Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2737/19.1T8FAR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: PEDIDOS ILÍQUIDOS
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- Formulado um pedido ilíquido o juiz não pode, sob pena de nulidade da decisão, liquidá-lo oficiosamente.
II - Atua com abuso de direito o preterido em concurso público de aquisição de serviços de preparação e pilotagem de helicópteros do Estado para o combate a incêndios que impugnou o ato de adjudicação do contrato, com a sua automática suspensão, a cerca de dois meses do início do verão, sem que daí lhe pudesse advir qualquer vantagem imediata.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2737/19.1T8FAR.E1


Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. (…) – Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A., com sede no Aeródromo de Cascais, Tires, Cascais, instaurou contra (…) – Helicópteros, Operações, Atividades e Serviços Aéreos, Lda., com sede na Casa da (…), Estrada de (…), Almancil, ação declarativa com processo comum.

Alegou, em resumo, que no termo de um concurso público em que a proposta da R. ficou classificada em terceiro lugar, a proposta da A. foi graduada em primeiro lugar e obteve a adjudicação do contrato de aquisição de “serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e de manutenção de aeronaves AS350 B3 do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar” com a finalidade de cumprir as missões relacionadas com o combate a incêndios florestais, transporte de doentes e equipas médicas.

A A. assinou o contrato com o Estado em 16/4/2019 e, nesta data, a Ré intentou nos tribunais administrativos e fiscais uma ação com vista à anulação do ato de adjudicação o que determinou, por imperativos legais, a suspensão automática do contrato assinado, a qual durou até 7/6/2019.

Ao intentar a ação de anulação, a Ré agiu com abuso de direito, uma vez que visando a ação exclusivamente o ato de adjudicação do contrato, num concurso em que a Ré ocupou o terceiro lugar, a procedência da ação não lhe traria qualquer vantagem imediata, apenas criando prejuízos à A.

O atraso no início do período operacional – entre 27/6/2019 e 18/8/2019 – ocasionou que a A não recebesse do Estado a quantia de € 220.810,20 a título de custo pela disponibilidade diária de três aeronaves e um prejuízo decorrente das horas de voo que deixou de realizar à razão de € 832,00 por hora.

Concluiu pedindo a condenação da Ré, a título de indemnização, no pagamento da quantia de € 220.810,20, acrescida de juros, pelo prejuízo decorrente do não recebimento do preço da disponibilização de três aeronaves e na quantia a liquidar em execução de sentença, referente a horas de voo que deixou de realizar.

Contestou a Ré argumentando, em resumo, que ao intentar a ação de anulação do ato de adjudicação do contrato não praticou qualquer ato ilícito, agiu de boa-fé e no exercício constitucional do acesso ao direito e à justiça e que, de qualquer forma, as aeronaves só ficaram disponíveis para o combate a incêndios em 17/8/2019, pelo que a A. não sofreu nenhum dos prejuízos que alega.

Ao reclamar prejuízos pela operacionalidade das aeronaves entre 27/6/2019 e 18/8/2019, a A. formula pretensão cuja falta de fundamento não ignora, uma vez que não desconhece que as aeronaves se encontraram impossibilitadas de operar, por falta de certificação da ANAC, até 17/8/2019.

Concluiu pela improcedência da ação e pela condenação da A. como litigante de má-fé.

A A. respondeu por forma a concluir pela inexistência de litigância de má-fé da sua parte e a pedir a condenação da Ré – e do seu Ilustre mandatário – como litigantes de má-fé.


2. Foi proferido despacho que afirmou a validade e regularidade da instância, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença em cujo dispositivo designadamente se consignou:
Nesta conformidade decido julgar a ação procedente, por provada e, por conseguinte, decido:

A) Condenar a ré no pagamento à autora da quantia que, em função da equidade, se fixa em € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), sobre a qual vencerão juros à taxa legal, a contar da presente decisão, até integral e efetivo pagamento;

B) Absolver a ré do pedido de condenação como litigante de má-fé”.


3. Recurso
A Ré recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“I. Os pontos 24, 27, 28 e 37 dos factos dados como provados mostram-se incorretamente julgados, devendo os pontos 28 e 37 ser totalmente dados como não provados e os pontos 24 e 27 serem dados parcialmente como provados e parcialmente como não provados.

II. O facto 28 dos factos provados “as aeronaves poderiam estar aptas a funcionar aproximadamente a partir do dia 27 de junho de 2019”, deve ser dado como não provado por absoluta falta de prova produzida que o confirme e ainda por tal matéria ser contrariada pelo contrato celebrado entre a Autora e Força Aérea (cláusula 4ª e 40ª, nº 1), teor do documento n.º 2 junto com a contestação e documento n.º 1 agora junto com as alegações.

III. O facto 37 dos factos provados “no período em causa seria previsível que a Autora executasse entre 120 e 200 horas de voo por mês, dependendo das missões executadas”, deve ser dado como não provado por tal o impor a circunstância de a única testemunha que a refere, (…), não fundamentar minimamente a sua afirmação conforme se pode verificar da transcrita passagem do seu depoimento gravado no ficheiro áudio acima referido, e ainda por o impor a informação da Força Aérea constante do documento n.º 2 junto com as presentes alegações.

IV. O facto 24 dos factos provados deve manter-se como provado apenas na parte que refere “nesse dia o referido acordo voltou a produzir efeitos”, dando-se como não provado a parte que refere “quando deveria ter iniciado a sua execução no dia 1 de Maio de 2019”, por tal o impor não só o contrato celebrado entre a Autora e a Força Aérea (cláusulas 4ª e 40ª, nº 1) mas também as transcritas passagens do depoimento da testemunha (…) prestadas em julgamento e gravadas no ficheiro áudio já referido.

V. O facto 27 dos factos provados deve manter-se como provado apenas na parte que refere “o auto de consignação veio a ser assinado em 14 de junho de 2019” dando-se como não provado na parte que refere “quando poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de Abril de 2019 (uma semana após a assinatura do acordo) ”, por tal o impor a prova documental produzida, teor das clausulas 4ª e 40ª, nº 1 do contrato celebrado entre a Autora e a Força Aérea que refere que este apenas entra em vigor no dia seguinte ao da emissão do visto do TC, o teor do documento n.º 2 junto com a contestação e o teor do documento n.º 1, junto com as presentes alegações que comprova que o visto do TC foi emitido em 30 de maio de 2019, conjugado com as passagens transcritas do depoimento da testemunha (…), prestado em julgamento e gravado no ficheiro áudio já referido.

VI. O facto constante da alínea b) dos factos julgados não provados “o contrato apenas poderia ter inicio após o (visto) prévio do Tribunal de Contas, o qual apenas foi concedido no dia 30 de maio de 2019” deve ser integralmente dado como provado por tal o impor o teor da cláusula 40ª, nº 1 do contrato celebrado entre a Autora e a Força Aérea (doc. n.º 1 da PI) ao referir que “ o contrato entra em vigor no dia seguinte á emissão do visto prévio do TC”, do teor do doc. n.º 2 junto com a contestação e da informação do TC que constitui o doc. n.º 1 junto com o presente recurso os quais comprovam que o visto foi emitido em 30 de maio de 2019, conjugadamente ainda com as transcrições das declarações de parte confessórias prestadas pela Autora em julgamento e gravadas no respetivo ficheiro áudio já referido.

VII. Não se mostram preenchidos os requisitos para a efetivação da responsabilidade civil extracontratual prevista no artigo 483.º do CC, por não se verificar a prática de facto ilícito, a sua imputação ao agente a título de culpa nem tão pouco se verificar nexo de casualidade entre o alegado facto danoso e os invocados danos.

VIII. A Ré ao intentar a ação 279/19.4BELLE praticou um ato lícito por ser a expressão do direito de acesso aos tribunais consagrado quer constitucionalmente quer na legislação adjetiva e atuou de boa-fé, pelo que o exercício do seu direito não pode ter-se por abusivo.

IX. O comportamento das partes intervenientes em processo judicial, para efeitos de verificação da existência de má-fé é apreciado globalmente e em todas as suas vertentes, oficiosamente pelo julgador, que se detetar comportamento de má-fé em qualquer das vertentes referidas no artigo 542.º, n.º 2, do CPC, deve sempre condenar essa parte em multa, conforme refere o n.º 1 da citada disposição legal e eventualmente em indeminização à parte contrária se esta o requerer naquele processo.

X. Toda a questão da má-fé processual, incluindo a eventual indeminização que por ela deva haver lugar a favor da parte que a requerer, tem que ser decidida nesse próprio processo, atento o princípio da plenitude do processo para decidir todas as questões dele emergentes, sendo a questão da má-fé uma delas.

XI. O âmbito ressarcitório dos danos causados por condutas processuais abusivas de outra parte (má fé) ocorre necessariamente dentro do processo em que se verifica tendo a indeminização conteúdo específico previsto no artigo 543.º do CPC.

XII. No processo n.º 279/19.4BELLE em que a questão indemnizatória poderia eventualmente ser discutida, o comportamento da ora Autora foi devidamente analisado e aí foi decidido que o mesmo não preenchia qualquer das situações previstas no artigo 542.º do CPC (má fé).

XIII. Fora dos expressos casos admitidos pela lei (responsabilidade objetiva) a efetivação da responsabilidade depende sempre da imputação do facto ao agente a título de culpa o que não se mostra provado.

XIV. Entre a propositura da referida ação n.º 279/19.4BELLE e os alegados danos sofridos pela Autora não se verifica nexo de causalidade.

XV. O contrato celebrado entre a Autora e a Força Aérea apenas entrava em vigor no dia seguinte ao da emissão do visto pelo TC (cláusula 40ª, nº 1 do contrato – facto provado 16).

XVI. Para saber se a propositura da ação n.º 279/19.4BELLE atrasou a entrada em vigor do aludido contrato e necessário saber primeiro em que data o mesmo entraria em vigor se não fosse a propositura da ação.

XVII. A data da emissão do visto pelo TC é assim facto constitutivo do alegado direito da Autora, pois, só por referência a tal data se poderá saber quando entraria em vigor o aludido contrato.

XVIII. A recorrente alegou (e crê que provou) que o visto do TC foi emitido em 30 de maio de 2019, razão pela qual no presente recurso impugnou o julgamento da matéria de facto pretendendo que tal facto seja dado como provado.

XIX. Sem tal facto, (data da emissão do visto do TC) verifica-se manifesta insuficiência da matéria de facto impondo-se ao Tribunal ad quem, determinar a sua ampliação para o efeito (artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC).

XX. A suspensão dos efeitos do ato impugnado em consequência da propositura da referida ação pelo ora Ré, deveria ter sido decidida e levantada, muito antes de 31 de maio de 2019 (data da entrada em vigor do contrato por efeito da emissão do visto do TC), se os prazos processuais tivessem sido cumpridos desde a data de 16 de abril de 2019, em que a referida ação deu entrada em juízo.

XXI. Com efeito, desde o dia 16 de abril de 2019 até ao dia 31 de maio de 2019 decorreram 45 dias, tempo muito mais do que suficiente para que o tribunal procedesse á citação da demandada Força Aérea, esta requeresse o levantamento da suspensão, a ora Ré pudesse responder e a Meritíssima Juiz proferir decisão, atentos os prazos para o efeito previstos no artigo 103.º-A do CPTA que todos somados não excedem 25 dias (trata-se de processo urgente).

XXII. O facto de os prazos previstos no artigo 103.º-A do CPTA não terem sido cumpridos e o facto de a Autora só concluir o aprontamento das aeronaves em 65 dias, quando para o efeito estavam previstos contratualmente 31 dias, não lhe pode ser imputável à recorrente.

XXIII. Apesar de não ser imputável à Ré, o facto é que por os prazos previstos no artigo 103.º-A do CPTA não terem sido cumpridos o contrato que a Autora celebrou com a Força Aérea apenas iniciou a produção dos seus efeitos em 7 de junho de 2019 (data do levantamento da suspensão) quando deveria produzir os seus efeitos em 31 de Maio de 2019 (dia seguinte á emissão do visto do TC), o que se traduziu efetivamente num atraso objetivo de 6 dias e nada mais.

XXIV. O douto tribunal a quo ao decidir condenar a Ré em valor superior ao pedido pela Autora e ao pronunciar-se sobre o nº de horas que a Autora poderia ter voado, quando esta pediu que esta situação apenas fosse apreciada em sede de liquidação de sentença, violou o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), o que determina a nulidade da douta sentença recorrida.

XXV. O douto tribunal a quo ao decidir “que o número médio de horas de voo, de cada aeronave por mês se situava nas 160 h…”, quando o facto em que se fundamenta refere “120 a 200 h de voo (para todos as aeronaves)” violou o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, por constituir flagrante contradição entre a decisão e os seus fundamentos, o que também determina a nulidade da sentença.

XXVI. No valor indemnizatório “custo da hora de voo” (€ 832,00) não foram tomados em conta os gastos que a Autora para o efeito tinha que fazer designadamente com combustíveis, manutenção e assistência e impostos e que não fez por não ter voado.

XXVII. O valor de € 832,00 por hora é o valor que o Estado paga por cada hora de voo, sendo certo que nem todo esse valor é lucro, havendo que dele deduzir todas as despesas inerentes.

XXVIII. Durante o período de aprontamento a Autora recebeu o valor contratualmente fixado de € 46.450,00 (facto provado 15), período que estava contratualmente fixado em 31 dias (facto provado 14), não sendo imputável à Ré a circunstância de tal período ter demorado 65 dias.

XXIX. O pagamento “custo de disponibilidade operacional” diária por aeronave, bem como o preço da hora de voo só teriam lugar após o início do período operacional, que apenas se iniciou em 18 de agosto de 2019 (cfr. factos provados 30 e 33).

XXX. A condenação da Ré em pagamento do valor correspondente à disponibilidade operacional durante o período de aprontamento corresponderia a uma duplicação do recebimento de tais valores com o recebimento do estado dos valores devidos no período de aprontamento.

XXXI. Foram violadas as disposições conjugadas dos artigos 483.º do CC, 45.º, n.º 4, da Lei 98/97 e ainda dos artigos 5.º, 531.º, 542.º, 543.º, 609.º e 615.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), todos do CPC.

Nestes termos e nos mais de direito aplicável a suprir doutamente por Vossas Excelências deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por uma outra que absolva a Ré do pedido e, quando assim se não entenda, sempre a douta sentença recorrida deverá ser anulada com o que se fará a costumada JUSTIÇA.!!!”

Respondeu a A. por forma a defender a improcedência do recurso.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
Tendo em conta que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, cumpre apreciar (i) se a sentença é nula, (ii) a impugnação da decisão de facto, (iii) se a Recorrente praticou um facto ilícito, (iii) se a Recorrida demonstra os prejuízos e se a Recorrida se mostra obrigada a repará-los.
Antes, porém, ocorre a seguinte questão prévia:
Com as alegações do recurso a Recorrente requereu a junção, como documento, de uma impressão do Gmail com o seguinte título ou assunto: “Urgente-Visto do TC emitido em 30/5/2019”.

Apreciando.

“As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância” (artigo 651.º, n.º 1, do CPC).

“Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento” (artigo 425.º do CPC).

A junção da prova documental deve ocorrer, por regra, na 1ª instância, excecionando-se a esta regra duas situações, em caso de recurso:

- os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão da causa;

- os documentos cuja junção se haja tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, com exclusão dos documentos destinados à prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova e dos documentos cuja junção tenha por pretexto a mera surpresa quanto ao resultado[1].
Argumenta a Recorrente que a junção do documento referente à data do visto do Tribunal de Contas “só se tornou necessário ser junto ao processo em virtude do julgamento do processo em 1ª instância que, neste concreto ponto deu como não provado que o “visto do Tribunal de Contas foi concedido em 30 de Maio de 2019”.
Argumento que parte da ideia que a falta de prova de um determinado facto em 1ª instância é motivo bastante para junção de documentos na fase do recurso com a vista a alcançar a prova do facto não provado.
Do exposto decorre que não é assim.
Os documentos cuja junção se haja tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância não incluem aqueles que se destinam à prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, como vem a ser o caso.
A questão da data do visto do tribunal de contas foi introduzida na contestação pela Recorrente com vista a demonstrar que o contrato se iniciou em momento posterior à data que dele consta como a sua data de início, a Recorrente juntou então um documento destinado à sua prova e a matéria foi objeto dos depoimentos produzidos em 1ª instância.
A data do visto do Tribunal de Contas constitui um facto que a Recorrente sabia estar sujeito a prova antes de proferida a sentença e não se demonstra, nem se alega, que a apresentação do documento, cuja junção ora se requer, não tenha sido possível até ao encerramento da discussão da causa.
Face ao exposto não se admite a junção aos autos do referido documento, considerando-se o mesmo como não junto ou não escrito.

III. Fundamentação
1. Nulidades da sentença

1.1. Se a sentença é nula por violação do disposto nas alíneas d) e e) do nº 1, do art.º 615.º do CPC

Considera a Recorrente que a sentença, ao condenar em valor superior ao pedido e ao pronunciar-se sobre o número de horas que a Autora poderia ter voado, quando esta pediu que esta situação apenas fosse apreciada em sede de liquidação de sentença, violou o disposto no art.º 615.º, n.º 1, als. d) e e).

Segundo as referidas disposições, a sentença é nula quando o “juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” e quando o juiz “condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.

A primeira das enunciadas nulidades reporta-se aos limites do conhecimento, ou seja, na parte que releva, o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigo 608.º, n.º 2, 2ª parte, do CPC); a segunda reporta-se aos limites da condenação e segundo ela, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (artigo 609.º, n.º 1, do CPC).

No caso, a ação tem por fundamento a responsabilidade civil por factos ilícitos e a indemnização peticionada pela Recorrida comportava uma parte líquida (€ 220.810,00 para ressarcimento de prejuízos decorrente do não recebimento do preço da disponibilidade operacional de três aeronaves durante 52 dias) e uma parte ilíquida, uma quantia, a liquidar, para ressarcimento de prejuízos decorrentes de horas de voo que a Recorrente, nos termos do contrato celebrado com o Estado, deveria ter realizado (e recebido o respetivo preço) e não realizou.

A decisão recorrida depois de quantificar a primeira parte da indemnização (custo da disponibilidade operacional de três aeronaves durante 52 dias) em € 220.740,00 fixou em € 400.000,00, por justo e equitativo, o montante (global) da indemnização, o que significa que liquidou a parte da indemnização que permanecia ilíquida em € 179.260,00 (400.000,00 - 220.740,00).

Ao conhecer do pedido de indemnização, a sentença recorrida apreciou uma questão suscitada pela Recorrente e, neste sentido, não se poderá concluiu que excedeu pronúncia, ou seja, que conheceu de questões de que não podia conhecer.

A sentença não excedeu, a nosso ver, os limites do conhecimento e, por esta razão, não é nula; outro tanto, não temos por seguro quanto aos limites da condenação.

A lei permite a formulação de pedidos genéricos, ou seja, de pedidos ilíquidos por contraposição a pedidos líquidos ou específicos[2] e permite-o designadamente nas situações em que “ainda não é possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito”, ou nos casos em que o lesado faça uso da faculdade de não “indicar a quantia exata em que avalia os danos” (artigo 556.º, n.º 1, alínea b), do CPC e 569.º do Código Civil), mas não dispensa a parte de liquidar o pedido genérico que formula.

Referindo-se o pedido às consequências de um facto ilícito, como é o caso, o autor deduz, sendo possível, o incidente de liquidação para tornar líquido o pedido genérico antes de começar a discussão da causa, ou depois de proferida sentença de condenação genérica (artigos 556.º, n.º 2 e 358.º, nºs 1 e 2, ambos do CPC).

Formulado um pedido ilíquido, o ónus da sua liquidação, incumbe ao seu autor, liquidação cuja apreciação pode ter lugar na sentença ou depois de proferida sentença se esta houver condenado no que vier a ser liquidado (artigo 629.º, n.º 2, do CPC) mas deverá, em qualquer caso, observar os termos do incidente previsto nos artigos 358.º a 360.º, onde ressuma, na espécie, a especificação dos danos derivados do factos ilícito, a formulação de um pedido em quantia certa e a faculdade da parte contrária contraditar os danos especificados e o quantum do pedido.

O juiz não pode, sob pena de violação do princípio do dispositivo, na dimensão da conformação do objeto do processo, substituir-se ao autor do pedido ilíquido e liquidá-lo; pode condenar no que vier a ser liquidado em caso de pedido líquido, quando não disponha de elementos para quantificar os danos que tem por provados e proferir igual condenação em caso de pedido genérico em que, não foi possível ao autor quantificar os danos até à sentença, mas não lhe é licito substituir-se ao autor na liquidação do pedido ilíquido ou genérico que este não liquidou.

Formulado um pedido ilíquido, o tribunal deve proferir uma condenação ilíquida, salvo se o autor, fazendo uso do incidente de liquidação proceder à respetiva liquidação (artigo 378.º, n.º 1, do C.P.C.); proferindo o tribunal uma condenação líquida, sem que o autor do pedido haja procedido à sua liquidação, a sentença condena em objeto diverso do pedido, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), ex vi do disposto no artigo 609.º, n.º 1, ambos do CPC.

“A condenação ilíquida, se não pedida, pode surgir "ex officio", mas não é possível a situação inversa, sob pena de comissão da nulidade da alínea e) do artigo 668.º CPC.”[3]

“(…) sendo formulado um pedido ilíquido, o tribunal não pode, sem violação do princípio do pedido, oficiosamente condenar num pedido líquido, invocando para tanto o disposto no nº 3 do artigo 566.º do Código Civil. De facto, este normativo está talhado para os casos em que foi formulado um pedido líquido e a prova produzida não permite averiguar o valor exato dos danos, permitindo que o tribunal julgue equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

(…)

Quando é deduzido um pedido ilíquido, o tribunal deve proferir uma condenação ilíquida, salvo se o autor, fazendo uso do incidente de liquidação proceder à liquidação do pedido genérico (artigo 378.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Se o lesado assim não proceder e o tribunal proceder à liquidação oficiosa de pretensão ilíquida, este condenará em objeto diverso do se pediu, assim violando o disposto no n.º 1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil e proferindo decisão nula por condenação em objeto diverso do pedido ex vi artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil conjugado com o n.º 1 do citado artigo 609.º do mesmo diploma legal (…).”[4]

Na parte em que condenou a Recorrente no pagamento de uma indemnização no montante de € 179.190,00, para ressarcimento de prejuízos decorrentes de horas de voo que a Recorrida deveria ter realizado e não realizou, quantificando o pedido genérico que aquela não liquidou, a sentença deverá ser anulada e, reconhecida a existência dos prejuízos, questão a que infra se tornará, a sua liquidação deverá ocorrer no incidente subsequente à condenação.

O recurso procede quanto a esta questão.

1.2. Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão

Considera a Recorrente que o tribunal a quo ao decidir “que o número médio de horas de voo, de cada aeronave por mês se situava nas 160 h…”, quando o facto em que se fundamenta refere “120 a 200 h de voo (para todos as aeronaves)” violou o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, por constituir flagrante contradição entre a decisão e os seus fundamentos.
A nulidade suscitada reporta-se ao segmento da sentença que liquidou o pedido genérico, ou seja, que quantificou em € 179.260,00 a quantia, a liquidar, para ressarcimento de prejuízos decorrentes de horas de voo que a Recorrente não realizou.
Declarada nula a sentença na parte em que quantificou o pedido ilíquido formulado pela Recorrida, a apreciação da nulidade suscitada mostra-se prejudicada, uma vez que independente da sua procedência ou improcedência a solução antes alcançada – a nulidade da sentença na parte em que liquidou o pedido genérico – não se altera.
O conhecimento da nulidade suscitada – contradição entre os fundamentos e a decisão – mostra-se prejudicado pela solução dada à nulidade decorrente da condenação em objeto diverso do pedido, razão pela qual dela não se conhece (artigo 608.º, n.º 2, 1ª parte, do CPC).

2. Factos.
2.1. A decisão recorrida julgou assim os factos:
Provado:
1. A autora é uma sociedade comercial cujo objeto consiste na exploração e comercialização de trabalhos aéreos e na indústria do transporte aéreo não regular em Portugal ou no estrangeiro; o desenvolvimento de comércio de representações, importação e exportação de meios aéreos, marítimos e terrestres, suas peças e acessórios, desmontados e completos, bem como a prestação dos respetivos serviços de manutenção; escola de cursos de piloto de aeronaves, escola para cursos de pilotos em qualificação tipo, aulas de manutenção (de licenças), instrução teórica e prática de diversos tipos de aeronaves, e quaisquer outras atividades aeronáuticas permitidas por lei.

2. A ré é uma sociedade comercial que desenvolve a sua atividade no ramo da aviação.

3. No âmbito do contrato de prestação de serviços de operação e manutenção das aeronaves do Estado anteriormente em vigor a autora assumiu em 20 de novembro de 2015, perante a Autoridade Nacional de Proteção Civil (doravante, ANPC), o compromisso de, até 1 de maio de 2016 proceder à transferência da propriedade da aeronave (…) para a ANPC;

4. Na data da celebração do referido compromisso, a aeronave já não pertencia à (…) e estava registada desde 16/12/2012 a favor da Empresa Nova (…), com sede em Paris;

5. Em 16 de janeiro de 2019 a autora transferiu para o Estado a aeronave (…), sendo que só após tal transferência poderia ser encetado o procedimento pré-contratual relativo ao novo concurso de operação, manutenção e gestão da aeronavegabilidade das aeronaves do Estado.

6. Por despacho de 23 de janeiro de 2019, exarado na Informação n.º 01397/19, com a mesma data, do Gabinete Coordenador de Missão no Âmbito dos Incêndios Rurais, o General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea aprovou as peças do procedimento e nomeou o júri do procedimento pré-contratual referente ao Concurso Público n.º (…), para aquisição dos serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e manutenção das aeronaves AS350 B3, da frota própria do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar, sendo publicado em Diário da República, Série II, n.º 16, Parte L, o anúncio do procedimento concursal sob o n.º …/2019, com a mesma data.

7. Até ao dia 22 de fevereiro de 2019, pelas 23h:00m – data limite para entrega das propostas – apresentaram proposta:

(i) (…) – Helicópteros, Operações Atividades e Serviços Aéreos, Lda., ora Requerida,

(ii) (…) (…) (…) Services Portugal, Unipessoal, Lda.,

(iii) (…) Helicópteros, S.A.,

(iv) (…) – Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A., aqui Requerente; e

(v) (…) – Aviação, Lda.

8. Todas as propostas referidas na alínea anterior foram admitidas, tendo o júri procedido à sua análise e avaliação, em resultado das quais ficaram as mesmas ordenadas da seguinte forma:

1.º (…) – Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A.;

2.º (…) Helicópteros, S.A.;

3.º (…) – Helicópteros, Operações Atividades e Serviços Aéreos, Lda.;

4.º (…) (…) (…) Services Portugal, Unipessoal, Lda.; e

5.º (…) – Aviação, Lda.

9. Tendo sido dada oportunidade para os concorrentes se pronunciarem, o que a ré fez.

10. Em 29 de março de 2019, o júri elaborou o Relatório Final que manteve a ordenação das propostas constante do Relatório Preliminar.

11. Por despacho de 1 de abril de 2019, exarado na Informação n.º 5588/19, de 29 de março de 2019, do Gabinete Coordenador de Missão no Âmbito dos Incêndios Rurais, o General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea autorizou a adjudicação da aquisição dos serviços que constituíram o objeto do Concurso Público n.º (…) à concorrente (…).

12. Tais serviços enquadravam-se no dispositivo de meios aéreos para combate aos incêndios florestais e com a Diretiva Operacional Nacional n.º 2 (DECIR), de 2 de abril de 2019, segundo a qual “o DECIR organiza-se e funciona permanentemente, sendo reforçado, em conformidade com os níveis de empenhamento operacional em função dos níveis de probabilidade de ocorrência de incêndios (…)”.

13. Nessa sequência, em 16 de abril de 2019, foi celebrado entre o Estado Português e a (…), o acordo denominado “contrato (…)”, referente à aquisição dos serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e manutenção de três aeronaves AS350 B3 da frota própria do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar.

14. De acordo com a cláusula 4.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“1 – Os serviços objeto do CONTRATO devem ser assegurados e executados pelo ADJUDICATÁRIO desde o dia 1 de maio de 2019 até ao dia 31 de dezembro de 2022, sem prejuízo das obrigações acessórias que devam perdurar para além da cessação do CONTRATO.

2 – O prazo de execução contratual referido no número anterior compreende:

a) O PERÍODO DE APRONTAMENTO das AERONAVES a realizar no prazo máximo de 31 dias; e,

b) O PERÍODO OPERACIONAL que se inicia após o PERÍODO DE APRONTAMENTO e validação por parte da ENTIDADE ADJUDICANTE da documentação prevista na cláusula 52.ª, até 31 de dezembro de 2022”.

15. De acordo com a cláusula 15.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“1 – O preço contratual é composto pelo somatório dos seguintes preços:

a) O preço de € 46.450,00 (quarenta e seis mil, quatrocentos e cinquenta euros) acrescido de imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo um total de € 57.133,50 (cinquenta e sete mil, cento e trinta e três euros e cinquenta cêntimos), correspondente aos serviços compreendidos no PERIODO DE APRONTAMENTO;

b) O preço máximo de € 8.808.300,00 (oito milhões, oitocentos e oito mil e trezentos euros) acrescido do imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo o total de € 10.834.209,00 (dez milhões, oitocentos e trinta e quatro mil, duzentos e nove euros) correspondente aos serviços compreendidos no PERÍODO OPERACIONAL que compreende:

i) O preço do custo da HORA DE VOO de € 832,00 (oitocentos e trinta e dois euros), acrescido do imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo um total de € 1.023,36 (mil e vinte e três euros e trinta e seis cêntimos), para a execução no máximo de 3.750 HORAS DE VOO, a realizar por 3 (três) AERONAVES;

ii) O preço do custo da disponibilidade operacional diária por AERONAVE € 1.415,00 (mil e quatrocentos e quinze euros), acrescido do imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo um total de € 1.740,45 (mil, setecentos e quarenta euros e quarenta e cinco cêntimos)”.

16. De acordo com o n.º 1, da cláusula 40.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“O CONTRATO entra em vigor no dia seguinte à emissão de visto prévio pelo Tribunal de Contas, nos termos previstos no n.º 4, do artigo 45.º, da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto.”

17. De acordo com a cláusula 56.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“1 – O PERÍODO DE APRONTAMENTO inicia-se após a assinatura do auto de consignação das AERONAVES e do respetivo MATERIAL DE APOIO OPERACIONAL COMPLEMENTAR ao ADJUDICATÁRIO termina com a validação da documentação identificada no n.º 2 da Cláusula 57ª pela ENTIDADE ADJUDICANTE.

2 – A conclusão do PERÍODO DE APRONTAMENTO apenas ocorre quando a ENTIDADE ADJUDICANTE notificar o ADJUDICATÁRIO de que validou a documentação prevista na cláusula seguinte.”

18. De acordo com a cláusula 57.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“1 – Os serviços a executar pelo ADJUDICATÁRIO necessários ao aprontamento das AERONAVES são, nomeadamente, os seguintes:

a) Despreservação das AERONAVES;

b) Execução das ações de MANUTENÇÃO devidas (…);

c) Cumprimento das diretivas de aeronavegabilidade (AD´s), boletins de serviço (SB´s) e modificações, que os respetivos fabricantes, ele próprio ou as autoridades aeronáuticas competentes, vierem a considerar mandatórios ou obrigatórios para garantir a segurança do voo ou que resultem de alteração legal ou regulamentar imposta pela autoridade primária de certificação ou qualquer outra autoridade aeronáutica (…);

d) Renovação, junto da Autoridade Aeronáutica competente, dos Certificados de Aeronavegabilidade das AERONAVES.

2 – Concluídos os serviços elencados no número anterior, o ADJUDICATÁRIO deve apresentar à ENTIDADE ADJUDICANTE a seguinte documentação:

a) Certificados de Aeronavegabilidade das AERONAVES;

b) Autorização especial identificada na Cláusula n.º 45;

c) Certificações da autoridade aeronáutica competente para a gestão da aeronavegabilidade permanente e manutenção, de acordo com as Cláusulas 46.ª e 47.ª;

d) Documentação elaborada pelo ADJUDICTÁRIO e submetida à autoridade aeronáutica competente no âmbito da renovação dos certificados de aeronavegabilidade das AERONAVES

19. Sucede que, em 16 de abril de 2019, a ré intentou contra a Força Aérea no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé uma ação de contencioso pré-contratual de impugnação do ato de adjudicação à contrainteressada … (ora autora), a qual correu os seus termos sob o n.º 279/19.4BELLE, pedindo, a final, a anulação do ato de adjudicação, a exclusão da concorrente (…) e a subsequente classificação dos candidatos em conformidade.

20. Em 22 de abril de 2019, a Força Aérea Portuguesa foi citada no âmbito da ação de contencioso pré-contratual a que se refere o ponto anterior.

21. Com o efeito suspensivo automático ao ato impugnado, o acordo assinado ficou imediatamente suspenso, ficando os contraentes impossibilitados de receber as aeronaves e iniciar as tarefas de preparação das aeronaves para as operações de combate aos incêndios previstas no contrato.

22. Por apenso ao referido processo, a Força Aérea deduziu incidente de levantamento do efeito suspensivo automático previsto no n.º 1, do artigo 103.º-A, do C.P.T.A.

23. No dia 7 de junho de 2019, foi proferida decisão no âmbito do referido apenso, onde se pode ler:

“(…)

Ora, a manutenção da paralisação da execução do contrato (ou dos efeitos da respetiva adjudicação), relativamente à prestação de serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e manutenção das aeronaves AS350 B3, e do respetivo material de apoio operacional complementar, implica necessariamente que estes helicópteros da frota do Estado fiquem parados, inclusivamente sem qualquer tipo de manutenção por tempo indeterminado, durante todo o período de tempo em que estiver a decorrer em juízo a ação de impugnação e até ao seu trânsito em julgado, que é, por natureza, imprevisível.

Além disso, o retardamento da execução do contrato faz perigar, de modo gravoso, a prossecução do interesse público levado a cabo pela Entidade Adjudicante, na salvaguarda da vida, da segurança e do património dos cidadãos e do próprio Estado, bem como na defesa do território e do meio ambiente, sobretudo na época do ano mais propícia aos incêndios (Níveis III e IV do DECIR).

(…)

Por outro lado, se atentarmos no teor da resposta da requerida (…) é evidente o défice de alegação e de prova quanto aos eventuais danos ou prejuízos, de qualquer índole, que possam para si advir em virtude do levantamento do efeito suspensivo. Note-se, aliás, que a Requerida nem sequer poderia alegar o seu interesse na realização/ execução do contrato e os proventos daí decorrentes, na medida em que o Relatório Final homologado pelo júri do concurso público ordenou-a na terceira posição.

(…)

Nos termos, e pelos fundamentos anteriormente expostos, julga-se o presente incidente de levantamento do efeito suspensivo automático totalmente procedente, nos termos do disposto no artigo 103.º-A, n.ºs 2 e 4, do CPTA, com todas as consequências legais.”.

24. Nesse dia, o referido acordo voltou a produzir os seus efeitos perante as partes signatárias, quando deveria ter iniciado a sua execução1 no dia 1 de maio de 2019.

25. Em virtude do atraso na execução do acordo, provocado pela interposição da ação pela ré, o acordo apenas voltou a produzir efeitos em período correspondente ao empenhamento REFORÇADO NÍVEL III, período no qual existe a segunda maior probabilidade de ocorrência de incêndios (de 1 a 30 de junho).

26. É da praxe aeronáutica iniciar-se a execução das atividades inerentes ao período de aprontamento das aeronaves antes do início da vigência dos contratos de prestação de serviços aeronáuticos refletindo a reconhecida importância de disponibilidade dos meios aéreos durante o período de vigência dos contratos, bem como a complexidade e vicissitudes que ocorrem durante as fases de aprontamento das naves.

27. O auto de consignação veio a ser assinado em 14 de junho de 2019, quando poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de abril de 2019 (uma semana após a assinatura do acordo).

28. As aeronaves poderiam ter estado aptas a funcionar, aproximadamente, a partir do dia 27 de junho de 2019.

29. O período de aprontamento implica a execução de um moroso processo de alteração e aditamento de documentos que são depois enviados para a ANAC para validação.

30. Podendo a ANAC exigir mais alterações e aditamentos aos documentos, o que veio a suceder.

31. Devido à complexidade dos procedimentos exigidos à autora e ao elevado número de alterações que tiveram de ser feitas, tanto ao nível da manutenção, como ao nível da gestão da aeronavegabilidade permanente.

32. De acordo com notícias publicadas no jornal “PÚBLICO” datadas de 22 de julho de 2017, o porta-voz da autora referiu-se a atraso por parte da ANAC no tratamento dos processos, à qual esta respondeu, alegando atrasos por parte da autora na entrega de documentação e considerando ser da “exclusiva responsabilidade da empresa qualquer dano emergente da não disponibilização atempada dos meios aéreos contratados com o Estado Português”.

33. A autora só em 17 de agosto de 2019 concluiu o aprontamento das aeronaves, com a obtenção da certificação da ANAC e iniciou em 18 de agosto o período da sua disponibilidade para o combate a incêndios.

34. O atraso no período de aprontamento veio a determinar o atraso no início do período operacional.

35. Deixando a autora de receber a contrapartida pelos serviços que, não fosse a ação intentada pela ré, teria prestado, designadamente, as contrapartidas referentes às horas de voo e ao custo da disponibilidade diária das aeronaves em causa.

36. Por cada dia de atraso no início do período operacional, relativo às 3 aeronaves, a autora deixou de receber o valor de € 4.246,35 (quatro mil, duzentos e quarenta e seis euros e trinta e cinco cêntimos).

37. No período em causa seria previsível que a autora executasse entre 120 a 200 horas de voo, por mês, dependendo das missões executadas.

38. Em 18 de setembro de 2019 foi proferido saneador/sentença no âmbito do processo referido em …, onde se decidiu julgar verificada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir da aí autora … (ora ré) para a propositura da ação, obstando a conhecimento do mérito da ação e dando lugar à absolvição da Força Aérea da instância, em conformidade com o disposto no artigo 89.º, n.º 2, do C.P.T.A., aplicável por força do artigo 102.º, n.º 1, do C.P.T.A..

39. Em tal sentença pode ler-se o seguinte:

“(…)

Vertendo o anteriormente exposto ao caso sub iudice, inexistem dúvidas quanto à legitimidade processual ativa da A. para a propositura da presente ação de contencioso pré-contratual, não tendo a mesma, em rigor, sequer sido posta em causa pelas Contrapartes nos termos restritos em que supra delineamos este conceito.

De facto, uma vez perspetivada a relação jurídica controvertida, tal como ela é configurada pela A. na P.I., à luz do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 30.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 1.º do CPTA, a A. é parte legítima por ser ela própria titular da relação jurídica em causa num dos seus polos, por ter visto a sua proposta apresentada no âmbito do concurso público em apreço preterida em favor da Contrainteressada (…), a qual foi adjudicada, pela Entidade Demandada, aprestação de serviços objeto de concurso público. A A. possui por isso legitimidade processual ativa para impugnar o ato de adjudicação e para formular contra a Entidade Demandada um pedido condenatório de exclusão da Contrainteressada do concurso, com a consequente reordenação dos candidatos.

Por conseguinte, o que importa verdadeiramente aferir, em seguida, é do benefício direto e pessoal que a A. pode retirar da ação proposta e em que medida é que este se projeta na sua esfera jurídica, ou seja, averiguar do seu interesse em agir.

(…) A verdade é que a A. não retira da presente ação qualquer benefício direto e imediato, uma vez que, tendo ficado classificada em terceiro lugar, a eventual procedência da mesma – com a anulação do ato de adjudicação e a condenação da Entidade Demandada a excluir a proposta da (…) e a proceder à classificação dos concorrentes em conformidade – apenas acarretaria uma vantagem direta para a esfera jurídica da segunda classificada, a (…) Helicópteros, S.A., a quem seria consequentemente adjudicada a prestação de serviços objeto do concurso.

O argumento da A. Em como sempre lhe assiste a legítima expetativa de, uma vez anulado o ato e reformulado o ordenamento das propostas, ainda lhe poder vir a ser adjudicada a prestação de serviços (…) não merece aqui acolhimento.

Com efeito, a A. limita-se a apelar a um interesse meramente hipotético, indireto e reflexo, que é insuficiente para que se considere preenchido o pressuposto processual do interesse em agir (…)”

40. No âmbito do referido processo, a ora autora (ali contrainteressada) pediu a condenação da ora ré (ali autora) com fundamento na junção, por esta, de documentação sigilosa e confidencial.

41. Tal pedido veio a ser indeferido com base nos seguintes fundamentos: “No caso sub judice, a A. apresentou articulado superveniente ao qual juntou três documentos (…) ficou demonstrado, através do doc. 2 que o mesmo foi obtido junto da ANEPC, na sequência de pedido formulado pela A., e na sequência do pagamento da taxa respetiva, ficando por provar em que medida foi exercida pela A. qualquer tipo de pressão ou insistência junto daquela entidade pública nesse sentido”.

Não provado:

a) Que, em campanhas anteriores as tarefas relativas ao período de aprontamento apresentaram-se menos complexas e em menor número;

b) Que o contrato apenas poderia ter início após o prévio do Tribunal de Contas, o qual apenas foi concedido no dia 30 de maio de 2019;

c) Que, no compromisso celebrado com a ANPC, a (…) ocultou intencionalmente que a aeronave já não lhe pertencia.


2.2. Impugnação da matéria de facto
2.2.1. A Recorrente impugna a decisão de facto constante na alínea b) dos factos não provados – o contrato apenas poderia ter início após o prévio do Tribunal de Contas, o qual apenas foi concedido no dia 30 de maio de 2019 – considerando que a matéria se prova.
Argumenta que existe contradição entre a primeira parte desta matéria com o facto discriminado no ponto 16 dos factos provados e que a segunda parte se prova por documento, não impugnado, junto com a contestação e resulta da confissão do legal representante da Recorrida verificada no decurso do depoimento de parte prestado.
No ponto 16 discrimina-se como facto provado que “de acordo com o n.º 1, da cláusula 40.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea, o contrato entra em vigor no dia seguinte à emissão de visto prévio pelo Tribunal de Contas, nos termos previstos no n.º 4, do artigo 45.º, da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto” e ajuíza-se, no facto impugnado, que não se prova que o contrato apenas poderia ter início após o prévio do Tribunal de Contas.
Ambos os factos se reportam à data em que o contrato se deveria/poderia iniciar, ou seja, ao dever ser (não ao ser) e, por ser assim, evidencia-se, a nosso ver a apontada contradição, pois não poderá, sem a existência desta, a um mesmo tempo dar como provado que o contrato, de acordo com as suas cláusulas entraria em vigor no dia seguinte à emissão de visto prévio pelo Tribunal de Contas e em seguida dar-se o mesmo facto – o contrato apenas poderia ter início após o prévio do Tribunal de Contas – como não provado.
Importa, pois, eliminar dos factos não provados a primeira parte da alínea b) e, assim, conjugar o juízo de facto com o que consta, sem controvérsia, no ponto 16 dos factos provados.
Sobre a data do visto do Tribunal de Contas, a ora Recorrente juntou com a contestação uma cópia de uma notícia do JN, segundo a qual “o TdC confirmou ao JN que os processos foram visados ontem, juntando-se ao visto concedido à operação da frota dos hélis B3 do Estado, a 30 de maio” e é com base neste documento, por não impugnado, que a Recorrente pretende se dê como provado que “o visto do Tribunal de Contas foi concedido no dia 30 de maio de 2019”.
O documento prova a notícia mas não o facto que noticia, ou seja, o que resulta seguro do documento, admite-se, é que a notícia teve o teor nele exarado mas este facto é distinto de constituir a notícia prova suficiente de que o facto ocorreu tal como noticiado.
O documento junto aos autos (fls. 113) não constitui prova bastante do facto impugnado e a demonstração deste também não resulta, a nosso ver, do depoimento de parte do legal representante da Recorrida, (…); este, como afirma a Recorrente, respondeu “afirmativo” quando perguntado sobre se a o visto do Tribunal de Contas ocorreu em 30/5/2019, mas adiantando a audição do seu depoimento também declarou “não sei essa data de cor mas não ponho em causa a notícia … não conheço a data de cor” (minutos 43,00 a 43,47 do depoimento), ou seja, o depoimento é insuficiente para se formar uma opinião sobre a data em que o Tribunal de Contas aprovou o contrato que a Recorrida celebrou com o Estado.
Assim, elimina-se a 1ª parte da alínea b) dos factos não provados a qual passará a ter a seguinte redação: “O visto prévio do TC apenas foi concedido no dia 30 de maio de 2019”.
2.2.2. Com fundamento no depoimento do legal representante da Recorrida e das testemunhas (…) e (…) considera a Recorrente que o facto discriminado no ponto 24 dos factos provados – no dia 7/6/2019, o referido acordo voltou a produzir os seus efeitos perante as partes signatárias, quando deveria ter iniciado a sua execução no dia 1 de maio de 2019 – deverá ser alterado por forma a constar “no dia 7/6/2019, o referido acordo voltou a produzir os seus efeitos perante as partes signatárias”.
Início da execução dos trabalhos contratados e início de vigência do contrato parecem ser realidades distintas para efeitos do contrato; o contrato vigoraria entre as partes a partir do dia seguinte à emissão do visto prévio pelo Tribunal de Contas (clª 40ª, nº 1 – fls. 24 a 42), mas os serviços objeto do contrato deveriam ser assegurados entre 1/5/2019 e 31/12/2022, compreendendo um período máximo de 31 dias para aprontamento das aeronaves e um período operacional com início no termo do período de aprontamento e termo em 31/12/2022 (clª 4ª do contrato – fls. 24 a 42) ou seja, por via das cláusulas assim delineadas a execução do contrato, propriamente dita, o aprontamento das aeronaves (manutenção necessária para garantir a aeoronavegabilidade das aeronaves, certificações necessárias, etc.), pertencentes ao Estado e paradas (preservadas), ocorria em momento anterior ao início da vigência do contrato, situação que, segundo os depoimentos prestados, constitui prática corrente neste tipo de contratos – cfr. ponto 26 dos factos provados que a Recorrente não questiona – por forma a minimizar os inconvenientes decorrentes dos atrasos na formalização dos contratos, a morosidade técnica (e burocrática) que reveste o aprontamento das aeronaves e a urgência da sua prontidão para efeitos de combate a incêndios.
O que está em causa na matéria impugnada é o início de execução dos serviços e este deveria ocorrer, segundo o contrato [clª 4ª], no dia 1/5/2019, tal como se ajuizou.
A prova produzida não impõe decisão diversa quanto ao ponto 24 dos factos provados, improcedendo a impugnação quanto a esta matéria.
2.2.3. A Recorrente impugna os pontos 27 – o auto de consignação veio a ser assinado em 14 de junho de 2019, quando poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de abril de 2019 (uma semana após a assinatura do acordo) – e 28 – as aeronaves poderiam ter estado aptas a funcionar, aproximadamente, a partir do dia 27 de junho de 2019 – dos factos provados; considera que este último não se prova e que relativamente ao primeiro não se prova o seu último segmento, ou seja, a parte em que se afirma quando poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de abril de 2019.

A razão pela qual a decisão recorrida julgou que “o auto de consignação poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de abril de 2019” parece ter resultado da aplicação, por assim dizer, de uma regra de três simples, ou seja, como o auto de consignação veio a ser assinado uma semana depois levantada a sua suspensão automática do ato de adjudicação – o levantamento da suspensão verificou-se no dia 7/6/2019 e o auto de consignação foi assinado em 14/6/2019 (pontos 23 e 27 dos factos provados) – concluiu-se que o auto de consignação seria previsivelmente assinado no mesmo prazo de uma semana após a assinatura do acordo e como a assinatura deste ocorreu em 16/4/2019 o auto de consignação seria previsivelmente assinado em 23/4/2019.

Resulta da enunciação que o juízo inerente à matéria impugnada comporta uma ilação do facto constante da primeira parte da resposta, mais concretamente uma presunção (artº 349º, do CC), isto é, o julgador firmando-se num facto conhecido – o prazo que decorreu entre o levantamento da suspensão e a assinatura do auto de consignação – afirmou um facto desconhecido – a previsível data de assinatura do auto de consignação não fora a ação de anulação do ato de adjudicação intentado pela Recorrente.

A sentença deve obedecer à estrutura prevista na lei e esta distingue entre a discriminação dos factos provados e não provados e v.g. os juízos que extraem dos factos provados as ilações impostas pela lei ou pelas regras da experiência (cfr. artigo 607.º, nºs 3 e 4 (1ª e 2ª parte), do CPC.

As ilações a extrair de factos provados devem constar, fundadamente, da sentença, mas não se incluem nos factos discriminados como provados, segue-se a estes mas não se confundem com eles; razões de construção da sentença com reflexos a montante, uma vez que o controlo da decisão de facto está sujeita a ónus (artigo 640.º) que não abrangem o controlo sobre a racionalidade ou razoabilidade das ilações que a partir dos factos provados seja lícito extrair.

Por se tratar de uma ilação de um facto provado e não de um facto que deva ser discriminados como provado elimina-se do ponto 27 dos factos provados o seguinte segmento: “quando poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de abril de 2019”, passando a resposta ter a seguinte redação: “O auto de consignação veio a ser assinado em 14 de junho de 2019”.

A Recorrente defende que não se prova a matéria constante do ponto 28 dos factos provados; argumenta que não resulta dos depoimentos das testemunhas que as aeronaves poderiam ter estado aptas a funcionar, aproximadamente, a partir do dia 27 de junho de 2019, que a matéria está em contradição com os factos discriminados em 14, 17 e 33 dos factos provados e que se trata de uma afirmação “absolutamente gratuita não só por ser condicional (poderia), como por não ser exata (aproximadamente) e principalmente por não ser fundamentada”.

Trata-se, a nosso ver, de matéria conclusiva; a afirmação constituiu o corolário lógico de razões que não dá a conhecer, ou seja, se as aeronaves poderiam estar a funcionar no dia 27 de junho de 2019 e não numa data anterior (ou posterior) é porque nesta data se verificaram determinadas ocorrências ou se reuniram determinados pressupostos que antes não se haviam verificado ou reunido e seriam estes pressupostos ou ocorrências que constituem os factos que, uma vez provados, permitiam extrair a ilação ou concluir pela matéria ora impugnada.

O anterior Código de Processo Civil dispunha de norma que permitia ao juiz da sentença considerar como não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito (artigo 646.º, n.º 4), não dispondo o Código vigente de norma idêntica; o que se justifica porquanto, na vigência deste, o julgamento da matéria de facto e de direito deixou de ocorrer em ciclos processuais distintos e, ambos os juízos têm lugar na sentença, mas tal não significa que a fundamentação de facto da sentença tenha passado a poder incidir também sobre matéria de direito ou sobre conclusões; na sentença o juiz deve discriminar os factos provados (artigo 607.º, n.º 3), o que excluí a discriminação, como provado, de conclusões ou ilações extraídas de factos.
A decisão de facto quanto à apontada matéria, por conclusiva, é, a nosso ver, deficiente e, assim, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, o ponto 28 dos factos provados deverá ser eliminado.

2.2.4. Com fundamento na falta de ciência da testemunha (…), a Recorrente considera que não se prova a matéria constante no ponto 37 dos factos provados – no período em causa seria previsível que a autora executasse entre 120 a 200 horas de voo, por mês, dependendo das missões executadas.
Este facto (não alegado e julgado provado por haver resultado da decisão da causa) relevou para efeitos da quantificação do pedido genérico empreendida pela sentença recorrida cuja nulidade, nesta parte, se declarou.
Devendo o pedido genérico ser liquidado pela Recorrida – caso se venha a reconhecer a existência dos danos – em incidente de liquidação com a especificação dos danos derivados do facto ilícito e a formulação de um pedido em quantia certa e concorrendo a matéria impugnada para a quantificação de tais danos, o seu conhecimento mostra-se prejudicado, pois seja qual for o seu resultado a solução final – anulação da sentença na parte em que liquidou o pedido ilíquido – não se altera.
Procede parcialmente a impugnação da decisão de facto e consequentemente:
- elimina-se a 2ª parte do ponto 27 dos factos provados o qual passará a ter a seguinte redação: “O auto de consignação veio a ser assinado em 14 de junho de 2019”;
- elimina-se dos factos discriminados como provados a matéria que consta no ponto 28;

- elimina-se a 1ª parte da alínea b) dos factos não provados a qual passará a ter a seguinte redação: “O visto prévio do apenas foi concedido no dia 30 de maio de 2019”.

3. Se não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil
A decisão recorrida julgou verificados os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos e condenou a Recorrente a pagar à Recorrida a quantia de € 400.000,00.

A Recorrente diverge argumentando, em essência, que ao intentar nos tribunais administrativos e fiscais ação de anulação do ato de adjudicação, mediante o qual o Estado atribuiu à Recorrida “serviços de operação, gestão de aeoronavegabilidade permanente e de manutenção de aeronaves AS350 do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar” desde o dia 1 de maio de 2019 até ao dia 31 de Dezembro de 2022, exerceu o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais o que afasta a ilicitude do facto; ainda que assim não fosse, o ressarcimento de danos causados por conduta processual abusiva só pode ocorrer no próprio processo em que se verifica e na ação de anulação foi reconhecido que a Recorrente não litigou de má-fé; de qualquer forma, o contrato só entrou em vigor no dia 31/5/2019, data do visto prévio do Tribunal Constitucional e se os prazos do procedimento administrativo houvessem sido cumpridos o levantamento da suspensão da execução do contrato teria ocorrido em data anterior, razão pela qual não ocorre um nexo de causalidade entre o facto e os danos, nem estes se verificam.

3.1. A decisão recorrida analisou com detalhe a ilicitude do facto, em termos que genericamente se subscrevem, não se justificando aqui retomar os argumentos já expendidos os quais, aliás, em rigor, a Recorrente não refuta.

Importa, ainda assim, reter que a propósito do exercício e tutela dos direitos a nossa lei consagra a figura do abuso de direito considerando “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do Código Civil) e recordar que a “ilegitimidade do abuso tem as consequências de todo o ato ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar; (…).”[5]

No caso dos autos, a Recorrente veio pedir a anulação do ato de adjudicação, não ignorando que tal determinaria, por força da lei, a suspensão imediata do contrato destinado a preparar e a operar helicópteros do Estado para o combate a incêndios, assistência a cidadãos no âmbito da emergência médica e missões no âmbito da segurança interna (clª 49ª do contrato, fls. 24 a 57 dos autos), em pleno mês de Abril, não ignorando a complexidade técnica do aprontamento das aeronaves e os curtíssimos prazos que a Recorrida dispunha para o efeito, dada a proximidade do verão com a previsibilidade – nos últimos tempos, inevitabilidade – de incêndios rurais e fê-lo sem que da procedência da ação lhe resultasse qualquer interesse direto e pessoal, uma vez que, anulado o ato, o contrato seria adjudicado à proponente que no concurso ficou em segundo lugar e não à Recorrente que ficou em terceiro, ou seja, sem demonstrar interesse em agir motivo da sucumbência da ação de anulação (cfr. sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, fls. 103 a 112 dos autos).

A recorrida tinha o direito de intentar a ação, com diz, mas o exercício deste direito, nas apontadas circunstâncias, ofende, estamos em crer, clamorosamente, o sentimento jurídico socialmente dominante e, como tal, é ilegítimo, o que significa que o exercício do direito foi ilícito.

Afirma a Recorrente, em contrário, que o ressarcimento de danos causados por conduta processual abusiva só pode ocorrer no próprio processo em que se verifica e na ação de anulação foi reconhecido que a Recorrente não litigou de má-fé, assim, visando evidenciar que a ilicitude do facto, por tal razão, não se verifica.

Exercício abusivo do direito e litigância de má-fé são realidades jurídicas distintas; o abuso de direito “pressupõe logicamente a existência do direito, embora o titular exceda no exercício os seus poderes”[6], o litigante de má-fé não exerce um direito, não existe o direito de litigar de má-fé, existe o dever de boa-fé processual (artigo 8.º do CPC).

Ao invés do que afirma a Recorrente, a decisão recorrida não a condenou por comportamento processual incorreto, julgou verificada a ilicitude do exercício do direito, independentemente da forma como a Recorrente conduziu a sua intervenção processual no respetivo procedimento.

Concluiu-se, pois, como concluiu a decisão recorrida, a Recorrente atuou no processo administrativo com manifesto abuso de direito e contrariando os limites impostos pela boa-fé, atuação essa que dá lugar à obrigação de indemnizar.

3.2. O obrigado à reparação de prejuízos deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562.º do CC), o que significa que são indemnizáveis os danos que estejam relacionados por um nexo de causalidade com o facto gerador da responsabilidade.

A decisão recorrida julgou verificados prejuízos decorrentes do custo da disponibilidade diária de três aeronaves (€ 1415,00/dia por cada uma das aeronaves) e decorrentes do custo de horas de voo que a Recorrida, por efeito do retardamento na execução do contrato, deixou de receber do Estado, durante 52 dias.

O contrato celebrado entre o Estado e a Recorrida previa um período de aprontamento (preparação técnica e certificação) das aeronaves, com a duração máxima de 31 dias e um período operacional (serviços de operação, gestão de aeoronavegabilidade permanente e manutenção das aeronaves) com início após o período de aprontamento e termo no dia 31 de dezembro de 2022, o preço máximo do período operacional foi acordado em € 8.808.300,00 e compreendia o preço da hora de voo (€ 832,00), para a execução no máximo de 3.750,00 horas de voo, a realizar por três aeronaves e o preço da disponibilidade operacional diária por aeronave de € 1.415,00 [ponto 15 dos factos provados]. Por cada dia de atraso no início da execução do contrato, a Recorrida deixou de receber estas contrapartidas do Estado e foram estes os danos que a decisão recorrida julgou verificados [pontos 35 e 36 dos factos provados], entre os dias 27/6/2019 e 18/8/2019.

3.2.1. Iniciando pelo dano respeitante ao preço das horas de voo não recebidas, estamos em crer, que o mesmo não se verifica.

Segundo o contrato a Recorrida tem direito ao pagamento da quantia de € 832,00 por cada hora de voo realizado por aeronave mas o preço global acordado apenas prevê a realização máxima de 3.750 horas de voo, pelas três aeronaves, durante o período operacional, ou seja, entre 1/6/2019 e 31/12/2022 [pontos 14 e 15 dos factos provados]; ora, a Recorrida não alegou na petição inicial – nem o podia fazer porquanto o contrato vigora até final do ano de 2022 – as horas de voo, de entre as referidas 3750, que deixou de poder realizar por efeito do retardamento na execução do contrato e era esta diferença que, a existir, poderia, a nosso ver, constituir o seu prejuízo, pois pode muito bem acontecer que até ao final de 2022 venha a realizar as 3750 horas de voo contratadas, caso em que não se configura – nem se pode prever no futuro – qualquer prejuízo, uma vez que receberá do Estado todas as horas de voo previstas no contrato, independentemente da execução do contrato, por causa imputável à Recorrente, se haver iniciado em data posterior à acordada.

Por ausência de alegação e demonstração do dano o recurso procede nesta parte.

3.2.2. Diferente se coloca, a nosso ver, o alegado prejuízo pelo preço da disponibilidade das aeronaves.

Os factos provados não permitem, a nosso ver, concluir que as aeronaves poderiam ter estado aptas a funcionar, aproximadamente, a partir do dia 27/6/2019, como concluiu a decisão recorrida, mas permitem afirmar com segurança que os trabalhos contratados deveriam ser executados e assegurados a partir do dia 1/5/2019 e que o início da execução dos trabalhos, por decorrência do efeito suspensivo automático da ação de anulação do ato de adjudicação, só veio a ser possível a partir do dia 7/6/2019, data do levantamento da referida suspensão [pontos 14, 21, 23 e 24 dos factos provados], ou seja, a ação de anulação intentada pela Recorrente ocasionou um retardamento de 38 dias [1/5/2019 a 7/6/201] na prestação dos serviços que a Recorrida se havia obrigado a prestar ao Estado.

Retardamento que se projetou, em idêntica medida, no período operacional [ponto 34 dos factos provados] durante o qual a Recorrida deveria receber – e não recebeu – do Estado a contrapartida pela disponibilidade operacional das aeronaves, ou seja, a quantia diária de € 4.246,35 [ponto 36 dos factos provados], prejuízo assim quantificável em € 161.361,30 [4.246,35 x 38] e cuja reparação incumbe à Recorrente por diretamente decorrente do exercício abusivo da ação de anulação, facto gerador da responsabilidade.

Em contrário, argumenta a Recorrente que o contrato, nos termos da sua disciplina, só entraria em vigor com o visto prévio do Tribunal de Contas o qual veio a ocorrer em 30/5/2019 e que a suspensão dos efeitos do ato impugnado poderia ter sido levantada antes desta data se os prazos administrativos tivessem sido cumpridos assim concluindo pela inexistência de nexo causal entre a propositura da ação de anulação e os danos [cclºs XIV a XXIII].

No decurso da apreciação da impugnação da decisão de facto já se analisou a primeira das apontadas observações por forma a afirmar que não obstante a vigência do contrato estivesse dependente do visto prévio do Tribunal de Contas [clª 40ª, nº 1], os primeiros serviços nele previstos – período de aprontamento – iniciar-se-iam em 1/5/2019 [ponto 14 dos factos provados] segundo uma prática corrente neste tipo de contratos que a decisão recorrida julgou provada [ponto 26 dos factos provados] e a Recorrente não impugnou por forma a, repete-se, minimizar os inconvenientes decorrentes dos atrasos na formalização dos contratos, a morosidade técnica (e burocrática) que reveste o aprontamento das aeronaves e a urgência da sua prontidão para efeitos de combate a incêndios.

O período de aprontamento das aeronaves deveria, de acordo com o contrato e a praxe aeronáutica ocorrer em momento anterior ao da vigência do contrato o que não se verificou, por efeito da suspensão automática do contrato, provocada pela ação de anulação, com repercussão direta no início do período operacional em que se verificaram os prejuízos.

O segundo argumento colocado no recurso destinado a demonstrar que o cumprimento dos prazos na ação administrativa determinaria o levantamento da suspensão em data anterior àquela em que, em concreto, se verificou e que, por tal razão, o atraso no início da execução do contrato não é imputável à Recorrente, ou não o é em toda a extensão, independentemente de outras considerações que houvesse que justificar, supõe o conhecimento de factos (v.g. a data da citação do Estado e demais contrainteressados no procedimento administrativo) que a Recorrente, em tempo oportuno, não carreou para os autos e que constituem agora o suporte, não demonstrado, desta sua argumentação [a sua defesa, nesta parte, consistiu exclusivamente em afirmar: “acresce que a Ré nunca poderá ser responsável pelo tempo que os órgãos judiciais levam a tomar as suas decisões” – artigo 26º da contestação].

O recurso assenta, nesta parte – conclusões XX a XXIII – em factos que não se provam, nem foram oportunamente alegados, razão da sua improcedência.

O recurso procede parcialmente e, em consequência, a decisão recorrida deverá ser alterada por forma a condenar a Recorrente no pagamento da quantia de € 161.361,30, medida dos danos que a Recorrida não teria provavelmente sofrido caso a primeira, com abuso de direito, não houvesse intentado se a ação de anulação do ato de adjudicação.

4. Custas

Parcialmente vencidas no recurso incumbe à Recorrente e à Recorrida o pagamento das custas na proporção de 40% e 60% respetivamente (artigos 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

(…)


IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência parcial do recurso, em:
a) Declarar nula a sentença na parte em que liquidou o pedido genérico de condenação no pagamento do preço de horas de voo.
b) Condenar (…) – Helicópteros, Operações, Atividades e Serviços Aéreos, Lda., a pagar a (…) – Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A., a quantia de € 161.361,30, acrescida de juros, a contar da presente data e até integral pagamento, absolvendo-a do remanescente do pedido.
c) Manter, no mais, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente e Recorrida na proporção de 40% e 60% respetivamente.
Évora, 11/2/2021
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Acs. STJ de 27/6/2000, CJ, tomo II, pág. 131, de 18/2/2003, CJSTJ, tomo I, pág. 103 e de 3/3/1989, BMJ 385.º, pág. 545.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, pág. 170.
[3] Ac. S.T.J. de 19-12-2006 (proc. 06A4115), disponível em www.dgsi.pt
[4] Ac. RP de 21-10-2019 (proc. 2313/15.8T8VNG.P1), disponível em www.dgsi.pt
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume 1.º, 4ª ed. pág. 299.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. páginas 300.