Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4029/16.9T8STB-C.E1
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS LABORAIS
LOCAL DE TRABALHO HABITUAL
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - O privilégio creditório reconhecido aos créditos laborais na al. b) do n.º 1 do artigo 333.º do CT foi criado pela lei como sendo especial, estando na sua génese a norma impositiva que consta do n.º 3 do art.º 59.º da CRP, à qual, por sua vez, subjaz a consideração de que o salário representa mais do que um crédito, já que, as mais das vezes, é a única fonte de subsistência do trabalhador e do seu agregado familiar.
II - À face da sua letra é imperioso considerar que apenas são abrangidos pelo privilégio creditório especial ali concedido, os imóveis pertencentes ao empregador em que o trabalhador preste a sua actividade, o que, naturalmente, exclui outros imóveis que, sendo embora pertença da entidade empregadora, o trabalhador neles não preste trabalho.
III - Contudo, numa interpretação mais ampla, o privilégio imobiliário especial precipitado na al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT abrange ”todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à actividade empresarial da mesma, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização dos seu posto de trabalho, o que afasta, a se, qualquer ligação naturalística, atendendo-se apenas e tão-só à relação laboral existente, fonte do crédito e os bens imóveis afectos à actividade prosseguida, que constituem a garantia daquele, ficando excluídos todos aqueles imóveis embora pertencentes ao empregador, mas que estejam arrendados e/ou que tenham sido afectados a quaisquer outros fins diversos da específica actividade económico/empresarial (..)”.
IV - Ainda que caiba ao reclamante a alegação dos factos constitutivos do privilégio imobiliário especial, designadamente se o imóvel do empregador foi o local onde prestava a sua atividade laborar ou se aquele estava afecto a tal actividade, na ausência de tal alegação, pode esse facto ser adquirido processualmente, socorrendo-se o tribunal dos elementos constantes do processo ou procedendo-se à sua indagação oficiosa.
V - Na espécie, mesmo que se opte pela amplitude alargada do normativo sob apreciação, é inviável reconhecer que o imóvel constante da verba n.º 46 do auto de apreensão estava afectado à organização da insolvente e ao desenvolvimento da sua actividade, desvanecendo-se assim a imperiosa ligação entre as prestações laborais de que emergem os créditos laborais reclamados e o dito imóvel.
VI - Não se verificando a exigida conexão entre o imóvel em causa e o funcionamento da empresa, já que o imóvel subjudice não se encontrava afectado à organização empresarial da insolvente nem fazia parte das estruturas produtivas da mesma, mesmo como coadjuvante dos seus objectivos comerciais, sendo certo que a insolvente não tinha por objecto social o arrendamento de imóveis e ao fazê-lo actuou no domínio do direito privado, completamente à margem da actividade desenvolvida, é manifesto que o privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos dos trabalhadores não abrange o imóvel apreendido sob a verba n.º 46, sendo certo que o privilégio imobiliário especial conferido pela al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT, mesmo à luz da interpretação mais ampla do normativo, não incide sobre a globalidade dos bens imóveis da titularidade da entidade patronal.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
Decretada a insolvência de BB – Cooperativa de Consumo, CRL, por sentença proferida em 17 de Junho de 2016, transitada em julgado, foi prolatada a sentença de graduação de créditos, no dia 13 de Julho de 2018, na qual, e para o que ao caso importa, se escreveu:
“(…)
Importa considerar o art. 333º, do Código do Trabalho:
“1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”
No que respeita ao privilégio imobiliário especial dos trabalhadores tem vindo a entender-se que, o mesmo abrange todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à sua actividade empresarial e, à qual, os trabalhadores estejam funcionalmente ligados, independentemente da localização do seu posto de trabalho.
Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-05-2017, processo n.º 4118/15.7T8CBR-B.C1.S1, em que foi relatora a Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª Ana Paula Boularot, disponível em www.dgsi.pt.
Por sua vez, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor do bem imóvel hipotecado, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686.º e 693.º do Código Civil).
O pagamento dos credores garantidos ocorre prioritariamente após a liquidação dos bens onerados com garantia real e abatidas as correspondentes despesas, com respeito pela prioridade que lhes caiba.
O remanescente deste crédito que não se mostre integralmente pago e perante os quais o devedor responda com a generalidade do seu património, passa a ser incluído entre os créditos comuns - cf. art.º 174.º, do CIRE.
Estão nesta situação, os créditos garantidos por hipoteca.
O pagamento aos credores comuns tem lugar após o pagamento dos que sobre si prevalecem, e efectua-se na proporção dos seus créditos, se massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cfr. art.º 176.º, do CIRE).
Os créditos de natureza subordinada são aqueles que são graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, segundo a ordem definida no art.º 48.º do CIRE.
Assim, e tendo em conta os bens apreendidos serão pagos pelo produto da venda de cada um dos imóveis, respectivamente, os créditos que gozam de privilégio imobiliário especial, da titularidade dos trabalhadores seguidos dos créditos referentes a IMI, caso existam, sobre o imóvel a que respeita o crédito e dado que beneficia de privilégio imobiliário especial, seguidos dos garantidos por hipoteca sobre o imóvel em causa; e depois pelos créditos com privilégio imobiliário geral (IRC e ISS) depois pelos créditos comuns e por fim, dos créditos subordinados.
(…)
Pelo produto do bem imóvel apreendido sob a verba n.º 46, serão pagos:
- Em primeiro lugar os trabalhadores;
-Em segundo lugar a CC – Mútua de Seguros, CRL, com garantia hipotecária no montante de € 169.864,50;
- Em terceiro lugar os privilégios imobiliários gerais da Autoridade Tributária (IRC) e do ISS;
- Em quarto lugar os créditos comuns;
- Em quinto lugar o crédito subordinado.
(…)”
A credora, CC – Mútua de Seguros, CRL, não se conformando, neste último conspecto, com a decisão prolatada dele interpôs recurso, apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões:
“1. A recorrente foi notificada pelo Sr. A.I. nos termos do disposto no art. 129º nº 4 do CIRE de que lhe havia sido reconhecido um crédito no valor de € 85.180,32.
2. A recorrente impugnou o mencionado crédito com fundamento em que o valor total do credito que detinha sobre a insolvente era superior, acrescendo àquele um outro, no valor de € 171.894,93, garantido nos termos do art. 686º do Código Civil por hipoteca de 1º grau sobre imóvel sito na Rua das …, 112 e 112 A, em Lisboa, propriedade da BB-Cooperativa de Consumo, CRL., que lhe devia também ser reconhecido nos termos legais indicados.
3. A mencionada impugnação não foi objeto de resposta por qualquer das partes/intervenientes nos presentes autos, nomeadamente por nenhum dos trabalhadores reclamantes.
4. Mereceu a concordância do Sr. A.I. e a Comissão de Credores não proferiu sobre a situação qualquer resposta.
5. O Sr. Juiz a quo, na sentença ora em recurso, sob o número 5., reconhece à ora recorrente um crédito no valor total de € 257.075,25, sendo € 169.864,50 com natureza garantido por hipoteca sobre imóvel apreendido sob a verba nº 46 do auto de apreensão e € 87.210,75 com natureza comum, o que se aceita.
6. Mas já não se aceita que pelo produto da venda do referido bem imóvel apreendido sob a verba nº 46 sejam pagos em primeiro lugar os trabalhadores, relegando-se a ora recorrente para segundo lugar, como o fez a sentença sub judice, em frontal violação do quadro normativo aplicável, ao abrigo de um suposto privilégio creditório imobiliário especial que seria concedido àqueles pelo art. 333º nº 1 b) e nº 2 b) do Código do Trabalho.
7. Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros (art. 733º do CC), sendo da essência desta garantia as características de legalidade e de excecionalidade pelo que a mesma não é passível de interpretação extensiva em violação do art. 9º do CC e de analogia.
8. Apesar de em termos literais o privilégio imobiliário do citado art.333º do Código do Trabalho incidir tão só sobre o imóvel no qual o trabalhador presta a sua atividade, a jurisprudência vem fazendo uma interpretação distendida do preceito de modo a nele incluir os imóveis da entidade patronal que estejam afetos à sua atividade empresarial e à qual os trabalhadores estejam funcionalmente ligados/em conexão efetiva, independentemente da localização do respetivo posto de trabalho.
9. Esse entendimento não só não prescinde da alegação e prova pelos trabalhadores reclamantes da verificação dos correspondentes e necessários pressupostos fáticos quanto ao local de trabalho que poderão acionar a excecional prioridade no pagamento prescrita no art. 333º do Código do Trabalho,
10. Como requer a demonstração de uma necessária, indispensável e direta afetação dos imoveis em causa à atividade empresarial a que os trabalhadores estejam funcionalmente ligados, não se bastando com a circunstância de os mesmos constituírem meros ativos imobiliários da insolvente, uma vez que
11. No atual quadro normativo nacional não assiste aos trabalhadores um privilégio imobiliário especial sobre todo o acervo de bens imóveis pertencentes à sua entidade patronal, antes esse direito está circunscrito nos termos delineados no art. 333º do Código do Trabalho, tudo como consta da jurisprudência citada nas presentes alegações.
12. Extravasar os mencionados entendimentos quanto à interpretação já distendida do art. 333º do Código do Trabalho e respetiva aplicação, é atingir a violação de princípios consagrados constitucionalmente, designadamente dos princípios da legalidade, da igualdade e da segurança jurídica.
13. O Sr. Juiz a quo não podia, sem mais, decidir, como decidiu, pela prioridade dos trabalhadores no pagamento pelo produto da venda do referido imóvel, relegando a recorrente para segundo lugar, porque:
- nenhum trabalhador alegou ou provou nos autos que o concreto imóvel em questão constituía o seu local de trabalho ou, sequer, que o mesmo estava afeto à atividade empresarial/económica da insolvente nos termos supra referidos, ónus que lhes cabia,
- a impugnação de créditos da recorrente com a alegação de uma credito imobiliário garantido de pagamento prioritário não mereceu dos mesmos qualquer resposta;
- resulta dos autos que a atividade da insolvente se concretizava na sua sede e através de 30 lojas nos locais elencados no auto de apreensão de bens móveis a fls......, neles se não incluindo o imóvel em questão, cuja descrição imobiliária nenhuma relação tem com a atividade da insolvente, integrando apenas o seu património em razão de operação de fusão;
- inexiste qualquer facto nos autos que permitisse ao Sr. Juiz, sem mais, extrair a prova da afetação do mencionado imóvel aos fins que jurisprudencialmente vêm sendo aceites para efeitos do art. 333º do C Trabalho, não o podendo deduzir da simples circunstância de o mesmo integrar o ativo imobiliário da insolvente.
14. Pelo que se entende ter a sentença recorrida efetuado uma interpretação extensiva do preceito excecional que é a b) do nº 1 do art. 333º do Código do Trabalho, nele englobando todos os bens imóveis da insolvente, ainda que meros ativos imobiliários, interpretação extensiva que lhe estava legalmente vedada.
15. Os autos fornecem, nomeadamente no apenso da liquidação (apenso E), elementos comprovativos de que o imóvel em questão se encontrava ocupado e utilizado por terceiro para os seus respetivos fins e interesses há muitos anos, terceiro que exercendo o seu direito de preferência como arrendatário do referido imóvel, o adquiriu no âmbito dos presentes autos, razão pela qual inexiste de facto e de direito qualquer privilégio imobiliário especial dos trabalhadores sobre o produto da sua venda.
16. A sentença recorrida violou nomeadamente o disposto nos arts. 9º, 686º e 733º do CC, 333º do Código do Trabalho, 47º do CIRE e 607º do CPC, pelo que deve, no segmento ora em recurso, ser revogada e decidido que, pelo produto da venda do bem imóvel apreendido sob a verba nº 46, deve ser paga em primeiro lugar a ora recorrente, ajustando-se em conformidade a graduação dos demais credores.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida no segmento impugnado e graduado o credito garantido da ora recorrente em primeiro lugar para ser pago pelo produto da venda do imóvel apreendido nos autos sob a verba nº 46, assim se fazendo JUSTIÇA!”
Dispensados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC).
Tal como emerge das conclusões recursórias, a única questão a resolver resume-se a determinar se o crédito hipotecário que a recorrente detém sobre o imóvel sito na Rua das … n.º 112 e 112-A, em Lisboa, deve ser pago preferencialmente em face dos créditos laborais.

III. Fundamentação
1. De facto
Factos a Considerar
1. A insolvente dedicava-se a “promover ou realizar a aquisição de todos os bens alimentares, serviços e bens de uso corrente, incluindo o seu transporte, armazém e distribuição, para satisfação das necessidades dos seus associados, tendo, pela ap. 6/20090206 sido inscrita fusão, em que figura como incorporada Cooperativa de Consumo DD, CRL e incorporante a ora insolvente, BB – Cooperativa de Consumo, CRL (cfr. certidão junta como doc. 1 nos autos principais);
2. Do auto de apreensão de bens, que constitui o apenso B, consta:
“(…)
Verba n.º 46
Prédio Urbano - Casa de cave, rés-do-chão, 1.º andar e saguão com 6,5m2, sito na Rua das … n.º 112 e 112-A, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …, artigo matricial nº … da freguesia da Ajuda, concelho de Lisboa.
Valor Patrimonial: 94.298,38 €”;
3. O prédio referido em 2. foi transferido para o património da ora insolvente, por virtude da fusão referida em 1. (cfr. certidão da Conservatória do Registo Predial junta pelo AI em 21.11.2016, req. Ref.ª 24151204 no apenso B);
4. Por requerimento com a ref.ª 29568577, junto ao apenso da liquidação (apenso E), o AI, em 28.06.2018, informou os autos que: “(…) No seguimento da informação de 30/01/2018, foram celebradas as escrituras de compra e venda das verbas n.ºs (…) 46 (…), que se juntam como doc. n.º1”;
5. Por requerimento com referência 29844236, junto ao apenso de liquidação (apenso E), em 02.08.2018, o AI informou que juntou aos autos “(…) os documentos relativos ao arrendamento verba n.º 46 ao Partido … e respectivo recibo de renda para o ano de 2017 emitido pela Massa Insolvente no montante de € 90,00, valor idêntico à renda recebida pela insolvente no ano anterior;
Mais se informa que o Partido … exerceu o direito de preferência quanto à proposta aceite pelo imóvel, tendo-se já celebrado a escritura de compra e venda, conforme consta do n/requerimento que antecede”;
6. No requerimento referido em 5. o AI fez a junção do “contrato de arrendamento” celebrado em 26.05.1978, entre a Sociedade Cooperativa DD, CRL e o Partido …, da “Declaração – recibo”, nos termos do qual: “Na qualidade de administrador da Insolvência no processo n.º 4028/16.9T8STB, (…), em que é insolvente BB-Cooperativa de Consumo, CRL (…), declara-se que a massa insolvente recebeu por conta da renda o montante de 90,00 € do Partido … (…), com sede na Rua … n.º 112 e 112-A, da freguesia da Ajuda” e da carta registada com A/R, enviada no dia 03.01.2018, por EE – …Partners, FF Capital, SA ao Partido …, nos termos da qual: “(…) encarregue da liquidação do ativo da insolvente supra identificada e coadjuvante do Sr. Administrador de insolvência (…), para cumprimento do previsto no artigo 1091 do Código Civil na redacção que lhe foi dada pelo artigo 3.º do NRAU, informa V/Exa., na qualidade de inquilino que poderá exercer o direito de preferência na venda do prédio urbano – Casa de cave com 2 divisões, rés-do-chão com 4 divisões, 1.º andar com 5 divisões e terraço, sito na Rua das …, n.ºs 112 e 112-A, freguesia da Ajuda, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do registo Predial de Lisboa sob o n.º … e inscrito com o artigo matricial n.º … da mencionada freguesia;
7. À recorrente foi reconhecida a titularidade de um crédito sobre a massa insolvente no valor de € 257.075,25, sendo € 159.864,50, garantido por hipoteca sobre o imóvel sito na Rua das … n.º 112 e 112-A, em Lisboa e apreendido sob a verba n.º 46 do auto de apreensão.

2. De Direito
Na sentença apelada lê-se “Os créditos dos trabalhadores (créditos laborais) que gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário especial, relativamente aos imóveis pertença da insolvente e afectos à sua actividade empresarial, nos termos já considerados no despacho de 27-10-2017. Esclareceu o Sr. A.I. que relativamente aos créditos indicados sob condição se mostram preenchidas as condições, atento o encerramento da actividade da insolvente”.
E, mais adiante, “No que respeita ao privilégio imobiliário especial dos trabalhadores tem vindo a entender-se que, o mesmo abrange todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à sua actividade empresarial e, à qual, os trabalhadores estejam funcionalmente ligados, independentemente da localização do seu posto de trabalho.
Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-05-2017, processo n.º 4118/15.7T8CBR-B.C1.S1, em que foi relatora a Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª Ana Paula Boularot, disponível em www.dgsi.pt.
Por sua vez, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor do bem imóvel hipotecado, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686.º e 693.º do Código Civil).
O pagamento dos credores garantidos ocorre prioritariamente após a liquidação dos bens onerados com garantia real e abatidas as correspondentes despesas, com respeito pela prioridade que lhes caiba.
O remanescente deste crédito que não se mostre integralmente pago e perante os quais o devedor responda com a generalidade do seu património, passa a ser incluído entre os créditos comuns - cf. art.º 174.º, do CIRE.
Estão nesta situação, os créditos garantidos por hipoteca.
O pagamento aos credores comuns tem lugar após o pagamento dos que sobre si prevalecem, e efectua-se na proporção dos seus créditos, se massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cfr. art.º 176.º, do CIRE).
Os créditos de natureza subordinada são aqueles que são graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, segundo a ordem definida no art.º 48.º do CIRE.
Assim, e tendo em conta os bens apreendidos serão pagos pelo produto da venda de cada um dos imóveis, respectivamente, os créditos que gozam de privilégio imobiliário especial, da titularidade dos trabalhadores seguidos dos créditos referentes a IMI, caso existam, sobre o imóvel a que respeita o crédito e dado que beneficia de privilégio imobiliário especial, seguidos dos garantidos por hipoteca sobre o imóvel em causa; e depois pelos créditos com privilégio imobiliário geral (IRC e ISS) depois pelos créditos comuns e por fim, dos créditos subordinados.
(...)
Pelo produto do bem imóvel apreendido sob a verba n.º 46, serão pagos:
- Em primeiro lugar os trabalhadores;
- Em segundo lugar a CC – Mútua de Seguros, CRL, com garantia hipotecária no montante de € 169.864,50;
- Em terceiro lugar os privilégios imobiliários gerais da Autoridade Tributária (IRC) e do ISS;
- Em quarto lugar os créditos comuns;
- Em quinto lugar o crédito subordinado”.
Vejamos.
A al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do Código do Trabalho (doravante CT) estipula, sob a epígrafe “Privilégios creditórios”, que “1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
(…)
Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.”.
Como se sabe, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (art.º 733.º do Cod. Civil).
É uma garantia que visa assegurar pagamento de dívidas que, pela sua natureza, se encontram intimamente correlacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se, por isso, que sejam pagas preferencialmente a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens.
Dado que os privilégios creditórios constituem um entorse ao princípio da igualdade entre credores, o art.º 604.º do Cod. Civil impõe que os mesmos apenas possam ser criados por lei.
As normas que os criam têm, por isso, cariz excepcional, pelo que não admitem interpretação analógica (art.º 11.º do Cod. Civil)[1], o que bem se percebe tendo em conta que os privilégios creditórios não estão sujeitos a registo, sendo, como tal, ocultos e, logo, indutores de possíveis erros sobre a oneração dos bens do devedor.
Resulta dos n.ºs 1 e 2 do art.º 733.º do Cod. Civil, que os privilégios creditórios podem ser de duas espécies: mobiliários ou imobiliários. Os mobiliários são gerais caso abranjam o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente, ou especiais, quando incluem só o valor de determinados bens móveis. Já os privilégios imobiliários, segundo o n.º 3 desse artigo, seriam sempre especiais.
Esta distinção tem interesse porque, como resulta do art.º 751.º do Cod. Civil, só aos privilégios creditórios imobiliários especiais é reconhecido o direito de sequela, assumindo assim a verdadeira feição de uma garantia real de cumprimento das obrigações.
O privilégio creditório reconhecido aos créditos laborais na citada disposição do CT foi criado pela lei como sendo especial.
Na sua génese, encontra-se a norma impositiva que consta do n.º 3 do art.º 59.º da CRP[2], à qual, por sua vez, subjaz a consideração de que o salário representa mais do que um crédito, já que, as mais das vezes, é a única fonte de subsistência do trabalhador e do seu agregado familiar[3]. Percebe-se, pois, que, desde a Lei n.º 17/86, o legislador tenha procurado assegurar aos créditos laborais uma proteção eficaz.
A actual redacção do art.º 333.º, n.º 1, al. b) do CT de 2009 visou esclarecer dúvidas que se suscitavam e rebater orientações jurisprudenciais que se foram formando perante a redacção do preceito congénere do CT de 2003 (art.º 377.º, n.º 1, al. b)).
À face da sua letra é imperioso considerar que apenas são abrangidos pelo privilégio creditório especial ali concedido, os imóveis pertencentes ao empregador em que o trabalhador preste a sua actividade[4], o que, naturalmente, exclui outros imóveis que, sendo embora pertença da entidade empregadora nos quais o trabalhador não preste trabalho[5].
Aliás, como se reconheceu no Acórdão Uniformizador referido na nota 3, a “protecção reforçada que os créditos salariais merecem, não (...) justifica (...) que essa tutela tenha de ser absoluta e que se estenda tendencialmente a todo o património do empregador.”
Se assim não fosse, ter-se-ia de entender que o privilégio creditório aqui em causa teria sido impropriamente caracterizado pelo legislador como especial, já que abrangeria indistintamente todos os imóveis do empregador.
Ora, além de tal contrariar a presunção constante do n.º 3 do art.º 8.º do CT, obliterar-se-ia a necessária ligação entre a causa do crédito – que, no caso, é a prestação de trabalho remunerado – e o privilégio, assim se esvaziando a própria noção de privilégio creditório. É que, como se notou no citado aresto de 13 de Janeiro de 2015 “o que justifica a concessão do privilégio imobiliário especial aos créditos laborais é, sem dúvida, a especial ligação funcional – e não meramente naturalística – do trabalhador ao imóvel através do exercício da sua actividade, a qual, tendo de ser circunscrita no espaço e no tempo, não pode ser reportada aos diversos prédios ou fracções autónomas em cuja construção tenha participado, o que, podendo até integrar já património alheio por via de subsequente comercialização, não pode constituir o “imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade”, antes tendo de ser encarado como o resultado ou produto da respectiva actividade, como o seriam, v. g., os artigos de vestuário ou calçado produzidos pela respectiva entidade patronal que tais actividades tivesse por objecto.”.
Desta sorte, devem-se considerar excluídos “as outras unidades produtivas autónomas, sediadas em diversas localidades do país, nas quais o trabalhador não presta actividade.”[6].
Contudo, numa interpretação mais ampla, o privilégio imobiliário especial precipitado na al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT abrange ”todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à actividade empresarial da mesma, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização dos seu posto de trabalho, o que afasta, a se, qualquer ligação naturalística, atendendo-se apenas e tão-só à relação laboral existente, fonte do crédito e os bens imóveis afectos à actividade prosseguida, que constituem a garantia daquele, ficando excluídos todos aqueles imóveis embora pertencentes ao empregador, mas que estejam arrendados e/ou que tenham sido afectados a quaisquer outros fins diversos da específica actividade económico/empresarial (..)”[7]
Todavia, na espécie, mesmo que se opte pela amplitude alargada do normativo sob apreciação (como se fez na decisão apelada), é inviável reconhecer que o imóvel constante da verba n.º 46 do auto de apreensão estava afectado à organização da insolvente e ao desenvolvimento da sua actividade, desvanecendo-se assim a imperiosa ligação entre as prestações laborais de que emergem os créditos laborais reclamados e o dito imóvel.
Com efeito, independentemente da questão de que aos trabalhadores cabe o ónus da prova (n.º 1 do art.º 342.º do Cod. Civil) de que prestaram actividade no imóvel relativamente ao qual pretender invocar o correspondente privilégio creditório[8], e mesmo reconhecendo que o facto em questão não era essencial para o sucesso da sua pretensão e que este constitui um campo privilegiado para a actuação do princípio inquisitório – art.º 11.º do CIRE – e para a aquisição processual de determinados factos que não hajam sido expressamente alegados pelos interessados[9], a verdade é que a valoração de diversos elementos juntos ao processo de insolvência não evidencia as faladas e necessárias conexões.
Na verdade colheu-se dos autos, pela consulta do histórico do processo, que o imóvel estava desde 1978 (à data, pelo menos parte) arrendado ao Partido …, que exerceu o direito de preferência na compra da aludida verba n.º 46.
Por outro lado, os trabalhadores que se aprestaram a reclamar na insolvência os respectivos créditos laborais no processo de insolvência não alegaram tão-pouco que prestaram actividade no imóvel acima identificado ou, sequer, que o mesmo estava afecto à actividade a que se dedicava a insolvente e que os mesmos estavam a ele funcionalmente ligados.
Atente-se, em particular que do quadro de pessoal não resulta a existência de qualquer estabelecimento da insolvente no imóvel em causa, sito na Rua das …, 112-112-A, em Lisboa e nem dos autos resulta que naquele prédio fosse levada a cabo qualquer actividade da insolvente, mesmo escritórios ou armazém.
Repare-se, por outro lado, que o despacho de 27.10.2017 citado na sentença apelada nada esclarece em termos factuais, limitando-se a enunciar um entendimento que, a nosso ver, é demasiado amplo do preceituado na al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT e que nem sequer encontra arrimo na jurisprudência aí citada, sendo certo que “Para avaliar e reconhecer a existência dos privilégios e garantias reais e proceder à respectiva graduação, poderá o juiz, dentro dos poderes inquisitórios que lhe são conferidos pelos artigos 6.º e 411.º do CPC, por força do art.º 17.º do CIRE, pedir informações ao AI, solicitar-lhe a junção de documentos bem como o envio das reclamações para consulta, bem como proceder as diligências instrutórias que tiver por conveniente.
O juiz, para a aferição da verificação dos pressupostos que integrem o preenchimento de tal privilégio, deverá socorrer-se dos elementos constantes do autos, ainda que não expressamente alegados pelos credores reclamantes.
Tem vindo a ser entendido por alguma jurisprudência (Ac. da RC de 24.02.2015, acessível em www.dgsi.pt) impender sobre o credor reclamante o ónus de alegação e de prova da conexão entre a sua atividade ou a atividade empresarial da empresa e o imóvel relativamente ao qual pretende fazer valer o referido privilégio especial. Assim o imporia o dever que o artigo 128º, nº1, al. c), do CIRE faz impender sobre o credor reclamante de indicar “a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida e, neste ultimo caso, os bens ou direito objeto de garantia e respetivos dados de identificação registral, se aplicável”, em conformidade com as regras gerais do ónus da prova contidas no art. 342º do Código Civil.
(...)
Assim, e tal como foi entendido na sentença recorrida, aderindo à posição jurisprudencial maioritária, igualmente seguida por este tribunal de recurso, entende-se que, embora caiba ao reclamante a alegação dos factos constitutivos do privilégio imobiliário especial, designadamente se o imóvel do empregador foi o local onde prestava a sua atividade laborar ou se aquele estava afeto a tal atividade, na ausência de tal alegação, pode esse facto ser adquirido processualmente, socorrendo-se o tribunal dos elementos constantes do processo ou procedendo-se à sua indagação oficiosa (neste sentido, entre outros Ac. do STJ de 06.07.2011, acessível em www.dgsi.pt”.
“Portanto, mal andou a sentença de 1ª instância quando, depois de dizer – e bem – que os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, coloca o pagamento desses créditos laborais à frente dos créditos das hipotecas no tocante ao produto de todos os imóveis apreendidos, sem averiguar qual ou quais os imóveis onde aqueles trabalhadores prestavam a sua actividade laboral e, como dissemos, sem que tal indicação constasse da lista mencionada.
(…)
Também está apurado que os dois imóveis dados de hipoteca a favor do recorrente se situam em (...) e constituem imóveis habitacionais afectos à residência dos pais da sócia única da insolvente.
Por isso, o privilégio imobiliário especial dos trabalhadores que o disposto no art. 333º, nºs 1, al. b) e 2 do Cód. de Trabalho lhes confere, não abrange os referidos imóveis dados de hipoteca ao recorrente.
(…)
Incumbia ao mesmo juiz apurar, nomeadamente, recorrendo ao disposto no art. 58º do CIRE, mandando o administrador completar a lista com a identificação do imóvel ou imóveis sobre que versava o privilégio imobiliário especial dos trabalhadores, como se lhe exigia nos termos do art. 129º, nº 2 referido.
Não procedendo a tal, o juiz da 1ª instância incorreu em errado julgamento da graduação de créditos, passível de ser censurado por recurso de apelação, nos termos gerais, sem qualquer preclusão, como entendeu o acórdão recorrido”[10]
Atente-se ainda que nenhum dos trabalhadores respondeu à impugnação de créditos da recorrente e que a actividade da insolvente se desenvolvia na sede e através das lojas e armazéns referenciadas no auto de apreensão, entre as quais não consta o imóvel em questão.
Resulta, pois, que o imóvel subjudice não se encontrava afectado à organização empresarial da insolvente nem fazia parte das estruturas produtivas da mesma, mesmo como coadjuvante dos seus objectivos comerciais, sendo certo que a insolvente não tinha por objecto social o arrendamento de imóveis e ao fazê-lo actuou no domínio do direito privado, completamente à margem da actividade desenvolvida.
Como se refere no Ac. da RC de 18.12.2013[11] “Independentemente do específico local onde o trabalhador tenha desempenhado funções, dever-se-á exigir, para que o seu crédito possa ter guarida no privilégio especial previsto no citado art.º 333.º, n.º 1, al. b), que haja uma conexão entre o imóvel em causa e o funcionamento da empresa, sua entidade patronal”. Ora, não se verificando a exigida conexão é manifesto que o privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos dos trabalhadores não abrange o imóvel apreendido sob a verba n.º 46. É que, o privilégio imobiliário especial conferido pela al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT, mesmo à luz da interpretação mais ampla do normativo, não incide sobre a globalidade dos bens imóveis da titularidade da entidade patronal.
Temos, por isso, que os factos apurados não permitem concluir pela verificação dos pressupostos de que depende o reconhecimento do privilégio imobiliário especial aos trabalhadores reclamantes pela alínea b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT, no que tange ao imóvel em questão.
Desse modo, os respectivos créditos não beneficiam da preferência no pagamento que lhes foi reconhecida na sentença apelada, devendo, pois, reordenar-se, em conformidade (cfr. art.ºs 47.º, n.º 4, al. a) do CIRE, 668.º, n.º 1, 749.º e 751.º do Cod. Civil), a graduação dos créditos a serem pagos pelo produto da venda do imóvel constante da verba n.º 46 do auto de apreensão nos seguintes moldes:
- Em primeiro lugar a CC – Mútua de Seguros, CRL, com garantia hipotecária no montante de € 169.864,50;
- Em segundo lugar os privilégios imobiliários gerais da Autoridade Tributária (IRC) e do ISS;
- Em terceiro lugar os créditos comuns, entre os quais se contam os créditos laborais;
- Em quarto lugar o crédito subordinado.
Procede, pois, a apelação, mostrando-se prejudicada a apreciação do remanescente da argumentação expendida pela apelante em benefício da sua pretensão.

Sumário
I. O privilégio creditório reconhecido aos créditos laborais na al. b) do n.º 1 do artigo 333.º do CT foi criado pela lei como sendo especial, estando na sua génese a norma impositiva que consta do n.º 3 do art.º 59.º da CRP, à qual, por sua vez, subjaz a consideração de que o salário representa mais do que um crédito, já que, as mais das vezes, é a única fonte de subsistência do trabalhador e do seu agregado familiar.
II. À face da sua letra é imperioso considerar que apenas são abrangidos pelo privilégio creditório especial ali concedido, os imóveis pertencentes ao empregador em que o trabalhador preste a sua actividade, o que, naturalmente, exclui outros imóveis que, sendo embora pertença da entidade empregadora, o trabalhador neles não preste trabalho.
III. Contudo, numa interpretação mais ampla, o privilégio imobiliário especial precipitado na al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT abrange ”todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à actividade empresarial da mesma, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização dos seu posto de trabalho, o que afasta, a se, qualquer ligação naturalística, atendendo-se apenas e tão-só à relação laboral existente, fonte do crédito e os bens imóveis afectos à actividade prosseguida, que constituem a garantia daquele, ficando excluídos todos aqueles imóveis embora pertencentes ao empregador, mas que estejam arrendados e/ou que tenham sido afectados a quaisquer outros fins diversos da específica actividade económico/empresarial (..)”.
IV. Ainda que caiba ao reclamante a alegação dos factos constitutivos do privilégio imobiliário especial, designadamente se o imóvel do empregador foi o local onde prestava a sua atividade laborar ou se aquele estava afecto a tal actividade, na ausência de tal alegação, pode esse facto ser adquirido processualmente, socorrendo-se o tribunal dos elementos constantes do processo ou procedendo-se à sua indagação oficiosa.
V. Na espécie, mesmo que se opte pela amplitude alargada do normativo sob apreciação, é inviável reconhecer que o imóvel constante da verba n.º 46 do auto de apreensão estava afectado à organização da insolvente e ao desenvolvimento da sua actividade, desvanecendo-se assim a imperiosa ligação entre as prestações laborais de que emergem os créditos laborais reclamados e o dito imóvel.
VI. Não se verificando a exigida conexão entre o imóvel em causa e o funcionamento da empresa, já que o imóvel subjudice não se encontrava afectado à organização empresarial da insolvente nem fazia parte das estruturas produtivas da mesma, mesmo como coadjuvante dos seus objectivos comerciais, sendo certo que a insolvente não tinha por objecto social o arrendamento de imóveis e ao fazê-lo actuou no domínio do direito privado, completamente à margem da actividade desenvolvida, é manifesto que o privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos dos trabalhadores não abrange o imóvel apreendido sob a verba n.º 46, sendo certo que o privilégio imobiliário especial conferido pela al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT, mesmo à luz da interpretação mais ampla do normativo, não incide sobre a globalidade dos bens imóveis da titularidade da entidade patronal.

IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em conceder provimento à apelação e, em consequência, em reformula-se a graduação dos créditos a serem pagos pelo produto da venda do imóvel constante da verba n.º 46 do auto de apreensão nos seguintes moldes:
- Em primeiro lugar a CC – Mútua de Seguros, CRL, com garantia hipotecária no montante de € 169.864,50;
- Em segundo lugar os privilégios imobiliários gerais da Autoridade Tributária (IRC) e do ISS;
- Em terceiro lugar os créditos comuns, entre os quais se contam os créditos laborais;
- Em quarto lugar o crédito subordinado
Custas pela massa insolvente.
Registe.
Notifique.

Évora, 8 de Novembro de 2018
Florbela Moreira Lança (Relatora)
Elisabete Valente (1.ª Adjunta)
Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta)

__________________________________________________
[1] Assim SALVADOR DA COSTA, O Concurso de Credores, 2.ª ed., Almedina, pp. 165.
[2] Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, Coimbra, 4ª ed., pp. 777, tal norma encerra uma “discriminação positiva”.
[3] Sobre este aspecto, vide o AUJ de 23.02.2016, proferido no proc. n.º 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A e acessível em www.dgsi.pt e o Ac. do TC n.º 498/2003, publicado no DR, II Série, de 3 de Janeiro de 2004, que, apesar de se ter pronunciado sobre uma questão concreta, relativa ao sector da construção civil, que era a de se saber se os imóveis construídos para venda estavam abrangidos pelo privilégio previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT deverá ter-se em conta sua fundamentação.
[4] Neste sentido, vide JOANA VASCONCELOS, CT Anotado, 8.ª ed., Almedina, pp. 887 e 891.
[5] Assim, também, JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho à luz do novo Código do Trabalho, Coimbra, pp. 332). Neste sentido, decidiu-se nos Acs. STJ de 13.01.2015, proferido no proc. n.º 1145/12.0TBBCL-C.G1.S1 e acessível em www.dgsi.pt, de 30.01.2015 e de 20.10.2015, proferidos, respectivamente, no proc. n.º 1172/13.0T2STC-D.E1.S1 e no proc. n.º 6034/13.8TBBRG-C.G1.S1 e sumariados em www.stj.pt e ainda no Ac. RE de 28.06.2018, proferido no proc. n.º 1165/12.4TBVNO-E.E1 e acessível em www.dgsi.pt.
[6] Cita-se o sumário do referido Ac. do STJ de 20.10.2015, referido na nota 5.
[7] Ac. do STJ de 30.05.2017, proferido no proc. n.º 4118/15.7T8CBR-B.C1.S1.
[8] Assim, o Ac. do STJ de 07.02.2013, proferido no proc. n.º 148/09.6TBPST-F.L1.S1 e acessível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido, vide o recente Ac. desta Relação acima citado.
[9] Assim, o Ac. do STJ de 23.01.2014, proferido no proc. n.º 1938/06.7TBCTB-E.C1.S1 e acessível em www.dgsi.pt.
[10] Ac. do STJ de 21.04.2015, proferido no processo n.º 793/10.7T2AVR-A.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[11] Proferido no proc. n.º 2805/11.8TBVIS-D.C1, acessível em www.dgsi.pt.