Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
63/10.0TMSTB-B.E1
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE CRIANÇAS
MEDIDA TUTELAR
PERIGO
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O facto de as condições económicas da progenitora serem inferiores às do avô paterno e, até precárias, só por si, não é motivo bastante para que esta se veja privada de exercer as responsabilidades parentais relativas aos actos correntes da vida do filho.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc.º N.º 63/10.0TMSTB-B.E1 (Apelação – 2ª Secção)
Recorrente: (…)
Recorrido: MP, (…) e (…).
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Relatório [1]


Os presentes autos iniciaram-se com base no relatório da CPCJ de Portimão que dava conta que a criança (…), nascida em 2 de Outubro de 2006, se encontrava em situação de perigo, pois que a progenitora negligenciava os cuidados com a sua saúde, segurança, formação educação e desenvolvimento, estando portanto a pôr em causa o normal desenvolvimento desta criança.
Recebidos os autos, e tendo em conta os elementos disponíveis e enquanto se não apurava a real situação desta criança, o Tribunal aplicou por despacho de 24.03.2015, provisoriamente, a favor do menor a medida de apoio junto do avô paterno, … (fls. 23 e ss.).
Designada data para inquirição dos progenitores e do avô paterno, foi dado cumprimento ao disposto no art.º 107º, nº 3, da LPCJP e solicitado relatório social nos termos do disposto no art.º 108º, n.º 3, LPCJP.
A progenitora, notificada, veio alegar que os factos não correspondiam à verdade, pois sempre foi uma mãe preocupada com o filho e nunca negligenciou os cuidados a ter com o mesmo, ao contrário do pai do menor, que nunca se preocupou com o filho; mais alega que o avô paterno, que é médico, e a tem ajudado em termos económicos, tudo tem feito para denegrir a sua imagem como mãe e para ficar com a guarda e residência da criança; admite ter tido algumas dificuldades económicas quando veio para Portimão, mas que actualmente a sua situação já está mais estável, tem contrato de trabalho e uma casa com adequadas condições de habitabilidade, não compreendendo por que motivo é que agora lhe estão a imputar factos que ocorreram quando veio para Portimão (fls. 90 e ss.).
Juntou documentos e arrolou testemunhas.
Procedeu-se à audição dos progenitores do menor, bem como do avô paterno (fls. 151 e ss.).
As declarações do progenitor e do avô paterno são coincidentes no que toca ao facto de ambos considerarem a progenitora negligente na prestação dos cuidados ao menor, seja a nível da higiene, alimentação, educação, bem como na supervisão e até cuidados médicos e de saúde, comprometendo o seu saudável desenvolvimento e a sua estabilidade emocional.
A progenitora continua a negar tais factos, alegando ser uma mãe dedicada e preocupada com a segurança e bem-estar do menor.
Foi junto aos autos o relatório social sobre as condições do avô paterno, de onde resulta que este e a sua companheira demonstram ter competências parentais, bem como condições habitacionais, económicas e sociais, além de elevada motivação e empenho para garantir o crescimento (segurança, saúde e educação) e desenvolvimento psicoafectivo do menor, propondo a técnica a aplicação da medida de apoio junto deste (fls. 80 e ss.).
Foram solicitados os relatórios elaborados pela psicóloga clínica, Dra. … (fls. 181 e ss.) e pela Dra. …, pedopsiquiatra (fls. 176 e ss.), que observaram a criança, dos quais resulta que a criança terá vivido uma situação potencial de risco e que a proximidade e presença do avô paterno e companheira seria extremamente benéfica para a criança.
Foi junto relatório social sobre as actuais condições da progenitora (fls. 192 e ss.), bem como resultado do exame toxicológico efectuado à mesma para despistagem de substâncias estupefacientes, que resultou negativo para todo o tipo de substâncias (fls. 214).
Procedeu-se à inquirição da Directora do Colégio do (…), frequentado pela criança, (…), da educadora da criança neste colégio, (…), (…), Directora do Colégio Vale dos (…) de Setúbal, frequentado pela criança antes de vir para Portimão (fls. 209 a 212), e ainda de testemunhas indicadas pela progenitora, (…), psicólogo na Associação GRATO, onde trabalha actualmente a progenitora, (…), assistente social e psicóloga na mesma instituição; (…), médica pediatra da criança na Clínica da (…) e (…), secretária da Clínica da (…), onde a criança tema aulas de terapia da fala duas vezes por semana (fls. 220 e ss.)».
Por fim, analisadas todas as provas, foi proferida sentença onde se decidiu o seguinte:
«Face ao exposto, e porque dos elementos juntos aos autos, não resulta que o menor vivencie qualquer situação de perigo que justifique uma intervenção institucional a nível da promoção e protecção, decido não aplicar qualquer medida – por desnecessária – e, em consequência, determino o arquivamento dos autos (art.º 111º LPCJP)».
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Inconformado com esta decisão, veio o avô paternos interpor recurso de apelação, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

1. «Entende o ora recorrente que o arquivamento dos presentes autos, bem como com o regresso de seu neto a casa de sua progenitora irão fazer com que este regresse à situação de risco anteriormente vivenciada;
2. Salvo o devido respeito, o ora recorrente também é da opinião que face à prova carreada para os Autos, estes não deveriam ter sido arquivados, sendo que deveria ter sido decidida a manutenção da medida provisoriamente aplicada;
3. Os relatórios juntos, tanto pela pedopsiquiatra como pela psicóloga, transmitem claramente que a progenitora é uma pessoa negligente com seu filho, não mostrando qualquer interesse ou esforço num desenvolvimento psicológico, social e cultural saudável do menor;
4. Mantendo-se a medida de apoio junto a familiar, na pessoa do avô paterno, irá garantir-se ao menor um crescimento saudável e equilibrado, sendo este um forte contributo no seu desenvolvimento enquanto jovem.
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Respondeu o MP e a progenitora, pugnando pela improcedência da apelação.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente [2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 635º, nº 4 e 639º, do novo Cód. Proc. Civil) [3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2, in fine, do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil).
Das conclusões acabadas de transcrever, decorre que a questão suscitada no recurso consiste em saber se, face aos elementos constantes dos autos, a decisão recorrida é ou não correcta e adequada.
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Vejamos.
Analisando as provas a Sra. Juíza, considerou o seguinte:
«Dos elementos recolhidos, resulta que quando a progenitora se mudou para Portimão verificaram-se algumas situações pontuais de desprotecção e risco para o (…), e que se ficaram a dever a uma situação de carência económico-financeira da mãe, para além da instabilidade emocional desta, sem emprego e sem retaguarda familiar, numa cidade onde não tinha qualquer apoio.
Contudo, na presente data esta situação parece estar ultrapassada.
Com efeito, actualmente a progenitora vive numa casa com boas condições de habitabilidade (dois quartos, sala, cozinha e casa de banho) e tem trabalho com horário fixo na instituição GRATO, auferindo cerca de € 600,00 mensais, como ajudante de acção directa, que complementa com alguns rendimentos que consegue nas feiras de velharias que faz; tem a sua vida organizada em termos habitacionais e profissionais (ainda que com rendimentos baixos), e dispõe inclusivamente de amigos e colegas de trabalho que a ajudam.
Os rendimentos que aufere e as condições habitacionais que possui, para além dos bens que pode oferecer ao menor, não se podem comparar com aqueles que o avô paterno lhe pode proporcionar. Na verdade, este último beneficia de um desafogo financeiro e de excelentes condições económicas, habitacionais e socioculturais que permitem proporcionar ao menor uma qualidade de vida muito superior e mais apetecível.
Contudo, o facto de as suas condições serem inferiores às do avô paterno e, até se admite, que podem ser precárias, só por si, não é motivo bastante para que esta se veja privada de exercer as responsabilidades parentais relativas aos actos correntes da vida do filho.
De contrário, que dizer dos restantes milhares de portugueses que, infelizmente, por circunstâncias da vida, se viram sem emprego, sem casas e apoios diminutos?
Por outro lado, os depoimentos da médica pediatra da criança e da secretária da Clínica da (…), que tem uma relação de alguma proximidade com a criança e a progenitora, atestam que esta sempre cuidou e tratou adequadamente do filho, com zelo, dedicação, carinho e amor necessários ao seu harmonioso desenvolvimento, existindo uma excelente relação afectiva entre ambos, sendo sempre a mãe que o levou às consultas, mostrando-se preocupada e atenta, cumprindo a medicação e orientações prescritas, nunca sendo detectados indicadores de risco (mesmo o facto do menor ficar, pontualmente, na clinica, a aguardar a progenitora, não indicia desleixo, deve-se ao facto de estar a trabalhar, e a última testemunha afirmou que sucede o mesmo com outras crianças). Mais confirmaram que nunca viram o menor com vestuário sujo ou a cheirar mal (anote-se que a médica pediatra até ressalvou o facto de nas consultas despir o menor e nunca ter detectado qualquer anomalia ao nível da higiene).
Dos registos de avaliação e comportamento do Colégio do (…), frequentado pela criança, e dos registos clínicos do mesmo, nada resulta também que permita concluir que o (…) era uma criança em perigo, pese embora as ressalvas para a necessidade de acompanhamento escolar do menor, considerando as dificuldades que o mesmo revelava ao nível da oralidade e da escrita (fls. 127 e ss. e 134 e ss.).
Acresce que tirando uma ou outra situação pontual de descuido por parte da progenitora quanto aos cuidados e atenção dispensados num dado período da sua vida ao filho, que a mesma admite terem ocorrido e sido por ela contados à psicóloga clínica do Colégio do (…), e que já se encontram ultrapassadas, certo é que nenhuma outra situação de desprotecção ou risco foi assinalada e muito menos de perigo.
Anote-se que as “suspeições” de que deixava a criança sozinha à noite nunca se confirmaram e a própria médica pediatra nunca detectou problemas / carências alimentares.
Ninguém confirmou qualquer chantagem emocional por parte da mãe ao menor (a ter existido qualquer relato do menor a terceiro, importa, ainda assim ressalvar que tal é infirmado pelo facto do menor ter um número não significativo de faltas à escola).
Um dos motivos para imputar à mãe falta de interesse, passa pelas faltas escolares do menor à escola ou de nunca ter pedido reuniões com a directora, contudo, tal é contrariado pelas informações escolares juntas aos autos, onde as faltas são se podem considerar em número “elevado” ou sequer causadoras de preocupação (fls. 134 e ss.).
Também o facto do menor ao chegar à escola manifestar vontade de ir ao WC poderá dever-se ao facto de a carrinha escolar não fazer o trajecto directo de sua casa para a escola, pois vai fazer a recolha de vários alunos e pode levar um tempo considerável a chegar.
Anote-se que também se reporta a 2012 a situação, demasiado empolada, e que se prende com o facto de uma funcionária ter subido a casa do menor porque este não estava na paragem do autocarro para ir para a escola, tendo deparado com a mãe do menor e este ainda a dormir… Ora isto data de há cerca de 3 anos!! Nenhuma testemunha confirmou que a situação se repetisse.
Também (…), psicólogo no Grato, atesta que a progenitora é uma trabalhadora assídua e cumpridora, reconhecendo-lhe competências e responsabilidade, confirmando, ainda, ter encontrado a mãe e o menor em feiras de antiguidades, estando aquele com outras crianças a brincar e nada vendo que indiciasse que corria riscos ou perigo.
Assim, dos documentos juntos aos autos e do depoimento da maioria das testemunhas ouvidas, nomeadamente, da médica pediatra da criança e (…), Directora do Colégio Vale dos (…) de Setúbal, resulta que a progenitora sempre cuidou de forma adequada do filho, nunca tendo vislumbrado qualquer indício de negligência com a sua higiene e saúde (esta última, aliás, até atesta que a mãe sempre foi preocupada com o percurso escolar do filho, indo levar e buscar o menor à escola, confirmando que o menor já tinha dificuldades em verbalizar algumas palavras, daí ter terapia da fala, sendo acompanhado pela mãe).
Efectivamente, decorre do processo, que as eventuais situações de desprotecção ou risco que a criança eventualmente tenha vivenciado, já se mostram ultrapassadas, tendo aquelas ocorrido numa altura em que mãe se encontrava numa situação de fragilidade a todos os níveis resultante de um passado de agressões, consumos de estupefacientes com o progenitor da criança, mas a que a mesma pôs cobro».
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Na prossecução dos valores jurídico-constitucionais da infância, traduzida na concretização dos direitos fundamentais da criança, a intervenção do Estado no âmbito do Direito das Crianças e Jovens consubstancia, por regra, uma restrição de direitos fundamentais dos pais – direito à educação e manutenção dos filhos – e nalgumas situações, como sucede com a intervenção tutelar educativa de outros direitos fundamentais da própria criança – direito à liberdade e à auto­determinação pessoal.
Ora, atendendo ao que dispõe o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, essa restrição deve ser excepcional e apenas justificada quando se trate de sal­vaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, estando sujeita às exigências de proporcionalidade e de adequação que este normativo impõe.
O artigo 36.º, n.º 6, da CRP, vem prever precisamente a possibilidade de, em ordem à prossecução do dever de protecção das crianças que incumbe ao Estado (artigo 69.º da CRP), se restringir o direito dos pais à educação e à manutenção dos filhos, o que, no limite, pode levar à separação destes relativamente aos progenitores.
As medidas restritivas preconizadas no referido normativo estão naturalmente sujeitas a uma reserva de lei (a qual definirá as situa­ções de incumprimento dos deveres fundamentais que legitimam que os filhos sejam separados dos pais) e uma reserva de decisão judicial. Toda a intervenção estatal, seja por via judicial seja por via administrativa ou legislativa está condicionada e balizada pelo princípio constitucional da proporcionalidade, consagrado no art.º 18º nº 2 da CRP.
Gomes Canotilho e Vital Moreira sustentam que o princípio da proporcionalidade, considerado um princípio material inerente ao regime dos direitos, liberdades c garantias, também chamado «principio da proibição do excesso», se desdobra em três subprincípios:
- Princípio da adequação – as medidas restritivas devem revelar-se corno meio adequado para a salvaguarda dc outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos;
Princípio da exigibilidade – as medidas restritivas revelam-se necessárias porque os fins visados pela lei não podiam ser conseguidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades c garantias;
e
- Princípio da proporcionalidade em sentido restrito – os meios legais restritivos devem situar-se numa «justa medida» em relação aos fins visados, proibindo-se as medidas desproporcionadas ou excessivas [4].
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Os presentes autos são de promoção e protecção e pressupõem a existência de situações de risco ou perigo para a criança, situações essas, que legitimam a intervenção do estado na vida familiar. Vistos os autos, analisadas as provas produzidas, os relatórios sociais, os relatórios médicos e psicológicos, não podemos deixar de concordar com o tribunal “a quo”. Na verdade, não se vislumbra na situação actual (e é essa que deve ser atendida para aferir da necessidade de aplicação de qualquer medida de protecção e da sua adequação) qualquer situação de desprotecção ou risco e muito menos de perigo para a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança sob a guarda da progenitora. Para o afastamento deste risco é de realçar o louvável empenhamento dos avós paternos no apoio financeiro à educação e assistência do menor e bem assim na preocupação que manifestam pela garantia do seu bem-estar. É bom que esse interesse pelo bem-estar do neto persista, mas actualmente não há razões que justifiquem o afastamento do (…) dos cuidados da progenitora a restrição dos poderes/deveres que a esta competem.
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Concluindo

Pelo exposto, acorda-se na improcedência da apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Évora, em 05 de Novembro de 2015
Bernardo Domingos
Silva Rato
Assunção Raimundo
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[1] Transcrito da sentença
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2, 2ª parte, do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, Vol. V, página 56.
[4] J. J. Gomes Canotilho; Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1993, pág. 52. Cf. ainda Gomes Canotilho, J. J., Direito Constitucional e Teo­ria da Constituição, 2.ªed., Coimbra, Almedina, 1998. , p. 259-265.