Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1352/18.15T8FAR.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
PAGAMENTO
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A atribuição da casa de morada da família é um processo (ou incidente) de jurisdição voluntária e essa resolução pode ser alterada com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a modificação da situação vigente, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão judicial já não acautele ou deixe de precaver, com equidade, os interesses de um dos ex-cônjuges[23].
2 – Até realização da partilha de bens comuns, a modificação da decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição do modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios, sendo que este juízo deve estar suportado em factos que permita aferir a situação financeira líquida das partes.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 1352/18.15T8FAR.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção de alteração do acordo quanto ao destino da casa da morada da família proposta por (…) contra (…), o requerido veio interpor recurso da sentença.
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Para o efeito, a requerente invocou que, por acordo no âmbito do processo de divórcio, o requerido ficou a residir na casa de morada de família e, actualmente, a requerente não dispõe de habitação, necessitando de regressar para aquela habitação com os filhos menores.
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O requerido deduziu oposição e na mesma invoca que, desde Abril de 2016, a filha do casal passou a residir consigo, convivendo o mesmo com os dois filhos regularmente na casa de morada de família, carecendo igualmente da referida residência.
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Realizado o julgamento, o Tribunal «a quo» decidiu:
a) Alterar o acordo celebrado no processo de divórcio, atribuindo o direito de utilização da casa de morada de família à ora requerente (…).
b) As despesas com a casa de morada de família (v.g. prestação de empréstimo e seguro) serão suportadas pela requerente e pelo requerido em partes iguais.
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O requerido não se conformou com a referida decisão e as alegações apresentadas continham as seguintes conclusões:
«A – Interpõe-se o presente recurso da douta sentença por se entender que se impõe a modificação da decisão do Tribunal “a quo” que atribui à Recorrida o uso e fruição da casa de morada de família e altera o acordo homologado.
B. O pedido de alteração nos termos do artigo 1793º, nº 3, do Código Civil, com recurso aos meios processuais próprios da jurisdição voluntária, designadamente em face do disposto no art. 988º, nº 1, do C. P. Civil, pressupõe necessariamente a alegação e demonstração de uma “alteração superveniente das circunstâncias” que estiveram na base daquele acordo.
C. Da análise feita pelo Tribunal “a quo” à factualidade provada, não é indicado nenhum facto superveniente, ao acordo celebrado sobre o destino da casa de morada de família, nem qualquer alteração de circunstâncias que justifiquem a alteração do acordo.
D. Para que as circunstâncias supervenientes justifiquem uma alteração da decisão anterior pressupõe-se necessariamente uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e aqueloutro que existia aquando o acordo.
E. O Tribunal “a quo” fez assim uma incorrecta apreciação da factualidade dada como provada e incorrecta interpretação e aplicação do direito.
F. Não poderia ter decidido o Tribunal “a quo” pela procedência da ação, por manifesta falta dos pressupostos de facto da acção e violação da força do caso julgado.
G. A douta sentença recorrida, viola o art. 1793º do CC, dado que não considerou a capacidade financeira da Recorrida, em face do Recorrente, logo com possibilidades para arrendar outra habitação, como de resto já sucede, desde 2015.
H. A alteração da atribuição da casa de morada de família, não poderia ter como contrapartida para o Recorrente, que se vê impedido do seu uso e fruição, o pagamento de metade das despesas, o que nem foi peticionado pela Recorrida.
I. Mostram-se violadas pela douta sentença recorrida as normas e princípios jurídicos consagrados nos artigos 1793º do Código Civil e no artigo 988º, nº 1, do Código de Processo Civil, porquanto não foram as mesmas interpretadas e aplicadas em conformidade com as considerações anteriores.
Termos em que, deverá conceder-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão do Tribunal “a quo”, e manter-se o acordo da casa de morada de família, celebrado em 13 de Novembro de 2015, assim se fazendo a tão esperada Justiça!».
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Houve lugar a resposta da recorrida, que defende a manutenção da decisão proferida pelo Juízo de Família e Menores de Faro. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tanto por não existir qualquer fundamento superveniente para alterar o acordo previamente estabelecido, como pela ausência de motivo para o onerar com metade do pagamento das despesas relacionadas com a referida habitação.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada:
Com relevância para a acção, provaram-se os seguintes factos:
1. A requerente e o requerido contraíram casamento entre si em 1 de Julho de 2000.
2. O casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento decretado por decisão proferida em 13 de Novembro de 2015 no processo nº 5486/2015, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Faro (doc. de fls. 13 a 17).
3. No acordo sobre a atribuição da casa de morada de família ficou definido que o direito a usufruir da casa de morada de família, sita na Rua (…) – (…), em Quarteira, ficava atribuído ao ora requerido (…), até à venda da mesma, assumindo este o pagamento das prestações em dívida ao banco Caixa Geral de Depósitos pelo contrato de mútuo celebrado com vista à respectiva aquisição, sendo cada prestação mensal, à data, no valor de € 380,49, acrescida de seguros (cfr. fls. 17).
4. No processo de divórcio foi também homologado acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores (…) e (…), nascidos respectivamente em 09/02/2001 e 08/09/2009, sendo a sua residência fixada junto da progenitora.
5. Por decisão homologatória de acordo entre os pais proferida em 13 de Setembro de 2016, no âmbito do processo nº 962/16.6T8FAR da (então) 1ª Secção de Família e Menores de Faro (J3), foi fixada a residência da menor (…) junto do pai e a do menor (…) junto da mãe, sendo fixado um regime de visitas, que contemplava nomeadamente fins de semana alternados dos menores com cada um dos pais (fls. 32 a 34).
6. A requerente e o requerido celebraram contrato de mediação imobiliária com a “(…) – Investe Imobiliária, Lda.”, com sede em Quarteira, mediante o qual esta entidade se obrigava a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra da casa de morada de família pelo preço de € 450.000,00.
7. Por sentença proferida em 21 de Dezembro de 2016 no âmbito do processo nº 589/15.0GDLLE da Instância Local Criminal de Loulé (J1) foi (…) condenado pela prática, no período de Maio a Novembro de 2015, de um crime de violência doméstica na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos com sujeição a regime de prova e obrigação de não contactar por qualquer meio com a ofendida … (doc. de fls. 22 a 29).
8. O menor (…) foi acompanhado por psicóloga (…) durante dois anos, até Março de 2018, devido a alterações emocionais e prestação escolar abaixo dos padrões médios esperados para a sua faixa etária; manifestando o menor ansiedade, dificuldade de lidar com a frustração, incapacidade de entender porque fora retirado do seu lar, considerando a psicóloga recomendável a sinalização do menor para ensino especial e fundamental que o (…) pudesse coabitar com a mãe e a irmã na sua antiga casa, na busca de um ambiente familiar que lhe dê estabilidade e confiança junto das pessoas mais importantes para si, referindo que a estabilidade de uma espaço já conhecido e assumido como seu e a partilha do mesmo, com a mãe e a irmã, terão sem dúvida, efeitos largamente positivos, no seu processo de desenvolvimento global e emocional (cfr. relatório de avaliação psicológica datado de 22/02/2018, junto a fls. 36 a 38).
9. Durante os dois anos de acompanhamento, o menor (…) sempre falou da casa à psicóloga, fazendo referência à «minha casa», com grande intensidade e expressando incompreensão por já não viver na casa de morada de família.
10. O menor (…) manifesta atraso/dificuldades no desenvolvimento desde tenra idade, o que foi evidenciado no Centro de Apoio à Criança de (…) que o menor frequentou desde os 3 aos 8 anos de idade e designadamente nos anos lectivos 2012/2013 e 2013/2014 (docs. de fls. 155 verso a 161).
11. A ora requerente é acompanhada por médico neurologista e psiquiatra desde 2013, apresentando sintomas de ansiedade e depressão desde há vários anos, inicialmente em relação com a doença do filho, depois no âmbito de problemas conjugais, tendo efectuado medicação antidepressiva e ansiolítica, com significativa melhoria, encontrando-se a mesma após o divórcio numa situação de tensão familiar, voltando a piorar da depressão, encontrando-se em 01/02/2016 muito ansiosa, com falta de concentração, problemas de memória e desmotivação (doc. de fls. 30/31).
12. Na sequência da separação do casal, ocorrida antes do divórcio, a requerente foi viver, durante algum tempo, com os filhos para habitação emprestada por uma amiga, após o que passou a residir em casa da respectiva progenitora com o (…).
13. A habitação da avó materna das crianças tem pouco espaço, dispondo apenas de três quartos, tendo o menor (…) partilhado o quarto com a mãe e sendo o terceiro quarto destinado a arrumos.
14. Desde há alguns meses que a progenitora foi residir com o (…) para apartamento sito em Quarteira, que lhe foi cedido por uma pessoa amiga, até ao Verão de 2019.
15. Após o acordo referido em 5 a menor (…) ficou aos cuidados do pai, embora vivesse em casa da avó paterna, onde pernoitava diariamente pelo menos durante os dias úteis da semana e aí tinha os seus pertences.
16. O progenitor não deixava a menor (…) ficar sozinha na casa de morada de família, por questões de segurança da mesma.
17. O requerido tem convivido com os filhos em casa da avó paterna, onde janta diariamente.
18. Durante a semana, o menor (…) quando sai da escola ou ATL vai para casa da avó paterna.
19. Os menores têm passado fins de semana com o pai na casa de morada de família, onde o mesmo reside.
20. O requerido exerce actividade de pescador, tendo de trabalhar à noite e passando muito tempo fora de casa.
21. O requerido vive na casa de morada de família, actualmente com uma companheira.
22. Em Janeiro de 2019 a menor (…) foi viver com a progenitora e o irmão.
23. Recentemente a menor e o pai tiveram uma forte discussão, não havendo desde então contactos entre si.
24. A progenitora tem procurado casa para arrendar, mas não o conseguiu.
25. A progenitora não dispõe de habitação.
26. A casa de morada de família (moradia T3) encontra-se actualmente à venda, pretendendo requerente e requerido a sua venda.
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3.2 – Matéria de facto não provada[1]:
Nomeadamente, não se provou que:
- O requerido não diligenciou no sentido de promover a venda da casa, não procurou interessados, nem contactou com agências imobiliárias.
- À data da celebração do acordo sobre a casa de morada de família a requerente não estava consciente dos seus actos.
- Foi em Março de 2016 que a requerente foi residir para casa dos pais.
- A menor (…) é por diversas vezes ameaçada pelo progenitor que lhe transmite ‘ou começas a portar-te bem ou vais viver para casa da tua mãe’.
- Os primos e os tios também ameaçam a menor.
- O progenitor não se mostrou preocupado com o desenvolvimento do (…).
- Por diversas vezes o convívio e apoio escolar por parte da mãe à menor (…) ocorreu no interior da viatura da requerente por não existir outro local.
- Os menores sempre informaram o pai que estavam em casa dos avós maternos.
- Após o divórcio ficou acordado que seria a requerente a diligenciar junto de agências imobiliárias pela venda da casa de morada de família.
- A relação da menor (…) com a família materna sempre foi conflituosa.
- A casa de morada de família situa-se num local isolado.
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IV – Fundamentação:
A casa de morada de família goza de protecção especial, revelada e suportada em diversos instrumentos legais destinados a preservar os interesses dos ex-cônjuges e filhos consigo conviventes, através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição, que poderá inclusivamente passar pela constituição judicial de um arrendamento a favor de um dos ex-cônjuges, independentemente da natureza de bem comum ou próprio do outro[2].
Na presente acção a requerente pretendia que lhe fosse atribuída a casa de morada de família, alterando-se assim o acordo firmado no processo de divórcio e essa pretensão foi deferida pelo Juízo de Família e Menores de Faro.
Os critérios a que o juiz deverá atender para atribuição da casa de morada de família são os referidos no artigo 1793º[3] do Código Civil. Assim, aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do supra mencionado preceito, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105º do mesmo Código, deve deduzir o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito, como se extraí da leitura do artigo 990º do Código de Processo Civil.
Nos termos da referida disposição cabe ao Tribunal decidir tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos e quaisquer outras razões atendíveis.
A decisão recorrida afirma com acerto que o artigo 1793º do Código Civil visa a protecção da casa de morada de família e do cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, não se destinando, pois, a sancionar o culpado pelo divórcio ou a compensar o inocente, nem a nela manter ou dela expulsar o cônjuge ou o ex-cônjuge que nela está, nem a expulsar um para nela ficar o outro.
Porém, num momento antecedente, aquilo que se coloca à apreciação do Tribunal Superior é apurar se existiu uma circunstância superveniente que legitimasse a modificação do acordo sobre o destino da causa de morada de família.
A jurisprudência mais autorizada entende que o direito constituído por acordo feito no processo de divórcio por mútuo consentimento (…) que teve por objecto a utilização da casa de morada de família, destinando esta à habitação (…) tendo em conta (e por medida) as suas necessidades e da sua família ao tempo em que o divórcio foi decretado, é um verdadeiro e próprio direito real de habitação[4].
Isto não significa que o direito em causa seja perpétuo ou imutável e valida apenas a interpretação que uma simples modificação não determina ipso facto a extinção do aludido direito de uso e habitação.
Com efeito, perante a alteração das circunstâncias, admite-se a modificabilidade da decisão homologatória do acordo de atribuição da casa de morada de família no âmbito de processo de divórcio[5] [6] [7] [8]. E é inclusivamente essa a interpretação já assumida por nós em anterior acórdão sobre esta temática[9].
O regime fixado pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária ou através de outra acção com objecto distinto que vise a eliminação do direito de uso e de habitação. Na realidade, a atribuição da casa de morada da família é um processo (ou incidente) de jurisdição voluntária e essa resolução pode ser alterada com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a modificação da situação vigente, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão judicial já não acautele ou deixe de precaver, com equidade, os interesses de um dos ex-cônjuges[10].
A requerente está a viver num apartamento cedido por pessoa amiga, que o disponibilizou até ao Verão, não tendo a requerente outra habitação além da casa de morada de família, nem tendo conseguido arrendar casa. E esta carência de situação habitacional é claramente uma alteração superveniente relevante, que autoriza a modificação do anteriormente ajustado entre as partes, sem que isso bula com o efeito do caso julgado.
E assim a questão judicanda visa apurar qual dos dois ex-cônjuges está mais carenciado da casa de morada de família e se, em função disso, ocorre motivo bastante para alterar o anteriormente ajustado entre as partes?
A lei não estabelece qualquer hierarquia entre os factores ou elementos contido na enunciação legal, mas isso não significa que uma certa diferenciação hierárquica não haja de ser estabelecida pelo tribunal, em cada caso concreto e segundo aquilo que o bom senso indicar como solução mais justa[11].
Compete ao ex-cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso[12].
A casa de morada de família deverá ser atribuída em função das necessidades de cada um dos (ex) cônjuges, assumindo particular relevância o «interesse dos filhos», devendo privilegiar-se, na ausência de prova da situação patrimonial das partes, aquela a quem os filhos menores do casal se encontram confiados e com quem residem[13] [14].
Do conspecto factual apurado resulta que as partes têm dois filhos, cujo exercício das responsabilidades parentais foi regulado aquando do divórcio e a residência foi fixada junto da aqui requerente. Posteriormente, em 13/09/2016, o mencionado acordo foi alterado e a menor (…) passou a residir com o pai. Recentemente, em Janeiro de 2019, esta última reingressou no agregado da mãe.
No entanto, aquilo que para o Tribunal da Relação de Évora assume a natureza de factor preponderante é a situação clínica do menor (…). Este, tal como resulta da simples leitura dos factos provados, sofre de atraso de desenvolvimento e as dificuldades de aprendizagem são patentes desde há vários anos (já antes do divórcio dos pais).
O menor beneficiou de acompanhamento psicológico durante dois anos e está relatada a vontade/necessidade de viver naquele que fora o lar familiar (casa de morada de família), não compreendendo o mesmo a razão por que deixou a sua casa.
Neste cenário referencial, a psicóloga que acompanha a situação considera que seria fundamental que o menor pudesse coabitar com o agregado da mãe na sua antiga casa, pois esse envolvimento dar-lhe-á estabilidade e confiança.
Deste modo, em função deste circunstancialismo, o Juízo de Família e Menores de Faro decidiu certeiramente ao atribuir o direito de utilização da casa de morada de família à ora requerente (…), face ao interesse prevalecente do superior interesse dos filhos menores, que tem aqui aplicação por extensão dos efeitos associados ao regime geral do processo tutelar civil.
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No precedente acordo sobre o destino da causa de morada de família ficou ajustado entre as partes que, relativamente ao contrato de mútuo celebrado para aquisição de habitação própria, o requerente (…) assumia o pagamento das prestações em dívida à Caixa Geral de Depósito, acrescida do seguro.
Em modificação desta cláusula, o julgador «a quo» decidiu que competia a ambas as partes «o pagamento das despesas (comuns) com a habitação (v.g. prestação de empréstimo e seguro) à requerente e requerido, na proporção de metade para cada um, sem prejuízo dos acertos/compensações que venham a ser efectuados em sede de partilhas».
O recorrente discorda desta nova vinculação e refere que «nunca poderia o Tribunal “a quo” estabelecer como contrapartida para o Recorrente, que está impedido do seu uso e fruição, ainda ter de suportar metade das despesas, o que nem foi peticionado pela Recorrida».
Isto é, o recorrente não percebe a razão da sua condenação a proceder ao pagamento de metade da prestação bancária e acessórios, quando, num momento anterior, por acordo entre ambas as partes, aquele que beneficiava do gozo exclusivo da casa suportava o integral pagamento dos encargos bancários.
Na relação externa dinâmica com a Caixa Geral de Depósitos, por força do contrato celebrado, estamos perante uma vinculação solidária em que, como resulta da regulação estabelecida nos artigos 512º a 533º do Código Civil, existe a obrigação de qualquer um dos devedores de realizar a prestação integralmente, com a consequente irradiação do efeito liberatório dos demais devedores, sem prejuízo do direito de regresso contra os restantes obrigados.
Todavia, ainda assim, no plano das relações internas, sem que isso possa afectar o direito ao pagamento integral do credor, não obstante a prestação ser fixada globalmente, por acordo ou através de decisão fundada do Tribunal, é possível determinar que a cada um dos sujeitos compete apenas uma parte do débito comum, tendo em atenção parâmetros como o da situação económica de cada uma das partes ou do uso exclusivo da habitação, sem prejuízo do eventual acerto futuro de contas.
Ciente dos efeitos que a mudança do direito de habitação acarretava no domínio das relações internas, a fim de estabelecer algum equilíbrio contratual, o Tribunal decidiu que essas despesas fossem suportadas na proporção de metade.
Importa, antes de mais, esclarecer que, parcelarmente, a decisão da Primeira Instância está transitada relativamente à quota-parte da vinculação da recorrida. E, assim, estritamente no domínio das relações internas, resta saber se o recorrente deverá ser dispensado do pagamento como pretende ou se está vinculado ao pagamento de uma percentagem máxima de 50% dessas responsabilidades bancárias e afins.
Quid juris?
Embora conceptualmente não se esteja num quadro de atribuição de compensação pelo uso exclusivo da casa, no plano prático o estabelecimento da referida medida judicial correctiva tem exactamente esse valor axiológico e, por isso, é a essa luz que a questão jurídica deve ser equacionada em ordem a obter uma solução equitativa.
A medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta atribuição a título oneroso, quando decretada, uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família[15].
E, prosseguindo, o aresto fundamento citado no parágrafo anterior assegura que, ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, a norma do nº 7 do artigo 931º do CPC é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família[16] [17].
Se em abstracto uma solução como aquela que foi prefigurada no acto postulativo recorrido é perfeitamente admissível – estamos no domínio dos processos de jurisdição voluntária onde existe uma elasticidade decisória e o princípio do dispositivo emerge de forma mitigada [18] [19] [20] [21] [22]; na sua dimensão concreta, esse direito a uma compensação pelo uso exclusivo da casa de morada pelo outro cônjuge ou contrapartida de conteúdo tendencialmente equivalente exige uma ponderação judicial, casuística e equitativa.
Se há ou não fundamento para impor ao requerido a obrigação de transferir para a requerente um determinado montante apesar desta passar a utilizar de modo exclusivo o imóvel que constituía a casa de morada de família até venda do referido bem ou se o suporte dessas despesas deve repartido é uma questão que tem de estar reflectida nos factos demonstrados.
Na presente hipótese não está assente qualquer facto relacionado com a situação económica líquida das partes, o respectivo trem de vida, o conjunto de despesas que cada um deles experimenta ou qualquer outro factor relevante que possa contribuir para a formulação de um juízo de apoio à divisão de despesas nos termos fixados e o juízo prudencial feito pelo Tribunal exigiria que o veredicto tomado estivesse suportado em dados de facto que o validassem.
Para mais, estamos num domínio em que imperam os poderes oficiosos do Tribunal e assim mais se justificaria que o julgador investigasse e transportasse que a decisão final os factos que se reportam a essa situação financeira e patrimonial das partes, mesmo que os mesmos não tivessem sido aduzidos pelos litigantes.
Até se admite que a decisão possa estar certa mas para que isso suceda o acto postulativo deveria de estar suportado em acontecimentos reais e concretos, que, na hipótese jurisdicional presente, não constam do catálogo dos factos provados.
Em conclusão, até realização da partilha de bens comuns, a modificação da decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios, sendo que este juízo deve estar suportado em factos que permita aferir a situação financeira líquida das partes.
Assim, neste segundo segmento revoga-se a decisão, devendo o Tribunal de Primeira Instância produzir prova de suporte relativamente à situação financeira das partes em ordem a definir o modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios naquela quota-parte de 50% em que a discórdia subsiste. E, por isso, neste momento e até a prolação da nova decisão, ambas as partes ficam vinculadas provisoriamente a suportar metade daquele pagamento, sem prejuízo de ulterior compensação, se for caso disso.
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V – Sumário:
1 – A atribuição da casa de morada da família é um processo (ou incidente) de jurisdição voluntária e essa resolução pode ser alterada com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a modificação da situação vigente, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão judicial já não acautele ou deixe de precaver, com equidade, os interesses de um dos ex-cônjuges[23].
2 – Até realização da partilha de bens comuns, a modificação da decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios, sendo que este juízo deve estar suportado em factos que permita aferir a situação financeira líquida das partes.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, julga-se parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente, decide-se:
i) confirmar a decisão de alterar o acordo celebrado no processo de divórcio e que atribui o direito de utilização da casa de morada de família à ora requerente (…).
b) revogar a decisão na parte em que determina que as despesas com a casa de morada de família (v.g. prestação de empréstimo e seguro) serão suportadas pela requerente e pelo requerido em partes iguais, devendo o Tribunal de Primeira Instância produzir prova de suporte relativamente à situação financeira das partes em ordem a fixar uma eventual compensação pela utilização da casa de morada de família
Custas a cargo das partes na proporção de 3/4 para o recorrente e de 1/4 para a recorrida, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 30/05/2019

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

Maria Domingas Simões


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[1] Ficou consignado na sentença que: «não se provaram os demais factos alegados, não sendo aqui de considerar a matéria conclusiva e de direito, que deverá ser ponderada em sede própria».
[2] Conforme acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2017, in www.dgsi.pt.
[3] Artigo 1793.º (Casa de morada da família):
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2013, in www.dgsi.pt.
[5] Na visão do Supremo Tribunal de Justiça, densificada no acórdão datado de 13/09/2016, in www.dgsi.pt, as «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art. 581.º do CPC –, nada tendo a ver com a eventual posterior invocação de uma diversa qualificação atribuída àqueles factos ou com uma diferente interpretação jurídica sobre situações de facto. Assim sendo, para tal efeito, a publicitação dum acórdão uniformizador de jurisprudência não constitui alteração da situação de facto existente no momento da decisão inicial.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/03/2007, in www.dgsi.pt.
[7] No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/03/2013, in www.dgsi.pt, afirma-se que «pressupõem necessariamente uma análise comparativa entre o estado atual das coisas e aqueloutro que existia aquando o acordo ou da prolação da decisão em vigor, apenas sendo possível concluir por uma alteração anormal e não apenas uma mera evolução natural e previsível do status quo ante, obrigando o requerente a indicar a factualidade que sustente essa alteração de circunstâncias e devendo fazê-lo de forma concludente e inteligível».
[8] Essa interpretação pode ainda ser encontrada nos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/09/2017, Tribunal da Relação do Porto de 25/02/2013 e de 22/05/2017 e Tribunal da Relação de Lisboa 08/10/2015, também disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 23/11/2017, in www.dgsi.pt.
[10] Em sentido próximo pode ser consultado o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/02/2013, in www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/11/2008, in www.dgsi.pt.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/04/2015, in www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/05/2015, in www.dgsi.pt.
[14] Pereira Coelho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989 – 1990.
[15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2016, in www.dgsi.pt.
[16] No mesmo enquadramento pode ser consultado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/04/2017, in www.dgsi.pt, que estipulou que: «é legalmente admissível a fixação de uma compensação patrimonial do cônjuge privado do uso daquela que foi a casa de morada de família por força da sua atribuição ao outro cônjuge até à partilha do bem. Tal compensação deve ter lugar por razões de justiça e equidade, designadamente porque o cônjuge privado do uso desse bem pode estar sujeito, e, por isso, não pode deixar de ter em conta as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges».
[17] A jurisprudência convocada pelo recorrente não tem aqui aplicação, pois se assim fosse, ao contrário do efeito pretendido, ficava «excluída a possibilidade deste último vir ulteriormente, em ação declarativa comum (por via principal ou reconvencional), pedir e obter essa mesma contrapartida pecuniária, unicamente fundamentada nesse direito, que eventualmente lhe assistiria, mas que do mesmo acordo não fez constar» (acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito do processo registado sob o nº 423/17.6T8GMR).
[18] Tal como proclama o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão datado de 05/02/2019, in www.dgsi.pt, o processo de atribuição da casa de morada de família é de jurisdição voluntária e, assim, não está totalmente limitado pelo princípio do dispositivo.
[19] Com essa finalidade, conferiu aos tribunais os poderes necessários para o efeito – v.g. o poder para investigar livremente os factos necessários à decisão e de recolher as provas que entendam pertinentes, rejeitando as demais (art. 986.º, n.º 2, do CPC), o poder de decidir segundo critérios de conveniência e de oportunidade (art. 987.º do CPC) e, na generalidade dos casos, o poder de adaptar a solução definida à eventual evolução da situação de facto (art. 988.º, n.º 1, do CPC) – afastando, quando conveniente, certos princípios, conformadores do processo civil em geral, que disciplinam a sua intervenção enquanto órgãos incumbidos de resolver litígios que se desenrolam entre partes iguais, perante os quais têm de adoptar uma posição de rigorosa imparcialidade, como se retira do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2017, in www.dgsi.pt.
[20] Neste particular tipo de processo o juiz tem liberdade de manobra para escolher o meio que reputa como sendo o melhor para alcançar o fim que se propõe concretizar e que é a justa decisão do caso que é trazido a juízo em vez da obediência a regras normativas rígidas (como nos processos de jurisdição contenciosa: art. 659, n.º 2, in fine), vigora a liberdade de opção casuística pelas soluções de conveniência e de oportunidade mais adequadas a cada situação concreta (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 71).
[21] Quer isto dizer que o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa. O juiz funciona como um árbitro, ao qual fosse conferido o poder de julgar ”ex aequo et bono” (José Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pág. 400).
[22] A propósito do princípio do dispositivo pode ainda ser auscultada a posição de Mariana França Gouveia, in o princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual, em http://www.oa.pt/upl.
[23] No já citado acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 23/11/2017, in www.dgsi.pt.