Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
40/14.2T8OLH-N.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
TESTEMUNHA
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- O poder/dever emanado do princípio do inquisitório previsto no artigo 11.º do CIRE, não pode, em caso algum, ser pretexto para o tribunal não cumprir os prazos a que está obrigado, devendo o seu exercício ser prescindido quando dele decorra atraso processual evidente, vista a primazia da celeridade como objetivo nuclear da lei.
II.- Se a localização e inquirição de uma testemunha se mostram de duvidosa concretização, esta deve ser prescindida pelo tribunal no âmbito de um incidente de qualificação da insolvência (artigo 186.º do CIRE), mormente se não foi indicada no requerimento inicial e as diligências para a sua localização se mostraram infrutíferas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 40/14.2T8OLH-N.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrentes: (…), S.A. e (…), S.A.,

Recorridos: (…) e (…)

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No Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo de Comércio de Lagoa - Juiz 1, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência de (…) e (…), foi indicada pelas credoras ora recorrentes uma testemunha que não foi possível localizar no nosso país e que residiria em local desconhecido da Suíça.
As recorrentes requereram então ao tribunal que fossem desenvolvidas diligências para se saber qual o paradeiro da testemunha, a fim de prestar depoimento, requerimento que mereceu o seguinte despacho:
“Em face do requerimento apresentado pelas requerentes face a impossibilidade de notificação de (…), tendo a autoridade policial informado que a pessoa em causa reside na Suíça, em morada que não foi possível apurar e, pretendendo as requerentes que sejam feitas novas diligências com vista à localização da morada dessa pessoa, importa decidir que:
Estamos no âmbito de um processo de qualificação de insolvência, no qual as provas são apresentadas pelas partes.
No caso vertente durante a audiência de julgamento as requerentes solicitaram a inquirição de (…) alegando ser o atual proprietário da Vivenda (…), com vista a esclarecer de quem é que havia adquirido essa propriedade.
Não obstante nessa altura ter decorrido o prazo para apresentação das provas o Tribunal acedeu a audição da referida pessoa por alegadamente poder ter conhecimento de factos que pudessem esclarecer a transferência da propriedade que se constatou nos autos ter passado por várias sociedades.
Resultando das diligências encetadas a impossibilidade de notificação, atento ao tipo de processo em questão e o seu objetivo, as diligências requeridas pelas requerentes, de duvidosa eficácia e com interesse relativo para o objeto dos autos, não se justificam, nesta altura, que se protele a conclusão do julgamento para se fazer mais averiguações.
Em face do exposto, indefere-se o requerido.
Notifique.”

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Não se conformando com o decidido, os recorrentes apelaram, formulando as seguintes conclusões que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:

1ª Vem o presente Recurso interposto do Despacho proferido em sessão da Audiência de Julgamento de 14 de Dezembro de 2022 (cfr. Ata com a ref. CITIUS n.º 126602708), pelo qual o Tribunal a quo rejeitou o requerimento das ora Recorrentes no sentido de serem efetuadas diligências da localização da testemunha (…), que não havia sido possível notificar na morada conhecida dos autos.

2ª Não podem as Apelantes conformar-se com a decisão em apreço, que redunda na rejeição de uma diligência probatória anteriormente deferida, sem que a mesma tenha de modo algum perdido a utilidade e pertinência que determinaram o seu inicial deferimento, e que, como tal, com todo o devido respeito, que muito é, não faz correta aplicação do Direito aos factos em presença, traduzindo-se, além do mais, numa inaceitável desconsideração pelos imperativos da descoberta da verdade material e do princípio do inquisitório, com especial relevo no incidente de qualificação da insolvência.

3ª Tendo o Tribunal a quo deferido, por pertinente, a inquirição da testemunha (…) em Despacho de 17 de outubro de 2022, com a ref. CITIUS n.º 125879592, “por a pessoa em causa poder ter conhecimento de factos importantes para a boa decisão deste processo, não pode aceitar-se que, apenas porque falhou a sua notificação na (primeira) morada conhecida dos autos, tal inquirição tenha passado a ter interesse relativo.

4ª O interesse da diligência probatória em análise para o objeito dos autos mantém-se intocado, reportando-se ao apuramento cabal de atos, praticados pelos Insolventes, que se prendem com a dissipação de um património estimado em milhões de euros.

5ª Não colhe igualmente a justificação de indeferimento de diligências de apuramento de morada alternativa requeridas pelas ora Recorrentes com base na sua alegada “duvidosa eficácia, uma vez que tais diligências consistiam, desde logo, em contactar pessoa devidamente identificada (designadamente, e para maior celeridade, por correio eletrónico), com conhecimento da morada da pessoa a notificar e, de seguida, utilizar tal informação para repetir a notificação.

6ª Não estamos sequer perante uma situação de patente dificuldade na localização de uma testemunha, que pudesse, atenta a urgência-regra dos processos de insolvência, justificar (e apenas em casos limite, crê-se!) que se prescindisse de elementos probatórios de relevo – ainda que com os óbices daí decorrentes para o apuramento da verdade material – em atenção a essa urgência, visto que, no caso, não foram feitas quaisquer diligências de procura de morada alternativa.

7ª As diligências requeridas são inteiramente compagináveis com a urgência do processo de insolvência e mostram-se essenciais num incidente, como é o da qualificação da insolvência, que apesar da urgência de que beneficia atento o processo em que se insere, convoca particulares exigências de apuramento da verdade e de respeito pelo princípio do inquisitório, por forma a assegurar que as condutas lesivas dos Insolventes, em prejuízo dos seus credores, são devidamente apreciadas.

8ª Não determinar a sua realização ofende o princípio da busca da verdade material, subalternizando-o a uma ideia de celeridade que não serve in casu qualquer verdadeiro propósito, e injustificadamente coarta a legítima e útil obtenção de prova dos factos que importam à qualificação da insolvência.

9ª Ao decidir diversamente fez o Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do disposto no disposto nos artigos 411.º, 436.º, nºs 1 e 2 e 526.º, n.º 1, do CPC, ex vi do disposto no artigo 17.º do CIRE, e, bem assim, do artigo 11.º deste último diploma.

10ª Devendo ser dado integral provimento ao presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser revogado o Despacho recorrido na parte em que rejeitou as diligências de apuramento da morada da testemunha (…), e substituído por outro que as admita, com todas as consequências legais.

Termos em que,

Deve ser dado integral provimento ao presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser revogado o Despacho recorrido, na parte em que rejeitou as diligências de apuramento da morada da testemunha (…), e substituído por outro que as admita, tal como requeridas pelas ora recorrentes, com todas as legais consequências.

Assim decidindo farão Vossas Excelências justiça.


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A questão que importa decidir é a de saber se, tendo uma testemunha sido indicada pela parte, muito após o decurso do prazo para a sua indicação, deve o tribunal esgotar à outrance as diligências para a sua localização, no âmbito de um incidente de qualificação de insolvência.
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A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório inicial.
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Conhecendo.
A questão colocada pelas recorrentes prende-se com saber se o dever de exercer o princípio do inquisitório pelo tribunal (artigos 411.º do CPC e 11.º do CIRE) é ilimitado ou se sofre alguma restrição no incidente de qualificação da insolvência (artigo 188.º do CIRE).
O artigo 11.º do CIRE prevê que, no processo de insolvência incluindo a sua qualificação, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes, o que inclui o poder de o tribunal investigar livremente e recolher as provas e informações que entenda convenientes, tal como em sede de jurisdição voluntária (artigo 986.º/2, do CPC).
Assim sendo, este poder/dever de investigar conferido ao juiz é ainda mais dilatado do que o previsto no artigo 411.º do CPC.
Mas este princípio enfrenta algumas limitações no âmbito do processo de insolvência e da sua qualificação, sendo uma delas a resultante dos prazos muitos apertados legalmente impostos ao juiz, bastando conferir os que se indicam no artigo 186.º do CIRE.
Deve o incidente ser proposto até 15 dias após a realização da assembleia de credores e apreciarão do relatório do administrador; o juiz tem 10 dias para declarar aberto o incidente; o administrador deve apresentar relatório se não for o requerente, em 20 dias; o Ministério Público pronuncia-se em 10 dias; o juiz decido logo, se os pareceres forem no sentido de classificar a insolvência como fortuita; caso contrário, os possíveis afetados são notificados para se oporem em 15 dias, ao que podem responder o administrador e o MP em 10 dias.
Para além disso, todo o processo de insolvência e seus incidentes estão sujeitos à urgência a que alude o artigo 9.º do CIRE.
Logo, é no confronto e ponderação de todos estes interesses que deve ser encontrada a solução a dar à divergência de entendimentos.
Sobre a questão Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª Ed., pág. 119, em anotação ao artigo 11º, afirmam que: “O exercício do inquisitório, tal como permitido neste artigo, não pode, em caso algum, ser pretexto para o tribunal não cumprir os prazos que lhe estão assinados e, por conseguinte, o seu exercício deve ser prescindido quando dele decorra atraso processual, vista a primazia da celeridade como objetivo nuclear da lei.”
É o caso dos autos.
Como consta do despacho em crise, o tribunal a quo salientou que estava no âmbito de um incidente de qualificação da insolvência, onde incumbe às partes oferecem logo as provas no requerimento inicial (artigo 186.º do CIRE).
Não obstante, só na audiência de julgamento as requerentes do incidente indicaram uma testemunha que teria conhecimento de factos relevantes para a decisão – saber a quem havia sido adquirido um imóvel – foi com este argumento que o tribunal aceitou a inquirição da testemunha, apesar de estar já determinado que o dito imóvel havia pertencido sucessivamente a várias sociedades.
Realizadas várias diligências para a inquirição apurou-se que a testemunha não residia no domicílio indicado no nosso país, mas que se encontraria em lugar desconhecido da Suíça.
Ora, assim desenhada a situação com que o tribunal a quo foi confrontado, o indeferimento para o desenvolvimento de novas e incertas diligências para a localização da testemunha e a sua inquirição em julgamento, não poderia ser evitado.
O evidente perigo de protelar a decisão final do incidente de qualificação da insolvência é evidente, sendo que mesmo em caso de localização do domicílio da testemunha na Suíça, era incerto que a mesma viesse a ser efetivamente contactada e que o depoimento fosse obtido.
Basta atentar na forma ineficaz como funciona a cooperação judiciária internacional.
O que nos leva a ponderar e considerar que, no caso concreto, se sobrepõe a urgência na tramitação do incidente, em contraponto à produção de uma prova incerta e não essencial – porque já constitui “acquis” processual que o imóvel pertenceu sucessivamente a várias sociedades –, como bem decidiu o tribunal a quo.
A apelação é, pois, improcedente pelo que o despacho deve ser confirmado.
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Sumário:

(…)


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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma o despacho recorrido.

Custas pelas recorrentes – artigo 527.º do CPC.
Notifique.

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Évora, 02-03-2023

José Manuel Barata (relator)

Cristina Dá Mesquita

Rui Machado e Moura