Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1142/07.7PAOLH.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
CASO JULGADO
CRIME DE EXECUÇÃO PERMANENTE
Data do Acordão: 07/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A violação do caso julgado ou do princípio ne bis in idem supõe que o agente seja julgado pela prática de factos que já foram conhecidos/apreciados/julgados num outro processo, anteriormente, ou seja, uma repetição de julgados;
II – Tal não se verifica se nos autos está em causa a apropriação (indevida) em proveito próprio por parte da arguida (advogada) de quantias que lhe foram entregues por vítimas, em valores diferentes e em momentos diferentes àqueles em que foi julgada em anterior processo;
III – No crime de execução permanente está em causa apenas uma única conduta – um único crime – cuja execução se mantém ao longo de determinado período de tempo mais ou menos prolongado, o que não se verifica no circunstancialismo descrito por se estar perante diversas condutas, correspondentes a outras tantas resoluções criminosas, violadoras de outros tantos bem jurídicos, de que são titulares diversos lesados.
Decisão Texto Integral: Proc. 1142/07.7PAOLH.E1

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal da Comarca de Faro (Faro, Instância Central, Secção Criminal, J3) correu termos o Proc. Comum Singular n.º 1142/07.7PAOLH, no qual foi julgada a arguida BB (divorciada, advogada, …), pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de três crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205 n.º 1 do CP, e um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143 n.º 1 do Código Penal.
CC deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação da arguida no pagamento da quantia de 3.500,00 euros, sendo 2.000,00 euros a título de indemnização por danos patrimoniais e 1.500,00 euros a título de indemnização por danos não patrimoniais.
A final veio a decidir-se:
1.1. Quanto à matéria crime:
1) Absolver a arguida da prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205 n.º 1 do CP (factos 1 a 16);
2) Condenar a arguida, pela prática, em autoria material e em concurso efetivo:
- de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelos art.ºs 26 n.º 1 e 143 n.º 1, ambos do CP, na pena de cinco meses de prisão (factos 17 a 20);
- de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos art.ºs 26 n.º 1 e 205 n.º 1, ambos do CP, na pena de um ano de prisão (factos 21 a 27);
- de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos art.ºs 26 n.º 1 e 205 n.º 1, ambos do CP, na pena de cinco meses de prisão (factos 28 a 33);
- e, em cúmulo jurídico (art.º 77 n.ºs 1 e 2 do CP), na pena única de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano e três meses (art.º 50 n.º 5 do CP), sob a condição de, no período da suspensão, restituir as seguintes quantias (art.º 51 n.º 1 al.ª a) do CP):
- 1.000,00 euros a CC;
- 150,00 euros a DD.
1.2. Quanto à matéria cível: julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização deduzido pela demandante e, em consequência:
1) Condenar a demandada a pagar à demandante a quantia de 1.000,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento;
2) Absolver a demandada do demais peticionado.
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2. Recorreu a arguida dessa decisão, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Processo n.º 446/08.6PBFAR, do 1.º Juízo Criminal (extinto), foi submetida a julgamento, em processo comum singular, a arguida BB.
2 - A arguida foi condenada, pela prática, em 28.09.2007, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205 do CP, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), por decisão proferida em 11.02.2011, transitada em julgado no dia 17.05.2012, no âmbito do referido processo.
3 - Nos presentes autos o tribunal a quo condenou a arguida pela prática de dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205 do CP, e um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143 n.º 1 do CP, ocorridos em julho, agosto e novembro de 2007.
4 - No que diz respeito ao crime de abuso de confiança, a arguida foi condenada pelo tribunal a quo pelo mesmo tipo legal de crime e por factos praticados no mesmo período de tempo em que foi condenada no Processo n.º 446/08.6PBFAR, 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro (extinto), existindo identidade de objeto do processo entre os presentes autos e o referido.
5 - Os factos deste processo, embora não considerados na sentença condenatória do Processo n.º 446/08.6PBFAR, porque fazem parte do objeto do processo já julgado, estão subtraídos a nova decisão de condenação ou absolvição, sob pena de violação do princípio constitucional ne bis in idem.
6 - A exceção de caso julgado consubstancia uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, tal como previsto nos artigos 577 alínea i) e 578 do CPC, aplicáveis por referência ao artigo 4 CPP.
7 - O tribunal a quo não conheceu nem aflorou a exceção de caso julgado entre os presentes autos e o Processo n.º 446/08.6PBFAR.
8 - A arguida, porque entende que os factos ocorridos em julho, agosto e novembro de 2007, que lhe são imputados nos presentes autos, formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no Processo n.º 446/08.6PBFAR, do 1.º Juízo Criminal de Faro - sentença de 11.02.2011, com trânsito em julgado em 12.05.2012, ocorrendo os factos em 28.09.2007 (cfr. CRC junto aos autos) - no que tange ao crime de abuso de confiança, vem arguir perante este Tribunal ad quem exceção de caso julgado ou princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29 n.º 5 da Constituição da República.
9 - A exceção de caso julgado materializa o disposto no artigo 29 n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, quando se estabelece, como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória, afirmando que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
10 - O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que, por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material). Neste último caso, o efeito do caso julgado material manifesta-se fora do processo penal e para o futuro, impedindo a existência de um ulterior julgamento sobre os mesmos factos.
11 - Como assinala Giovanni Leone, o caso julgado deve identificar-se na imutabilidade da decisão. Caso julgado, em substância, significa decisão imutável e irrevogável, significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença. Aproximamo-nos, assim, à lapidar definição romana da jurisdição quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz).
12 - Da mesma opinião é Binder, para quem o princípio ne bis in idem tem efeitos muito concretos no processo penal. O primeiro deles é a impossibilidade de modificar uma sentença transitada em julgado contra o acusado. O acusado que foi absolvido não pode ser condenado num segundo julgamento; o que foi condenado não pode ser novamente condenado por uma sentença mais grave. Por força deste princípio ne bis in idem, a única revisão possível é uma revisão a favor do condenado.
13 - O caso julgado é uma instituição processual irrevogável e imutável. Traduz o valor que o ordenamento jurídico dá ao resultado da atividade jurisdicional, consistente na subordinação aos resultados do processo, por converter-se em irrevogável a decisão do órgão jurisdicional.
14 - A proibição resultante dos princípios constitucionais ne bis in idem e da confiança do Estado de Direito Democrático conduz, em regra, e na sequência do trânsito em julgado de uma decisão, à extinção definitiva da lide processual penal e à perempção do direito-dever do Estado em julgar o mesmo acusado.
15 - O direito de a arguida não ser submetida a julgamento sem que tenha havido uma efetiva comprovação judicial é expressamente reconhecido pelo próprio legislador, nomeadamente, nos artigos 407 n.º 1 e 408 n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, pois o único fundamento para o regime de subida e de efeito do despacho de indeferimento da exceção de caso julgado aí consagrado – subida imediata e com efeito suspensivo do processo – é precisamente o de salvaguardar o direito de o arguido não ser sujeito a julgamento pelos mesmos factos duas vezes.
16 - O tribunal a quo, ao não conhecer da exceção de caso julgado na decisão recorrida, violou claramente o artigo 29 n.º 5 da CRP, que visa impedir o duplo julgamento penal.
17 - Violou ainda as garantias de defesa da arguida, previstas no artigo 32 n.º 1 do CRP (o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso), que tem o direito a não ser estigmatizada, vexada, prejudicada em vários direitos fundamentais (imagem, honra e consideração) por um julgamento criminal, quando não há razões para isso.
18 - O pressuposto material para a restrição legítima de “direitos, liberdades e garantias” consiste em que ela só pode justificar-se para salvaguardar um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido. Este requisito significa, fundamentalmente, que o sacrifício, ainda que parcial, de um direito fundamental não pode ser arbitrário, gratuito, desmotivado.
19 - O tribunal a quo, ao submeter a arguida a julgamento público sem previamente tomar conhecimento da exceção de caso julgado, estigmatizando-a, humilhando-a, vexando-a, dessa forma violou ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1 da CRP.
20 - Segundo aquele princípio, “a dignidade da pessoa humana” é, assim, um valor autónomo e especifico inerente aos homens, em virtude da sua simples pessoalidade. Consequentemente, a República baseia-se no homem como sujeito e não como objeto dos poderes ou relações de domínio.
21 - Sobre o instituto de caso julgado penal veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2004, Processo n.º P3501/03, in www.dgsi.pt, entre outros.
22 - A decisão proferida pelo tribunal a quo violou os artigos 1, 29 n.º 5 e 32 n.ºs 1 e 2 da Constituição da República, entre outros.
23 - Os factos imputados à arguida nos presentes autos e os factos pelos quais a arguida foi julgada e condenada no Processo n.º 446/08.6PBFAR formam uma unificação jurídica de todas as condutas, como se todas elas se tivessem verificado no momento da última conduta, constituindo um crime único, por se tratar de um crime permanente.
24 - Como sabiamente nos ensina o Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Teoria do Crime, 2.ª edição, edição Universidade Católica Editora, página 424: “Não se deve confundir o crime continuado com o permanente. Este, o crime permanente, ocorre quando a consumação se protrai no tempo, dependente da vontade do sujeito activo o pôr-lhe termo com um acto de sentido contrário para que o crime não prossiga, como sucede, v.g., no sequestro [art.º 158.º, n.º 2, al. b)], no rapto [art.º 160.º, n.º 2, al. a)] e na tomada de reféns [art.º 161.º, n.º 2, al. b)]. O crime continuado, por sua vez, é uma repetição de actos, mas que entre cada um medeia um interregno temporal. ALIMENA, ao comparar o crime instantâneo com o permanente e com o crime continuado utiliza uma imagem gráfica muito expressiva: enquanto o crime instantâneo é comparado com um ponto (.), o continuado exige para a sua realização uma linha de pontos (…) e o permanente uma linha ininterrupta (-)”.
25 - Por sua vez, Maia Gonçalves, citando A. Carvalho Filho, escreve: «Ao contrário do crime continuado, em que a acção criminosa é divisível, no crime permanente essa acção é indivisível. O estado violador da lei prolonga-se sem intervalos, numa duração, digamos assim, sem colapsos nem limites, e a qualquer momento está sendo cometido o crime, porque esse ininterrupto estado antijurídico é que é, exactamente, o crime. A prescrição, portanto, há-de correr de quando cessa a permanência da acção” (Código Penal Anotado, 1995, vol. I, pág. 834, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.06.2008, Processo n.º 2631/07.9TBPBL, in www.dgsi.pt, rodapé, nota VIII).
26 - Ainda com Maia Gonçalves, Código Penal, 15.ª edição, Almedina, em anotação ao artigo 119: “Não confundir também a categoria de crimes permanentes, que são aqueles cuja execução se prolonga no tempo, como o sequestro, a deserção (crime essencialmente militar) e a omissão do cumprimento do dever de alimentos, com a categoria próxima de crimes de estado, como a bigamia. Nos crimes permanentes a execução persiste no tempo, porque há uma voluntária manutenção da situação antijurídica, até que a execução cesse, ficando então o crime exaurido; por isso o início do prazo de prescrição do procedimento criminal só se verifica quando cessa a execução”.
27 - Continuando ainda na doutrina, Ana Rita Batista Martins, Estudo sobre o Crime Continuado, Universidade Católica Portuguesa, ano de 2012, sobre a epígrafe “Crime continuado e crime permanente”, diz-nos: “A destrinça destes dois tipos de crime tem despertado algum interesse na doutrina, que se tem então debruçado na preocupação de encontrar um critério que permita efectuar a desejada distinção. Os elementos apontados para realizar tal diferenciação são vários: o tempo; o número de acções; o número de violações da lei; o resultado. O crime permanente «ocorre quando a consumação se protrai no tempo dependente da vontade do sujeito activo». Por sua vez o crime continuado consiste em vários actos, repetidos mas intervalados, num determinado lapso temporal. GERMANO MARQUES DA SILVA, ilustra a distinção mediante um exemplo de ALIMENA, ao qual também recorreremos: enquanto o crime instantâneo é comparado com um ponto, o continuado exige para a sua realização uma linha de pontos e, por sua vez, o permanente uma linha ininterrupta. O crime permanente tem assim, uma consumação prolongada, a ofensa arrasta-se no tempo, sendo que o agente recusa-se a aceitar o dever de deixar de ofender”.
28 - “Na categoria dos ilícitos duradouros ou permanentes enquadram-se as infracções em que a realização de acto ou a produção de evento com prolongamento no tempo do estado antijurídico típico por efeito de constante renovação da resolução criminosa do agente, o qual tem a faculdade de lhe por termo a qualquer altura. Como ensina Eduardo Correia, este tipo de ilícitos estruturam-se em duas fases distintas: uma primeira, que se analisa na produção de um estado antijurídico, e que nada tem de distinto em relação às demais infracções; uma segunda, esta específica e a conferir justificação material ao diferente regime, mormente no domínio da contagem do prazo prescricional, como emerge do art.º 119º, nº2, al. a) do CP, correspondente à manutenção desse evento e que consiste no cumprimento do comando (tácito) que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesses jurídicos, em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz. Assim, no crime permanente, haverá, pelo menos, uma acção e uma omissão, estruturalmente indivisíveis e que a lei integra numa só figura criminosa (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.06.2008, Processo n.º 2631/07.9TBPBL, in www.dgsi.pt).
29 - Aqui chegados, importa saber se o crime de abuso de confiança é um crime permanente; a resposta é-nos dada pelo Tribunal da Relação do Porto, acórdão de 05.03.2003, Processo n.º 0212140, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler: «Tipos de crimes permanentes são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo.
Na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem aliás nada de característico em relação a qualquer outro crime; outra, e esta propriamente típica, que corresponde à permanência, ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que, para alguns autores, consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz.
A existência deste dever, naturalmente ligada à natureza dos bens jurídicos protegidos, distingue o crime permanente dos chamados crimes de efeitos permanentes - v. g. o furto.
Nos crimes permanentes, realmente, o primeiro momento do processo executivo compreende todos os actos praticados pelo agente até ao aparecimento do evento (v. g. no crime de cativeiro do art.º 328º a privação da liberdade do violentado), isto é, até à consumação inicial da infracção; a segunda fase é constituída por aquilo a que certos autores fazem corresponder uma omissão, que ininterruptamente se escoa no tempo, de cumprir o dever, que o preceito impõe ao agente, de fazer cessar o estado antijurídico causado, donde resulta, ou a corresponde, o protrair-se da consumação do delito. Desta forma, no crime permanente haveria, pelo menos, uma acção e uma omissão, que o integrariam numa só figura criminosa Eduardo Correia in “Direito Criminal”, I, pgs. 309 e 310.
Ou ainda, como refere Jescheck in “Tratado de Derecho Penal”, I, pg. 357: “En los delitos permanentes el mantenimento del estado antijurídico cerrado por la acción punible depende de la voluntad del autor, de manera que, en cierto modo, el hecho se renova continuamente”».
31 - Nos crimes permanentes verifica-se uma unificação jurídica de todas as condutas, como se todas elas se tivessem verificado no momento da última conduta.
32 - Ora, são a doutrina e a jurisprudência uniformes que, no caso dos crimes permanentes, “aplica-se sempre a lei nova, ainda que mais severa, desde que a execução ou o último acto tenham cessado no domínio da mesma lei. Não há, verdadeiramente, aqui qualquer problema, visto que no domínio da lei nova foram praticados actos integradores do crime” – Maia Gonçalves in Código Penal Português”, VIII ed., pg. 183.
33 - Do exposto, dúvida nenhuma subsiste que o crime de abuso de confiança é um crime permanente, em que a execução e consumação do delito se prolongam no tempo, verificando-se uma unificação jurídica de todas as condutas (como se todas elas se tivessem verificado no momento da última conduta).
34 - Demonstrado que fica que o crime de abuso de confiança é um crime permanente, vejamos agora se do objeto do presente processo, concretamente, os factos imputados à arguida entre julho, agosto e novembro de 2007 constituem ou integram o objeto do Processo Comum Singular n.º 446/08.6PBFAR, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro (extinto).
35 - No Processo Comum Singular n.º 446/08.6PBFAR, do 1.º Juízo Criminal de Faro, foi a arguida julgada e condenada, em 11 de fevereiro de 2011, por sentença transitada em julgado em 17.05.2012, pela prática, em 28.09.2007, de factos integrantes de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205 do Código Penal.
36 - O objeto do processo, como enfaticamente se consignou, é constituído por todos os factos praticados pela arguida até decisão final que diretamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação da regra ne bis in idem.
37 - Assim, os factos imputados à arguida no presente processo ocorridos entre julho, agosto e novembro de 2007, constituindo, inequivocamente, uma continuação da atividade pela qual a arguida foi julgada e condenada no Processo n.º 446/08.6PBFAR (crime de abuso de confiança), há que concluir que, do ponto de vista naturalístico, aqueles factos integram-se na ação que determinou a condenação da arguida no processo em causa.
38 - Deste modo, do ponto de vista naturalístico, relativamente àqueles concretos factos, ocorridos entre julho, agosto e novembro de 2007, ocorre identidade de “objeto do processo” entre os presentes autos e os do Comum Singular n.º 446/08.6PBFAR, do 1.º Juízo Criminal de Faro, pese embora aqueles factos não hajam sido considerados pelo tribunal a quo.
39 - Dizendo de outra forma (segundo uma perspetiva normativista), os factos imputados nestes autos à arguida entre julho, agosto e novembro de 2007 formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no Processo Comum Singular n.º 446/08.6PBFAR, do 1.º Juízo do Tribunal Criminal de Faro (extinto), em 11.02.2011, com trânsito em julgado em 17.05.2012, pelo que não pode deixar de se considerar consumido o respetivo direito de acusação/condenação, pois a todos aqueles factos se deve ter por “estendido” o valor daquela decisão.
40 - Verifica-se, pois, relativamente àqueles factos, a exceptio judicati, razão pela qual não poderiam ser considerados nos presentes autos para condenação da arguida (neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2006, Processo n.º 05P440, in www.dgsi.pt).
41 - No que se reporta ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143 n.º 1 do CP, não pode a arguida concordar com a pena que lhe foi aplicável.
42 - A arguida nunca foi condenada por tal crime, sendo, assim, primária quanto a este tipo legal de crime.
43 - A este crime cabe uma moldura abstrata de pena de prisão de um mês a três anos ou pena de multa de 10 (dez) até 360 (trezentos e sessenta) dias.
44 - Dispõe o artigo 70 do CP que o tribunal encontra-se obrigado a dar preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

45 - O tribunal a quo, ao condenar a arguida numa pena de prisão de cinco meses, pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, pecou, por excessivamente gravosa, ultrapassando a medida da culpa.

46 - Pois que, nunca tendo sido a arguida condenada por tal crime, o tribunal não teve essa circunstância como atenuante, e deveria ter tido, ao invés, aplicou uma pena excessivamente gravosa.

47 - O tribunal a quo violou os artigos 40 n.º 2 e 71, ambos do Código Penal.

48 - Nestes termos, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência:

- considerar-se como verificada a «exceção de caso julgado» ou o princípio ne bis in idem;

- ser a arguida absolvida pela prática dos crimes de abuso de confiança, p. e p. no artigo 205 do CP, e determinar-se a revogação da decisão recorrida na parte relativa à medida da pena aplicada pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. artigo 143 n.º 1 do CP, aplicando-se à arguida uma pena de multa, face à ausência de antecedentes criminais neste tipo legal de crime.

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3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 – Concordamos com toda a explanação doutrinal e jurisprudencial apresentada pela recorrente, no entanto, discordamos por completo de todas as conclusões a que a recorrente chegou, que não se revêem nas premissas.
2 - O crime de abuso de confiança, atenta a sua estrutura e modo de concretização, não se compagina com a definição do crime permanente.
3 - Tendo por base os factos dados como provados pelo tribunal recorrido, uma vez que não foram impugnados, depressa se conclui que a ação da arguida nada tem de excecional e/ou de atípico que nos leve a concluir que se tenha encontrado numa situação de crime permanente.
4 - Todos os argumentos aduzidos pela mesma devem antes fundamentar que a situação em que a arguida se encontrou não se integra na figura do crime permanente.
5 - Inexistindo crime permanente falece de imediato a tese da violação do caso julgado e do princípio ne bis in idem.
6 - Foi bem feito o procedimento de determinação da pena, não merecendo a decisão recorrida, também neste respeito, qualquer reparo.
7 - O tribunal fez criteriosa apreciação dos factos e correta subsunção legal, pelo que deve a decisão recorrida ser mantida.
4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 1234).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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6. Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1 . EE apresentou, no dia 4 de janeiro de 2007, requerimento de proteção jurídica, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, de nomeação e pagamento de honorários de patrono, com a finalidade de propor ação judicial.
2 . Na sequência do referido requerimento, foi concedida a EE, por despacho datado de 16 de fevereiro de 2007, apoio judiciário, nas modalidades de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento faseado de honorários de patrono nomeado (a nomear pelo competente Conselho Distrital da Ordem dos Advogados).
3 . Nesse mesmo despacho foi ainda decidido que o pagamento faseado de taxa de justiça teria a periodicidade mensal, mediante a liquidação da quantia de 60,00 euros.
4 . Na sequência da decisão referida em 2, foi nomeada patrona oficiosa de EE a arguida BB, advogada, titular da cédula profissional com o n.º …, que no ano de 2007 tinha escritório sediado na avenida….
5 . EE entregou à arguida, para pagamento da taxa de justiça e honorários, os seguintes valores em numerário:
5.1. - 120,00 euros em 14.05.2007;
5.2. - 120,00 euros em 15.07.2007;
5.3. - 60,00 euros em data não apurada, mas posterior a 15 de julho de 2007;
5.4. - outras quantias, em datas e montantes não apurados, mas em valor global não superior a 100,00 euros.
6. A arguida emitiu recibos das entregas de 14.05.2007, de 15.07.2007 e da entrega do valor de 60,00 euros.
7. No dia 22 de maio de 2007 a arguida apresentou petição inicial, a qual veio dar origem ao Processo n.º 606/07.7TBOLH, distribuído ao 3.º Juízo do Tribunal de Olhão, tendo essa peça processual sido recusada pela secretaria por falta de pagamento integral da taxa de justiça.
8. Nessa sequência, a arguida veio a apresentar, no dia 25 de maio de 2007, nova petição inicial, entregando, a título de taxa de justiça inicial, a quantia de 60,00 euros, juntando comprovativo da decisão referida em 2 e da periocidade referida em 3.
9. No dia 6 de dezembro de 2007 ainda não haviam sido entregues documentos comprovativos dos pagamentos faseados até perfazerem o valor total da taxa de justiça inicial, o qual era de 204,00 euros.
10. Nessa sequência, EE veio a constituir mandatária a Dr.ª FF, a qual, no dia 21 de janeiro de 2008, fez entrar um requerimento onde, além do mais, consta o seguinte:
Foi concedido ao ora requerente apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado, devendo pagar para o feito mensalmente a quantia de 60 euros.
O ora requerente entregou mensalmente essa quantia à patrona nomeada, Sr.ª BB.
Porém, verifica-se que os pagamentos não foram efectuados.
O requerente tentou contactar a patrona nomeada para esclarecer a situação, mas a Sr.ª BB está incontactável.
Por essa razão, o requerente vem constituir mandatário, prescindindo do apoio judiciário concedido e pagando o remanescente da taxa de justiça inicial.
Assim, requer a junção aos autos da procuração forense e do comprovativo do pagamento dos 204 euros que faltava pagar para se considerar a taxa de justiça inicial inteiramente liquidada”.
11. Com a apresentação do referido requerimento, EE liquidou a quantia de 204 euros, correspondente ao remanescente da taxa de justiça inicial devida pela propositura da ação referida em 7.
12. Em janeiro de 2007 EE apresentou queixa criminal contra GG, que deu origem ao Processo n.º 53/07.0PAOLH.
13. Quando foi notificado, em 13.11.2007, da acusação proferida nesse processo pretendeu deduzir o correspondente pedido de indemnização civil, contactando, para o efeito, a arguida.
14. A arguida não deduziu pedido de indemnização civil no Processo n.º 53/07.0PAOLH.
15. EE, após novembro de 2007, tentou, sem sucesso, por diversas vezes, pessoalmente e/ou por telefone contactar a arguida para lhe pedir explicações acerca do sucedido.
16. A arguida não devolveu, até hoje, as quantias que lhe foram entregues por EE nos termos referidos em 5 a 5.4.
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17. Entre julho e agosto de 2007, HH emitiu uma procuração forense a favor da arguida, entregou-lhe documentação variada e a quantia de 500,00 euros para que esta lhe tratasse do seu divórcio por mútuo consentimento e da regulação do poder paternal do filho menor junto da Conservatória do Registo Civil ou do Tribunal de Família e Menores de Faro.
18. Após ter sabido que a arguida não havia tratado dos assuntos para os quais a mandatou, a queixosa tentou, sem sucesso, por diversas vezes, pessoalmente e/ou por telefone, contactar a arguida para lhe pedir a devolução do referido dinheiro, da documentação que lhe entregou e obter explicações acerca do sucedido.
19. No dia 19.11.2007, a hora não apurada, a queixosa encontrou casualmente a arguida na avenida 5 de outubro, em Olhão, e abordou-a a propósito do relatado supra, gerando-se uma discussão verbal, no decorrer da qual a arguida logrou atingir HH com um soco na face esquerda da cara, causando-lhe vermelhidão e dores.
20. A arguida, de forma livre e consciente, quis e conseguiu atingir o corpo de HH, sabendo que agia contra a vontade da mesma e que a sua conduta é proibida e punida por lei.
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21. Em novembro de 2007 CC entregou à arguida:
21.1. - 1.000,00 euros para regularizar uma dívida que a queixosa tinha para com outra advogada (Dr.ª II);
21.2. - 1.000,00 euros a título de provisão para despesas e honorários para a arguida tratar da regulação do poder paternal do filho menor da queixosa e da dissolução de uma empresa do seu marido.
22. Dessa entrega de dinheiro a arguida não emitiu qualquer recibo à queixosa.
23. Os honorários devidos à Dr.ª II eram no montante de 941,52 euros.
24. A arguida não procedeu ao pagamento dos honorários devidos à Dr.ª II.
25. A queixosa tentou, sem sucesso, por diversas vezes, pessoalmente e/ou por telefone, contactar a arguida para lhe pedir a devolução do referido dinheiro, da documentação que lhe entregou e obter explicações acerca do sucedido.
26. A arguida quis e conseguiu integrar no seu património a quantia referida em 21.1, sabendo que se destinava a ser entregue à Dr.ª II, a título de honorários.
27. Agiu de forma livre e consciente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
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28. Em novembro de 2007 DD entregou à arguida Aline quantia não apurada, mas não inferior a 150,00 euros, para esta tratar de um assunto legal relacionado com uma dívida do marido da queixosa, sendo que esse dinheiro se destinaria somente a pagar a taxa de justiça devida.
29. A arguida passou à queixosa um recibo pela importância de 140,00 euros.
30. Até ao momento não resolveu tal assunto e não devolveu os 150,00 euros.
31. A queixosa tentou, sem sucesso, por diversas vezes, pessoalmente ou por telefona, contactar a arguida para lhe pedir a devolução do referido dinheiro, da documentação que lhe entregou e obter explicações acerca do sucedido.
32. A arguida quis e conseguiu integrar no seu património a quantia referida em 28, sabendo que aquela importância se destinava ao pagamento da taxa de justiça.
33. Agiu de forma livre e consciente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
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34. Devido à conduta descrita em 21 a 27 CC sofreu um prejuízo de 1.000,00 euros.
35. A arguida encontra-se com a sua inscrição de advogada suspensa por tempo indeterminado desde 16.07.2013.
36. A arguida foi condenada, pela prática, em 28.09.2007, de um crime de abuso de confiança, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 6,00 euros, por decisão proferida em 11.02.2011, transitada em julgado em 17.05.2012, no âmbito do Processo Comum Singular n.º 446/08.6PBFAR, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro.
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7. E não se provou:
(…)
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8. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no que respeita à matéria de facto, seja no que respeita à matéria de direito; elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (art.ºs 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do CPP, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Feitas estas considerações, e atentas as conclusões do recurso apresentado pela arguida, são as seguintes as questões colocadas à apreciação deste tribunal:
1.ª – Se a arguida não podia ser julgada nestes autos pelos crimes de abuso de confiança, por estas condutas - que, segundo a arguida, ocorreram “no período de tempo” em que ocorreu o crime pela qual foi julgada no âmbito do Processo 446/08.6PBFAR - estarem cobertas pelo caso julgado, uma vez que “os factos imputados nestes autos à arguida entre julho, agosto e novembro de 2007 formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no processo comum singular n.º 446/08.6PBFAR… em 11.02.2011, com trânsito em julgado em 17.05.2012…”;
2.ª - Se, atenta a ausência de antecedentes criminais da arguida pela prática de crimes contra a integridade física, deve a decisão recorrida ser revogada - na parte em que condenou a arguida em pena de prisão - e substituir-se a pena aplicada por uma pena de multa.
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8.1. – 1.ª questão
Alega a arguida que as condutas que integram os crimes de abuso de confiança pelos quais foi condenada ocorreram no período de tempo em que ocorreram os factos que integram o crime de abuso de confiança pelo qual foi julgada (e condenada) no âmbito do Processo n.º 446/08.6PBFAR, que correu termos pelo 1.º Juízo Criminal da Comarca de Faro.
Ou seja, a arguida - alega - foi “condenada… pelo mesmo tipo legal de crime e por factos praticados no mesmo período de tempo em que foi condenada no processo n.º 446/08.6PBFAR… existindo identidade de objeto do processo entre os presentes autos e o referido… os factos deste processo… fazem parte do objeto do processo já julgado…”.
Não é assim.
Os factos a que estes autos se reportam - e pelos quais a arguida foi julgada - nada têm a ver com os factos pelos quais foi julgada no Processo 446/08.6PBFAR:
- Nestes autos está em causa a apropriação (indevida) em proveito próprio de quantias que lhe foram entregues por EE (em 14.05.2007, 15.07.2007, em data não apurada posterior a 15.07.2007 e em datas não apuradas) e por CC (em novembro de 2007);
- No Processo n.º 446/08.6PBFAR a arguida foi julgada pela prática de um crime de abuso de confiança ocorrido em 28.09.2007, não fornecendo os autos elementos para aferir quem foi o lesado com esta conduta.
Ora, de acordo com o alegado - e deve lembrar-se que, pela natureza do recurso, quem alegue um vício da decisão deve concretizar os factos que fundamentam a sua existência - não faz qualquer sentido pretender que a arguida já foi julgada pela prática dos factos a que estes autos se reportam, ou seja, pelo mesmo crime, pois que, por um lado, trata-se de condutas completamente distintas, que lesaram diferentes vítimas, em valores diferentes, em momentos diferentes, e que correspondem a outras tantas resoluções criminosas, em suma, o tribunal não conheceu nestes autos de qualquer factualidade de que antes já tivesse conhecido.
Por outras palavras, a violação do caso julgado ou do princípio ne bis in idem supõe que o agente seja julgado pela prática de factos que já foram conhecidos/apreciados/julgados num outro processo, anteriormente, ou seja, uma repetição de julgados.
Por outro lado, não faz qualquer sentido a invocada existência de um crime permanente (para defender que estamos perante uma mesma factualidade/um mesmo crime), como se de um único crime se tratasse, pois que estamos perante diversas condutas, correspondentes a outras tantas resoluções criminosas, violadoras de outros tantos bens jurídicos, de que são titulares diversos lesados, quando no crime de execução permanente está em causa apenas uma única conduta - um único crime - cuja execução que se mantém ao longo de determinado período de tempo mais ou menos prolongado, “há uma só acção ou omissão que se protela no tempo (ex.: sequestro - art.º 158)… porque a execução se prolonga todos os momentos são ainda de execução…” (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português - Parte Geral, I - pág. 295), o agente mantém a reiteração do animus criminoso - atua com o propósito inicial que nunca abandonou (acórdão do STJ de 7/12/89, BMJ, 400, pág. 240).
Não faz qualquer sentido, pois, pretender que a arguida já foi julgada (e condenada) pela prática dos factos ilícitos a que estes autos se reportam e, consequentemente, a invocada violação do caso julgado ou do princípio ne bis in idem.
Acresce que a arguida, por um lado, teve oportunidade de exercer o seu direito defesa relativamente à factualidade que lhe era imputada nestes autos (e que exerceu, nos moldes que teve como pertinentes), sendo - por isso - destituída de fundamento a invocada violação do direito de defesa da arguida, por outro, não se tratando de questão que tivesse sido suscitada - podendo sê-lo - o tribunal, entendendo que não se verificava qualquer violação de tais princípios, não tinha que conhecer de tal questão (a nulidade a que se reporta o art.º 379 n.º 1 al.ª c) do CPP tem a ver com a omissão de pronúncia relativamente a questões de que o tribunal deva conhecer, seja porque oportunamente foram suscitadas, seja porque, existindo, com relevância para o desfecho dos autos, delas deva conhecer oficiosamente).
Improcede, por isso, a 1.ª questão supra enunciada.
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8.2. - 2.ª questão
A arguida foi condenada, no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143 n.º 1 do CP, na pena de cinco meses de prisão, dentro da moldura de um mês a três anos de prisão ou multa de 10 a 360 dias (art.º 41 n.º 1 e 47 n.º 1 do CP).
Insurge-se a arguida quanto a esta pena, que considera “excessivamente gravosa, ultrapassando a medida da culpa”, em síntese, porque a arguida nunca foi condenada pela prática de crime desta natureza.
Na determinação da medida da pena (desta pena) o tribunal ponderou:
Por um lado, as circunstâncias em que este crime ocorreu (“que teve como motivo também a entrega de dinheiro à arguida”), reveladoras de uma intensidade criminosa assinalável, e o facto da arguida exercer a profissão de advogada, onde se intensificam as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, face à relação de confiança que se estabelece entre advogado/cliente e à conexão deste crime com aquela atividade;
Por outro:
- a intensidade e a gravidade das lesões sofridas pela vítima;
- o dolo (direto) com que a arguida atuou;
- a integração familiar e social da arguida e a ausência de antecedentes criminais.
Ora, perante este quadro, concretamente - e correndo o risco de nos repetirmos - as elevadas exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir (não obstante a ausência de antecedentes criminais e a sua integração familiar e social, que pouco relevam perante a conduta da arguida, apreciada na sua globalidade, reveladora da dificuldade em manter uma conduta conforme ao Direito) e o elevado grau da culpa da arguida, enquanto juízo de censura ético-jurídica que recai sobre a sua conduta, seja pelas razões subjacentes à mesma - o pedido de devolução da quantia que lhe havia sido entregue, enquanto advogada, nas circunstâncias dadas como provadas - seja pela forma dolosa como atua, agredindo a ofendida/cliente, a pena aplicada (de cinco meses de prisão), não indo além da culpa - elevada, como se concluiu - mostra-se criteriosamente ponderada, quer em função das circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depõem contra a arguida e a seu favor, quer em função dos fins de prevenção geral e especial que com a punição se visam alcançar.
Improcede, por isso, a 2.ª questão supra enunciada.
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9. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pela arguida e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP).

(Este texto foi por mim, relator, integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 12/07/2016
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma