Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | PENA DE MULTA NOTIFICAÇÃO PAGAMENTO PRECLUSÃO FINS DA PENA | ||
Data do Acordão: | 01/10/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I. O decurso do prazo de 15 dias, após notificação para pagamento da multa, previsto no artigo 489.º, n.º 2 CPP, não preclude a possibilidade de requerimento desse pagamento em prestações ou prestação de trabalho a favor da comunidade. II. Até porque, conforme se prevê o artigo 49.º, n.º 2 CPP, «o condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado». III. A correta interpretação da lei processual não prescinde das finalidades das penas e do princípio da preferência na execução de penas não privativas da liberdade sempre que estas realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigos 40.º e 70.º CP). | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: A - Relatório Nos autos de inquérito supra numerados que corre termos no Tribunal de Santarém – Juízo Local Criminal de Abrantes, - e em que é arguido AA, este, por factos de 28-01-2020, foi julgado e condenado pela prática de um crime de desobediência na pena de 100 dias de multa à razão diária de 6.50 €, no montante global de 650 € e na pena acessória de proibição de conduzir por 11 (onze) meses. A multa não foi paga no prazo de 15 dias apos trânsito em julgado da decisão (em 13-01-2022). Por requerimento de 09-03-2022 o arguido recorrente peticionou a prestação de trabalho em qualquer instituição da sua freguesia de residência por não ter condições para pagamento da multa. Por despacho de 09-03-2022 o tribunal ordenou a notificação do arguido para pagamento da multa. Por novo requerimento de 21-03-2022 o arguido recorrente voltou a peticionar a conversão da pena de multa em prestação de trabalho a favor da comunidade. Por despacho de 22-03-2022 o tribunal ordenou a notificação do arguido para, em 10 dias, vir aos autos pagar a pena de multa em que fora condenado. Por novo requerimento de 05-04-2022 o recorrente solicitou – invocando o art. 49º, nº 3 do CP – que a pena de multa fosse suspensa na sua execução, invocando impossibilidade de pagamento da multa por não auferir qualquer rendimento. Por despacho da Mmª Juíza de 20-05-2022 foi convertida em prisão subsidiária de 66 (sessenta e seis) dias a multa aplicada. * Inconformado o arguido interpôs recurso do referido despacho, com as seguintes conclusões: A- Na douta sentença condenatória, proferida a 24 de Novembro de 2021, foi o arguido condenado pela prática de um crime de desobediência, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,50 €. * O Digno magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido entende ser de manter o decidido, concluindo: 1. A decisão proferida, ao alicerçar-se no incumprimento da obrigação de pagar a multa, bem como na comunicação prévia, em sede de sentença, da consequência do não pagamento desa multa, encontra-se suficientemente fundamentada. * Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer onde defende a improcedência do recurso. **** B - Fundamentação: B.1-a) - São estes os elementos de facto relevantes e decorrentes do processo: 1) – Por sentença de 24-11-2021 e por factos de 28-01-2020 o arguido foi julgado e condenado pela prática de um crime de desobediência na pena de 100 dias de multa à razão diária de 6.50 €, no montante global de 650 € e na pena acessória de proibição de conduzir de 11 (onze) meses. 2) - Tal decisão transitou em julgado. 3) - O condenado prestou TIR em 15-12-2020 (fls. 55). 4) – Do TIR prestado consta que ao arguido foi dado conhecimento: a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado; 5) - Por despacho de 20-05-2022 foi convertida em prisão subsidiária de 66 (sessenta e seis) dias a multa aplicada. * B.1-a) - É este o teor do despacho recorrido: «Por decisão transitada em julgado em 13.01.2022, foi o arguido condenado numa pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos) o que perfaz a multa global de 650,00 € (seiscentos e cinquenta euros). * B.2 - Cumpre apreciar e decidir. Sendo o objecto do recurso penal delimitado pelas conclusões da respectiva motivação, as questões abordadas no recurso pelo arguido reconduzem-se a apurar se é viável a sua pretensão de ver a pena de multa – já convertida em prisão – substituída por trabalho a favor da comunidade ou suspensa na sua execução. Mas essa é apenas a aparência, já que a questão essencial passa por saber se, não tendo o arguido pago a multa no prazo previsto no art. 489º do CPP, o decurso deste prazo sem cumprimento é preclusivo de tal pretensão. Essa é, de forma explícita ou implícita, a posição do tribunal recorrido e do respectivo magistrado do MP - v. g. a promoção de 04-04-2022 onde se promove o indeferimento por “extemporâneo” e despacho de 19-04-2022. Razão, aliás, que conduziu o tribunal recorrido a não apreciar em concreto os requerimentos apresentados pelo recorrente nos seus fundamentos de facto – incapacidade para pagar a multa. *** B.3 – Esta é questão de há muito debatida na jurisprudência e paradigmático da discussão jurisprudencial a tal respeito é o acórdão da Relação de Coimbra de 18-09-2013 (proc. 368/11.3GBLSA-A.C1, sendo relator o Desemb. Orlando Gonçalves), cujo sumário é elucidativo: «1.- O prazo processual estabelecido no n.º 2 do art.489.º do C.P.P, para o pagamento voluntário da pena de multa, é um prazo peremptório; Tal interpretação – que poderíamos apelidar de “literal” - vai buscar arrimo à previsão do citado art. 489º do CPP (adjuvado pelo nº 1 do art. 490º de mesmo diploma) e á interpretação conjugada dos artigos 47º, nº 3, 48º, nº 1 e 49º, nsº 1 a 3 do CP, respetivamente, relativos ao pagamento a prestações da pena de multa, à substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade e ao incumprimento no pagamento da multa e sequente conversão da pena de multa não paga em prisão subsidiária. Naturalmente que, definido o prazo como “peremptório” - e não como meramente ordenador - com apoio no art. 145º, nº 3 do CPC, isso arrasta necessariamente a preclusão da prática do acto, no caso, a possibilidade de requerer o pagamento da pena de multa em prestações ou a sua substituição pela pena de trabalho a favor da comunidade. Em sentido adverso parece orientar-se tese jurisprudencial diversa, propugnada por acórdão desta Relação de Évora de 18-09-2012 (proc.597/08.7CBTVR-B.E1, sendo relator o Desemb. João Amaro), no sentido de asseverar que «O decurso do prazo de 15 dias, após notificação para pagamento da multa, não preclude a possibilidade de requerimento desse pagamento em prestações». Secundado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-02-2013 (proc. 534/09.1TDLSB-A.P1, sendo relator o Desemb. Pedro Vaz Pato), que igualmente assevera que «Não é intempestivo o requerimento de substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade se apresentado para além do prazo a que se reportam os artigos 489º, nº 2, e 490º, nº 1, do Código de Processo Penal». E neste sentido vai, tal-qualmente, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-07-2016 (proc.480/13.4SGPRT.P1, sendo relatora a Desemb. Maria Luísa Arantes ao asseverar que «Após o decurso do prazo previsto no art. 489º do Cód. Penal, para pagamento da multa, não fica precludida a possibilidade de o condenado requerer a substituição da multa por trabalho», assim como o voto de vencido lavrado no acórdão da Relação de Coimbra supra citado. As teses parecem ser contraditórias e inconciliáveis, mas essa é outra aparência. É indubitável que a previsão do nº 2 do art.489.º do C.P.P. – principalmente numa interpretação histórica que tenha em conta a inexistência de tal prazo na redacção inicial do preceito, que nenhum prazo previa para o pagamento da multa – faz recair sobre o condenado a obrigação de pagar a multa no prazo indicado, com os sequentes direitos de pedir a sua substituição pelo pagamento em prestações ou pelo trabalho comunitário. Daí, no entanto, não decorre que o condenado veja precludido, obstruído, impedido, o direito de pagar a multa, pois que o art. 49º, nº 2 do CPP cristalinamente assevera que «O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado». Ou seja, são as exigências dos fins das penas a sobreporem-se a uma visão administrativizante do Penal e do Processo Penal, na sequência, aliás, do determinado no artigo 70.º do CP ao impor ao intérprete um princípio geral, sob a epígrafe «Critério de escolha da pena», que se deve optar pelas penas não privativas da liberdade sempre que estas realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E, seguindo o explanado no acórdão da Relação do Porto de 27-02-2013 (proc. 534/09.1TDLSB-A.P1, e arestos aí citados, designadamente o acórdão da mesma Relação de 28 de setembro de 2005, relatado por Marques Salgueiro ), «(…) não se compreenderia que o condenado com recursos monetários pudesse a todo o tempo pagar a multa para evitar a prisão subsidiária e o condenado sem esses recursos não pudesse evitar essa prisão disponibilizando-se a todo o tempo para prestar trabalho a favor da comunidade. Também por este motivo, a tese que não limita ao prazo previsto nos artigos 489º, nº 2, e 490º, nº 1, do Código de Processo Penal a possibilidade de substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade é a que mais se coaduna com o espírito, a unidade e a coerência do sistema jurídico-penal que nos rege”. E a razão de fundo justificativa é apresentada de forma clara no indicado acórdão da Relação do Porto de 28 de setembro de 2005 (relatado por Marques Salgueiro), nos seguintes termos: «As preocupações eminentemente pessoais que atravessam o direito criminal, com relevo para a procura da verdade material e, dentre os fins a atingir com a imposição das penas, a recuperação e a integração social do condenado, preocupações que, necessariamente, se reflectem no direito adjectivo, apontam claramente no sentido de que, por uma razão de cariz essencialmente formal (e o não requerimento no estrito prazo assinado na lei até pode ter sucedido por ignorância dessa prerrogativa legal, ou por mera inadvertência ou, até mesmo, por superveniência da impossibilidade de pagamento da multa), não seja preterida a possibilidade de opção por uma pena que, porventura, se revele mais ajustada. Aliás, essa prevalência de tais preocupações de natureza substantiva ressalta em passos vários do processo penal (assim, quanto à produção de prova, a despeito de determinado meio de prova não ter sido oferecido ou requerido na oportunidade ou prazo marcados por lei, o tribunal não deixará de, oficiosamente ou a requerimento, ordenar a sua produção, se o houver como útil para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – artº 340º do C. P. Penal), sendo que, especificamente no âmbito da execução da pena de multa, também se nota uma acentuada maleabilidade da lei, quer permitindo que o requerimento para substituição da multa por trabalho seja feito no último dia do prazo para o seu pagamento (o que, no caso de ter sido autorizado o pagamento diferido ou em prestações, pode significar que o requerimento venha a ser apresentado muito para além dos 15 dias assinados para o normal pagamento da multa), quer facultando, por inteiro, novo prazo de 15 dias para pagamento da multa, no caso de indeferimento desse requerimento, quer ainda, como derradeira solução, possibilitando ao condenado evitar, a todo o tempo, a execução, total ou parcial, da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado ou, até mesmo, provando que o não pagamento lhe não é imputável, obter a suspensão da execução da prisão subsidiária (artº 49º, nº 2 e 3, do C. Penal). Ou seja, o recurso é procedente, assim se revogando o despacho recorrido que deve ser substituído por despacho que determine realização de relatório social - e outras medidas que se entendam necessárias - para apurar da possibilidade de o arguido proceder ao pagamento da multa, tendo em vista saber se a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, tal como se determina no nº 3 do art. 49º do CP., decidindo-se então em conformidade. * C - Dispositivo: Face ao que precede os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine realização de relatório social (e outras medidas que se entendam necessárias) para saber da possibilidade de o arguido proceder ao pagamento da multa tendo em vista apurar se a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, tal como se determina no nº 3 do art. 49º do CP., decidindo-se então em conformidade. Notifique. Sem tributação. Évora, 10-01-2023. (processado e revisto pelo relator). João Gomes de Sousa Carlos Campos Lobo Ana Bacelar |