Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1177/16.9T8OLH.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
Tendo o autor alegado na petição inicial que o ex-cônjuge não tem meios para lhe prestar alimentos, nada obsta, no plano do direito substantivo e do ponto de vista estritamente processual, que aquele demande apenas os filhos, para deles exigir a prestação dos alimentos de que carece.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra CC, DD e EE, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe o custo da ortótese ocular e da prótese dentária de que necessita, bem como, sob a forma de pensão mensal, a quantia de € 719,13, a título de prestação de alimentos.
Citados, contestaram todos os réus - o 1º e o 2º réu apresentaram contestação conjunta – concluindo pela sua absolvição do pedido.
Em 20.04.2017 teve lugar a audiência prévia, e tendo sido frustrada a tentativa de conciliação entre as partes, foi proferido despacho a mandar concluir os autos para prolação de despacho saneador por escrito.
Em 20.06.2017 foi proferido despacho a convidar o autor a fazer intervir na lide a ex-cônjuge, sob ponderação, além do mais, que o autor não pode «demandar somente os seus filhos, ao arrepio do prescrito no artigo 2009º do CC, sem demandar a sua ex-cônjuge, e pedir a condenação conjunta dos mesmos, a pagar-lhe a quantia que peticiona, a título de alimentos».
Não tendo o autor aceite tal convite[1], foi proferida decisão (datada de 12.04.2019) a absolver os réus da instância com fundamento na sua ilegitimidade.
Inconformado com esta decisão veio o autor interpor o presente recurso, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«A) A decisão recorrida considerou que o art.º 2009.º do C.C. impõe que o A. tivesse demandado em primeiro lugar, a título principal, a ex-cônjuge, e só depois, a título subsidiário, deveria ter demandado os filhos.
B) O recorrente entende que o art.º 2009.º C.C. não impõe tal obrigação.
C) O A. discorda que o art.º 2009.º do C.C. imponha uma ordem de demanda dos obrigados ali elencados (como é entendido na sentença recorrida) mas antes uma hierarquia substantiva de obrigados.
D) Consequentemente, o credor dos alimentos pode dirigir-se processualmente logo, diretamente, em primeira mão, ao pretenso obrigado que entenda estar em condições de suportar a obrigação alimentícia, sem necessidade de ter de demandar todos aqueles que na hierarquia do 2009.º C.C. se encontrem antes do demandado, desde que alegue que os demais, anteriores na referida hierarquia, não têm condições para suportar a prestação alimentícia pretendida.
E) O entendimento contrário (o entendimento da sentença recorrida) leva a que:
i. o carecido de alimentos tenha de demandar, desnecessariamente , quem sabe não ter qualquer possibilidade de suportar a obrigação alimentícia, com tudo o que isso implica para o carecido e para a atividade do tribunal;
ii. os que não têm possibilidade de suportar a obrigação alimentícia sejam desnecessariamente demandados, com tudo o que isso implica para o(s) demandados e para a atividade do Tribunal;
iii. demandas e processos absolutamente inúteis, inclusivamente em tribunais diferentes (como será o caso da petição de alimentos do ex-cônjuge).
F) Depois de ter alegado os factos que demonstram as suas necessidades e a carência de alimentos, nos art.ºs 34.º a 37.º da p.i. o A. alegou o seguinte:
34.º - Encontram-se obrigados (entre outros) à prestação de alimentos, pela seguinte ordem: o ex-cônjuge e os descendentes do necessitado (art.º 2009.º, n.º1, als. a) e b) do C.C.), o que justifica a demanda de todos os RR. na presente ação.
35.º - Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los (art.º 2004.º, n.º 1 do C.C.).
36.º - A ex-cônjuge não tem meios para prestar alimentos ao A..
37.º - Ao invés, todos os RR. aqui demandados nesta ação têm capacidade para prestar ao A. os alimentos de que este carece.
G) Tendo o A. alegado a incapacidade da ex-cônjuge para suportar a prestação alimentícia pretendida, estava em condições, nos termos do art.º 2009.º C.C. para demandar diretamente os seus filhos, como o fez.
H) A questão da capacidade dos obrigados colocados hierarquicamente em nível anterior ao do demandado, constituirá, salvo melhor entendimento, matéria de exceção, mas não um caso de ilegitimidade.
I) A sentença recorrida viola assim o art.º 2009.º do C.C., disposição que, repita-se, não consagra um caso demanda obrigatória de todos os elencados colocados anteriormente do pretenso obrigado, mas antes uma hierarquia substantiva de obrigados sucessivos, podendo o necessitado demandar diretamente quem entenda estar em condições de cumprir a obrigação.
J) Por não se verificar qualquer ilegitimidade, a sentença recorrida violou igualmente o disposto nos art.ºs 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, al. e), 578.º, 278.º, al. d), todos do CPC.»
Termina dizendo que «deverá ser revogada a douta decisão recorrida e proferido acórdão que declare inexistir ilegitimidade passiva e ordene o prosseguimento dos autos».

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consubstancia-se em saber se nada obsta, do ponto de vista da legitimidade, a que o autor intente a presente ação diretamente contra os filhos, sabendo-se que alegou na petição inicial que o ex-cônjuge não tem meios para prestar os alimentos peticionados.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos em que a decisão do presente recurso há de assentar são os que constam do relatório supra e, bem assim, os alegados na petição inicial (não necessariamente provados por nos situarmos no âmbito do despacho saneador) que fundamentaram a pretensão do Recorrente, dos quais se destacam os seguintes:
- A ex-cônjuge não tem meios para prestar alimentos ao autor (art. 36º).
- Todos os réus têm capacidade para prestar ao autor os alimentos de que este carece (art. 37º).
- O réu CC é motorista/distribuidor, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 1.200,00 mensais, catorze meses por ano (art. 38º).
- O réu DD é professor, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 3.000,00, catorze meses por ano (art. 39º).
- O réu EE é engenheiro civil, auferindo mensalmente quantia não inferior a € 4.000,00, catorze meses por ano.

O DIREITO
Escreveu-se na decisão recorrida:
«Pretende, pois, o Autor, além do mais, que seja fixada uma pensão de alimentos a pagar pelos seus três filhos.
Ora, dispõe o artigo 2009.º, n.º 1, do Código Civil, que estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada: a) o cônjuge ou ex-cônjuge; b) os descendentes; c) os ascendentes; d) os irmãos; e) os tios; f) o padrasto e a madrasta.
A previsão do artigo 2009.º do Código Civil pressupõe que se esgote (estão vinculados pela ordem indicada) cada “nível” ou “classe” de interessados.
Ou seja, o cônjuge ou ex-cônjuge responde e é obrigado em primeira linha relativamente à totalidade do pedido e só depois de legalmente esgotadas as possibilidades do cônjuge (e se esgotadas) é que se poderá deduzir pedido contra outra “classe” legalmente prevista e pela ordem prevista.
Por outro lado, dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que, se algum dos vinculados não puder prestar os alimentos ou não puder saldar integralmente a sua responsabilidade, o encargo recai sobre os onerados subsequentes. Contudo, só recai sobre os obrigados subsequentes quando se esgotarem as possibilidades dos obrigados anteriores.
Entendemos, assim, que o Autor tinha que deduzir a sua pretensão contra o primeiro obrigado, in casu a sua ex-cônjuge, e só depois de fixado o valor da pensão de alimentos a prestar e as possibilidades económicas da ex-cônjuge é que se poderia concluir se a ex-cônjuge respondia pela totalidade da obrigação alimentícia, ou se tinha que ser accionada a classe seguinte de onerados, neste caso, os filhos.
Refira-se que tendo em conta as normas substantivas que regem esta matéria e do ponto de vista processual, nada obstaria a que o requerente demandasse, ab initio, a ex-cônjuge e os seus filhos, para deles exigir a prestação dos alimentos de que carece.
Nesse caso, o autor teria que peticionar, a título principal, a condenação da sua ex-cônjuge a pagar-lhe a totalidade da pensão de alimentos por si reclamada e, só a título subsidiário, em caso de improcedência, total ou parcial, desse pedido principal deduzido contra a sua ex-cônjuge, peticionasse a condenação dos seus descendentes a pagar-lhe, na proporção das suas quotas, nos termos do disposto no artigo 2010.º do Código Civil, a totalidade da pensão de alimentos de que a sua ex-cônjuge foi absolvida.
O que não podia fazer era demandar somente os seus filhos, ao arrepio do prescrito no artigo 2009.º do Código Civil, sem demandar a sua ex-cônjuge, e pedir a condenação conjunta dos mesmos, a pagar-lhe a quantia que peticiona, a título de alimentos, na proporção das suas quotas, ao abrigo do disposto no artigo 2010.º do Código Civil.»
Contra este entendimento insurge-se o autor/recorrente, defendendo que uma vez que alegou a incapacidade do ex-cônjuge para suportar a prestação alimentícia pretendida, estava em condições, nos termos do art.º 2009º do Código Civil (CC) para demandar diretamente os seus filhos, como o fez.
E a razão está do lado do recorrente. Senão vejamos.
Nos termos e por força do disposto no artigo 2009º, nº 1, alíneas a) e b), do CC (na redação introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro), «[e]stão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada:
a) O cônjuge ou o ex-cônjuge;
b) Os descendentes».
Por sua vez, o nº 3 do mesmo preceito estatui que: «[s]e algum dos vinculados não puder prestar os alimentos ou não puder saldar integralmente a sua responsabilidade, o encargo recai sobre os onerados subsequentes».
Estreitamente relacionado com este nº 3 do artigo 2009º está o subsequente artigo 2010º, cujo nº 1 estabelece que, «[s]endo várias as pessoas vinculadas à prestação de alimentos, respondem todas na proporção das suas quotas como herdeiros legítimos do alimentando», e cujo nº 2 estatui que: «Se alguma das pessoas assim oneradas não puder satisfazer a parte que lhe cabe, o encargo recai sobre as restantes».
Segundo Pires de Lima-Antunes Varela[2], o citado artigo 2009º, nº 3, «visa especialmente dois tipos de situações.
O primeiro é o de haver um ou mais parentes de determinada classe de obrigados e um ou mais parentes de cada uma das classes subsequentes, mas acontecendo que nenhum dos parentes da primeira classe possui recursos económicos bastantes para satisfazer a prestação alimentícia.
O necessitado, menor, caído em completa indigência, tem dois irmãos, que mal ganham para si e o seu agregado, e tem ao mesmo tempo um tio, solteiro e capitalista abastado.
Nesse caso, como os primeiros vinculados, segundo a escala hierárquica traçada no artigo 2009º, não têm possibilidade económica de suportar o encargo da prestação de alimentos ao irmão, é sobre o onerado subsequente (o tio) que cai, por força do disposto no nº 3 do artigo 2009º, a obrigação alimentícia.
O segundo tipo de situações previsto no texto e no espírito da disposição é o de haver, em determinada classe, concretamente, uma ou mais pessoas vinculadas (sem capacidade económica para suportarem o encargo) e haver, ao lado deles, outros vinculados da mesma classe, mas de grau posterior, na ordem de chamamento da lei.
Imaginemos que a pessoa necessitada, solteira ou viúva, maior, tem ao lado de dois filhos, que mal ganham para sustentar o seu agregado familiar, um neto, maior, titular de avultado património.
Neste caso, os dois filhos serão os primeiros vinculados à prestação alimentícia, de acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2009º, conjugado com os preceitos complementares do nº 2 do mesmo artigo e do artigo 2135º. Mas como os dois primeiros vinculados (os filhos) não podem prestar os alimentos de que o pai carece, é sobre o neto (onerado subsequente) que recai a obrigação de suportar o encargo a favor do avô, de harmonia com o citério fixado no nº 3 do artigo 2009º».
À decisão do presente recurso importa apenas a primeira das situações referidas, da qual resulta que havendo um ou mais parentes de determinada classe de obrigados e um ou mais parentes de cada uma das classes subsequentes, por exemplo, coexistindo ex-cônjuge e descendentes [cfr. art. 2009º, nº 1, alíneas a) e b)], os onerados subsequentes (v.g., os descendentes) só ficam constituídos na obrigação de prestar alimentos se nenhum dos parentes da primeira classe possuir recursos económicos bastantes para satisfazer a prestação alimentícia (cfr. o cit. art. 2009º-3).
Ora, é justamente esta a situação dos autos.
Na verdade, o autor alegou no artigo 36º da petição inicial que o ex-cônjuge e mãe dos réus, “não tem meios para prestar alimentos ao autor“.
Ora, este facto não foi impugnado pelos réus nas respetivas contestações, pelo que tem de considerar-se admitido por acordo, nos termos do nº 2 do artigo 574º do CPC. E, sendo assim, contrariamente ao que foi entendido na decisão recorrida, não tinha o autor que demandar o seu ex-cônjuge, a título principal e os filhos, ora réus, a título subsidiário, pedindo a condenação destes na proporção das suas quotas, nos termos do disposto no artigo 2010º do Código Civil.
A questão, contrariamente ao que se entendeu na decisão recorrida, não consubstancia um caso de legitimidade ad causam, mas antes de legitimidade substantiva, a qual, no caso de se provar que o ex-cônjuge do autor lhe podia prestar alimentos, conduziria à absolvição dos réus do pedido e não da instância.
Mas como vimos já, face à não impugnação dos réus dessa matéria, tem-se como adquirido no processo que o ex-cônjuge do autor não tem meios para lhe prestar alimentos, pelo que se torna desnecessária a sua demanda, estando vinculados a tal prestação os filhos que, por integrarem a classe imediatamente a seguir, estão vinculados à prestação de alimentos (citado art. 2009º, nº 1, alíneas a) e b)].[3]
Nada obsta, pois, no plano do direito substantivo e do ponto de vista estritamente processual, que o autor demande apenas os filhos, para deles exigir a prestação dos alimentos de que carece.
Procede pois a apelação, cumprindo reconhecer aos réus legitimidade ad causam para a presente ação, devendo os autos prosseguir com a elaboração do despacho saneador e subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, se a tal nada mais obstar.


Sumário:
Tendo o autor alegado na petição inicial que o ex-cônjuge não tem meios para lhe prestar alimentos, nada obsta, no plano do direito substantivo e do ponto de vista estritamente processual, que aquele demande apenas os filhos, para deles exigir a prestação dos alimentos de que carece.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir nos termos supra referidos.
Sem custas.
*
Évora, 21 de Novembro de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] O que resulta do facto de o autor nada ter dito a esse propósito no processo.
[2] In Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, pp. 595-596.
[3] Cfr. o Acórdão da RL de 13-03-2012, proc. 2275/11.0TMLSB.L1-1, in www.dgsi.pt.