Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
46/11.3TMFAR-Z.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
DIREITO DE VISITA
ESTADO DE EMERGÊNCIA
PODER PATERNAL
EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL
MULTA
GUARDA DE MENOR
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. A alínea j) do n.º1 do art.º 5.º Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, prevê expressamente que os cidadãos podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente.
2. O cumprimento de partilha de responsabilidades parentais engloba as deslocações necessárias para assegurar e garantir o convívio das crianças com o progenitor não residente, assim como com o residente na sequência do estabelecimento do regime de residência alternada.
3. Justifica-se a condenação da progenitora em multa, nos termos do art.º 41.º/1 do RGPTC, que recusa o convívio do filho com o pai, estabelecido judicialmente no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais, durante o período de confinamento obrigatório e execução das medidas de contenção e controlo do risco de contágio da Covid 19, invocando esta circunstância, apesar desta questão ter sido previamente apreciada e ordenado o imediato convívio do menor com o pai. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I- Relatório.
1. Nos presentes autos de Alteração da Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais relativo ao menor C…, nascido a 12/06/2009, a progenitora G…, na sequência do incidente de incumprimento suscitado pelo progenitor J…, veio por requerimento entregue no apenso “W”, (REFª: 35194146) requerer a suspensão ou a adaptação provisória do regime fixado na regulação das responsabilidades parentais, alegando que o Estado de Emergência Nacional em que se vive de momento devido à pandemia da Covid-19 implica a adoção de medidas urgentes e excecionais quanto à não propagação da epidemia e, como é do conhecimento público as Escolas encerraram por período indeterminado, circunstância esta superveniente e excecional tendo em conta o indicado no artigo antecedente. Ora, preocupada com a situação atual, a mãe do menor contatou imediatamente este escritório para expor o seu receio quanto à pandemia e ao facto do menor se encontrar em casa resguardado, como mandatam as recomendações do Governo, da Organização Mundial de Saúde e das demais entidades nacionais e internacionais que se encontram em alerta quanto à evolução da Covid-19.
Face ao exposto pela mãe do menor, o seu aqui patrono nomeado recomendou de imediato que o menor se mantivesse resguardado em casa e não saísse em cumprimento das recomendações das entidades de saúde com incidência para o cumprimento da chamada quarentena, tendo em conta a gravidade da situação em que se vive.
E concluiu sugerindo que de forma a não privar o menor e o pai do normal contato, propõe-se que sejam efetuados os contatos por meio de vídeo chamada entre o menor e o seu progenitor, sendo disponibilizado o contato do menor ao progenitor.
2. Ouvido o pai do menor, este veio dizer que cumpre escrupulosamente as medidas de higiene, segurança e proteção, garantindo, nomeadamente, o cumprimento do isolamento social e a existência de materiais de desinfeção no domicílio e no automóvel.
3. O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que mesmo neste período de estado de emergência o regime de convívios estabelecido não se encontra legalmente suspenso, razão pela qual deverá ser respeitado.
4. Após foi proferido, em 4/5/2020 o seguinte despacho:
Veio a Requerida, G…, mãe do menor C…, requerer a suspensão do regime de convívios.
Ouvido o pai do menor, o Requerente J…, respondeu que cumpre escrupulosamente as medidas de higiene, segurança e proteção, garantindo, nomeadamente o cumprimento do isolamento social e a existência de materiais de desinfeção no domicílio e no automóvel.
O ministério Público emitiu parecer no sentido de que mesmo neste período de estado de emergência, o regime de convívios estabelecido não se encontra legalmente suspenso, razão pela qual deverá ser respeitado, sob pena de incumprimento do mesmo, salvaguardando-se, naturalmente, qualquer outro entendimento dos pais, desde que assumido por comum acordo.
Apreciando.
O estado de emergência declarado em Portugal por força da pandemia por COVID-19 não derrogou o regime de regulação das responsabilidades parentais em vigor, que nenhum dos progenitores pode alterar unilateralmente. Isto é, dito de outra forma, os pais e as mães não deixam de o ser por força da pandemia pelo Coronavírus, não ocorrendo uma suspensão das responsabilidades parentais.
Efetivamente, a Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março, que decretou as medidas excecionais no estado de emergência não restringiu estas deslocações, e o artigo 5º, do Decreto 2-A/2020, de 20 de março, da Presidência do Conselho de Ministros e 5.º, n.º1, alínea j), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, que procedeu à execução da declaração do estado de emergência, nas suas alíneas f) e g), prevê expressamente as referidas deslocações.
A exceção ao confinamento para cumprimento dos regimes de regulação das responsabilidades parentais apenas deverá ser excluída quando a criança pertença a um grupo de risco, por estar abrangido pelo dever especial de proteção (imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser consideradas de risco, designadamente, os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos – artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, bem como dos Decretos n.ºs 2-A/2020 e 2-B/2020). O legislador, não obstante a necessidade de mitigação da pandemia, não descurou as responsabilidades parentais.
Nesta medida, caso a Requerida impeça os convívios entre o pai e o filho entrará em incumprimento do regime de regulação das responsabilidades.
Termos em que se ordena o imediato reatamento do regime de regulação das responsabilidades parentais.
Notifique”.
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5. Por requerimento entregue no apenso “T”, Ref.ª 35523824 , a progenitora veio dizer que não iria cumprir a retoma dos convívios do menor com o pai, alegando, em síntese:
- O Requerido sabe e tem presente que o menor padece de uma doença crónica (Vitiligo – trata-se de doença cutânea, crónica, caracterizada pela despigmentação localizada ou difusa da pele, resultante de uma alteração da função dos melanócitos, as células produtoras de melanina, pigmento responsável pela cor da pele);
- Para além da doença que o menor padece, o facto de já ter sido intervencionado aos adenoides e amigdalites devido ao seu histórico de crises respiratórias (bronquites) sendo do conhecimento oficioso do tribunal (encontram-se juntos aos autos principais já a alguns anos) as diversas deslocações do menor ao médico por questões respiratórias e surgimento de febre, que o filho se encontra inserido neste grupo de risco sendo dever da Requerente informar o Tribunal destes factos;
- Por sua vez, a avó materna padece de doença enquadrada na norma e regime de exceção supramencionado, nomeadamente, padece de Lupus (trata-se de uma doença inflamatória autoimune, que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos, como pele, articulações, rins e cérebro);
- Os doentes com Lúpus são doentes imunodeprimidos, ou seja, têm as suas defesas diminuídas);
- Por sua vez, o avô materno é hipertenso e padece de insuficiência renal crónica.
- E o menor encontra-se inserido neste grupo de risco sendo dever da Requerente informar o Tribunal destes factos;
- Sendo que no caso concreto, a exceção ao confinamento para cumprimento dos regimes de regulação das responsabilidades parentais, deverá ser excluída pois que o menor pertence a um grupo de risco, encontrando-se abrangido pelo dever especial de proteção.
- E tendo em conta o grupo de risco em que o menor se encontra inserido, entende-se que deverá ser mantido os convívios por videochamada no respeito pelo bem-estar e superior interesse do menor, para além do facto das entregas do menor serem feitas nas instalações do tribunal - um lugar público, onde são constantes as entradas e saídas de diversas pessoas e um local de grande risco para a propagação do vírus.
6. O Ministério Público promoveu “a execução da sentença transitada em julgado uma vez que a mãe veio aos autos dizer que não cumpria a decisão acerca da retoma dos convívios, mais se condenando a mesma em multa pelo claro e confessado incumprimento”.
7. Na Conferência de Pais realizada em 4 de junho de 2020, foi proferido o seguinte despacho:
“Por despacho proferido em 04.05.2020 (ref. citius 116542475) foi ordenado o imediato reatamento dos convívios fixados no regime de regulação das responsabilidades parentais. Sucede que tal não veio a acontecer e mais do que isso, por requerimento datado de 11.05.2020, veio a mãe do menor, G…, dizer que não irá cumprir o regime no que toca aos convívios, isto é, não permite, mesmo findo o período de confinamento obrigatório, que a criança conviva com o pai, invocando que o avô materno é hipertenso e padece de insuficiência renal crónica, a avó materna padece de Lúpus e o menor sofre de Vitiligo, pelo que tem “justa causa” para não cumprir o ordenado pelo Tribunal.
A mãe do menor, G… veio juntar, por requerimento de 14.05.2020, relatórios médicos relativos ao menor e aos avós maternos, dos quais não resulta que nenhum dos três pertença a grupo de risco previstos na legislação extraordinária da pandemia por Covid-19.
Temos então que concluir sucintamente que, o incumprimento do regime de regulação das responsabilidades parentais no que toca aos convívios não tem por base uma preocupação com o bem-estar do menor, que aliás se tivesse, face aos problemas de saúde da família materna, o menor deveria ficar com o pai, mas uma vez mais, apenas por mero capricho da mãe G….
Concluindo, e tendo por fundamento o interesse superior da criança em conviver com o seu pai, condeno a mãe do menor G… no pagamento de multa que fixo em 3UC, nos termos do artigo 41º, nº 1 do RGPTC.
Nos termos do nº 6, do aludido artigo 41º do RGPTC, notifique a mãe do menor G…, através do endereço eletrónico, para comparecer na portaria deste Tribunal, no próximo dia 8.06.2020, pelas 10:00 horas, onde, na presença da Técnica Gestora, fará a entrega do menor ao pai, passando a partir daí, o menor, uma semana com cada um dos progenitores até ao início das férias escolares, período a partir do qual vigorará o fixado na sentença em vigor.
As entregas e recolhas do menor serão sempre feitas na portaria deste Tribunal, às segundas-feiras, pelas 10:00 horas.
Adverte-se ainda a mãe do menor G… que, tal como promovido, o incumprimento do ora ordenado, determinará a imediata entrega da criança ao pai”.
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8. Inconformada com o decidido, a progenitora veio interpor os presentes recursos de apelação dos mencionados despachos (dois), formulando extensas e complexas conclusões, em claro desrespeito da exigência de síntese prevista no n.º1 do art.º 639.º do CPC, razão pela qual não serão integralmente transcritas, extraindo-se de relevantes as seguintes, quanto ao recurso do despacho de 4/5/2020:
1. O recurso fundamentou-se sobre a decisão do Tribunal a quo ínsita no Despacho recorrido em ordenar “o imediato reatamento do regime de regulação das responsabilidades parentais” de 2016 sem atender à situação excecional Pandémica, sem acautelar o bem-estar e superior interesse do menor e sem ter tido o cuidado de impor alterações ao regime de convívios e contados físicos com o Progenitor.
2. O Despacho recorrido desconsiderou a natureza, extensão, perigo e consequências da Covid-19.
3. O Despacho recorrido, violou o regime jurídico excecional previsto no artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04.
4. O Despacho recorrido, violou o regime jurídico excecional previsto no artigo 5.º n.º1, alínea j), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04.
5. O Despacho recorrido, violou os artigos 27.º e 28.º da RGPTC.
6. O Despacho recorrido desconsiderou a saúde e a proteção do bem-estar e superior interesse do menor.
7. O Despacho recorrido, violou o artigo 608.º e incorreu em nulidade consistente em omissão de pronúncia (Cfr. art.º 615.º, 1, al. d) do CPC).
8. Salvo melhor entendimento, o artigo 5.º do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, determina que as pessoas ali indicadas só podem circular em espaço e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas para, no caso concreto, deslocarem-se por razões familiares imperativas como é o caso do cumprimento de partilha de responsabilidades parentais como determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo Tribunal.
9. Consequentemente, a norma excecional ínsita no n.º 5 do citado diploma determina a circulação e deslocação de pessoas e não os convívios e aproximação de pessoas – situação esta última afastada pelo próprio diploma legal face ao perigo de propagação da Covid-19 (sublinhados e negrito nossos); e quando esta norma refere o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais não se está a referir aos convívios nem à aproximação ou contato das pessoas mas sim ao conjunto do complexo das responsabilidades parentais fixada por acordo dos intervenientes ou em juízo; repare-se a norma indicada refere expressamente o termo acordo ou em alternativa fixado pelo Tribunal.
10. Se por um lado, as responsabilidades parentais podem definir-se como sendo o conjunto de poderes e deveres que asseguram o bem-estar moral e material do filho, isto é, os cuidados diários, a relação pessoal, a educação, o sustento, a representação legal e a administração dos seus bens.
11. Por outro lado, o superior interesse da criança pode ser definido como sendo o critério máximo para regular o exercício das responsabilidades parentais, a par da igualdade entre os pais.
12. E a situação Pandémica excecional em que se vive atualmente implica a adoção de medidas e imposições excecionais e não a retoma de medidas e imposições fixados em 2016.
13. Em concreto, repare-se que é o próprio Progenitor que, não podendo ignorar a existência da Covid-19 e muito menos a doença que o seu filho padece, omite tais factos e alega como se desconhecesse tais factos “levando” a que o Tribunal, teoricamente, subsumisse os factos à aplicação teórica do artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, bem como dos Decretos n.ºs 2-A/2020 e 2-B/2020.
14. Na verdade, o legislador não descurou as responsabilidades parentais, nem o poderia ter feito, mas sim reiterou a sua importância para a vida do menor tendo em conta o período pandémico em que se vive e não, pelo contrário, impôs que fossem restabelecidos regimes anteriores à Pandemia que não respondem nem acautelam os interesses, saúde e bem-estar do menor.
15. Sendo que no caso concreto, a exceção ao confinamento para cumprimento dos regimes de regulação das responsabilidades parentais, deverá ser excluída pois que o menor pertence a um grupo de risco, encontrando-se abrangido pelo dever especial de proteção.
16. E tendo em conta o grupo de risco em que o menor se encontra inserido, entende-se que antes de mais, deverá ser mantido os convívios por videochamada no respeito pelo bem-estar e superior interesse do menor, para além do facto das entregas do menor serem feitas nas instalações do Tribunal - um lugar público, onde são constantes as entradas e saídas de diversas pessoas e um local de grande risco para a propagação do vírus.
17. O Tribunal a quo conhecendo a natureza do presente processo que corre há quase uma década em Tribunal e que conta já com 23 apensos, estranhamente não se pronuncia sobre o relevante requerimento da Recorrente de 17 de março porque aguarda o requerimento do Progenitor quanto a tal requerimento da Recorrente (“No entanto, e decorrido cerca de um mês, não houve resposta por parte do Requerido...”).
18. E nesta sequência, o Tribunal a quo aguarda o requerimento do Progenitor (que veio a ocorrer em 27 de abril e que não respondendo diretamente ao solicitado pelo Tribunal) que requer, em jeito de requerimento/incumprimento, o restabelecimento sem mais do regime das responsabilidades parentais fixado em 2016 - como se a Covid-19 não tivesse existido, jogando mão da aplicação teórica do artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, bem como dos Decretos n.ºs 2-A/2020 e 2-B/2020.
Termos em que, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o douto Despacho com as demais consequências legais.
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9. No que respeita ao recurso do despacho de 4/6/2020, a recorrente apresentou extensas e complexas conclusões, em claro desrespeito da exigência de síntese prevista no n.º1 do art.º 639.º do CPC, razão pela qual não serão integralmente transcritas, extraindo-se de relevantes as seguintes:
1. O Despacho recorrido desconsiderou a natureza, extensão, perigo e consequências da Covid-19.
2. O Despacho recorrido, violou o regime jurídico excecional previsto no artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04.
3. O Despacho recorrido, violou o regime jurídico excecional previsto no artigo 5.º n.º1, alínea j), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04.
4. O Despacho recorrido, violou os artigos 27.º e 28.º da RGPTC.
5. O Despacho recorrido desconsiderou a saúde e a proteção do bem-estar e superior interesse do menor.
6. O Despacho recorrido, violou o artigo 608.º e incorreu em nulidade consistente em omissão de pronúncia (Cfr. art.º 615.º, 1, al. d) do CPC).
7. O Tribunal a quo ao não ter ouvido, nem respondido ao solicitado pela Recorrente no seu email / informação de 12 de maio, violou o princípio da cooperação e boa-fé processual (Cfr.art.º 7.º e 8.º do CPC), bem como viola o princípio da imparcialidade ao não valorar os factos, fundamentos, prova e alegações da Requerida (nomeadamente os indicados nos artigos 5.º a 9.º do presente requerimento), em reiterado favorecimento ao Requerido, pelo que nada mais restava à Recorrente senão ter pedido a suspensão do decidido na conferência de 4 de junho de 2020 bem como o afastamento da Meritíssima Juiz e Digno Procurador da Republica por manifesta imparcialidade.
8. Para além disso, verifica-se que na conferencia de pais em causa, os objetos dos apensos T e W não foram alvo de conhecimento de mérito limitando-se o Tribunal a quo a reagendar as conferências para meados de setembro, a não despachar sobre a admissão dos Recursos interpostos pela Recorrente dos Despacho de 5 de maio e a decidir sobre um alegado incumprimento da Recorrente absolutamente inexistente.
9. E isto contrariamente à prova produzida pela Recorrente e alegada pela mesma no seu email / informação de 12 de maio e por forma a alterar a residência do menor para o Requerido em manifesta violação do superior interesse do menor e do seu bem-estar (e nem tão pouco solicitando a audição do menor) e em clara parcialidade em favor do Requerido – e bem assim contrariamente à prova produzida pela Recorrente nos requerimentos e informações aos sujeitos processuais datadas de 11, 14 e recurso de 21 de maio.
10. Ou seja, no período de um mês a Recorrente recorre de dois despachos que considera absolutamente infundados e injustos contendo na sua génese uma notória parcialidade processual em desfavor da Recorrente e desprotegendo os interesses e bem-estar do menor.
11. Perante a decisão do Tribunal a quo em restabelecer imediatamente um regime das responsabilidades parentais fixado em 2016 sob a “ameaça” de incumprimento caso a Recorrente o não acatasse (sem o atualizar nem ter o cuidado de o adaptar às condições atuais pandémicas da Covid-19 e contra o zelo e proteção da Recorrente na saúde e bem-estar do seu filho) veio a Recorrente responder com factos e prova bastante para que o Tribunal a quo tivesse os elementos necessários para ponderar a decisão tomada no douto Despacho ora recorrido e restabelecer a manutenção do regime exceção proposto pela Recorrente no seu requerimento de 17 de março (Vide Requerimentos da Recorrente de 11, 12 e 14 de maio).
12. Todavia, e contrariamente aos factos que a Recorrente trouxe aos autos, o Tribunal a quo entende manter a decisão de restabelecer um regime das responsabilidades parentais que coloca em perigo a saúde, bem-estar e superior interesse do menor.
13. E isto, porque uma vez mais, salvo melhor e com o devido respeito, segue o interesse do Requerido e não o interesse do menor.
14. Ao fazê-lo da forma que o fez, o Tribunal a quo desconsidera a natureza, extensão, perigo e consequências da Covid-19.
15. E ao fazê-lo da forma que o fez, o Tribunal a quo violou o regime jurídico excecional previsto no artigo 4.º, 1, al. b) do DL 2-C/2020, de 17 de abril.
16. E ao fazê-lo da forma que o fez, o Tribunal a quo violou os artigos 27.º e 28.º da RGPTC e desconsiderou a proteção do bem-estar e superior interesse do menor.
17. E ao fazê-lo da forma que o fez, o Tribunal a quo violou os artigos 608.º e 615.º do CPC, nomeadamente, incorreu o Despacho na nulidade consistente na omissão de pronuncia ao não se pronunciar, pelo menos, sobre o requerimento urgente da Recorrente datado de 12 de maio de 2020.
18. Ora bem foram juntos relatórios médicos atestando as doenças que padecem os pais da Recorrente e o rol descritivo das doenças que constituem grupo de risco encontra-se na lei e são de conhecimento geral e publico e foram reproduzidas pelo Tribunal a quo no despacho de 5 de maio (“imunodeprimidos e os portadores de doença cronica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser consideradas de risco, designadamente, os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos – artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04”) pelo que é notório que o Digno Procurador da República assume uma postura parcial no processo manifestamente em defesa dos interesses do pai (desconhecendo-se com rigor e certeza qual a extensão e natureza desses interesses) em detrimento da mãe e inclusive desvalorizando a prova junta pela mãe aos autos.
19. Segundo a tese do Digno Procurador da República deve ser retirada a criança da casa que vive desde que nasceu, com o agregado familiar mãe e avos maternos, para ser exclusivamente entregue ao pai negligente para segundo ele proteger os avós, quando por lógica o menor ao não estar em convívio físico com o pai mantem a sua vida normal e não coloca em risco nem a si nem aos avós e ainda tem mantido o convívio com o pai diariamente, coisa que na casa do pai dificilmente ocorre: o pai raramente permite o menor ligar ou contactar com a mãe, mesmo a pedido deste tendo saudades, o que o pai faz com propósito de deixar a mãe preocupada num espírito de vingança em relação ao termo da relação entre os progenitores.
20. Aliás a mãe sempre manteve os laços entre menor e o pai e para além das quartas-feiras e fins de semana de 15 em 15 dias impostos na sentença do apenso D, o menor e o seu pai visionaram-se por vídeo chamada todos os dias durante o estado de emergência e calamidade, período esse em que na sua maior parte das vezes era o próprio pai que manifestava não ter interesse em falar com o seu filho.
21. Razões pelas quais deve o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que acautele o bem-estar, saúde e interesse do menor e não penalize a mãe por defender o seu filho, bem como ser o Tribunal da Relação a substituir-se ao Tribunal a quo e propor alteração do regime das responsabilidades parentais fixado em 2016 (e que à presente data se encontra absolutamente desatualizado tanto mais que penaliza de uma forma quase que ditatorial e “em jeito de pena suspensa” o não cumprimento do regime fixado pela Recorrente ao dizer na decisão que “...caso a progenitora incumpra uma vez que seja o regime fixado no ponto 7, da Fundamentação de Direito (IV) passará a vigorar ... a criança C… ficará a residir com o pai na cidade de Faro...” ), com eliminação das entregas a meio da semana, quarta-feira, que perturbam o aproveitamento escolar e dia a dia do menor, mantendo-se entretanto o regime excecional proposto pela Recorrente dos contatos e acompanhamento do menor pelo progenitor, pai, ser efetuado por videochamada tendo em conta o normal acompanhamento que o mesmo deve ter no bem-estar e saúde do seu filho (conforme fixação em 14 de julho de 2016 das responsabilidades parentais nos autos do apenso D - Proc. Nº 46/11.3TMFAR-D).
Termos em que, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o douto Despacho com as demais consequências legais.
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10. O Ministério Público contra-alegou, defendendo a bondade dos despachos recorridos, terminando com as seguintes conclusões:
1. Não assiste qualquer razão à ora recorrente.
2. Não se pode requerer ao Tribunal a suspensão do regime de convívios com o pai por uma certa razão, que entendemos válida, e quando o Tribunal não concorda que essa razão seja válida, não acatamos o decidido pelo Tribunal.
3. Daí a decisão de incumprimento e condenação em multa.
4. A decisão proferida, por não merecer qualquer reparo ou censura, deverá manter-se nos seus precisos termos.
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11. Os recursos foram admitidos como de apelação, com efeito devolutivo, com subida imediata e em separado, tendo a Senhora Juíza determinado a instrução e subida em conjunto dos recursos, com vista a evitar contradição de julgados, já que está em causa a mesma situação fática.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil -, constata-se que as questões a decidir nos recursos consistem em saber:
a) se a decisão padece de nulidade por omissão de pronúncia;
b) se deve ser alterado o regime de convívios do menor com o pai durante o período excecional da Pandemia;
c) se ocorre incumprimento, por banda da recorrente, da regulação do exercício das responsabilidades parentais, e se deve manter-se a sua condenação em multa.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
Para além do que consta do antecedente relatório, importa considerar a seguinte factualidade:
1. Por sentença proferida em 15 de julho de 2016 foi regulado o exercício das responsabilidades parentais do menor C…, nascido em 12/6/2009, no que respeita à sua residência (no que ora importa) o seguinte:
a) A criança C… ficará a residir com a mãe na cidade de Faro.
b) As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
2. E quanto ao regime de convívios do menor com o pai exarou-se o seguinte regime:
a) Durante o período Letivo.
16. O pai conviverá com a criança em fins de semana alternados, indo para o efeito recolhê-la no estabelecimento de ensino na sexta-feira no final das atividades letivas e entregá-la na segunda-feira seguinte no mesmo local no início das atividades letivas.
17. Se esses dias (sexta-feira e segunda-feira) coincidirem com dia feriado a recolha e entrega será efetuada respetivamente à 5ª feira e 3ª feira no equipamento sócio educativo no início das atividades letivas.
18. O pai conviverá, ainda, com a criança todas as quartas feiras, indo para o efeito recolhê-la nesse dia no estabelecimento de ensino no final das atividades letivas e entregá-la no mesmo local no dia seguinte no início das atividades letivas.
19. Se esse dia (quarta-feira) coincidir com dia feriado a recolha e entrega será efetuada respetivamente à 3ª feira. Se a 5ª feira subsequente corresponder a um feriado a entrega será efetuada na 6ª feira, no equipamento sócio educativo.
Durante o período de férias escolares
20. Fora do período letivo a criança será entregue ao pai no Tribunal pelas 15:45 horas de sexta-feira e devolvida à segunda-feira no mesmo local pelas 9:10 horas (ex: meses de junho e setembro e carnaval), lavrando a senhora funcionária cota sobre o cumprimento ou não do determinado.
21. Se a sexta-feira e segunda-feira coincidirem com um dia feriado a entrega passará a ser efetuada à 5ª feira (pelas 15:45 horas) e a recolha à 3ª feira pelas 9:10, no Tribunal lavrando a senhora funcionária cota sobre o cumprimento ou não do determinado.
22. Fora do período letivo a criança será entregue ao pai no Tribunal pelas 15:45 horas de quarta-feira e devolvida à quinta-feira no mesmo local pelas 9:10 horas (ex: meses de junho e setembro e carnaval).
23. Se a quarta-feira coincidir com um dia feriado a entrega passará a ser efetuada 3ª feira (pelas 15:45 horas) e a devolução à 5ª feira pelas 9:10, no Tribunal. Se a 5ª feira coincidir com um feriado a entrega ocorrerá à 6ª feira pelas 9:10 horas. Lavrando a funcionária judicial cota sobre o cumprimento ou não do determinado.
24. A criança passará metade das férias de verão com cada um dos progenitores por períodos de uma semana. Nos anos pares a criança iniciará as férias com o pai e nos ímpares com a mãe.
25. Nos anos pares a criança passará com os pais os seguintes períodos de férias:
- De 1 a 14 de julho com o pai.
- De dia 15 a 30 de julho com a mãe.
- De 31 de julho a 15 de agosto com o pai.
- De 16 de agosto a 31 de agosto com a mãe. sendo as recolhas efetuadas pelas 9:10 horas e as entregas pelas 15:45 horas no Tribunal, com os acertos necessários casos esses dias coincidam com um feriado ou fim de semana (transferindo-se a entrega e recolha para o dia útil imediatamente anterior e/ou posterior).
26. No ano de 2016 o regime de férias fixado no acordo de 2012 manter-se-á, mas face aos incumprimentos da progenitora, a criança permanecerá com o pai do dia 8 a 21 de julho e do dia 2 a 11 de setembro, tudo de acordo com a tabela a ser entregue aos pais.
27. Nos anos pares a criança passará a primeira parte das férias de Natal com o pai, indo para o efeito este recolhê-la no último dia de aulas, no fim das atividades letivas, na escola e entregá-la no Tribunal no dia 26 de dezembro pelas 9:10 horas.
28. Nos anos ímpares o pai recolherá a criança no dia 26 de dezembro pelas 9:10 no Tribunal entregá-la-á no equipamento sócio educativo no primeiro dia de aulas.
29. Nos anos pares a criança passará a primeira parte das férias da Páscoa com o pai, indo este recolhê-la no estabelecimento escolar no fim das atividades letivas e entregando-o no tribunal na quinta-feira subsequente no Tribunal pelas 15.45 horas. Nos anos ímpares o pai recolherá a criança na 5ª feira anterior à 6ª feira Santa pelas 15.45 horas no Tribunal e entregá-la-á no primeiro dia de aulas no equipamento socioeducativo no início das atividades letivas.
30. Caso as festividades do dia 19 de março e o aniversário do pai (14 de janeiro) coincidam com um dia útil ou com um fim-de-semana que coubesse à criança permanecer com o progenitor o filho pernoitará nesses dias com o pai efetuando-se as recolhas e as entregas no equipamento sócio educativo nos moldes suprarreferidos.
31. A criança passará o dia da mãe (primeiro domingo do mês de maio) com esta caso essa data coincida com o fim-de-semana que lhe caiba ficar com a criança.
32. A criança passará o dia de aniversário da mãe (13 de outubro) com esta caso essa data coincida com um dia útil ou com o fim de semana que lhe caiba ficar com a criança.
33. Caso o dia de aniversário da criança (12 de junho) coincida com um dia útil nos anos pares pernoitará com o pai e nos anos ímpares com a mãe.
34. Caso o dia de aniversário da criança coincida com um fim de semana a criança permanecerá com a progenitor a quem couber ficar com ele nesse período.
35. Durante os períodos que a criança deva permanecer com o pai a mãe abster-se-á de contactar com o filho por telefone ou qualquer outra via.
36. Quando a mãe adquirir medicamentos que devam ser administrados à criança deverá entregá-los ao requerente se o filho tiver de acompanhar o pai para o cumprimento do regime de convívios.
37. As entregas e recolhas da criança poderão ser efetuadas pelos avós paternos.
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2. O direito.
Considerando serem essencialmente as mesmas questões objeto dos recursos interpostos dos aludidos despachos, serão apreciados em conjunto.
2.1. Nulidade por omissão de pronúncia.
Diz a recorrente que no dia imediatamente a seguir ao seu requerimento a informar o tribunal da situação Pandémica é decretado o Estado de Emergência e o tribunal a quo nem se pronunciou sobre o regime excecional que os progenitores deveriam seguir durante esse período, e que o tribunal, conhecendo a natureza deste processo que corre em Tribunal à quase uma década e que conta já com 23 apensos, não se pronunciou sobre esse requerimento de 17 de março, o que configura, em seu entender, uma nulidade por omissão de pronúncia.
Vejamos, pois, se tem razão.
Nos termos do art.º 615.º/1, al. d), do C. P. Civil, a sentença (regime aplicável aos despachos, como se refere no seu 613.º/3) é nula quando deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art.º 608.º/2 do C. P. Civil.
E a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o acórdão deixar de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Tem sido entendimento pacífico da doutrina e na jurisprudência, que apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art.º 615º nº 1, al. d), do CPC. Daí que, se na sua apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
Como escreve Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª Edição, pág. 57, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”. E acrescenta, citando Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, Volume V, pg. 143, que “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
No caso concreto, estava em causa a pretensão da recorrente na suspensão do regime de visitas ao pai com fundamento no Estado de Emergência, na sequência do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março.
Esta era, pois, a verdadeira questão que se impunha conhecer e que foi apreciada, como a própria recorrente reconhece que o Tribunal a quo se referiu a esse requerimento por despacho de 17 de março de 2020, ao mandar notificar as partes para, em 5 dias, esclarecerem se já se entenderam quanto a essa questão, pronunciando-se no despacho recorrido de 4 de maio de 2020, e supra integralmente transcrito, apreciando expressamente a pretendida suspensão do regime de visitas, com fundamento no estado de emergência declarado em Portugal por força da pandemia por COVID-19, referindo que “os pais e as mães não deixam de o ser por força da pandemia pelo Coronavírus, não ocorrendo uma suspensão das responsabilidades parentais”, concluindo que “caso a Requerida impeça os convívios entre o pai e o filho entrará em incumprimento do regime de regulação das responsabilidades” e ordenou “o imediato reatamento do regime de regulação das responsabilidades parentais”.
Assim, é manifesto que o Tribunal a quo se pronunciou sobre essa pretensão.
Não se deteta, pois, a invocada nulidade dos despachos recorridos.
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2.2. A questão essencial a decidir consiste em saber se deve ou não ser suspenso o regime de convívios do menor com o pai durante o período excecional da Pandemia, como pretendido pela recorrente, nomeadamente que as visitas se processem à distância e por vídeo conferência ou outras tecnologias de comunicação
Como é consabido os processos tutelares cíveis são considerados como de “jurisdição voluntária”, e, por isso, não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, o que permite ao juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, adotando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, seja para coligir oficiosamente provas que repute essenciais às finalidades concretas do processo, seja para prescindir de atos ou de provas que repute inúteis ou de difícil obtenção e, neste sentido, incompatíveis com o superior interesse da criança a uma decisão em tempo razoável, como bem se evidenciou no Ac. do T. da Rel. do Porto, de 14/6/2010, disponível em www.dgsi.pt.
Quando o incumprimento do estabelecido regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais se refere ao regime de visitas ou guarda, deverá ser suscitado o incidente de incumprimento, previsto no art.º 41.º do RGPTC, podendo o progenitor incumpridor ou a terceira pessoa ser condenado em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos, nos termos do n.º 1 deste preceito legal.
E de acordo com o seu n.º 3, autuado o requerimento, o juiz convoca os pais para uma conferência ou, excecionalmente, manda notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.
Ora, a verdade é que não podemos deixar de acompanhar o raciocínio seguido no despacho recorrido e proferido em 4 de maio de 2020.
Com efeito, a recorrente, tendo em conta a situação de pandemia que se vive, devido à ocorrência em larga escala de infeções do trato respiratório causadas pelo agente coronavírus SARS-COV-2 (vulgo Covid-19), que determinou, ademais, o decretamento de medidas extraordinárias e restritivas relativas ao contacto social e, bem assim, culminou no decretamento do estado de emergência em território nacional no passado dia 18 de Março através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, solicitou que fossem suspensas as visitas ao pai, com o único objetivo de acautelar e proteger o filho e o seu agregado familiar, já que vive com os seus pais, avós do menor, sendo que a avó materna padece de doença enquadrada na norma e regime de exceção mencionado no diploma legal que regulamenta o estado de emergência, nomeadamente padece de Lupus (trata-se de uma doença inflamatória autoimune, que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos, como pele, articulações, rins e cérebro), são doentes imunodeprimidos, e o avô materno é hipertenso e padece de insuficiência renal crónica.
Ora, como é consabido, com o regime de convívio do menor com o pai pretende-se salvaguardar o direito do filho à manutenção de relações pessoais com esse progenitor, com o qual não reside habitualmente, e fortalecer o estreitamento dos laços familiares que os unem (ver art.º 1906.º/5 e 7 do C. Civil).
E a decisão de regulação do exercício das responsabilidades parentais tem de ser cumprida, nos precisos termos em que foi decidido judicialmente, nomeadamente no que respeita ao regime de convívios da criança com o pai, enquanto não for judicialmente alterado.
Esse regime só pode ser alterado caso ocorram circunstâncias supervenientes que o justifiquem, nomeadamente por doença ou outro motivo forte e atendível do ponto de vista do superior interesse do filho (art.º 42.º do RGPTC).
O que não pode é, unilateralmente, a recorrente decidir suspender/impedir o regime de visitas fixado.
E a verdade é que não foi alegada factualidade que desaconselhasse o convívio do menor com o pai, sendo até uma das exceções previstas para a restrição à livre circulação de pessoas durante o período de confinamento domiciliário obrigatório, como as deslocações que se efetuem por razões familiares imperativas, designadamente o cumprimento da partilha de responsabilidades parentais (cf. art.º 5.º, n.º 1, al. j) do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, diploma que procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março).
Acresce que o progenitor se opôs à pretendida suspensão do regime de visitas, alegando cumprir escrupulosamente todas as orientações da DGS, mantendo e cumprindo o isolamento social e manutenção em casa e no carro de produtos de desinfeção, estando salvaguardado e protegido os riscos de eventual contágio da doença em causa.
Citando Pedro Raposo de Figueiredo, ob. cit., pág. 381, “(…) o atual estado de emergência não constituirá, só por si, fundamento bastante para que qualquer dos cônjuges possa tomar, sem acordo do outro, decisões relativas a atos de particular importância para a vida do filho, apenas se admitindo tal possibilidade no caso de neste atual quadro se justificar a tomada urgente de uma decisão, encontrando-se o outro progenitor totalmente impossibilitado de manifestar a sua posição a esse respeito”.
E acrescenta (pág.383):
Nas situações em que a manutenção dos regimes de convívio anteriormente definidos não representa um especial risco para a saúde da criança, por não se integrar em nenhuma das hipóteses descritas, face às amplas possibilidades de circulação franqueadas aos progenitores para acompanhamento dos filhos no cumprimento do regime de convívios anteriormente definido (portanto, no cumprimento da partilha de responsabilidades parentais) pelo citado artigo 5.º, n.º 1, als. g) e j), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril, não se antolha qualquer razão que justifique a suspensão do regime de convívios anteriormente definido”.
E quanto ao incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais, durante a situação de Pandemia (Covid-19), o citado Autor também conclui (pág. 386):
Concluindo-se pela inexistência de um quadro de risco tal que justifique a suspensão dos convívios, deverá o incumprimento ser julgado procedente, caso em que o requerido deverá ser notificado para proceder à entrega da criança pela forma determinada, sob pena de multa (que deverá ser expressiva e preferencialmente referida a cada violação futura do regime de convívios, v.g., impondo-se o pagamento da multa por cada vez que o requerido recuse ou impeça a entrega da criança) e sempre sem prejuízo do procedimento criminal que ao caso couber, tudo nos termos do artigo 41.º, n.º 6, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível” (nosso sublinhado).
Sustenta a recorrente que “o artigo 5.º do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, determina que as pessoas ali indicadas só podem circular em espaço e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas para, no caso concreto, deslocarem-se por razões familiares imperativas como é o caso do cumprimento de partilha de responsabilidades parentais como determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo Tribunal. Consequentemente, a norma excecional ínsita no n.º 5 do citado diploma determina a circulação e deslocação de pessoas e não os convívios e aproximação de pessoas – situação esta última afastada pelo próprio diploma legal face ao perigo de propagação da Covid-19; e quando esta norma refere o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais não se está a referir aos convívios nem à aproximação ou contato das pessoas mas sim ao conjunto do complexo das responsabilidades parentais fixada por acordo dos intervenientes ou em juízo”.
Ora, a interpretação exposta é juridicamente insustentável.
Com efeito, a alínea j) do n.º1 do art.º 5.º Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, prevê expressamente que os cidadãos podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, por outras razões familiares imperativas, designadamente o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente.
O cumprimento de partilha de responsabilidades parentais engloba, necessariamente, as deslocações adequadas para garantir o convívio das crianças com o progenitor não residente, assim como com o residente na sequência do estabelecido no regime de residência alternada.
Naturalmente que essa disposição legal não determina os convívios dos menores com os progenitores, mas também não os proíbe ou impede, antes consagra que o confinamento imposto a todos os cidadãos não impede, antes admite, o cumprimento das responsabilidades parentais, nomeadamente o exercício do direito ao convívio dos filhos menores com os progenitores e, consequentemente, as deslocações do menor para a casa do pai e da casa deste para a casa da mãe, no âmbito desse exercício de visitas.
É certo que o citado diploma legal não tem por objetivo, nem podia ter, estabelecer os convívios dos filhos menores com os progenitores, questão a decidir no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais, antes tendo por finalidade a “aprovação de medidas extraordinárias e de caráter urgente, que envolvem necessariamente a restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação”, pretendendo evitar deslocações desnecessárias (vide seu preâmbulo). Mas considerou necessárias e justificadas as deslocações para o cumprimento das responsabilidades parentais.
E também não colhe o argumento de que os avós maternos do menor, com que este vive, são pessoas de risco, por se integrarem na alínea b) do n.º1 art.º 4.º, desse diploma legal, já que essa circunstância apenas lhes confere um especial dever de proteção, podendo circular na via pública para as finalidades aí previstas, o mesmo é dizer que não podem justificar a permanência do menor em casa e que seja impedido do convívio com o pai.
Como se refere no primeiro despacho recorrido, “A exceção ao confinamento para cumprimento dos regimes de regulação das responsabilidades parentais apenas deverá ser excluída quando a criança pertença a um grupo de risco, por estar abrangido pelo dever especial de proteção (imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser consideradas de risco, designadamente, os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos – artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do Decreto n.º 2-C/2020, de 17.04, bem como dos Decretos n.ºs 2-A/2020 e 2-B/2020). O legislador, não obstante a necessidade de mitigação da pandemia, não descurou as responsabilidades parentais”.
Destarte, e não alegada, nem justificada, qualquer situação de risco imediato e elevado para a saúde do menor, não se tratando de qualquer situação de urgência manifesta, o despacho proferido em 4 de maio de 2020, ao indeferir essa suspensão e esclarecer que se a recorrente impedir esses convívios entrará em incumprimento do regime estabelecido, não merece qualquer censura e deve ser confirmada.
E também deve ser confirmado o despacho recorrido e proferido em 4 de junho de 2020, que condenou a recorrente em multa 3UC, nos termos do artigo 41º, nº 1 do RGPTC, pois esta, apesar do despacho proferido em 4 de maio de 2020, apresentou novo requerimento no apenso “T”, Ref.ª 35523824, dizendo que não iria cumprir a retoma dos convívios do menor com o pai, invocando os mesmos fundamentos.
Ora, como se refere nesta decisão, “por despacho de 04.05.2020 foi ordenado o imediato reatamento dos convívios fixados no regime de regulação das responsabilidades parentais. Sucede que tal não veio a acontecer e mais do que isso, por requerimento datado de 11.05.2020, veio a mãe do menor, G…, dizer que não irá cumprir o regime no que toca aos convívios, isto é, não permite, mesmo findo o período de confinamento obrigatório, que a criança conviva com o pai, invocando que o avô materno é hipertenso e padece de insuficiência renal crónica, a avó materna padece de Lúpus e o menor sofre de Vitiligo, pelo que tem “justa causa” para não cumprir o ordenado pelo Tribunal”.
E esse incumprimento, voluntário, consciente, reiterado e grave, não pode deixar de ser considerado culposo, porque imputado exclusivamente à progenitora e merecer um efetivo juízo de censura ético-jurídico.
Por isso, se concluiu, e bem, pelo manifesto incumprimento do regime de regulação das responsabilidades parentais no que toca aos convívios, condenando-se a recorrente no pagamento da mencionada multa.
Improcedem, pois, as apelações.
Vencida nos recursos, suportará a apelante as custas respetivas - art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes as apelações e manter os despachos recorridos.
Custas das apelações pela recorrente.
Évora, 2021/01/14
Nos termos do art.º 15.º-A do Dec. Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do Dec. Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade do Exm.º Juiz Desembargador Francisco Xavier (1.º Adjunto) que não pode assinar.
O acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes Desembargadores:
Tomé Ramião (Relator)
Maria João Sousa e Faro (2.º Adjunto)