Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1016/14.5PAPTM.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REVOGAÇÃO
AUDIÇÃO PRÉVIA DO CONDENADO
NULIDADE
Data do Acordão: 10/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50.º CP, é uma pena de substituição cujo cumprimento ocorre em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão em lugar da qual aquela é aplicada e executada.
II. A suspensão da execução da pena de prisão tem como pressuposto formal que a pena de prisão fixada o seja em medida não superior a cinco anos e como pressuposto material um prognóstico favorável relativamente à adequação, suficiência deste modo de punição para lograr as finalidades gizadas com a aplicação de penas criminais (artigo 50.º, § 1.º e 40.º, § 1.º CP).

III. Esta pena de substituição assenta num prognóstico favorável de abstenção da prática de novos crimes (o que poderá indiciar a falência do juízo de suficiência e adequação da substituição da pena principal – artigo 55.º, § 1.º, al. b) CP) e, dentro de parâmetros de conveniência e adequação, pode ser subordinada ao cumprimento de especiais deveres ou à observância de certas regras de conduta, com ou sem um regime de prova (artigo 50.º, § 3.º, 51.º, 52.º e 53.º CP).

IV. Se durante a período de suspensão o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta decorrentes da pena que lhe foi concretamente aplicada; ou incumprir o dever geral de não praticar novos crimes e isso puder revelar que as finalidades da suspensão da execução da pena de prisão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (artigo 56.º CP), o juiz realizará as diligências necessárias que lhe permitam lograr uma avaliação segura das circunstâncias, de molde a verificar se as finalidades punitivas visadas com a substituição da pena de prisão pela suspensão da execução desta se encontram irremediavelmente comprometidas (artigo 57.º CP).

V. Cabendo-lhe, a mais disso, assegurar os direitos constitucionais de contraditório e de audiência consagrados no artigo 32.º, § 1.º e 5.º da Constituição, realizando nomeadamente a audição prevista no artigo 495.º, § 2.º CPP.

VI. A preterição desta audição presencial do condenado e do técnico de reinserção social, prévia a qualquer decisão, constitui nulidade insanável e, por conseguinte, de conhecimento oficioso, nos termos previstos no artigo 119.º, al. c) CPP.

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

a. AA, com os demais sinais dos autos, foi condenado neste processo, por sentença de 17/10/2017, pela prática de um crime de burla qualificada e por um crime de furto, na pena única de 3 anos de prisão, a qual foi suspensa na sua execução por igual período, sujeito à condição de pagar à ofendida a quantia de 1 000€ até ao termo do período da suspensão.
A sentença transitou em julgado em 16/11/2017.

No termo do período da suspensão da execução da pena de prisão veio a verificar-se que naquele período o condenado (1) cometeu dois crimes.

Com efeito:

- por sentença proferida no processo 1003/17.1GBABF, transitada em julgado, foi condenado pela prática em 8/2/2018 de um crime de detenção de arma proibida, tendo-lhe sido aplicada a pena de 1 ano 10 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período;

- por sentença proferida no processo 85/7.0PULSB, transitada em julgado, foi condenado pela prática de 5 crimes de burla qualificada (um dos quais praticado em 13.1.2018), um crime de ameaça agravada, 3 crimes de roubo, um crime de detenção de arma proibida, um crime de roubo agravado tendo-lhe sido aplicada a pena única de 8 anos e 4 meses de prisão.

Nessa sequência o Ministério Público (a 23/6/2021) requereu que fosse revogada a referida suspensão da execução da pena;

A M.ma Juíza determinou a audição do condenado para se pronunciar, vindo o seu defensor apresentar escrito (a 30/7/2021) opondo-se a essa revogação.

A 4/11/2021 solicitaram-se informações ao Estabelecimento Prisional onde o condenado se encontrava recluso.

A 16/2/2022 o Ministério Público, em nova vista, afirma manter a promoção de 23/6/2021.

E nesse mesmo dia o defensor do arguido declarou manter a posição já anteriormente afirmada.

No dia 11/3/2022 a Mm.a Juíza titular do processo proferiu despacho, pelo qual revogou a suspensão da execução da pena aplicada a 17/10/2017, determinando o cumprimento efetivo da pena de prisão, considerando que o juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado, não logrou afastá-lo da delinquência, o que se comprova pelo cometimento dos novos crimes, de uma forma tão intensa, que é demonstrativa da falência da suspensão da execução da prisão.

b. Não se conformando com esta decisão dela veio recorrer o condenado, formulando deste modo as conclusões (2) da sua motivação:

«a) Ser declarada extinta, com efeitos a 16/11/2020, a pena suspensa aplicada ao recorrente a 16/11/2017; (normas violadas: artº 57º do Código Penal) e consequentemente ser revogado o despacho recorrido, invocando-se a prescrição do direito de revogação da pena suspensa aplicada, porquanto o mesmo extinguiu-se, não se convolando a mesma em pena efetiva.

b) Deve ser remetido, após douto acórdão produzido, os presentes autos ao Tribunal de Execução de Penas para verificação da extinção da pena suspensa aplicada ao recorrente;

c) Não pode o Tribunal onde a pena foi suspensa, desencadear diligências com vista á revogação da suspensão da pena prolongando as mesmas pelo tempo que prolongou;

d) Em todo o caso, salvo o devido respeito, não se pode nem deve aplicar a interpretação efetuada pelo Tribunal a quo, no caso concreto, do nº 2 do artigo 57º do Código Penal, na medida em que á data da extinção da pena suspensa, em concreto, não existiam nos autos factos que pudessem obstar a que fosse declarada extinta a mesma, sob pena de violação do artigo 30º da Constituição da Republica Portuguesa.»

c. Na sua resposta o Ministério Público sustentou a bondade da decisão judicial, sinteticamente nos seguintes termos:

- Do CRC e certidões juntas aos autos constata-se que durante o período de suspensão da execução da pena de prisão, o condenado, apesar de saber que estava sob observação do Tribunal, decorrente da censura e advertência contidas na condenação imposta, não se inibiu de praticar mais crimes de diversa natureza e um crime de idêntica natureza àquele pelo qual foi condenado nestes autos;

- Discorda-se do condenado quanto à interpretação do artigo 57.º CP, pois que, só depois de findo o período da suspensão é que deve ser apreciado se a pena suspensa deverá ser declarada extinta ou se deverá ser revogada;

- Foi o que sucedeu no presente caso. Findo que foi o período da suspensão, imediatamente (logo no dia 23.11.2020) se diligenciou pela junção de CRC.

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância de recurso, elaborou douto parecer no qual sustenta que os autos demonstram que as finalidades gizadas pela suspensão da execução da pena de prisão não foram manifestamente alcançadas, pelo que o recurso não é merecedor de provimento.

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, para além do que se assinalou no exame preliminar (sobre as conclusões do recurso), nada de relevante se acrescentou.

Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. O objeto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respetiva motivação – artigos 403.º, § 1.º, e 412.º, § 1.º CPP. Nessa sequência, as questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes:

a) Não compete ao tribunal da condenação realizar diligência relativas à execução da pena e aferir a sua conformidade:

b) Não se verificam os pressupostos da revogação decretada.

2. Apreciando

2.1 A decisão recorrida

O despacho judicial recorrido é do seguinte teor:

«Nos presentes autos, por sentença proferida em 17.10.2017 e transitada em julgado em 16.11.2017, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de um crime de burla qualificada e um crime de furto, na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 3 anos (de 16.11.2017 a 16.11.2020), sujeita à condição de pagar, à ofendida BB, a quantia de 1 000 euros, até ao termo do período da suspensão.

Aqui se provou, em síntese, que, no dia 19.07.2014, o arguido abordou a ofendida, com 83 anos de idade, e, convencendo-a de que era seu sobrinho e que lhe levava uma prenda, o que não era verdade, entrou em sua casa, ali lhe tendo pedido que lhe empresasse dinheiro, para acertar contas num negócio, tendo-lhe a ofendida entregado 300 euros, que aquele fez seus, sem que tivesse qualquer intenção de os restituir, tudo se tratando de um estratagema para levar a ofendida a entregar-lhe o dinheiro, como conseguiu. Mais se provou que o arguido, aproveitando um momento de distração da ofendida, retirou, do quarto desta, uma pulseira e um anel em ouro, no valor de 700 euros, dos quais se apoderou, sem o conhecimento e contra a vontade da ofendida.

A pena concreta foi fixada atendendo às circunstâncias apuradas no cometimento dos factos, fundando-se a suspensão da execução da pena de prisão no facto de não ter o mesmo sofrido, até então, pena privativa da liberdade e mostrar-se socialmente inserido (sendo, ainda, que tinha, à data dos factos, 23 anos de idade, era primário quanto ao crime de furto, registava, na sua maioria, condenações por crimes estradais, e já haviam decorrido cerca de 3 anos desde a prática dos factos).

Ora, como resulta dos autos (a fls 306/311), o arguido cumpriu a condição fixada.

Sucede que, como evola do CRC e das respetivas decisões condenatórias, o arguido veio ainda a ser condenado:

- no Proc. n.º 1003/17.1GBABF, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 10 meses (por factos praticados em 08.02.2018);

- e, no Proc. n.º 85/17.0PULSB, pela prática de 5 (cinco) crimes de burla qualificada (um dos quais por factos praticados em 13.01.2018), 1 crime de ameaça agravada, 3 crimes de roubo, 1 crime de detenção de arma proibida e um crime de roubo agravado, na pena única de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

Ou seja, o arguido praticou novos crimes no decurso do período da suspensão.

Mais resulta dos autos que o arguido ficou sujeito a prisão preventiva, à ordem do Proc. n.º 85/17.0PULSB, desde 30.11.2018.

Ora, no Proc. n.º 1003/17.1GBABF (crime de detenção de arma proibida), provou-se, em síntese, que:

- no dia 08.02.2018, o arguido detinha, na casa da sua namorada, local onde pernoitava, dentro da gaveta da mesinha de cabeceira, no quarto, uma pistola, semiautomática, de calibre 6,35mm, sem munição na câmara mas com o carregador municiado com 7 munições de calibre 6,35mm e uma bolsa contendo 11 munições de calibre 6,35mm, sem que tivesse licença de uso e porte de arma ou de detenção no domicílio, não estando aquela arma manifestada ou registada.

E, no Proc. n.º 85/17.0PULSB (quanto ao crime de burla qualificada), provou-se, em síntese, que:

- no dia 13.01.2018, o arguido abordou CC, com 76 anos, e, aproveitando-se da sua idade avançada e aspeto debilitado, fazendo-se passar por um seu conhecido e por gerente da …, aliciou-o com a oferta de 2 tablets e com um desconto de 600 euros na compra de uma box de tv, para que o mesmo lhe entregasse 400 euros, como acabou por fazer, convencido de que adquiria uma box que valia 1 000 euros e que recebia de oferta 2 tablets, sendo que os tablets estavam avariados e o aparelho que comprou tratava-se de um router que valia menos de 100 euros.

(os restantes crimes, ali elencados, praticados no decurso da suspensão, em 19.04.2018, em 02.05.2018, e em 14.07.2018, com o mesmo modus operandi, foram declarados extintos, nos termos do art.º 206.º do CPenal, pelo que não serão aqui valorados).

Pugna o Ministério Público pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão, ante a prática, pelo arguido, de novo crime, da mesma natureza, durante o período da suspensão, o qual arredou definitivamente as finalidades supostas pela aludida suspensão.

A Defesa dissentiu, invocando, no essencial, que o crime de detenção de arma proibida, por se tratar de crime de outra natureza, e ter merecido pena suspensa, não põe em causa as finalidades da suspensão dos presentes autos, sendo que o arguido, em reclusão, interiorizou o desvalor dos seus actos, tem bom comportamento e frequenta um curso no EP, sofrendo com o facto de ter um filho menor que nasceu já após ter sido preso e não ter podido acompanhar os últimos dias de vida do seu pai, entretanto falecido.

O EP juntou aos autos o respetivo registo biográfico, de onde constam 6 infracções disciplinares, confirmando que o arguido frequenta um curso de formação profissional.

Cumpre decidir.

Nos termos estatuídos no art.º 50.º do CPenal, o tribunal suspende a pena de prisão aplicada (desde que não superior a 5 anos) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Prevê-se, porém, no art.º 56.º do mesmo diploma legal, que a suspensão da execução da pena de prisão será revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) infringir grosseiramente ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social, ou

b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

Nestes casos, a consequência aplicável será a do cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, cfr. art.º 56.º, n.º 2 do CPenal.

Analisemos, pois a situação dos presentes autos.

Ao arguido foi suspensa a execução da pena de 3 (três) anos de prisão, uma vez que, tendo apenas 23 anos de idade à data dos factos, sem que tivesse tido contacto com o sistema prisional, apesar das condenações anteriores, e tendo decorrido algum tempo sobre a prática dos factos, pese embora a gravidade dos mesmos, seria expectável que, em liberdade, infletisse a sua conduta e passasse a reger-se no respeito pela legalidade, ante a oportunidade concedida de se regenerar em meio livre.

Porém, não surtiu tal condenação o efeito que era de si esperado.

Com efeito, e sem contar com os crimes que o arguido praticou antes de se iniciar o período da suspensão aqui decretada (os quais, naturalmente, não eram do conhecimento do tribunal), o mesmo incorreu, entre 16.11.2017 (data do início da suspensão) e 30.11.2018 (data em que foi preventivamente preso), em mais dois crimes (de detenção de arma proibida e de burla qualificada).

E, se, sendo já grave a detenção de uma pistola semiautomática, carregada com 7 munições, tendo o arguido, num saco, mais 11 munições, tudo de calibre 6,35mm, o que pesará, decisivamente, na decisão a tomar será, sem dúvida, o facto de ter o arguido incorrido em um novo crime de burla qualificada, tanto mais que tratou de repetir o mesmo modo de actuação (abordagem de idosos, com o pretexto de serem seus conhecidos; conquista da sua atenção e confiança, através da oferta de presentes; aproveitamento da sua fragilidade para os convencer a abrirem mão de quantias em dinheiro, como os mesmos vieram a fazer).

No caso, para além do furto de peças em ouro que a ofendida, idosa, tinha no interior do seu quarto, o arguido, a pretexto de se tratar de um seu parente (que não era) e que teria algo para lhe oferecer (um jogo de lençóis), abusando da confiança em si depositada (fruto da conversa anteriormente mantida), convenceu aquela a entregar-lhe 300 euros, a pretexto de se tratar de um empréstimo para um suposto negócio (que não existia), aboletando-se com tal quantia, que nunca teve qualquer intenção de restituir.

E, pese embora tivesse sido por tais factos condenado, numa pena de prisão suspensa, ou seja, sob condição de não incorrer em novos crimes, o arguido, decorridos cerca de 2 meses após o trânsito desta sentença, abordou novo ofendido, também idoso, convencendo-o a entregar-lhe 400 euros, em troca de um router, que valia menos de 100 euros, iludindo-o, com uma suposta box no valor de 1.000 euros.

Ora, o arguido, ao invés de interiorizar o desvalor da sua conduta, objecto de censura nestes autos, e apesar da solene advertência que aqui havia merecido, não se inibiu de empreender nova conduta criminosa, em tudo semelhante à dos presentes autos.

O arguido, livremente, pois, optou por regressar ao crime, não se deixando, manifestamente, influenciar pela pena aqui aplicada, tanto assim, que voltou a atentar contra o mesmo bem jurídico que o tutelado nos presentes autos, revelando, por isso, traços de personalidade flagrantemente desvaliosos para o direito.

Ou seja, a suspensão da pena de prisão aqui aplicada não surtiu, afinal, o efeito positivo que do arguido se reclamava.

Fracassaram, pois, as finalidades da suspensão aqui decretada, pois que a mesma não logrou motivar o arguido a afastar-se definitivamente da criminalidade.

Ou seja, pese embora o juízo de prognose favorável, formulado a respeito do comportamento futuro do arguido, na sentença condenatória destes autos, o mesmo não se afastou da delinquência, já que veio a cometer novos crimes, incluindo, por crime da mesma natureza que a do crime pelo qual foi nestes autos condenado, tudo no decurso do período da suspensão, de uma forma tão intensa que não há como não concluir pela evidente falência da execução desta pena em meio livre.

Na verdade, não se pode perder de vista que o instituto da suspensão se justifica, justamente, por razões de prevenção. O que a lei visa com a suspensão é o afastamento do delinquente da prática, no futuro, de novos crimes. E essa finalidade não foi, in casu, alcançada.

Nesta conformidade, porque o juízo de prognose favorável que presidiu à decisão de suspender a execução da pena de prisão já não subsiste, e verificados que estão os pressupostos previstos no art.º 56º, n.º 1, alínea b) do C. Penal, revogo a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, o qual cumprirá, assim, a pena de 3 (três) anos de prisão em que foi inicialmente condenado.

Notifique, sendo o arguido pessoalmente.

(…)»

2.2 Nulidade de conhecimento oficioso

Está em causa a decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão, com base no que se prevê no artigo 56.º, § 1.º, al. b) do Código Penal. A pena de suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50.º CP, é uma pena de substituição cujo cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada. Tem como pressuposto formal que a pena de prisão fixada o seja em medida não superior a cinco anos e como pressuposto material um prognóstico favorável relativamente à adequação, suficiência deste modo de punição para lograr as finalidades gizadas com a aplicação de penas criminais (artigo 50.º, § 1.º e 40.º, § 1.º CP). Tal pena de substituição preconiza a abstenção da prática de novos crimes (o que poderá indiciar a falência do juízo de suficiência e adequação da substituição da pena principal – artigo 55.º, § 1.º, al. b) CP) e pode, dentro de parâmetros de conveniência e adequação, ser subordinada ao cumprimento de especiais deveres ou à observância de certas regras de conduta, com ou sem um regime de prova (artigo 50.º, § 3.º, 51.º, 52.º e 53.º CP). Já a revogação da pena de substituição e consequente determinação do cumprimento da pena de prisão substituída depende de o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta decorrentes da pena que lhe foi concretamente aplicada; ou incumprir o dever geral de não praticar novos crimes e isso revelar que as finalidades da suspensão da execução da pena de prisão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (artigo 56.º CP). Isto é, a revogação assenta na constatação do malogro do prognóstico positivo que permitiu e determinou a substituição da pena principal. Mas a lei preconiza mais. Exige que antes de proceder à revogação, o juiz recolha os elementos pertinentes e realize as diligências necessárias para lograr uma avaliação segura das circunstâncias, de molde a constatar se as finalidades punitivas visadas com a substituição da pena de prisão pela suspensão da execução desta se encontram irremediavelmente comprometidas (artigo 57.º CP), não podendo, a mais disso, postergar-se os direitos constitucionais de contraditório e de audiência consagrados no artigo 32.º, § 1.º e 5.º da Constituição, de que é decorrência o previsto (justamente) no artigo 495.º, § 2.º CPP.

O caráter impostergável da audiência presencial a que se alude naquele normativo tem sido reconhecido por uma larguíssima maioria da jurisprudência dos Tribunais da Relação (3). Constituindo, por seu turno jurisprudência generalizada o enquadramento da preterição da audição prévia e presencial do condenado, a que se alude no citado normativo, como nulidade insanável e, por conseguinte, de conhecimento oficioso, nos termos previstos no artigo 119.º, al. c) CPP. Pronunciando-se recentemente e neste mesmo sentido, o Tribunal Constitucional (4), através de decisão que integralmente acompanhamos, considerou ser inconstitucional a interpretação, extraída dos artigos 495.º, § 2.º e 119.º, ambos do CPP, no sentido de tal omissão constituir mera irregularidade processual dependente de arguição. Conforme evidenciam os autos, aquela audição presencial do condenado, com a colaboração do técnico que apoiou e ou fiscalizou o cumprimento das condições de suspensão, não se realizou! Como assim, por preterição da diligência prevista no artigo 495.º, § 2.º CPP, aferida esta oficiosamente por constituir a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, al. c) do CPP, consideramos nulo o despacho recorrido.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Conceder provimento ao recurso, por razão diversa das esgrimidas pelo recorrente, declarando nulo o despacho recorrido, em sequência do que o Tribunal deverá realizar a diligência preterida e só depois fazer o juízo final sobre a eventual revogação da pena de substituição.

b) Sem custas.

Évora, 25 de outubro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 «Condenado» e não «arguido», pois (não por acaso) é desse modo que após o trânsito em julgado da decisão condenatória a lei designa aquele que foi arguido (cf. artigos 470.º/2, 477.º/3, 478.º, 490.º/1, 490.º/3, 491.º/2, 491.º-A/1 e 2, 492.º/1 e 2, 493.º/2 e 3, 494.º/3, 495.º/1 e 2, 496.º/3, 498.º/5, 499.º/1, 2, 4 e 5, 500.º/2 e 3 e 504.º/3 CPP e em todo o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

2 Inicialmente a peça de recurso não continha conclusões, preterindo-se a exigência contida no artigo 412.º CPP. Na 1.ª instância o recurso foi admitido sem se assinalar a omissão e ordenar a sua correção (artigo 414.º, § 2.º CPP). Tendo o Ministério Público respondido ao recurso nada assinalar! Só nesta instância de recurso, na vista prevista no artigo 416.º CPP o Ministério Público assinalou a irregularidade, vindo o recorrente a saná-la antes de lhe ser formulado o convite previsto no artigo 417.º, § 3.º (parte final) CPP.

3 Cf. TRÉvora 175/98.0GACTX.E1, de 5/6/2018; 126/09.5PTSTB-A.E1, de 21/5/2019; e 31/11.5GAODN-A.E1, de 19/11/2019; TRLisboa 310/15.2SILSB-5, De 21/1/2019; 418/06.5PBLSB.L1-9, de 16/5/2019; 120/12.9SLLSB-A.L1-3, De 18/9/2019; TRCoimbra 208/14.1GCCLD.C1, de 24/4/2018; 221/14.9SBGRD.C1, de 6/2/2019; 55/04.9GBLMG.C1, de 3/4/2019; TRPorto 921/09.5PEGDM.P1, De 10/10/2018; 2449/12.7TDPRT.P3, de 7/11/2018; 443/15.5PTPRT.P1, de 26/6/2019 (todos disponíveis em www.dgsi.pt )

4 Acórdão n.º 491/2021, de 8jul2021, do qual foi relatora a Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210491.html