Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
14/18.4T8NIS.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 01/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A cessação do contrato de arrendamento por revogação real pode ter lugar mediante acordo tácito entre as partes, consubstanciado na entrega das chaves e do locado e na receção deles pelo senhorio, executando-se imediatamente os efeitos da cessação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Autores: (…) e (…)

Recorridos / Réus: (…) e (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual os AA peticionaram que se declare que o contrato de arrendamento celebrado com a Ré (…) cessou por denúncia desta a 07/10/2017, condenando-se as RR a pagarem a quantia de € 2.200,00 acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação, a título de rendas e de indemnização pela mora no pagamento e pela violação do dever de aviso prévio.

Alegaram para tanto, em súmula, que:
- o contrato de arrendamento, em que a Ré (…) figura como locatária e a Ré (…) como fiadora, renovou-se automaticamente e por um ano a 01/06/2017;
- no dia 07/10/2017, a Ré (…) entregou as chaves do locado aos AA comunicando que estava desocupado, dando o contrato como cessado;
- o que constitui denúncia do contrato de arrendamento;
- as rendas relativas aos meses de Maio a Setembro de 2017 foram pagas em singelo, a 27/10/2017;
- nenhuma outra renda foi paga.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, conforme segue:
«a) Declaro cessado em 07.10.2017 o contrato de arrendamento celebrado entre os Autores (…) e (…) e a Ré (…) e que tem por objeto o 2.º e o 3.º andares do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 53, freguesia de Santa Maria da Devesa, vila e concelho de Castelo de Vide, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide sob o n.º (…)/19870423.
b) Condeno a Ré (…) a pagar aos Autores (…) e (…) a quantia de € 687,50 (seiscentos e oitenta sete euros, cinquenta cêntimos), absolvendo-a do demais peticionado.

c) Absolvo a Ré (…) da totalidade dos pedidos.»

Inconformados, os AA apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que condene as RR no pedido. Concluem a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1 - Como se viu na exposição e aqui se vai referir, a Meritíssima Juiz interpretou como um caso de revogação real a situação reportada de entrega das chaves da casa pela arrendatária e aceitação delas pelos Autores.
2 - Registou essa situação no ponto 8 da matéria de facto assente, no qual não transparece nenhuma ideia de acordo subjacente das partes.
3 - Mas a prova produzida em instrução, designadamente os depoimentos da arrendatária, aos minutos 2.42,3.11 e 3.42, de sua mãe, aos minutos 3.31, do Autor, aos minutos 4.14, 4.52, 5.00 e 8.03, e da Autora, aos minutos 1.51 e 2.07, permite que se extraia dela um outro facto que traz mais luz ao caso e que é o seguinte: A entrega das chaves da casa pela III Ré não resultou de acordo prévio com os Autores e estes, ao aceitar a chave, não quiseram desvincular a Ré das suas obrigações.
4 - Requer-se, por isso, que se adite esse facto ao elenco dos já tidos por provados.
5 - Ocorre, por outro lado, que a Meritíssima Juiz, apesar de, no ponto 5 da matéria assente, ter dado como provado que a Ré (…) assinou o acordo, não acolheu aí a consequência de, na contestação, ela se ter assumido expressamente como fiadora. Ora, devia, porque com essa confissão deu conteúdo à sua assinatura e a confissão nos articulados tem força probatória plena.

6 - Deve, por isso, aditar-se à matéria de facto ainda o seguinte: A Ré (…) assumiu, no artigo 1.º da contestação, ter-se obrigado como fiadora da arrendatária.
7 - Isso exposto, pensam os Autores estar em condições de demonstrar que, não obstante o vício decorrente da decisão surpresa que se aponta à sentença, é possível, na Relação, julgar desde já a causa em termos de total procedência.
8 - Estamos perante um caso de cessação de contrato de arrendamento e de responsabilização por fiança em que, face à douta sentença, se põe a questão de saber se a entrega/aceitação das chaves da casa constitui uma revogação real e se a subscrição do contrato por quem se apresenta como fiadora, mas sem que se tenha previsto uma cláusula de fiança, desobriga a fiadora.
9 - Nem os Autores nem a arrendatária disseram no processo que o contrato cessou por acordo, assumido ou de facto; antes resulta da posição que tomaram que a arrendatária se quis desobrigar do contrato por sua iniciativa, indiferente ao que os Autores quisessem e que estes nunca consideraram a entrega como extinção total dos vínculos contratuais.
10 - Quanto à fiança, a Ré (…), que subscreveu o contrato apodando-se de fiadora, nunca recusou essa condição com o fundamento de que no texto, se não previra cláusula de fiança, antes expressamente se assumiu como tal.
11 - Face a essas posições não contavam os Autores, não podiam contar, que o tribunal visse na situação de entrega/aceitação das chaves uma revogação real, desvinculadora da arrendatária das obrigações decorrentes do desrespeito do prazo de aviso prévio de denúncia; e não contavam também que o tribunal considerasse liberta a fiadora com o fundamento com que a considerou.
12 - Não o entendeu assim a Meritíssima Juiz que, sem anunciar que admitia tomar uma e outra daquelas decisões, sem dar às partes a possibilidade de contraditório, como o impõe o art. 3.º, n.º 3, do C. P. Civil, assumiu aquele entendimento dos factos e julgou, com isso, parcialmente improcedente a causa.
13 - É a sua decisão uma decisão surpresa, que, por surpreender, negando o contraditório, é fator de nulidade.
14 - Deveria, pois, ser anulada a sentença, com repetição de julgamento em que fosse exercido o contraditório, se não fosse possível, como é o julgamento já da causa, nesta Relação, em termos de, revogada a sentença, se dar procedência integral ao pedido.
15 - Mas aos Autores se afigura que essa decisão pode ter já lugar, por os factos a considerar permitirem a condenação da arrendatária no pagamento da renda que deixou em dívida, a de Outubro de 2017, e correspondente indemnização, e no cumprimento das obrigações decorrentes do desrespeito de aviso prévio.
16 - E permite também, desde já, concluir pela condenação da fiadora.
17- Quanto às consequências da cessação do contrato, está assente no ponto 8 que a arrendatária entregou as chaves e que os Autores as aceitaram. Não se tendo dito aí que a entrega/aceitação representou a concretização de acordo no sentido de lhe pôr termo, não pode tal situação ser vista como revogação real.
18 - Fica reforçado esse entendimento se se aceitar a inclusão na matéria assente do facto referido na conclusão 3.
19 - Com ou sem este facto, certo é que faltava à caracterização da situação como revogação real o acordo que o Ac. da Relação do Porto, de 16-1-2018, acima citado considerou pressuposto necessário da revogação real.
20 - Afastada a revogação real, a situação é de denúncia pela arrendatária, sem respeito pelo prazo de aviso prévio, o que a coloca na obrigação de, como se pediu, ter de pagar a renda de Outubro de 2017 e respetiva indemnização e de ser responsabilizada pelo não cumprimento do aviso prévio.
21 - Não decidindo assim, violou a douta sentença o disposto nos artigos 1075.º, n.º 2, 1041º e 1098º, n.º 3, alínea a) e n.º 6, do C.Civil.
22 - Quanto à fiança, a assunção, pela 2.a Ré (…), da correspondente obrigação, ao aceitar, no artigo 1.º da contestação, a posição de fiadora, não permite que o tribunal desconsidere essa confissão, sendo que esta, assumida nos articulados, vincula aquela Ré.
23 - Vincula-a, não obstante vinda do advogado por ela constituído, porque, quando feita nos articulados, a posição do advogado vincula o constituinte.
24 - Nem a Ré (…), que também deve ter ficado surpreendida com a decisão, contava com solução contrária, como resulta do facto de não ter contestado a sua responsabilidade.
25 - Não decidindo assim violou a douta sentença o disposto nos artigos 352.º, 356.º e 358.º do Código Civil e no artigo 45.º do Código de Processo Civil.
26 - Devia, por tudo isso, ter-se, na douta sentença, condenado desde logo as Rés nos termos exatos do pedido.»

A Recorrida (…) apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- do aditamento à matéria de facto provada;
- da inobservância do princípio do contraditório;
- da cessação do contrato de arrendamento;
- da qualidade de fiadora da 2.ª Ré.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª Instância

1. Por acordo escrito intitulado «contrato de arrendamento para habitação de duração limitada», datado de 01.06.2015, (…) e (…) declararam dar de arrendamento à Ré (…), que aceitou tomar de arrendamento, para habitação, o 2.º e o 3.º andares do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 53, em Castelo de Vide, descrito na Conservatória de Registo Predial de Castelo de Vide com o n.º (…), freguesia de Santa Maria da Devesa e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…).
2. O contrato foi celebrado pelo prazo de 1 (um) ano, com início em 01.06.2015, renovando-se automaticamente por períodos iguais e sucessivos de 1 ano, caso nenhuma parte se opusesse à renovação, mediante comunicação escrita, com pelo menos, seis meses de antecedência.
3. Nos termos da cláusula terceira, número um, do contrato, a Ré (…) obrigou-se a pagar aos Autores uma renda mensal no valor de € 275,00 (duzentos e setenta e cinco euros), com vencimento até ao oitavo dia do mês àquele a que dissesse respeito.
4. No cabeçalho do contrato consta ainda como contraente “(…), NIF (…), titular do cartão de cidadão n.º (…), residente em Castelo de Vide. Na qualidade de FIADORA”.
5. A Ré (…) assinou o acordo mencionado em 1).
6. A Ré (…) apenas entregou as quantias por conta das rendas vencidas entre Maio a Setembro de 2017, em 27 de Outubro de 2017.
7. A Ré (…) não entregou aos Autores qualquer quantia por conta da renda vencida em Outubro de 2017, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente até à presente data.
8. Em 07.10.2017, a Ré (…) saiu do imóvel, entregando aos Autores as chaves, que as receberam, desocupando o imóvel.
9. A Ré (…) não comunicou por escrito e previamente aos Autores que pretendia sair do imóvel em 07.10.2017.

B – O Direito

Do aditamento à matéria de facto provada

Os Recorrentes sustentam que deve aditar-se aos factos assentes o seguinte: A entrega das chaves da casa pela Ré não resultou de acordo prévio com os Autores e estes, ao aceitar a chave, não quiseram desvincular a Ré das suas obrigações.

Trata-se, contudo, de factualidade que não se mostra alegada nos articulados que instruem os autos.

Nos termos do disposto no art. 607.º, n.º 3, do CPC, os fundamentos da sentença devem incluir o rol dos factos que são julgados provados e o dos que são julgados não provados. Os factos a enunciar como provados hão de ser colhidos entre os factos essenciais que as partes alegaram[1], conforme determinado pelo art. 552.º, n.º 1, al. d), do CPC. São esses os factos de que é lícito ao juiz conhecer (art. 411.º do CPC), e é sobre esses que se impõe profira juízo de provado ou de não provado. O juiz atenderá ainda à prova tabelada produzida nos autos, atento o disposto na 2.ª parte do n.º 4 do art. 607.º do CPC, podendo lançar mão de algum facto demonstrado por documento que repute relevante para a matéria em discussão – sendo certo, porém, que a junção de documento não é apta a suprir a lacuna de alegação do facto.

Para além desses, cabe ao juiz conhecer de factos que não dependem de alegação pelas partes: são os factos que não carecem de alegação ou de prova, conforme estatui o art. 412.º do CPC, e ainda aqueles que não carecem de alegação por via do artigo 5.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC.

Na verdade, por via do Princípio do Dispositivo consagrado no art. 5.º do CPC, só há que atender aos factos alegados pelas partes, a quem cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, sem prejuízo dos factos enunciados no n.º 2 de tal normativo (factos instrumentais que resultem da instrução da causa e factos complementares ou concretizadores de factos essenciais alegados que resultem da instrução da causa desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar, factos notórios ou aqueles de que o tribunal tenha conhecimento por virtude das suas funções). O Princípio do Contraditório, por sua vez, determina que não é lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC.

O que determina que factos essenciais não alegados não possam ser incluídos no rol dos factos julgados provados, sob pena de excesso de pronúncia; tais factos não podem ser considerados, implicando, nessa parte, na nulidade da decisão[2] – arts. 195.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Termos em que se conclui que, por se tratar de factualidade não alegada, inexiste fundamento para atender tal pretensão dos Recorrentes.

Não cabe ainda aditar à matéria de facto que «a Ré (…) assumiu, no artigo 1.º da contestação, ter-se obrigado como fiadora da arrendatária», conforme propugnado pelos Recorrentes. Tal afirmação consubstancia um dado processual recolhido do próprio processo, não integra a factualidade atinente ao circunstancialismo alegado pelas partes que estava sujeita a instrução e prova.

Da inobservância do princípio do contraditório


O princípio do contraditório encontra-se consagrado no art. 3.º, n.º 3, do CPC. Nos termos de tal preceito legal, «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»

O regime processual civil vigente não permite decisões-surpresa, decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente considerado[3]. Como bem salientam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[4], «O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no n.º 4 do art. 20.º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efetiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa.»

A inobservância do Princípio do Contraditório, a verificar-se, consubstancia, é certo, nulidade processual sujeita ao regime inserto nos arts. 195.º e ss do CPC[5]. No entanto e neste caso, por se encontrar coberta, ainda que de modo implícito, por decisão judicial, acaba por se projetar nela, por a inquinar, ferindo-a de nulidade[6] que consome a nulidade processual cometida, pelo que deve ser esgrimida em sede do recurso interposto dessa decisão.[7] Efetivamente, «sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d)[8]. Afinal, nesses casos, (…), a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do ato, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata, no recurso que seja interposto de tal decisão.»[9]

Na ótica dos Recorrentes, a sentença emitiu duas pronúncias surpreendentes e inesperadas: considerou a extinção do contrato de arrendamento fundada na revogação real e que a 2ª R não assumiu a qualidade de fiadora por inobservância do disposto no art. 628.º, n.º 1, do CC.

Ora vejamos.

A cessação do contrato por via da revogação real encontra acolhimento no art. 1082.º do CC. Este normativo consagra a revogação do contrato mediante acordo a tanto dirigido, que deve ser celebrado por escrito quando não seja imediatamente executado ou quando contenha cláusulas compensatórias ou outras cláusulas acessórias.

É, no entanto, possível celebrar de modo tácito ou implícito um negócio abolitivo ou extintivo do contrato de arrendamento.[10] Na verdade, se ocorre desocupação material do prédio, recebendo-o o senhorio, o contrato resulta revogado por revogação real.[11] A revogação real materializa-se e consuma-se com a entrega das chaves e do arrendado ao senhorio e com o recebimento de tais elementos por banda deste, alcançando assim plena validade e eficácia; o apontado ato tem que ser interpretado e entendido no sentido de que, com ele, as partes quiseram de mútuo acordo, pôr termo, naquele momento, ao contrato de arrendamento.[12]

A revogação contratual consiste em figura jurídica diversa da denúncia do contrato. Esta opera a extinção do contrato mediante declaração de uma das partes à outra, dando conta da vontade de não pretender a renovação ou a continuação do contrato renovável ou fixado por tempo indeterminado. O que há de observar o regime estatuído nos arts. 1099.º e ss do CC.

No caso em apreço, os AA peticionaram que se declarasse que o contrato de arrendamento cessou no dia 7 de Outubro de 2017 por denúncia da Ré (…) nessa data. Sustentaram tal pretensão aludindo ao art. 1096.º, n.º 6, do CC, nos termos do qual a inobservância da antecedência mínima prevista para comunicação do arrendatário ao senhorio da intenção de impedir a renovação automática do contrato não obsta à cessação do contrato mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta. As RR, por seu turno, alegaram que já desde Maio de 2017 os AA tinham conhecimento que pretendia entregar o locado em Setembro de 2017, pois disso foram verbalmente informados, e que desde Novembro de 2017 os AA deram de arrendamento a terceiros o locado que receberam da R.

Efetivamente, as partes não aludiram, em termos jurídicos, à cessação do contrato por revogação real. Porém, «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito»[13], o que vale por dizer que a qualificação jurídica dos factos incumbe ao Tribunal.

Em consonância com tal regime, importa notar que o objeto do processo é conformado pelo pedido formulado e pela respetiva causa de pedir, o instituto jurídico pertinente que é convolado e que é «individualizado através da conjugação dos dois elementos fundamentais do pedido de resolução do conflito formulado pelo autor (art. 3.º, n.º 1): o pedido propriamente dito e os fundamentos de facto invocados. Note-se que, na fixação do contexto legal dos factos alegados não se consideram, propositadamente, os fundamentos de direito invocados pelo autor (…), Razão: não só a petição pode ser omissa quanto a estes fundamentos como o tribunal pode alterar a qualificação jurídica dos factos (art. 5.º, n.º 3).»[14]

O juiz pode, pois, decidir uma questão com base em norma não invocada pelas partes (art. 5.º, n.º 3, do CPC), mas não sem que antes estas tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre esse enquadramento jurídico (art. 3.º, n.º 3, do CPC). Porém, assim é desde que o enquadramento que vem a ser dado pelo tribunal seja manifestamente diferente do sustentado pelos litigantes, destacando-se pela originalidade, pelo seu carater invulgar e singular, objetivamente considerado; se, pelo contrário, a pronúncia do tribunal assenta sobre um dos possíveis enquadramentos jurídicos da questão com que a parte podia razoavelmente contar, não estamos diante de uma decisão-surpresa.[15]

No caso em apreço, perante os factos que foram alegados nos articulados, nomeadamente pela R no sentido de que tinha avisado previamente os AA que ia entregar o locado, tendo vindo a entregar as chaves, que os AA receberam, e que os AA no mês seguinte deram de arrendamento a terceiros o locado, a qualificação jurídica do enquadramento factual provado nos autos como cessação contratual por revogação real não constitui desfecho com que as partes não pudessem razoavelmente contar, não constitui decisão-surpresa.

Donde, não se verifica a nulidade invocada quanto a este concreto fundamento.

Já no que tange ao conhecimento oficioso da invalidade da fiança afigura-se assistir razão aos Recorrentes.
Tendo sido alegado pelos AA que a Ré (…) se obrigou como fiadora no contrato de arrendamento que assinou (cfr. art. 6.º da p.i.), reclamando a condenação solidária das RR no pagamento da quantia peticionada, as RR, em sede de contestação, afirmaram aceitar a referida alegação dos AA (cfr. art. 1.º da contestação). A questão atinente à (in)validade da fiança à luz do regime inserto no art. 628.º, n.º 1, do CC não foi equacionada nem existe qualquer elemento nos autos donde se retire que as partes podiam razoavelmente contar com a absolvição da Ré (…) do pedido de condenação no pagamento com fundamento em não se ter constituído fiadora naquela contrato.

Por conseguinte, a sentença enferma de nulidade por excesso de pronúncia quanto a tal matéria jurídica – arts. 3.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Uma vez que se mostram já fixados todos os factos alegados relevantes para o conhecimento da questão em apreço, e tendo as partes, em sede de alegações, emitido pronúncia quanto à questão jurídica atinente à (in)validade da fiança, por via do disposto no art. 665.º, n.º 1, do CPC, tomar-se-á conhecimento da mesma nesta instância de recurso.

Da cessação do contrato de arrendamento

Entendeu-se em 1.ª Instância que o contrato de arrendamento cessou por via da revogação real, não assistindo aos AA o direito a pagamento de quantia relativa a rendas que se venceriam posteriormente à entrega do locado.

Com o que não se conformam os Recorrentes, pugnando pela declaração de denúncia do contrato pela Ré (…) sem a antecedência legalmente fixada.

Ora, está provado que, em 07/10/2017, a Ré (…) saiu do imóvel, entregando aos Autores as chaves, que as receberam, desocupando o imóvel e, bem assim, que a Ré (…) não comunicou por escrito e previamente aos Autores que pretendia sair do imóvel em 07/10/2017.

Atentas as considerações que supra se deixaram expostas a propósito da caraterização jurídica quer da revogação real quer da denúncia do contrato de arrendamento, é manifesto que o referido circunstancialismo factual encontra acolhimento no instituto da revogação real. Efetivamente, a factualidade provada não se reconduz à comunicação pela Ré (…) aos Autores no sentido de pretender cessar o contrato de arrendamento; antes traduz o acordo tácito entre as partes, consubstanciado na entrega das chaves e do locado e na receção deles pelo senhorio, executando-se imediatamente os efeitos da cessação por acordo tácito.

Como se pode ler no já citado Ac. TRP de 22/04/2013, «em contexto de arrendamento urbano, a prova da desocupação do espaço arrendado pelo inquilino e do envio das chaves do mesmo ao senhorio, que as recebe, acarreta efeito extintivo do contrato por via da revogação real» (…), sendo certo que «com a cessação do arrendamento deixam de se produzir todos os efeitos a que ele era vocacionado, incluindo a obrigação de entrega da renda pelo inquilino, a contar do dia da ocorrência extintiva.»

Por conseguinte, não merece censura, quanto a esta matéria, a sentença exarada em 1.ª Instância, afirmando-se a extinção do contrato de arrendamento, com efeitos imediatos, a 07/10/2017.

Da qualidade de fiadora da 2.ª R

Os Recorrentes sustentam que a confissão da Ré (…) no sentido de que se obrigou como fiadora no contrato de arrendamento constitui fundamento bastante para a qualificar como fiadora e para a condenar solidariamente com a Ré (…).

Será assim? Manifestamente, não. A seguir-se a tese dos Recorrentes, um contrato de compra e venda de um bem imóvel sob a forma verbal alcançaria validade e eficácia perante o acordo das partes, caso o Autor o alegasse e o Ré confessasse tê-lo celebrado do modo alegado…

Ora, nos termos do disposto no art. 628.º, n.º 1, do CC, «A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada na forma exigida para a obrigação principal.»

A fiança constitui uma garantia de satisfação do direito de crédito, ficando o fiador pessoalmente obrigado perante o credor, assumindo obrigação que é acessória da que recai sobre o principal devedor (art. 627.º, n.ºs 1 e 2, do CC). Trata-se de uma «garantia pessoal tipo: o terceiro, fiador, assegura com o seu património a satisfação do direito do credor. É o que resulta da afirmação legal de que o fiador dica pessoalmente obrigado perante o credor. Em princípio, portanto, todo o património do fiador é responsável.»[16]

Para que se constitua validamente, porém, há de ser expressamente declarada.

Na medida em que, no caso em apreço, a fiança se reporta aos direitos de crédito decorrentes do contrato de arrendamento celebrado em 01/06/2015, a forma a observar na declaração expressa da fiança é a forma escrita – cfr. arts. 628.º, n.º 1 e 1069.º do CC.

Constata-se que à Ré (…) é atribuída a qualidade de fiadora e que a mesma assinou o contrato sob a menção «O Fiador». Nada mais dele consta relativamente à fiança. Não consta, portanto, declaração expressa por parte da R (…) no sentido de assumir a obrigação de satisfação dos direitos de crédito emergentes daquele contrato.

Na verdade, a simples intervenção mediante a assinatura de documento onde se menciona a sua participação como fiadora no contrato não traduz uma declaração expressa da vontade de prestar fiança, quando muito traduzirá uma declaração tácita nesse sentido (o que não assume relevância, atento o disposto no art. 628.º, n.º 1, do CC).[17] Como o contrato não contempla palavras que revelem a vontade de assumir a obrigação da fiança por parte da Ré … (cfr. art. 217.º, n.º 1, do CC), cumpre concluir que a fiança não foi validamente constituída, padecendo de nulidade por inobservância da forma legalmente prescrita (cfr. arts. 628.º, n.º 1 e 220.º do CC).

O que implica na improcedência da ação relativamente à Ré (…).


As custas recaem sobre os Recorrentes, que resultam vencidos nesta instância – art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do RCP.

Concluindo:
- o regime processual civil vigente não permite decisões-surpresa;
- se a pronúncia do tribunal assenta sobre um dos possíveis enquadramentos jurídicos da questão com que a parte podia razoavelmente contar não se trata de decisão-surpresa;
- a cessação do contrato de arrendamento por revogação real pode ter lugar mediante acordo tácito entre as partes, consubstanciado na entrega das chaves e do locado e na receção deles pelo senhorio, executando-se imediatamente os efeitos da cessação;
- a assinatura de um contrato sob a menção «o fiador» em que o subscritor é qualificado de fiador, por si só, não consubstancia uma declaração expressa da vontade de prestar fiança;
- verifica-se a nulidade da fiança assim prestada se a obrigação principal a que pretendia reportar-se deve constituir-se sob a forma escrita.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 31 de Janeiro de 2019
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos
__________________________________________________
[1] V. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2013, I vol. p. 541.
[2] Cfr. Acs. TRC de 19/06/2001, de 14/01/2014.
[3] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. I, 3.ª edição, p. 9.
[4] Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I vol., 2013, p. 27.
[5] Neste sentido, entre muitos outros, Ac. TRL de 15/05/2014.
[6] Cfr. Ac. STJ de 22/02/2017.
[7] Cfr. Acs., entre outros, TRL de 11/01/2011, STJ de 13/01/2005, TRP de 18/06/2007, TRE de 10/04/2014.
[8] Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, no caso da decisão-surpresa, proferida inobservando o princípio do contraditório, a nulidade processual é consumida pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d) e n.º 4, do CPC, dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão – cfr. artigos publicados no blogippc.blogspot.pt, entre os quais “Dispensa da audiência prévia e observância do dever de consulta”.
[9] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, 2016, p. 25.
[10] Henrique Mesquita, RLJ 125, 96.
[11] Jorge Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 5.ª edição, p. 347 e 348.
[12] Cfr. Acs. TRP de 09/01/2012 e de 22/04/2013.
[13] Art. 5.º n.º 3 do CPC.
[14] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., p. 33.
[15] Seguindo de perto os ensinamentos de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., p. 27 e 28.
[16] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 4.ª edição, p. 643 e 644.
[17] Neste sentido, cfr. Ac. TRL de 10/02/2015.