Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
973/20.7JALRA.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
PROVA PERICIAL
HOMICÍDIO QUALIFICADO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O que o arguido declarou na audiência e a forma pela qual o fez, não podem constituir sequer um princípio de fundamento para afastar o juízo pericial que foi feito acerca da sua inimputabilidade, sob pena de o mesmo ser completamente inócuo e de clara violação do artº 163º do C.P.P..

2 - As qualificativas previstas no artº 132º do Cód. Penal relacionam-se com a culpa do agente, são circunstâncias que a agravam, pelo que não faz sentido perante um inimputável apreciar se as mesmas ocorrem, ou não.

3 – A remessa das partes para os tribunais civis nos termos do nº 2 do artº 82º do C.P.P., não se destina à procura de novos elementos para se fixar o montante indemnizatório (para isso rege o nº 1 do artº 82º do C.P.P.), mas sim ao apuramento de circunstâncias para se concluir, ou não, pelo próprio dever de indemnizar.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No acórdão proferido em 2/12/2021, no âmbito do processo 973/20.7JALRA e no qual é arguido AA, consta o seguinte dispositivo:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:

A. DA INSTÂNCIA CRIMINAL

1. Absolver o arguido AA da prática, objetiva, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p., conjugadamente, pelos arts. 131.º e 132.º/1 e 2, al. j), do Código Penal;

2. Julgar provada a prática, objetiva, pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio, p. e p. pelo art.131.º do Código Penal;

3. Declarar o arguido inimputável – art. 20,º/1 do Código Penal;

4. Julgar verificada a perigosidade do arguido, por ser fundado o receio de que venha a praticar outros factos típicos ilícitos – art. 91.º/1 do Código Penal;

5. Determinar a aplicação ao arguido a medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico adequado à sua patologia, pelo período mínimo de 3 (três) anos, salvo se, entretanto, a sua libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, não podendo exceder 16 (dezasseis) anos – arts. 91.º e 92.º, do Código Penal;

6. Declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos nos autos – art. 109.º/1 do Código Penal;

7. Manter a sujeição do arguido à medida de coação de internamento preventivo;

8. Sem custas – 513.º e 514.º, a contrario, do CPP.

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B. DA INSTÂNCIA CÍVEL

1. Remeter BB e AA, na qualidade de demandante e demandado, respetivamente, para os tribunais civis com vista à apreciação do pedido de indemnização cível deduzido – art. 82.º/3, ex vi art. 377.º/1, ambos do CPP;

2. Sem custas – art. 527.º a contrario do CPC, ex vi art. 523.º do CPP.”

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Inconformada com tal decisão, dela recorreu a assistente BB, tendo terminado a motivação e recurso com as seguintes conclusões:

“1º. A aqui Assistente reúne os pressupostos processuais que permitem apresentação do presente recurso, nomeadamente interesse em agir;

2º. Relembrando o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2018, disponível em www.dgsi.pt: A correcta qualificação jurídica dos factos e a discussão que se faça a propósito é uma concreta e pertinente questão que interfere com a justiça da decisão ainda que paralela e concomitantemente acabe por interferir com a determinação da medida da pena. Não se afirmará decerto que é indiferente para o assistente – como para o interesse comunitário – que a dimensão do tipo de culpa ou do tipo de ilicitude, aferida essa dimensão pela qualificação, seja uma ou seja outra.

3º. Entende a Recorrente que, face à prova produzida, mormente atendendo-se às regras da experiência comum e às declarações do Arguido e Demandante, teriam que ser dados provados as alíneas c) e h) dos factos dados como não provados;

4º. Cabendo, como tal, reapreciar a prova gravada;

5º. Nos termos do artigo 412.º, n.º 3, alínea b) e 4 do C.P.P, vale a pena relembrar (pelo menos parte) as declarações do Arguido, na sessão de julgamento de 25-11-2021, gravadas através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15h29m32s e o seu termo pelas 16h17m31s., situando-se o trecho relevante entre m. 00.16.25m e m. 00.20.04;

6º. Ou o trecho gravado na sessão de julgamento de 25-11-2021, gravado através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15h29m32s e o seu termo pelas 16h17m31s., situando-se o presente trecho entre m. 00.24.35m e m. 00.26.09;

7º. Ou o trecho gravado na sessão de julgamento de 25-11-2021, gravado através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15h29m32s e o seu termo pelas 16h17m31s., situando-se o presente trecho entre m. 00.46.02m e m. 00.26.09;

8º. Oferecem-se três apreciações/conclusões sobre os citados trechos, os quais são repetidos em todo o depoimento do Arguido;

9º. A primeira é a falta de coerência. A tese do Arguido é que o próprio queria simular um rapto e que tal correu mal. Dita a experiência comum que tal não tem qualquer cabimento. Desde logo, o Arguido começa por referir que o Sr. CC, que o Arguido matou, não queria lá a criança. Mas, depois, também diz que queria simular o rapto para não causar problemas jurídicos às pessoas que acolheram o menor;

10º. Salvo devido respeito, a lógica é omissa. Então um pai que sabe que uma criança não é desejada e vai ajudar, ainda, quem dela trata?

Evidentemente, não;

11º. Em segundo lugar, é claro que nada se passou como o Arguido vem dizendo. Mais uma vez, com recurso à experiência comum, não passa no teste da credibilidade alegar um passado nos escuteiros para tolerar o arsenal de lâminas que o Arguido trazia. Pelo contrário, as armas que o Arguido trazia só reforçam o seu dolo;

12º. Por fim e em terceiro lugar, fica absolutamente comprovado que o Arguido gizou um plano para a morte de CC;

13º. A afirmação de que o arguido é inimputável constitui uma conclusão a extrair de factos concretos que consubstanciem, por um lado, o substrato biopsicológico de que aquele padece de anomalia psíquica e, por outro, que revelem a existência da relação causal entre a apurada anomalia psíquica e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto;

14º. Salvo devido respeito, que é muito, não existe essa relação causal entre a anomalia psíquica e o acto do agente;

15º. Ou seja, sendo claro: não está demonstrado nem documentalmente nem testemunhalmente que o Arguido estava, naquele momento e naquela altura, incapaz de perceber a relevância do seu acto;

16º. Pelo que o juízo de inimputabilidade não pode proceder;

17º. O Arguido apresenta um discurso coerente e organizado;

18º. O Arguido relatou, com calma e serenidade, uma tese justificativa para os actos que praticou;

19º. O Arguido renega a sua eventual doença e com dados, apelando às memórias da sua vida além Portugal;

20º. O Arguido tem consciência da sua situação patrimonial;

21º. O Arguido encontra-se orientado a nível espácio-temporal.

22º. Pelo que sim, determinou-se e assumiu uma conduta;

23º. E tal conduta consubstancia-se na prática de homicídio qualificado;

24º. Crime pelo qual deve ser o Arguido condenado;

25º. Na sequência dessa mesma conclusão, deve a pena aplicada ser de prisão, perto dos limites máximos;

26º. E este pedido não será, de todo, despiciendo;

27º. Subordinar a liberdade do Arguido a tão curto espaço de tempo, como consta do Acórdão sob censura, revela-se perigoso;

28º. Foi o próprio Arguido, em tribunal, a mencionar que o irmão e a mãe, aqui Assistente, tinham “combinações” para lhe tirar a casa;

29º. Ora, o Arguido, vendo o filho entregue à Assistente e seu marido, tratou de tirar a vida a este último;

30º. Pelo que não se pode imaginar o que fará assim que terminar o seu curto internamento quanto àqueles que, na sua óptica, o estarão a tentar depauperar;

31º. O Arguido tem de ser tratado, claro está, mas o regime a encontrar tem de garantir a segurança daqueles que sobreviveram ao ataque;

32º. Sob pena de, em curto espaço de tempo, existir uma repetição da tragédia que agora se lamenta;

33º. É de prevenção geral que falamos, é a protecção da vida dos demais que se reivindica;

34º. Entendeu o Douto Acórdão sob censura ser indicado remeter as partes civis, em tal matéria, para os tribunais civis;

35º. Tal decisão apenas vem retardar a concretização da justiça a que a Recorrente tem direito;

36º. Pelo que deve o Acórdão ser substituído por outro que: a) Altere a matéria de facto supra referida; b) Condene o Arguido por homicídio qualificado numa pena perto dos limites máximos; c) Declare procedente por provado o pedido de indemnização civil;

37º. A decisão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: Artigos 131.º e 132.º/1 e 2, al. j), do Código Penal; 20.º, n.º 1 do Código Penal, 82.º, n.º 3 do Código de Processo Penal

Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.as, deverá ser considerado procedente o presente recurso, assim fazendo a costumada JUSTIÇA”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1. Pretendendo, como pretende a recorrente, impugnar a matéria de facto, na sua motivação, BB não observou escrupulosamente o disposto no artigo 412.º, n.º 3 do CPPenal quanto à necessidade de especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.

2. Se pode aceitar-se que na motivação em apreço se cumpre a exigência da alínea a), é evidente que o mesmo já não sucede no respeitante às prescrições estabelecidas nas alíneas b) e c), uma vez que nessa motivação somente se transcrevem de modo avulso excertos das declarações do arguido prestadas em julgamento, sem, no entanto, se esclarecer satisfatoriamente em que medida impõem decisão diversa da recorrida, e se faz uma menção genérica à “prova gravada” como aquela que, no entender da recorrente, deve ser renovada.

3. Essa transcrição constitui operação inútil, porque desacompanhada, para todos e cada um desses excertos, da dissecação crítica do respectivo conteúdo, com vista a clarificar por que motivo a apreciação dos mesmos pelo tribunal a quo não é uma entre as várias possíveis, de acordo com os princípios que norteiam o exame da prova, única hipótese em que teria de ser rejeitada.

4. No que concerne a crítica da assistente ao impugnado acórdão quanto à decisão de dar como não assente a factualidade descrita nos pontos c. e h. da factualidade dada como não assente, a mesma mais não pretende do que, ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova, fazer prevalecer aquilo que entende que deveria ter sido dado como provado, a partir de uma sua muito pessoal interpretação dos factos trazidos à apreciação do tribunal.

5. Uma modalidade de ponderação discricionária da prova é a utilizada pela recorrente, ao fazer uma leitura sincopada apenas de parte das declarações do arguido, em lugar de proceder a uma análise objectiva e a uma crítica imparcial e contextualizada dessas declarações, das suas próprias declarações, dos elementos documentais enumerados – comunicação de notícia de crime, de folhas 2 a 4; auto de notícia, de folhas 6 a 9; autos de apreensão, de folhas 17 a 18, 20 a 23, 28 a 32, 77 a 79 e 97; relatórios de inspeção judiciária, de folhas 33 a 42, 45 a 76,228 a 235,243 a 264; fichas de identificação civil, de folhas 43 a 44; reportagem fotográfica, de folhas 94 a 96; extratos informáticos de assentos de nascimento, de folhas 206 a 213; auto de exame direto, de folhas 270 a 280; certidão do processo n.º 9743/19.4… do Juízo de Família e Menores de … - Juiz 4, de folhas 291 a 317; informação clínica de folhas 348 a 349 – do relatório de perícia médico-legal de psiquiatria e do relatório de autópsia médico-legal, análise que, pelas razões aduzidas na fundamentação, à luz das regras da experiência comum, foi decisiva para formar a convicção do tribunal.

6. No segmento da matéria de facto questionado pela recorrente, o tribunal a quo seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, sendo que a prova livre tem também como pressupostos valorativos critérios da experiência comum e de normalidade, critérios esses que foram devidamente observados.

7. A decisão da matéria de facto está bem fundamentada, inexistindo qualquer incorrecção na valoração da prova.

8. Ao juízo de inimputabilidade, a cargo do julgador, subjaz um juízo científico, vertido em prova pericial, sujeita à disciplina do artigo 163.º do C P Penal, ou seja, presumivelmente subtraída à livre convicção desse julgador e susceptível de ser posta em crise apenas por decisão fundada, designadamente, outrossim, em prova pericial.

9. Além das respostas categóricas fornecidas pelo relatório da perícia médico-legal de psiquiatria acerca da verificação de uma anomalia psíquica no arguido – esquizofrenia paranóide crónica descompensada – e da incapacidade de o mesmo avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação, à data da sua prática, logrou o tribunal percepcionar, “que o mesmo evidencia um discurso persecutório e delirante, quer em relação à vítima, quer aos familiares e aos médicos que lhe diagnosticaram a doença de foro mental e, assim, uma total ausência de consciência da natureza dos problemas mentais e aditivos que padece”.

10. Não tendo as parcas alegações da recorrente a virtualidade de abalar a prova pericial adrede produzida e sufragada pela valoração directa das declarações e postura do arguido pelo tribunal, não é de acolher, como é óbvio a sua tese gratuita da imputabilidade de AA.

11. Sendo o inimputável incapaz de culpa só pode cometer o tipo de crime de homicídio simples, não o de homicídio qualificado, uma vez que a agravação pressupõe culpa agravada.

12. Relativamente à dosimetria da pena, que, na verdade, nem sequer pôde ser equacionada pelo tribunal a quo, por se impor a aplicação de medida de segurança ao arguido, entende-se que a assistente carece in casu de interesse agir, na justa medida em que uma pena eventualmente aplicada ao arguido não lhe trazia qualquer desvantagem, nem acarretaria para si a frustração de um interesse legítimo.

13. O acórdão recorrido não violou quaisquer normas, nem está ferido de qualquer nulidade.

Termos em que, negando provimento ao recurso, farão Vossas Excelências, como sempre, JUSTIÇA.”

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Também o arguido respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“a) Aderir as doutas alegações bem como às suas conclusões do Ministério Público no que tange à matéria de facto dada como provada em audiência de julgamento, vertida no douto Acordão ora recorrido, com o qual se concorda na íntegra.

b) Atento à insuficiência de factos bastantes para responsabilizar o arguido/demandado, bem andou o Tribunal “A quo”, com base em critérios de equidade, em remeter o pedido de indemnização cível deduzido pela Assistente para os tribunais civis.”

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Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta ao parecer.

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APRECIAÇÃO

Tendo em conta o teor das conclusões do recurso, as questões que importa apreciar são as seguintes (por ordem lógica):

- inimputabilidade do arguido;

- alteração da decisão de facto, considerando-se provada a matéria dada como não provada sob as alíneas c) e h);

- na sequência dessa eventual alteração da matéria de facto, qualificação jurídica dos factos e respectiva pena;

- remessa das partes para os meios civis relativamente ao pedido cível.

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A decisão de facto contida na decisão recorrida é do seguinte teor:

“Discutida a causa e com relevância para a sua boa decisão, resultaram provados os seguintes factos:

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DA ACUSAÇÃO

1. O arguido é o pai de DD, nascido em …2019, ao qual foi aplicada em seu favor, em …2019, medida cautelar urgente no processo de promoção e proteção n.º 9743/19.4… do Juízo de Família e Menores de … – Juiz 4, face ao historial de doenças mentais de ambos os progenitores e à incapacidade destes de tratarem de todas as necessidades de um recém-nascido, tendo o menor sido inicialmente confiado a EE e ficando o aqui arguido, provisoriamente, impedido de visitar a criança.

2. Posteriormente, em …2020, foi alcançado acordo de promoção e proteção no referido processo, sendo aplicada ao menor a medida de apoio junto de BB, sua avó paterna e mãe do arguido, a qual residia, ao tempo, na Rua … localidade de …, concelho de …, juntamente com CC, seu marido, tendo ainda sido judicialmente determinado que AA ficava proibido de visitar o menor até ao momento em que comprovasse nesses autos que se encontrava em tratamento médico e em fase de compensação clínica.

3. O arguido, desde pelo menos o mês de outubro de 2019, que recusava qualquer tratamento, medicação ou acompanhamento médico para a esquizofrenia paranoide crónica de que padece desde os seus vinte e um anos de idade, bem como não aceitava que lhe tivessem proibido os contatos com o filho, exteriorizando-o e verbalizando-o, em diversas ocasiões, perante os seus familiares.

4. Uma dessas situações ocorreu no dia 15-05-2020, quando o arguido, tendo tomado conhecimento de se encontrar designada diligência no Juízo de Família e Menores de … – Juiz 4 com vista à atribuição da guarda do menor, veio, após a intervenção de militares da GNR, a ser conduzido à …, para efeitos de se deslocar para a sua residência sita na localidade de …, por CC.

5. Em momento não concretamente apurado, o arguido decidiu que se iria deslocar à residência da sua mãe e de CC, sita na suprarreferida morada, com o intuito de levar consigo o seu filho.

6. Para tanto, e em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 02-09-2020, o arguido decidiu munir-se, entre o demais, de: 1) uma faca tipo punhal, com guarda mato e cabo anatómico, de cor preta e dourada, e lâmina com cerca de 12,5 cm de comprimento; 2) uma matraca de fabrico artesanal, aparentemente em alumínio, enrolada em fita isoladora de cor preta, com cerca de 29 cm de comprimento; 3) uma matraca de fabrico artesanal, aparentemente em alumínio, enrolada em fita isoladora de cor preta, com cerca de 29 cm de comprimento, com uma corrente metálica enrolada em fita isoladora de cor verde e uma argola na extremidade; 4) uma faca de 10,5 cm de lâmina dupla, de cor prateada, cortante num dos lados e serrilhada no outro, e cabo em cordel de cor preta; 5) uma navalha metálica, de cor preta e prateada, com uma lâmina de 6,5 cm de comprimento, com mosquetão e mola de encaixe; 6) uma navalha com 9,5 cm de lâmina e cabo em madeira, de cor castanha e avermelhada, com apliques em metal dourado, contendo um sistema de bloqueio de lâmina; 7) uma navalha com 8,5 cm de lâmina, de cor preta, contendo a inscrição “…” e padrão floral, sendo o cabo em plástico, de cor azul, ajustável aos dedos da mão; 8) e, um bisturi, com 2,5 cm de comprimento de lâmina, cabo de cor vermelha e esferas circulares finas de cor dourada.

7. O arguido munido dos objetos cortantes e contundentes acima descritos, dirigiu-se à mencionada residência durante a madrugada do dia 04-09-2020 e, aí chegado, abriu o trinco do portão lateral de acesso à horta e acedeu ao logradouro da casa, onde ficou a aguardar que BB ou CC acordassem e se dirigissem a tal zona da habitação.

8. Pelas 07h00m, CC abriu a porta da cozinha da habitação e saiu para o logradouro e, assim que visualizou o arguido, perguntou-lhe sobre o que este estava aí a fazer, disse-lhe para se ir embora de imediato senão chamava a polícia e, insistindo este em querer ver o filho, começou a chamar por socorro, em voz alta.

9. De imediato, o arguido, utilizando as matracas acima descritas, desferiu pelo menos cinco pancadas que atingiram CC na cabeça, as quais causaram: 1) ferida contusa, com orientação para a frente e para a direita, paramediana direita, na região parietal homolateral, medindo 4,7x0,5 cm; 2) ferida contusa (a direita da descrita na alínea 1), distando a 2,8 cm desta e a 6,4 cm da inserção superior do pavilhão auricular direito), com formato arciforme e de abertura anterior, na região parietal direita, medindo 2,6x 0,3 cm; 3) ferida contusa (anteriormente à maior ferida contusa descrita, distando 1 cm desta e 13 cm da raiz do nariz), aproximadamente transversal, paramediana direita, na região parietal anterior homolateral, medindo 0,8x0,1 cm; 4) ferida contusa paramediana esquerda, na região parietal anterior homolateral, medindo cerca de 1x0,5 cm; 5) escoriação linear (distando 2 cm da primeira e maior ferida contusa descrita), com orientação para a frente e para a esquerda, na linha média da região parietal posterior, medindo 1,4 cm; 6) hematoma subgaleal, posterior à escoriação descrita, na linha média da região parietal posterior, medindo 5x4 cm.

10. E, logo de seguida, o arguido empunhou o punhal acima descrito e desferiu um golpe, utilizando força física, na direção do tórax de CC, o qual afastou a mão esquerda que este colocou na trajetória do punhal, atravessou o pólo que este envergava, tendo espetado profundamente a lâmina no seu tórax, junto ao coração, causando-lhe: 1) uma ferida de bordos lisos, fusiforme, com extremidade superior em “V” de abertura inferior e a inferior romba – ferida cortante – de orientação supero-medial, paramediana esquerda, imediatamente acima da linha de implantação do mamilo homolateral, distando deste 12 cm, da região em correspondência com a incisura jugular 9,5 cm e da linha média 3 cm, medindo 3,5 cm com 1 cm de afastamento máximo de bordos, com solução de continuidade do tecido celular subcutâneo, de orientação supero-medial, ao nível do 3.º espaço intercostal esquerdo, medindo 6x1 cm, rodeada de infiltração sanguínea com a dimensão global de 9x2 cm, e solução de continuidade aproximadamente longitudinal, atravessando o músculo grande peitoral esquerdo e adjacente bordo lateral do esterno, medindo 5x1 cm, rodeada de infiltração sanguínea. Ao nível dos grandes vasos emergentes do coração e aorta torácica, solução de continuidade no tecido adiposo anterior aos grandes vasos que emergem do coração, medindo 3x0,8 cm, rodeada de infiltração sanguínea e, no plano mais profundo, em contínuo com a lesão descrita, solução de continuidade de bordos lineares, aproximadamente longitudinal na crossa da aorta, trespassando camadas que a compõem até à íntima (lúmen arterial), localizada entre a artéria carótida comum esquerda e a artéria subclávia esquerda, medindo 1,3 cm, rodeada de coágulos sanguíneos e de infiltração sanguínea na íntima; 2) equimose avermelhada, ténue e difusa, no bordo medial e ligeiramente superior à ferida cortante, medindo 5x1 cm; 3) escoriação apergaminhada figurada na face lateral do hemitórax inferior direito, de formato aproximadamente estrelado, com quatro pontas (uma ponta orientada para baixo e para trás, outra para baixo – sendo esta a ponta mais distante da região central da escoriação, medindo 1,5x0,2 cm -, uma outra para baixo e para a frente e a última para cima – sendo esta a menos distante da região central da escoriação, medindo 0,5x0,1 cm) e sendo a região central da escoriação circular com cerca de 1,5 cm de diâmetro, medindo a globalidade da escoriação 3,5x3,5 cm de maiores eixos; 3) ferida cortante na mão esquerda, de formato arciforme e de abertura lateral, na face dorsal na região em correspondência com a articulação interfalângica e falange distais do 2.º dedo, medindo 2,5x1xm.

11. Face às pancadas e ao golpe desferidos pelo arguido, CC começou a sangrar abundantemente, caiu no chão e perdeu a consciência, vindo a falecer nesse local em momento não concretamente apurado, mas antes das 07h40m, como consequência direta e necessárias das lesões resultantes do golpe com o punhal infligido pelo arguido.

12. Entretanto, BB, que se encontrava no quarto com o neto, ouviu os gritos do marido e dirigiu-se à cozinha e, o arguido, assim que a visualizou, entrou para o interior da residência, agarrou-a pelos braços com força e empurrou-a para o interior do quarto.

13. BB ainda viu o marido no logradouro, em pé e encostado à parede, aparentando estar muito aflito, mas o arguido impediu-a de lhe tentar prestar qualquer socorro, impedindo-a igualmente de sair pela entrada principal da casa, que dá acesso à via pública.

14. De seguida, BB convenceu o arguido a levar a criança para a cozinha para lhe dar o pequeno almoço e, enquanto este o fazia, conseguiu sair pela entrada principal e pedir ajuda.

15. Ao aperceber-se do sucedido, o arguido saiu da residência com o filho ao colo e encetou a fuga do local.

16. O arguido bem sabia que utilizava um instrumento de natureza corto-perfurante, com cerca de 12,5 cm de cm de lâmina, para perfurar profundamente a zona torácica de CC, local do corpo onde se alojam órgãos e vasos sanguíneos vitais, e que tal era idóneo a causar a morte a qualquer pessoa que por tal fosse perfurada nessa zona corporal, tendo representado, pretendido e alcançado tal resultado.

17. O arguido sofre de esquizofrenia paranoide crónica descompensada, sendo acompanhado desde 2013 no Centro Hospitalar Psiquiátrico de …, sendo tal uma doença mental grave, crónica, incapacitante, permanente e de difícil remissão, com um quadro clínico caraterizado por sintomas psicóticos, nomeadamente ideias delirantes de conteúdo persecutório, de autorreferência e de prejuízo, com várias memórias delirantes com impacto no funcionamento do indivíduo, nomeadamente com alterações do comportamento com agressividade dirigida a terceiros.

18. À data da prática dos factos e apesar da doença de que padece, o arguido quis atuar do modo supra descrito, sem que, no entanto, fosse capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas e de se determinar de acordo com essa avaliação.

19. Em virtude da anomalia psíquica, crónica e permanente de que padece, caso o arguido não seja compelido a internamento psiquiátrico e a tratamento psiquiátrico permanente, existe o fundado receio de que este venha a cometer factos ilícitos semelhantes aos supra descritos.

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DO PERCURSO, CONDIÇÕES DE VIDA E ANTECEDENTES CRIMINAIS DO ARGUIDO

20. AA vivenciou um processo de desenvolvimento normativo com adequada interação social; cresceu num ambiente familiar referenciado como tendo padrões de relacionamento convencionais e em que sempre foram asseguradas as necessidades básicas dos vários elementos, nomeadamente o arguido, o irmão mais novo e os pais.

21. AA, no final da sua adolescência, começou a evidenciar problemas comportamentais, que se terão agravado na sequência do seu envolvimento no consumo de estupefacientes e bebidas alcoólicas, quadro que colaborou para o desinvestimento na formação escolar e conduziu-o precocemente e sem qualificação ao mercado de trabalho, cujo percurso foi marcado pela pouca consistência e irregularidade.

22. O consumo de estupefacientes e álcool a par dos problemas de saúde mental do arguido, que se acentuaram devido à falta de adesão ao tratamento, comprometeu as relações interpessoais, nomeadamente no contexto familiar, com a assunção de comportamento agressivo por parte do arguido.

23. Entre 2003 e 2013, AA esteve emigrado na Holanda, Bélgica e Alemanha.

24. Em 2013, o arguido regressou a Portugal, reintegrando o agregado da mãe, padrasto/vítima nos autos, e irmão, dos quais estava economicamente dependente.

25. A manutenção dos consumos de substâncias estupefacientes e, por conseguinte, a evolução da alteração do seu comportamento, promoveram o seu internamento em psiquiatria no Hospital …, em dezembro de 2013 e posterior seguimento em consulta em regime de ambulatório com prescrição de medicação oral e injetável, atendendo ao diagnóstico de esquizofrenia paranóide crónica.

26. Durante o período de internamento, AA conheceu FF, igualmente doente do foro psiquiátrico, com quem encetou relação afetiva.

27. No final do ano de 2014, AA passou a viver em união de facto com a companheira, que, em 2018, saiu de casa para ir cuidar do pai, mantendo, contudo, a relação afetiva, dela resultando, em …2019, o nascimento do filho DD.

28. Devido à situação pandémica causada pela Covid-19, as consultas presenciais de psiquiatria de AA foram suspensas e passaram a ser realizadas por telefone, tendo o arguido abandonado a terapêutica prescrita, segundo o mesmo, devido aos efeitos secundários.

29. À data dos factos contidos na acusação, AA permanecia a viver sozinho na casa pertencente à mãe, em …. Estava desempregado há um ano e beneficiava do subsídio social de desemprego no valor de 350€ e da ajuda do padrasto/vítima, que garantia o pagamento dos bens de consumo essenciais à sua permanência na habitação.

30. Durante aproximadamente um mês e até final de maio de 2020, AA integrou o agregado materno, em …, com a justificação de participar na educação do filho. Este período foi, contudo, marcado por momentos de inúmeros conflitos entre os elementos.

31. Em …, AA apresentava um aspeto muito pouco saudável, de extrema magreza, que a comunidade associava a problemas relacionados com o consumo de drogas. No entanto, aparentava comportamento pacífico e não foram referidos conflitos ou altercações com vizinhos ou conhecidos.

32. A presença do arguido na comunidade de … foi ocasional, não havendo um conhecimento alargado do mesmo que permita a criação de um juízo a seu respeito. Os factos foram do conhecimento da localidade e causaram consternação, uma vez que a vítima era aí conhecida.

33. O arguido não reconhece ser portador de patologia do foro da saúde mental, não valorizando a problemática aditiva.

34. A falta de consciência por parte do arguido relativamente à natureza dos problemas mentais e aditivos, do seu impacto na esfera social, da necessidade de intervenção clínica especializada e ainda da falta de ressonância quanto à gravidade e consequências de comportamentos análogos àqueles que estão na base da acusação constituem sérios constrangimentos à adoção de comportamento social e juridicamente adequado, devendo ser alvo de intervenção especializada.

35. Por decisão transitada em julgado no dia 03/02/2013, proferida pelas autoridades judiciais holandesas, o arguido foi condenado no pagamento de multa no valor de € 360,00, pela prática do ilícito previsto no art. 180.º do respetivo Código Penal.

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL DEDUZIDO POR BB

36. CC, no curto espaço de tempo que antecedeu a sua morte, sofreu de angústias insuperáveis, traduzidas nas dores físicas decorrentes das lesões físicas evidenciadas e no sofrimento natural perante a iminência da sua morte.

37. BB e CC, casados entre si, mantinham uma relação muito próxima, pautada por cumplicidade e entreajuda, sentindo amor e carinho um pelo outro.

38. Aquando do recebimento da notícia do falecimento do seu cônjuge, BB ficou em estado de choque, desesperada, incrédula, angustiada, revoltada e triste.

39. BB, após a morte de CC, tornou-se uma pessoa triste, chorosa, com perturbação ao nível do sono e com propensão para isolar-se.

40. CC era uma pessoa saudável e auferia uma pensão líquida no valor mensal de € 2.160,19, constituindo uma grande parte do sustento do agregado familiar.

41. BB aufere uma pensão de sobrevivência no valor de € 655,02 e uma pensão por velhice no valor de € 358,11.

42. Por escritura pública de habilitação, outorgada no dia 26/10/1999, no … Cartório Notarial de …, AA foi habilitado como co-herdeiro de GG, seu pai, falecido no dia …/…/1999.

43. A fração autónoma, localizada na Rua …, n.º …, freguesia de …, concelho de …, tipo T3, destinada a habitação, inscrita sob o respetivo artigo matricial … e com o valor patrimonial de € …, mostra-se inscrita a favor da herança de GG.

*

Não resultaram provados os seguintes factos:

a. Que o descrito em «3.» sucedesse perante EE e HH, através de atitudes e palavras agressivas, intimidatórias e violentas;

b. Que no contexto descrito em «5.», o arguido tenha assumindo que exerceria ameaça e violência física sobre aqueles, causando-lhes, se necessário fosse ao seu desiderato, lesões físicas, mesmo que mortais;

c. Que no contexto descrito em «7.», o arguido tenha atuado em execução de um plano gizado;

d. Que no contexto descrito em «13.», o arguido tenha agarrado BB com força nos braços e tapando-lhe a boca, para que não gritasse;

e. Que no contexto descrito em «14.», BB tenha pedido ajuda aos seus vizinhos II e JJ;

f. Que no contexto descrito em «15.», o arguido foi perseguido pelos vizinhos II e LL que, entretanto, alertaram a Guarda Nacional Republicana;

g. Que, de imediato, dois militares da Guarda Nacional Republicana deslocaram-se para o local e vieram a intercetar o arguido e a criança em zona de mato próxima da habitação, tendo então o arguido verbalizado perante estes: “eu sei o que fiz, estão a prender um homicida, eu dei-lhe uma porrada na cabeça, eu espetei-lhe a faca!”;

h. Que o arguido agiu de modo frio e calculista, em execução metódica de plano previamente elaborado, no contexto do qual decidiu utilizar objetos cortantes e contundentes que sabia serem aptos a tirar a vida a CC, ideia esta que formulou e sobre a qual ponderou até ao início da sua execução no dia 04-09-2020, bem conhecendo o carater especialmente censurável e perverso da sua atuação;

i. Que BB, à data dos factos, era uma pessoa alegre, bem disposta e feliz. *

Não se evidenciaram provados ou não provados quaisquer outros factos com interesse / relevo para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, sendo que houve matéria articulada no pedido de indemnização cível à qual não se deu resposta por consubstanciar matéria repetida, conclusiva e/ou de Direito.

*

Motivação:

Para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu a uma análise ponderada e crítica de todas as provas produzidas em audiência de julgamento e carreadas para os autos, livremente apreciadas e analisadas em si, entre si e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

Dir-se-á, desde logo, que, foram determinantes, no que concerne à demonstração da factualidade típica – factos «1.» a «19.» -, as declarações prestadas pelo próprio arguido, quer no âmbito do interrogatório judicial a que foi sujeito no dia 05/09/2020, quer na audiência de discussão e de julgamento, no confronto com o relatório de autópsia médico-legal, de folhas 573 a 580, o relatório de perícia psiquiátrica, de folhas 587 a 602, o relatório de exame pericial, de folhas 511 a 512 v.º; e os documentos juntos aos autos, a saber: comunicação de notícia de crime, de folhas 2 a 4; auto de notícia, de folhas 6 a 9; autos de apreensão, de folhas 17 a 18, 20 a 23, 28 a 32, 77 a 79 e 97; relatórios de inspeção judiciária, de folhas 33 a 42, 45 a 76, 228 a 235, 243 a 264; fichas de identificação civil, de folhas 43 a 44; reportagem fotográfica, de folhas 94 a 96; extratos informáticos de assentos de nascimento, de folhas 206 a 213; auto de exame direto, de folhas 270 a 280; certidão do processo n.º 9743/19.4… do Juízo de Família e Menores de … – Juiz 4, de folhas 291 a 317; informação clínica, de folhas 348 a 349. Tudo sem prejuízo do depoimento prestado pela demandante cível/testemunha, BB, nos termos que infra se esmiuçarão.

Assim, o arguido, manifestando vontade em prestar declarações, em sentido semelhante ao que já havia declarado em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, confirmou a referida factualidade, com ressalva de que, no contexto espácio-temporal descrito na acusação pública, tenha sido sua intenção matar o seu padrasto quando se deslocou à casa, onde este, a sua mãe e seu filho habitavam, mas tão-só levar o filho consigo, judicialmente proibido de o ver, simulando, para o efeito, um sequestro, por forma a não prejudicar a sua mãe, a quem o filho havia sido entregue por decisão judicial, mais referindo que, previamente, havia acordado com o padrasto fazê-lo, uma vez que este lhe tinha manifestado não querer a criança lá em casa. Explicou, assim, que os objetos que detinha, por ser escuteiro, serviam apenas para defesa pessoal, uma vez que havia decidido pernoitar no mato onde existem cães selvagens. Mais declarou que, inesperadamente confrontado com a presença da vítima, seu padrasto, nos termos descritos na acusação, a situação descontrolou-se, procurou imobilizá-lo, a fim de impedir que este alertasse terceiros para a sua presença, e que tendo ele procurado defender-se após lhe ter dado para pancada na cabeça, perdeu o controlo: passando a vê-lo como se de um “animal selvagem” (sic) se tratasse, desferiu-lhe as pancadas e os golpes nos termos descritos na acusação, querendo e sabendo que, dessa forma, causaria a morte de CC.

Confirmou ainda que, diante da sobrevinda presença da mãe, impediu-a de deslocar-se ao quarto por forma a evitar que esta chamasse as autoridades policiais, e que se colocou em fuga, levando o filho consigo, conforme era sua única intenção.

Confrontado com a doença diagnosticada e com o tratamento necessário ao seu bem-estar, sustentados nos elementos documentais juntos aos autos, refutou padecer de tal doença, bem como negou o alegado consumo de drogas pesadas, mas tão-só de canábis, referindo ainda que o tratamento prescrito lhe causa desconforto.

Ora, não obstante o discurso algo estruturado do arguido e a sua postura calma e colaborante, certo é que, a respeito, foi possível percecionar, no confronto com o relatório de perícia médico-legal de psiquiatria, de fls. 587-602; informação clínica de fls. 348-349, relatório social determinado realizar e ainda com depoimento prestado pela sua mãe, BB, nos termos que infra se explicarão, que o mesmo evidencia um discurso persecutório e delirante, quer em relação à vítima, quer aos familiares e aos médicos que lhe diagnosticaram a doença de foro mental e, assim, uma total ausência de consciência da natureza dos problemas mentais e aditivos que padece, ou seja, que, à data da prática dos factos, era incapaz de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.

Destarte, nesse sentido, BB, mãe do arguido e cônjuge da vítima, de forma sentida, algo constrangida, mas espontânea e verdadeira, explicou a situação clinica do filho, o facto de ele não reconhecer a doença mental que padece, os conflitos familiares por ele gerados, designadamente após o nascimento do neto e a necessidade da sua confiança a terceiros nos termos evidenciados. Mais referiu que CC gostava do seu neto, mostrando-se seu protetor e cuidador, nunca tendo verbalizado qualquer acordo com o arguido para que este levasse do filho de casa, refutando, assim, o alegado a respeito por aquele por forma a justificar a sua atuação. Bem como referiu que, face à personalidade pacífica da vítima e à pouca destreza e frágil compleição física à data dos factos, com 71 anos de idade, relativamente ao seu filho, não se mostra verosímil que tenha oferecido resistência, por forma a justificar o comportamento assumido pelo arguido, contrariando, assim, a versão de legítima defesa aventada por este.

Por outro lado, o relatório de autópsia médico-legal, de folhas 573 a 580, do qual se extrai as lesões observadas na vítima e a causa necessária e direta da sua da morte; o relatório de exame pericial, de folhas 511 a 512 v.º, que nos descreve a natureza das armas brancas utilizadas pelo arguido, e os relatórios de inspeção judiciária, de folhas 33 a 42, 45 a 76, 228 a 235, 243 a 264, onde se descrevem as conclusões extraídas das diligências cuidadosamente realizadas, não colocados em causa pelo arguido, também nos levaram a concluir pela evidenciação da factualidade nos termos em que se deram como provados e não conforme o arguido, em parte, pretendeu fazer crer ao Tribunal.

Os factos de índole subjetiva, porque insuscetíveis de prova direta, dada a sua natureza, extraem-se, assim, dos factos objetivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade.

A testemunha BB ainda confirmou a factualidade descrita nos pontos «12. a 15.» dados como provados, por si vivenciada e, por isso, com conhecimento direto.

Assim como atestou os factos articulados no pedido de indemnização cível – factualidade descrita nos pontos «36. a 43.», no confronto, ademais, com os documentos juntos ao mesmo, isto é, cópia do extrato das remunerações auferidas pela vítima à data dos factos; cópia do descritivo das pensões auferidas pela demandante; cópia do assento do óbito do pai do arguido, cópia da escritura de habilitação de herdeiros e caderneta predial da fração inscrita na respetiva matriz sob o artigo … da freguesia de ….

Por fim, quanto aos factos elencados sob os pontos «.20. a 35.» da factualidade provada, respeitantes ao percurso, condições de vida e antecedentes criminais do arguido, o Tribunal relevou o relatório social elaborado e junto aos autos, corroborado que foi em parte pelo declarado pelo próprio e com o deposto pela sua mãe, BB. Mais se atendeu ao CRC do arguido junto aos autos.

Os factos não provados resultaram da sua ausência de prova, quer porque ficaram prejudicados pelos factos evidenciados, quer porque a prova carreada não os evidenciou.”

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Quanto à questão da inimputabilidade do arguido

A recorrente põe em causa o acórdão recorrido na parte em que concluiu pela inimputabilidade do arguido. Na sequência desse entendimento, pugna pela consideração como provada da matéria considerada não provada sob as als. c. e d..

São duas questões que se interligam, mas importa desde logo apreciar a questão da inimputabilidade.

É que não se pode apreciar a pretendida alteração da decisão de facto, sem antes se apreciar a questão da inimputabilidade, pois que, a confirmar-se esta, fica carecida de sentido a apreciação pretendida pela recorrente quanto à circunstância qualificativa.

A recorrente entende que o tribunal recorrido não poderia ter concluído pela inimputabilidade do arguido porque:

“a) O arguido apresenta um discurso coerente e organizado;

b) O arguido relatou, com calma e serenidade, uma tese justificativa para os actos que praticou;

c) O arguido renega a sua eventual doença e com dados apelando às memórias da sua vida além Portugal;

d) O arguido tem consciência da sua situação patrimonial;

e) O arguido encontra-se orientado a nível espácio-temporal.”

Ora, importa desde logo referir que o que é relevante não é a postura do arguido no julgamento (ou ao longo do processo), mas sim a sua situação à data dos factos e por referência aos mesmos.

E quanto a isso, a recorrente olvida completamente a prova pericial que constitui o relatório de perícia médico-legal de psiquiatria, constante a fls. 587 a 602, e o disposto no artº 163º do C.P.P..

O juízo formulado nesse relatório, no qual se concluiu pela inimputabilidade do arguido, presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, ou seja, à partida não está abrangido pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do C.P.P..

É certo que se trata apenas de uma presunção, a qual, por isso mesmo, pode ser afastada, mas para isso é necessário que o julgador fundamente a divergência.

A recorrente, em passo algum, alega que o tribunal recorrido deveria ter afastado o juízo técnico que foi formulado e quais as razões que a isso deveriam ter levado.

Limita-se a aduzir a postura do arguido no julgamento e a transcrever parte do seu depoimento.

O tribunal recorrido não demonstrou, por qualquer forma, existirem razões que devessem sequer ser analisadas e que fossem potencialmente fundamentadoras de divergência com a conclusão pericial.

O ac. da Rel. de Coimbra de 23/5/2018 invocado pela recorrente nada adianta quanto ao que aqui se discute: existem, ou não, razões para afastar o juízo técnico que foi formulado ?

O que ali estava em causa era uma deficiência da decisão recorrida por se ter entendido que a mesma não abordou todas as questões que deveria ter abordada. Era só isso, nada mais.

No caso destes autos, o juízo técnico não contem apenas a conclusão da inimputabilidade. Responde às questões que foram colocadas (cfr. fls. 600 a 602), estabelecendo relação causal entre a anomalia psíquica e os actos praticados pelo arguido.

Ou seja: foi por virtude da anomalia psíquica de que padece que o arguido praticou os factos.

Como é evidente, existiu uma causa “despoletadora” do comportamento do arguido, mas não fora a anomalia psíquica de que padece, ele não se teria comportado como se comportou (cfr. resposta dada à questão E), a fls. 601).

Também o acórdão desta relação de Évora de 20/5/2010, igualmente invocado pela recorrente, pouco adianta para o que aqui está em causa, sendo certo que o que ali se apreciou foi a inexistência de perícia.

É evidente que cabe ao tribunal decidir sobre o chamado elemento normativo da inimputabilidade, é ao tribunal que cabe declarar a inimputabilidade do arguido, mas, perante o teor do relatório pericial que foi feito nestes autos, teriam que existir fundamentos muito sérios e convincentes para que assim se não declarasse.

O que o arguido declarou na audiência e a forma pela qual o fez, não podem constituir sequer um princípio de fundamento para afastar o juízo pericial que foi feito, sob pena de o mesmo ser completamente inócuo e de clara violação do artº 163º do C.P.P..

A imputabilidade não pode ser apreciada “a olho”, pelo que “parece” ou por um diferente convencimento por parte da recorrente.

Temos, assim, que necessariamente concluir que bem andou a decisão recorrida em concluir pela inimputabilidade do arguido, sempre se acrescentando que para a declaração da verificação do elemento normativo, serviu também o depoimento da assistente.

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Quanto à pretendida alteração da decisão de facto no que diz respeito às als. c. e h., com o seguinte teor:

c. Que no contexto descrito em «7.», o arguido tenha atuado em execução de um plano gizado;

h. Que o arguido agiu de modo frio e calculista, em execução metódica de plano previamente elaborado, no contexto do qual decidiu utilizar objetos cortantes e contundentes que sabia serem aptos a tirar a vida a CC, ideia esta que formulou e sobre a qual ponderou até ao início da sua execução no dia 04-09-2020, bem conhecendo o carater especialmente censurável e perverso da sua atuação;

Com vista à pretendida alteração, o recorrente socorre-se das declarações do arguido (embora a dado passo refira: “Pelo que entende a Recorrente que, face à prova produzida testemunhalmente …”) e de raciocínios alegadamente lógicos que levariam à conclusão da verificação de referida matéria dada como não provada.

Ora, face à confirmação da inimputabilidade do arguido, a pretendida discussão trazida aos autos pela recorrente não tem razão de ser.

É que as qualificativas relacionam-se com a culpa do agente, são circunstâncias que a agravam, pelo que não faz sentido perante um inimputável apreciar se as mesmas ocorrem, ou não.

Com refere Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição, pág. 509 “trata-se de um tipo de culpa agravada de homicídio por força da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo.

(…)

Por isso, não deve ser imputado o tipo do homicídio qualificado a um inimputável, uma vez que a qualificação supõe uma culpa agravada”

A decisão recorrida é bem explicita e completa nesse sentido, conforme resulta dos seguintes segmentos:

“No que contende com a qualificativa concreta imputada, isto é, a prevista na alínea j) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, ou seja, “agir com frieza de ânimo, com reflexão os meios empregados ou ter persistido na intenção de mantar por mais de vinte e quatro horas”, a mesma traduz-se numa atuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de refletir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua atuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu ato, conquanto se reconheça que a mesma é suscetível de se mostrar objetivamente preenchida, face ao comportamento deliberado, aparentemente reflexivo, frio e persistente assumido pelo arguido, tendo a conduta, contudo, de ser analisada e julgada sem perder de vista a imagem global do facto – leia-se com interesse Fernando Silva, “Direito Penal Especial – Crimes Contra as Pessoas”, pág. 73. E em sentido coincidente, a Jurisprudência do Supremo Tribunal, ao considerar que frieza de ânimo traduz a formação da vontade de praticar o ato de modo frio, reflexivo, cauteloso, calmo na preparação e execução, persistente na resolução – entre muitos outros, os acórdãos de 06.06.21, 07.09.26 e 08.11.12, proferidos nos Processos n.ºs 1913/06, 2591/07 e 2826/08, respetivamente.

Do ponto de vista subjetivo, trata-se de crime essencialmente doloso, pelo que, de acordo com a conceitualização da doutrina hoje dominante, se exige que o agente tenha conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do tipo objetivo de ilícito.

De um lado, impõe-se que, ao atuar, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, exige a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade, de acordo com o disposto no artigo 14.º do Código Penal (cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 328 e ss).

(…)

Assim como ficou demonstrado que …(…) à data da prática dos factos e apesar da doença de que padece, o arguido quis atuar do modo supra descrito, sem que, no entanto, fosse capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas e de se determinar de acordo com essa avaliação.

Pelo que, subsumindo a factualidade evidenciada ao Direito a atender, inexistem dúvidas que o arguido praticou um crime de homicídio previsto no artigo 131.º do Código Penal. Mas já não o crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º, n.º 1 e 2, al. j) do Código Penal.

Destarte, independentemente de se verificar o preenchimento da qualificativa descrita na alínea j) do n.º 2 do Código Penal, para que se possa concluir pela prática de um crime de homicídio qualificado, careceria que estivesse também demonstrada uma especial censurabilidade ou perversidade do arguido, o que não sucede no caso em apreço, quando, diferentemente, se provou que o arguido, à data da prática dos factos, não se mostrava capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas e de se determinar de acordo com essa avaliação.

Conforme recentemente apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão datado de 27/10/2021, no âmbito do proc. 55/19.4SWLSB.L1.S1, relatado pelo Sr. Conselheiro António Gama, consultável in www.dgsi.pt, afirmar que a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade não é viável quando o agente é um inimputável, por natureza quem por força de uma anomalia psíquica é incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação. Sendo o inimputável incapaz de culpa só pode cometer o tipo de crime de homicídio simples, não o de homicídio qualificado, uma vez que a agravação pressupõe culpa agravada.”

Nada de relevante se tem a acrescentar, a não ser que não se pode separar uma questão – inimputabilidade – da outra – impossibilidade de qualificação do crime.

Não se pode seguir o “percurso” seguido na motivação de recurso: em primeiro lugar verificar se há provas concretas que imponham decisão diversa quanto às referidas als. c. e h., nos termos do artº 412º, nº 3, al. b), do C.P.P., e em segundo lugar verificar se a declaração de inimputabilidade deve, ou não, ser mantida. Tem que ser ao contrário, como aqui foi feito.

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Face ao até agora exposto, fica prejudicada a apreciação da qualificação jurídica dos factos/medida da pena.

Apenas uma nota: a recorrente insurge-se, demonstrando receio, contra o “curto internamento” do arguido, parecendo que se está a referir ao período de 3 anos.

Ora, 3 anos é o período mínimo previsto no nº 2 do artº 91º do Cód. Penal. O internamento só termina quando cessar o estado de perigosidade do arguido, não podendo, em princípio, exceder o período máximo de 16 anos.

E mesmo ao fim desses 16 anos, se for grave o perigo de cometimento de novos factos da mesma espécie, sempre pode ser aplicado o disposto no nº 3 do artº 92º do Cód. Penal e ser prolongado o internamento ad aeternum, se for caso disso

Só pode, assim, haver “libertação” se e quando inexistir o perigo de cometimento de novos factos.

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Quanto ao pedido cível

O tribunal recorrido determinou a remessa das partes para os tribunais civis, nos termos do nº 3 do artº 82º do C.P.P..

A recorrente insurge-se contra essa decisão porque entende que face ao que provado se considerou, nada mais há apurar.

Está fora de dúvida que só pela via da equidade é possível determinar a obrigação de indemnização por parte do arguido, tal como dispõe o artº 489.º do Código Civil nos seguintes termos:

“Artº 489º

(Indemnização por pessoa não imputável)

1. Se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância.

2. A indemnização será, todavia, calculada por forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos.”

Escreveu-se no acórdão recorrido a este propósito:

“O apontado requisito específico da equidade tem de ser avaliado perante as circunstâncias concretas do caso, ponderando especialmente as possibilidades do inimputável e as necessidades do demandante.

No caso em apreço, a este respeito, demonstrou-se que o demandado, à data da prática dos factos, permanecia a viver sozinho na casa pertencente à mãe, em …. Estava desempregado há um ano e beneficiava do subsídio social de desemprego no valor de € 350 e da ajuda do padrasto/vítima, que garantia o pagamento dos bens de consumo essenciais à sua permanência na habitação. Bem assim que existe um bem imóvel por partilhar pelo demandado, demandante e irmãos daquele, pertencente à herança aberta por óbito do seu pai.

Ora, para além de o demandado assumir uma situação económico-financeira débil, desconhece-se, em concreto, qual o valor da quota parte que lhe cabe na herança aberta por óbito do seu pai, bem assim os encargos fixos da demandante e do demandado, não estando o Tribunal em condições de concluir, com a segurança necessária, que as possibilidades financeiras do demandado superam as da demandante, quando esta, ademais, beneficia de um rendimento mensal fixo no valor de € 1.013,13, superior àquele, e também é co-herdeira da dita herança, e que a atribuição de uma indemnização à demandante por equidade não colocará em causa a sobrevivência do demandado.”

Também quanto a esta questão pouco mais há a adiantar para além do que é referido no acórdão recorrido.

Com efeito, do que se trata é da necessidade do apuramento de factos que possam fundamentar a condenação do arguido no pagamento de indemnização.

Para isso, há que ter em conta, entre o mais, que o arguido tem um filho menor, o que poderá ter relevância para efeitos do nº 2 do artº 489º do Cód. Civil.

Por outro lado, o apuramento do valor real (de mercado) do imóvel de que o arguido (e a assistente) é co-herdeiro, é outra circunstância relevante para se aquilatar da ocorrência de fundamento para a referida condenação.

São estas algumas das circunstâncias, entre outras que se venham a entender pertinentes, para que se possa com mais rigor do que aquele que se tem agora, aquilatar das situações económicas da demandante e do demandado/arguido.

Do que aqui se trata não é propriamente de procura de novos elementos para se fixar o montante indemnizatório (para isso rege o nº 1 do artº 82º do C.P.P.), mas sim de apuramento de circunstâncias para se concluir, ou não, pelo próprio dever de indemnizar, sempre segundo a equidade.

É bem certo que tendo desde logo o arguido sido acusado solicitando-se a declaração da sua inimputabilidade, era mais do que previsível que houvesse necessidade de se apurarem todos os factos necessários à boa decisão da causa no que diz respeito ao pedido cível. Mas o que é facto é que isso não foi feito de forma suficiente, pelo que outra alternativa não restava ao tribunal recorrido que não fosse decidir como decidiu, decisão essa que até se poderá entender dependente da livre resolução do tribunal e, por isso, irrecorrível nos termos do artº 400º, nº 1, al. b), do C.P.P. (neste sentido, Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição, pág. 240).

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.

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Custas pela assistente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs (artºs 515º, nº 1, al. b), do C.P.P. e artº 8º, nº 9 e tabela III do R.C.J.).

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Évora, 10 de Maio de 2022

Nuno Garcia

Edgar Valente

Gilberto da Cunha