro uma vez que o sinistro não lhe foi comunicado durante o período seguro. Depois deste, foi o contrato de seguro celebrado com a (…) tendo sido estabelecida uma data retroactiva ilimitada.
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No despacho saneador foi decidido absolver a R. (…) da instância e foi julgada improcedente a excepção da falta de cobertura das apólices que titulam o contrato celebrado com a Arch Insurance.
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É deste despacho que esta última recorre pretendendo a sua revogação.
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A recorrida (…) contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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O tribunal considerou os seguintes elementos de facto:
1- O A contratou os serviços da 1.º R., Advogado, em 9 de Abril de 2009.
2- Em 19 de Maio de 2010, o A. retirou a confiança ao 1.º R., facto que lhe comunicou expressamente por escrito, solicitando ainda a devolução da quantia paga a título de honorários e os documentos que lhe haviam sido confiados.
3- A 23 de Setembro de 2011, deu entrada no Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados uma participação efectuada pelo A., contra o 1.º R., imputando-lhe um conjunto de factos consubstanciadores da violação da parte deste dos deveres de tratar com zelo as questões de que fora incumbido.
4- No ano de 2010, a responsabilidade civil emergente de actos e omissões de advogados encontrava-se transferida para a Arch Insurance mediante contrato de seguro titulado pelas apólices (…) e (…) e no ano de 2011 encontrava-se igualmente transferida para a mesma seguradora mediante contrato de seguro titulado pelas apólices (…) e (…).
5- Nas apólices subscritas pela Arch respeitantes aos anos de 2010 e de 2011, o artigo 2.º das Condições Particulares estipula o seguinte: «(…) garante-se ao SEGURADO as consequências económicas derivadas de qualquer RECLAMAÇÃO de Responsabilidade Civil de acordo com a legislação vigente, que seja formulada pela primeira vez contra o SEGURADO durante o PERÍODO DE SEGURO pelos prejuízos patrimoniais primários, causados a TERCEIROS por um ERRO ou FALTA PROFISSIONAL cometido pelo SEGURADO (…)».
6- Na cláusula 4.ª das Condições Especiais das referidas apólices estabelece-se que tais apólices serão exclusivamente competentes “para as reclamações que sejam pela primeira vez apresentadas i) contra o segurado e notificadas à seguradora, ou ii) contra a seguradora em exercício da acção directa, durante o período de seguro, ou durante o período de ocaso”.
7- A (…), ora 2.ª R., celebrou com a Ordem dos Advogados um contrato de seguro de responsabilidade civil emergente de actos e omissões de advogados, titulado pela apólice (…), a vigorar pelo período de 24 meses, com início em 1 de Janeiro de 2012 e vencimento a 1 de Janeiro e 2014.
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Parece-nos, em bom rigor, que o problema não tem tanto que ver com a legitimidade mas sim com o mérito da causa uma vez que o que está em questão é saber quem será o responsável pelo sinistro, quem responderá pelas suas consequências.
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O argumento fundamental da recorrente para afirmar que a responsável será a seguradora recorrida é que assume particular relevância o previsto na cláusula 4.ª das Condições Especiais que revestem a natureza de “claims made”, princípio designado na gíria anglo-saxónica de acordo com o qual a seguradora proporciona cobertura se a primeira reclamação dos danos for feita durante o período de vigência da apólice.
Tal princípio encontra-se previsto no artigo 139.º da Lei do Contrato de Seguro (DL 72/2008, de 16 de Abril), sob a epígrafe “Período de cobertura”, com especial enfoque no previsto pelo n.º 2 do mesmo artigo onde se lê que “São válidas as cláusulas que delimitem o período de cobertura, tendo em conta, nomeadamente, o facto gerador do dano, a manifestação do dano ou a sua reclamação.”
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A recorrida aceita esta argumentação, do ponto de vista estritamente jurídico, isto é, aceita a existência da cláusula «claims made» mas entende que, ainda assim, a responsabilidade será sempre da recorrente. Isto com base nas reclamações do A. perante o segurado e ainda perante a cláusula 2.ª das condições especiais.
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A cláusula em questão está admitida pelo citado art.º 139.º. É uma cláusula que afasta a regra geral de delimitação da responsabilidade ao tempo de vigência do contrato (n.º 1). O momento a ter em conta será outro, será o momento:
«a) da prática do facto gerador de responsabilidade (action commited basis);
«b) da manifestação do dano (loss ocurrence basis);
«c) da sua reclamação (claims made basis), independentemente de o facto gerador ter sido praticado antes do início da vigência do contrato (como resulta do n.º 3) e desde que o tomador do seguro ou o segurado não tivesse conhecimento do sinistro à data da celebração do contrato (art.º 44.º, n.º 2)» (Pedro Romano Martinez et alli, Lei do Contrato de Seguro, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 449).
As duas cláusulas transcritas têm um ponto comum: que a reclamação seja formulada pela primeira vez contra o segurado durante o período de seguro pelos prejuízos patrimoniais. Tal reclamação, de acordo com as definições que constam da apólice («Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra qualquer SEGURADO, ou contra a SEGURADORA, quer por exercício de acção directa quer por exercício de direito de regresso»), melhor dizendo, o momento de tal reclamação é o que define a responsabilidade independentemente de o sinistro ter ocorrido antes do início de vigência do contrato. O fundamental é que a reclamação seja apresentada dentro do período de vigência do contrato. Como escreve a recorrida, «pela leitura do estipulado naquela cláusula da apólice, facilmente se conclui que a data que deverá ser tomada em linha de conta para efeitos de aplicação da apólice, será a data da primeira reclamação, e não a data em que ocorreram os factos alegadamente geradores de responsabilidade civil profissional».
Acontece que o A. apresentou uma participação à Ordem dos Advogados contra o 1.º R. em 23 de Setembro de 2011, dentro do período de vigência da apólice subscrita pela interveniente Arch (o contrato vigorava até 31 de Dezembro desse ano). E também deve ser entendida como reclamação a carta que, já em 2010, o A. dirigiu ao 1.º R., em que pede a devolução dos documentos e dinheiro entregue. E se, neste segundo caso podemos ter dúvidas quanto ao carácter administrativo da reclamação, quanto ao primeiro elas não têm cabimento.
Assim, temos de concluir que à data da participação era a Arch a seguradora responsável.
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O ponto que não é comum às duas cláusulas refere-se à reclamação também perante a seguradora, isto é, a apólice exige que a reclamação apresentada seja notificada à seguradora pelo segurado (é o que consta da definição de reclamação).
Não está assente que tal notificação tenha ocorrido (a Arch alega na sua contestação que o sinistro foi participado apenas com a citação para a presente acção, a 12 de Fevereiro de 2014; cfr. art.º 17.º) e, por causa disto, a recorrente defende que «sempre deveria o douto tribunal a quo, salvo o devido respeito que é muito, ter mantido nos autos ambas as Seguradoras (aqui recorrente e a ali ré) relegando a decisão quanto à apólice a considerar para momento posterior, ou seja, depois de produzida prova quanto a esta matéria».
Cremos que aqui tem razão, embora estejamos já numa zona que se refere mais ao mérito da causa que à legitimidade formalmente considerada. Com efeito, e como já se notou, o problema é saber qual das duas seguradoras é a responsável e para o sabermos temos de conhecer os factos que integram as previsões estabelecidas nas apólices.
Isto só pode ser feito em sede de julgamento.
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A revogação do despacho recorrido não tem por efeito decidir que é a R. (…) a responsável; tem só por efeito a manutenção da interveniente Arch na lide, mantendo-se a instância inalterada quanto ao resto (e com isto referimo-nos à presença na acção daquela seguradora, a demandada inicialmente).
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente em função do que se revoga o despacho recorrido, prosseguindo o processo com as duas seguradoras e sendo conhecida a final a questão de saber qual delas é a responsável.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 23 de Novembro de 2017
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho

Sumário:
No caso de, num contrato de seguro, se convencionar a cláusula claims made e existir sucessão de seguradoras, não sendo certo se a participação do sinistro foi regularmente feita, deve a acção prosseguir contra as duas seguradoras.