Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
538/13.0TBSSB.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
HERDEIRO
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O herdeiro legitimário não tem legitimidade para impugnar, ainda em vida dos seus ascendentes, a escritura de justificação notarial para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial feita por um terceiro relativamente a bens que integram o acervo de uma herança indivisa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 538/13.0TBSSB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Instância Central – Juízo de Competência Cível – J2
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
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I – Relatório:
Na presente acção comum proposta por (…) contra (…), (…), “(…) – Banco (…), SA”, “(…), SA” e “Caixa (…), SA”, a Autora não se conformou com a sentença proferida nos autos.
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A Autora deduziu os seguintes pedidos:
a) ser declarada a nulidade da aquisição por usucapião do direito de propriedade dos prédios referidos no artigo 2 da petição inicial pelos Réus (…) e (…).
b) ser declarada nula a hipoteca constituída a favor do Banco (…), sobre os identificados prédios.
c) ser declarada nula a venda realizada em sede de processo de execução fiscal nº 2240200301527789 e consequente adjudicação à "(…), SA".
d) Ser declarada nula a hipoteca constituída a favor da Caixa (…) sobre o imóvel identificado na alínea a) do artigo 2º da petição inicial.
e) Ser ordenado o cancelamento de qualquer registo que se oponha ao direito da Autora.
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Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que a escritura de justificação notarial, lavrada no dia 09/11/1998, pela qual os ora Réus (…) e mulher (…) se declaram donos e legítimos possuidores dos prédios identificados no artigo 2º da petição inicial contém declarações falsas. Adianta ainda que o prédio em causa faz parte de uma herança por partilhar aberta por óbito dos seus avós.
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Devidamente citados, os Réus pessoas colectivas apresentaram contestações, defendendo-se quer por excepção quer por impugnação, salientando que existe um conluio entre a Autora e os Réus (…) e (…) tendente a prejudicar as outras partes passivas.
Os Réus (…) e (…) não apresentaram contestação.
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Foi declarada extinta a instância relativamente à Caixa (…), por inutilidade superveniente da lide (fls. 266-268), dado que cessou o penhor que se encontrava registado a seu favor na certidão do Registo Predial do prédio em discussão nos autos.
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Foi admitido o incidente de intervenção provocada do Estado Português (fls. 273-288), da “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL” (fls. 370-372) e do “Banco (…), SA”. *
Foi proferido despacho saneador, que, além de conhecer da matéria de excepção invocada pelos Réus, organizou os temas da prova.
No despacho de condensação foi declarada procedente a excepção dilatória da incompetência do Tribunal em razão da matéria quanto ao pedido formulado sobre a alínea a) relativamente ao prédio objecto da venda em execução fiscal e alínea c) e, em consequência, os Réus foram nessa parte absolvidos da instância.
Inconformada com essa decisão dela a Autora interpôs recurso, o qual veio a merecer provimento. Em obediência ao Acórdão da Relação de Évora os prosseguiram para conhecimento também do pedido formulado em c).
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Descido o recurso atrás mencionado, após ter sido efectivado o contraditório relativamente à questão da legitimidade activa (fls. 554-559), o Tribunal considerou que a Autora era parte ilegítima para os termos da causa, absolvendo os Réus da instância.
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Inconformada com tal decisão, a recorrente apresentou recurso de apelação e formulou as seguintes conclusões:
1) O presente recurso incide sobre a douta sentença proferida nos presentes autos, com data de 08/09/2016, a qual julgou a autora parte ilegítima e absolveu os réus da instância.
2) Conforme decorre da sentença, entendeu o Tribunal “a quo” que a autora não é titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação e como tal, entendeu ser a autora parte ilegítima.
3) A autora não concorda com o entendimento vertido na sentença, porquanto, nos presentes autos, formulou o pedido de nulidade da escritura pública de justificação notarial através da qual os Réus (…) e (…) justificaram a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre os prédios identificados nos autos.
4) A nulidade é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do artigo 286.º do Código Civil.
5) Resulta ainda do artigo 30.º do C.P.C., que a autora tem interesse em demandar, porquanto com a declaração de nulidade da escritura de justificação identificada nos autos, o prédio justificado regressa à titularidade dos pais da autora, sendo esta a utilidade derivada da procedência da presente acção para a autora, enquanto herdeira legitimária dos seus pais.
6) Acresce que, sendo a autora herdeira legitimária dos seus pais, os quais são os legítimos proprietários dos imóveis dos autos, é ela titular de uma expectativa jurídica relativamente à aquisição desses bens.
7) A autora é real interessada na impugnação do facto justificado, para o que dispõe de legitimidade bastante de acordo com o art. 101.º, n.º 1 Código do Notariado, nos termos do qual qualquer interessado pode impugnar em juízo o facto justificado.
8) Por consequência, a autora é também parte processual legítima atento o seu interesse em demandar os réus justificantes, tanto mais que não estamos em presença de um negócio jurídico validamente celebrado, pois que os réus não estavam na posse do identificado imóvel há mais de vinte anos, conforme declararam na escritura de justificação impugnada.
9) A autora tem assim uma expectativa jurídica, enquanto herdeira legitimária dos seus pais, de vir a ser herdeira do património destes e como tal, tem legitimidade para, em juízo, procurar manter a integridade desse mesmo património, ao qual pertencem os imóveis justificados.
10) Conclui-se, assim, que a sentença recorrida violou o disposto no artigo 30.º do Código de Processo Civil, artigos 286.º e 2133.º do Código Civil e artigo 101.º, n.º 1, do Código do Notariado.
Termos em que, concedendo-se provimento ao presente recurso, se revogará a douta sentença recorrida, fazendo-se a habitual Justiça!».
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A “(…), SA” apresentou resposta às alegações da recorrente onde defende a manutenção do decidido, alegando que a recorrente não assume a posição de interessado para os efeitos presentes nesta acção.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
O thema decidendum está circunscrito à apreciação da alegada errada interpretação do Tribunal recorrido quanto à questão da legitimidade activa da Ré.
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III – Dos factos apurados pelo Tribunal recorrido:
1) No dia 9 de Novembro de 1998, no Cartório Notarial da Baixa da Banheira, foi celebrada uma escritura publica de justificação notarial, na qual os Réus (…) e mulher (…) declararam serem donos e legítimos de possuidores de um prédio urbano e um prédio rústico ai identificados, que não são detentores de qualquer título formal que legitime o domínio do mesmo mas adquiriram-no por usucapião, por sobre ele o Réu marido ter exercido há mais de 20 anos, posse de boa-fé, contínua e pública, à vista de toda a gente. 2) A Autora (…) e Réu (…) são filhos de (…) e (…).
3) Os progenitores da Autora (…) ainda estão vivos.
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IV – Fundamentação:
A Autora pretendeu impugnar o teor da escritura de justificação notarial relativamente aos prédios urbanos melhor identificados no artigo 2º da petição inicial. Nesse instrumento notarial os Réus (…) e mulher declararam ser os únicos donos e possuidores desses imóveis, aquisição essa operada por via da usucapião. Porém, além disso, ultrapassada que está a pretensão deduzida contra a Caixa (…), a Autora visava ainda obter a nulidade de uma hipoteca constituída a favor do “Banco (…), SA” e a venda realizada em sede do processo de execução fiscal nº 2240200301527789 e consequente adjudicação desses bens imobiliários à “(…), SA”.
Para efeitos do nº 1 do artigo 116º do Código de Registo Predial, a justificação consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, tal como decorre da leitura do artigo 89º, nº 1, do Código do Notariado.
Borges de Araújo assume que «na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo. Partindo da ideia de que, respeitando este princípio se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer. O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis»[1].
De harmonia com a disciplina inscrita no artigo 101º, nº 1, do Código de Notariado o facto justificado por escritura de justificação notarial pode ser impugnado em juízo por qualquer interessado. Efectuada escritura de justificação, para efeitos de primeira inscrição no registo, pode impugná-la aquele que tiver um direito incompatível com o invocado pelo justificante ou qualquer outro interesse juridicamente relevante.
Adicionalmente, apesar de não ter sido convocado este argumento no acto recorrido, face à pluralidade sequencial de negócios jurídicos que alegadamente são afectados pelo vício da nulidade, a decisão da questão passa ainda pela análise da regra precipitada no artigo 286º do Código Civil[2]. Em função disso, cumpre aferir qual é o sentido, a abrangência e a extensão da expressão qualquer interessado.
No entendimento de Pires de Lima e Antunes Varela a invocação da nulidade pode ser invocada «pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio»[3].
Na sempre actualizada lição de Mota Pinto, ao usar o termo qualquer interessado, a lei permite que a nulidade seja invocada pelo «sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica e prática, pelos efeitos a que o negócio jurídico se dirigia»[4].
Na lúcida interpretação de Heinrich Ewald Hörster[5], o termo qualquer interessado não é qualquer pessoa, «mas apenas o particular cujos interesses jurídicos ou económicos ou morais, tiverem sido afectados pelo negócio nulo».
Também Maria Clara Sottomayor entende que «o direito de invocação da nulidade não é conferido a todos. Não é qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração de nulidade do negócio, que preenche os requisitos do conceito de interessado para o efeito do artigo 286º. O sujeito legitimado deve ter um interesse directo na nulidade e não apenas um interesse vago e indirecto. O interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar a nulidade de um negócio jurídico, segundo o artigo 286º, é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titula, porque o negócio nulo prejudica a consistência jurídica, ou a consistência prática ou económica, de um direito seu»[6].
Em função deste compêndio de argumentos é assim lícito firmar a conclusão que a menção interessado abrange todo aquele a quem a lei confere o direito de impugnar em juízo o facto hipoteticamente gerador da nulidade e esse interesse directo remete para um juízo avaliativo do interesse substantivo subjacente.
Na hipótese vertente cumpre assim fazer a associação entre a regra processual respeitante à legitimidade processual[7] e as normas editadas a propósito da disciplina da sucessão mortis causa, mormente aquelas que se reportam à administração da herança e ao exercício de direitos por parte dos sucessores do de cuius.
E deste modo, estamos perante uma hipótese excepcional em que a legitimidade não é simplesmente aferida pelo desenho da relação material controvertida tal como é configurada pelo(a) autor(a). Efectivamente, à luz da primeira parte do nº 3 do artigo 30º do Código de Processo Civil, existe uma indicação da lei que aponta para a existência de requisitos que condicionam a identificação do titular do interesse relevante para o efeito do preenchimento do pressuposto processual.
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A herança é um património autónomo e mantém a sua especificidade, como situação jurídica complexa, enquanto houver razão para não se confundir no património do herdeiro[8].
No direito português, em caso de pluralidade de herdeiros, a herança é configurada como uma forma, mitigada, de património colectivo, o que evita a sua imediata confusão no património dos herdeiros. Quando a herança é aceite pura e simplesmente, podem ser responsabilizados os bens pessoais do herdeiro perante os credores hereditários, mas nunca os bens hereditários perante os credores pessoais. Existe um grau imperfeito de separação patrimonial[9].
Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a este pertenciam (artigo 2024º do Código Civil).
Ao inventário procede-se, em regra, para dividir, para partilhar. A partilha atribui aos respectivos interessados o direito de propriedade, em toda a sua extensão, relativamente a esses bens, e dá-lhes as garantias inerentes ao reconhecimento desse direito[10]. E, na acepção de Lopes Cardoso, em consequência da partilha fica reconhecida a propriedade exclusiva dos respectivos bens e cada um dos herdeiros fica exercendo, em relação a eles, os mesmos direitos que detinha o autor da herança. E esse direito exerce-se contra os demais interessados.
A partilha é o acto pelo qual se põe termo à indivisão de um património[11], o que supõe uma pluralidade de herdeiros[12]. É pela partilha que são adjudicados os bens dessa universalidade que é a herança e que os herdeiros preencherão as suas quotas.
A herança, antes da partilha, é ou situação jurídica complexa ou, noutra formulação, uma universitatis juris, com conteúdo próprio, fixado na lei (artigos 2064º, nº 2, 2068º, 2070º, 2074º, nº 3, 2079º, 2088º, 2089º, 2091º, 2098º e outros do Código Civil) e os herdeiros são titulares de um direito indivisível, enquanto se não fizer a partilha. Até à partilha, tal direito recai, assim, sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados dela. Logo, não pode atribuir-se ao co-herdeiro, antes da partilha, a qualidade de proprietário de qualquer bem da herança[13].
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Neste espectro-existencial não merece contestação a afirmação que, até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (enquanto acervo de direito e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens em concreto que preenchem tal quota[14].
Na presente situação estamos perante uma herança jacente aberta por óbito dos avós da Autora, sendo que os seus pais estão vivos. Entende a Autora que tem interesse em demandar, porquanto com a declaração de nulidade de escritura pública de justificação o prédio regressa à titularidade dos seus pais. No entanto, esta petição de princípio não é verdadeira, pois o quinhão hereditário dos seus ascendentes poderia não integrar aqueles prédios (no todo ou em parte) e não existe notícia que os pais da Autora tenham qualquer limitação da sua capacidade de exercício que os impeça de praticar os actos de defesa da sua posição jurídica sucessória.
Na esteira da lição de Rabindranath Capelo de Sousa, também entendemos que não é verdade que os sucessíveis legitimários tenham em vida do autor da sucessão um direito subjectivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimária ou, muito menos, um direito subjectivo aos bens em concreto do património hereditário que possam integrar a sua quota: em face dos concretos poderes ou faculdades jurídicas atribuídas pela lei a tais sucessíveis, estes têm em vida do autor da sucessão uma expectativa juridicamente titulada à sua porção legitimária[15].
Também Oliveira Ascensão sublinha que «o legitimário, satisfazendo a sua expectativa, não se torna necessariamente herdeiro. A referência do artigo 2156º a herdeiros só não é incorrecta por, uma vez mais, a palavra herdeiro estar utilizada em sentido amplo, como sucessível»[16]. Na letra da lei são herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes, os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima (artigo 2157º do Código Civil).
O direito ao direito a suceder relativamente aos legitimários que não integrem a primeira classe de sucessíveis corresponde a uma simples expectativa e o herdeiro legitimário não tem um direito subjectivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimária em vida do de cuius[17]. A morte do de cuius é uma condição suspensiva de um direito ou de faculdade jurídica preexistente[18].
E esta afirmação está sustentada na natureza e nas próprias características da sucessão. Em primeiro lugar, o domínio e posse dos bens da herança só se adquirem pela aceitação (artigo 2050º, nº 1)[19], a qual só pode ter lugar depois da abertura da sucessão (artigos 2032º, nº 1[20]), ou seja, depois da morte do de cuius (artigo 2031º[21]). Depois, a vocação sucessória só tem lugar no momento da abertura da sucessão.
Assim, fora dos casos excepcionados por lei, permanece válido o posicionamento teórico de Nuno Espinosa que defende que «o designado legitimário, enquanto tal, em vida do “de cuius” não tem qualquer meio de tutela ou conservação do que seria a sua expectativa jurídica»[22].
Entre estas excepções emergem a legitimidade para arguir a simulação ao abrigo do disposto no artigo 242º do Código Civil e o instituto da inoficiosidade, em que, neste último, o herdeiro legitimário pode obter a revogação ou a redução das liberalidades, em vida e por morte, feitas pelo de cuius.
É incontroverso que os sucessíveis legitimários podem arguir a simulação dos negócios simulados, gratuitos ou onerosos, feitos pelo autor da sucessão com o intuito de os prejudicar. No entanto, face à arquitectura factual e jurídica da acção em curso não estamos perante uma hipótese com esta configuração, pois a providência anulatória em causa é absolutamente omissa quanto à existência de um conluio entre os seus pais e o seu irmão no sentido de a prejudicar na futura partilha de bens nem é invocado que o meio utilizado para concretizar o engano em apreciação foi o recurso a uma acção de justificação notarial.
Não existe na lei uma intenção geral e genérica de proteger os herdeiros legitimários conferindo-lhe legitimidade para atacar os actos que atinjam as suas expectativas em relação à futura sucessão nos bens da herança dos seus antecessores ainda vivos. Essa legitimidade só existe em circunstâncias especiais concretamente definidas na lei[23] [24] [25] [26], nas hipóteses que acabamos de elencar por remissão para as notas de rodapé.
Nas presentes circunstâncias de facto, impõe-se o entendimento que na acção de impugnação de justificação notarial a legitimidade activa recairá no titular do direito directamente afectado pela aquisição originária conflituante.
O problema da administração da herança só se põe até à sua integração liquidação e partilha, ou seja, enquanto estiverem por satisfazer os encargos da herança ou esta se encontre indivisa[27], sendo que, em termos práticos, esse poder de actuação é conferido prioritariamente ao cabeça-de-casal[28] e residualmente ao colégio de herdeiros. Em tudo o que não respeita aos poderes do cabeça-de-casal, fora dos casos especialmente previstos na lei, como o da reivindicação de bens em poder de terceiro, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos por todos ou contra todos os herdeiros, face à disciplina consagrada no artigo 2091º[29] [30]do Código Civil, de acordo com a preferência da ordem da classe dos sucessíveis [31] [32] [33].
As relações e situações jurídicas a que alude o artigo 2091º são as que se reportam à definição dos bens sujeitos à administração do cabeça-de-casal e à entrega de bens, à cobrança de dívidas, à venda de bens da herança e à satisfação de alguns encargos desta.
Todavia, este complexo de direitos não está deferido aos herdeiros legitimários quando os seus ascendentes, que são os interessados directos e imediatos na partilha, permanecem vivos. Efectivamente, a Autora não tem qualquer direito incompatível com aquele outro que foi invocado pelo justificante e apenas é detentora de uma mera expectativa enquanto herdeira legitimária de segundo grau, a qual só será juridicamente relevante nos casos especificamente previstos na lei.
A Autora não reveste a qualidade de interessada relativamente ao prédio justificado, pois não é titular de direito ou interesse incompatível com o declarado. E, assim sendo, não merece repúdio a asserção contida na sentença agora impugnada quando afirma que (…) não tem aqui e em concreto qualquer direito a defender sobre a herança dos seus avós, por força do disposto nos artigos 2024º, 2030º, 2031º e 2032º do Código Civil.
A sucessão abre-se com a morte do seu autor e os principais efeitos da abertura da sucessão são a adopção de medidas de conservação e a vocação sucessória, com a consequente devolução da herança e a chamada à titularidade das relações jurídicas do falecido daqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis. Como resulta inequivocamente da lei, «aberta a sucessão, são chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (artigo 2032º, nº 1, do Código Civil).
Nesta visão, o herdeiro legitimário, só pelo facto de o ser, não tem legitimidade para impugnar, ainda em vida de seu pai, a escritura de justificação feita por um terceiro, para inscrição da aquisição de um prédio, alegando a venda verbal e a usucapião[34].
A terminar, para além disso, a latere, apartando-nos da questão da legitimidade, existem ainda dois factores adicionais que impediriam a procedência do petitório: (i) o da inoponibilidade da nulidade relativamente a terceiros de boa fé[35], dado que relativamente aos negócios jurídicos celebrados pelos adquirentes após usucapirem os imóveis com terceiros não foram alegados factos demonstrativos da má fé e apenas nesse contexto é que seria admissível concluir pela nulidade da constituição da hipoteca ou a nulidade da venda executiva (e da respectiva adjudicação), a que se soma, (ii) o da impossibilidade do objecto, pois está demonstrado cabalmente nos autos que os prédios abrangidos pela escritura de justificação já não existem e no seu lugar foram edificados outros que não têm correspondência com os prédios usucapidos pelos Réus não contestantes.
Por tudo isto, a decisão recorrida não padece dos vícios que lhe são apontados pela recorrente, mantendo-se assim o anteriormente decidido.

V – Sumário:
1) A nulidade é invocável por qualquer interessado mas esta expressão apenas abrange o particular cujos interesses jurídicos ou económicos ou morais tiverem sido imediata e directamente afectados pelo negócio nulo.
2) Os sucessíveis legitimários não têm em vida do autor da sucessão um direito subjectivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimária nem um direito subjectivo a bens em concreto do património hereditário que possam integrar a sua quota.
3) Não existe na lei uma intenção geral e genérica de proteger os herdeiros legitimários conferindo-lhe legitimidade para atacar os actos que atinjam as suas expectativas em relação à futura sucessão nos bens da herança dos seus antecessores ainda vivos. Essa legitimidade só existe em circunstâncias especiais se concretamente definidas na lei, designadamente através da possibilidade de arguir a simulação quando pretenda agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de o prejudicar.
4) O herdeiro legitimário não tem assim legitimidade para impugnar, ainda em vida dos seus ascendentes, a escritura de justificação notarial para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial feita por um terceiro relativamente a bens que integram o acervo de uma herança indivisa.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 08/06/2017
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário

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[1] Prática Notarial, 2001, pág. 339.
[2] Artigo 286º (Nulidade)
A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
[3] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra 2010, pág. 263.
[4] Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra 2005, pág. 620.
[5] A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra 2000, pág. 594.
[6] Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, pág. 708-709.
[7] Artigo 30º (artigo 26º do CPC 1961) (Conceito de legitimidade):
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
[8] Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 4ª edição (revista), Coimbra Editora, Coimbra 1989, págs. 511-519.
[9] João Gomes da Silva, Herança e sucessão por morte, A sujeição do património do de cuiús a um regime unitário no Livro V do Código Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa 2002, pág. 273.
[10] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. II, Almedina, Coimbra1990, pág. 527.
[11] Nuno Espinosa G. Silva, in Direito das Sucessões, 1980, pág. 110.
[12] Oliveira ascensão, Direito Civil – Sucessões, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra 1989, pág. 522.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/01/1972, in www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/01/2013, in www.dgsi.pt.
[15] Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra 2000, págs. 140 e 141.
[16] Direito Civil – Sucessões, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra 1989, pág. 371.
[17] Neste sentido, ver Eduardo dos Santos, O Direito das Sucessões, Vega Universidade, Lisboa 1998, pág. 79.
[18] Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 1993, pág. 125.
[19] Aceitação da herança – Artigo 2050º (Efeitos):
1. O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material.
2. Os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão.
[20] Artigo 2032º (Chamamento de herdeiros e legatários):
1. Aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade.
2. Se os primeiros sucessíveis não quiserem ou não puderem aceitar, serão chamados os subsequentes, e assim sucessivamente; a devolução a favor dos últimos retrotrai-se ao momento da abertura da sucessão.
[21] Artigo 2031º (Momento e lugar):
A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele.
[22] Direito das Sucessões, 2ª edição, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa 1978, pág. 162.
[23] Artigo 242º (Legitimidade para arguir a simulação):
1. Sem prejuízo do disposto no artigo 286º, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.
2. A nulidade pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.
[24] Artigo 877º (Venda a filhos ou netos):
1. Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é susceptível de suprimento judicial.
2. A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes.
3. A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente.
[25] Artigo 2029º (Partilha em vida):
1. Não é havido por sucessório o contrato pelo qual alguém faz doação entre vivos, com ou sem reserva de usufruto, de todos os seus bens ou de parte deles a algum ou alguns dos presumidos herdeiros legitimários, com o consentimento dos outros, e os donatários pagam ou se obrigam a pagar a estes o valor das partes que proporcionalmente lhes tocariam nos bens doados.
2. Se sobrevier ou se tornar conhecido outro presumido herdeiro legitimário, pode este exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente.
3. As tornas em dinheiro, quando não sejam logo efectuados os pagamentos, estão sujeitas a actualização nos termos gerais.
[26] Artigo 2156º (Legítima):
Entende-se por legítima a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários.
[27] Pereira Coelho, Direito das Sucessões, lições ao curso de 1973-1974 (actualizadas em face da legislação posterior), Coimbra 1992, pág. 273
[28] Artigo 2079º (Cabeça-de-casal):
A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.
[29] Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (artigo 2091º, nº 1, do Código Civil).
[30] Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhes que tais bens lhe não pertencem por inteiro (artigo 2078º, nº 1, do Código Civil).
[31] Artigo 2088º (Entrega de bens):
1. O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.
2. O exercício das acções possessórias cabe igualmente aos herdeiros ou a terceiro contra o cabeça-de-casal.
[32] Artigo 2078º (Exercício da acção por um só herdeiro):
1. Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro.
2. O disposto no número anterior não prejudica o direito que assiste ao cabeça-de-casal de pedir a entrega dos bens que deva administrar, nos termos do capítulo seguinte.
[33] Artigo 2091º (Exercício de outros direitos)
1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.
2. O disposto no número anterior não prejudica os direitos que tenham sido atribuídos pelo testador ao testamenteiro nos termos dos artigos 2327.º e 2328.º, sendo o testamenteiro cabeça-de-casal.
[34] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/05/2004, in www.dgsi.pt.
[35] Artigo 291º (Inoponibilidade da nulidade e da anulação):
1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.
3. É considerado de boa-fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.