Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
760/11.3GEALR.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: LEGITIMIDADE PARA RECORRER
DEMANDANTE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: I - Os demandantes civis (não constituídos assistentes), dispondo embora de legitimidade para interpor recurso sobre a matéria de facto na estrita medida em que a correspondente materialidade se constitua essencial à procedência da respectiva pretensão (de carácter civil), só dispõem de uma tal legitimidade para sindicar a decisão da matéria de facto que não perturbe a decisão de facto levada sobre a integração do tipo-de-ilícito e a culpabilidade penal.
II - A impugnação dos factos julgados não provados em primeira instância sob alegação de que deviam ter sido julgados provados, no ponto em que não pode cindir-se a decisão que pertine à matéria da responsabilidade civil daquela decisão atinente à responsabilidade penal, está para fora do alcance da legitimidade impugnatória (recursiva) que a lei concede aos demandantes civis.
III - Os recorrentes/demandantes civis não dispõem de legitimidade para fazer reapreciar, por via recursiva, a matéria de facto concernente à «dinâmica do acidente» (pois que tal matéria não é cindível daquela outra, concernente à responsabilidade penal da arguida), ainda na medida em que o tribunal a quo, imputando a responsabilidade pelo acidente à ofendida (sem que este tribunal ad quem possa reabrir tal discussão), afastou a responsabilidade pelo risco.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I


1 – Nos autos de processo comum em referência, a arguida, SRAR, foi acusada, pelo Ministério Público, da prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 137.º n.º 1, do Código Penal (CP), e de uma contra-ordenação grave, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 103.º n.os 2 e 4, 138.º n.º 1 e 146.º n.º 1 alínea i) parte final, e no artigo 34.º, do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto-Regulamentar (DR) n.º 22-A/98.

2 – FAR, AFR e MOFR formularam pedido de indemnização civil contra a MAPFRE – SEGUROS GERAIS, SA (MAPFRE), pela quantia de € 57.835,08, a título de danos patrimoniais, e de € 160.000,00, a título de danos não patrimoniais alegadamente sofridos em decorrência dos factos acusados.

3 – O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP/CENTRO NACIONAL DE PENSÕES (ISS) deduziu, contra a MAPFRE, pedido de reembolso de prestações de segurança social.

4 – A arguida contestou, negando a sua responsabilidade na produção do acidente que os autos reportam.

5 – A MAPFRE contestou os pedidos.

6 – Precedendo audiência de julgamento, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, por sentença de 14 de Agosto de 2013, decidiu nos seguintes termos:

«Em face do exposto, decido:

1 - Julgar improcedente, por provada, a acusação pública e, em consequência:

a) Absolver SRAR da prática, como autora material de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal;

b) Absolver SRAR da prática uma contraordenação grave, sancionada com inibição de conduzir, prevista e punida pelo artigo 103º/2 e 4, com referência ao disposto nos artigos 138º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea i), “in fine”, ambos do Código da Estrada, e artigo 34º do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar 22-A/98, de 1 de Outubro

[…]

2 – Julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização cível formulado por FAR, AFR e MOFR e, em consequência:

e) Absolver Companhia de Seguros Mapfre Seguros Gerais, SA dos pedidos;

3 – Julgar improcedente, por não provado, o pedido de reembolso das prestações pagas deduzido por Instituto de Segurança Social, IP/CNP e, em consequência:

f) Absolver Companhia de Seguros Mapfre Seguros Gerais, SA do pedido;

g) Condenar os Demandantes FAR, AFR e MOFR e ISS, IP/CNP nas custas do peticionado civilmente, em cada um dos respectivos pedidos».

7 – Os demandantes civis, FAR, AFR e MOFR, com a adesão, adrede, do ISS, interpuseram recurso daquela sentença, que pretendem ver revogada.

Extraem da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1º Da sentença resulta que a ocorrência do acidente se deveu em exclusivo à conduta negligente e mesmo temerária da vítima, causal do evento, uma vez que não observou as regras básicas de segurança (sem que se enunciasse quais), a tomar em consideração no trânsito pedestre de qualquer via, numa zona mal iluminada.

2º Em abono de tal tese, foram referidos os factos provados de que DF atravessou a via fora da passadeira de peões, no sentido da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha da arguida, e que o local do embate é pouco iluminado, que a vítima trajava saia de cor escura e que a arguida circulava a menos de 50Km/h.

3º Por conseguinte, entendeu o tribunal que nada resultou provado no sentido de que fosse esperar a conduta da vítima – atravessar a faixa de rodagem fora da passadeira de peões, trajando roupa escura, num local mal iluminado – e a atenção da condutora, não fugiu dos parâmetros que citou, “Ao condutor de um automóvel exige-se um grau médio de atenção relativamente a todo o circunstancialismo em que se movimenta, mas certamente que não se lhe exige uma atenção tão profundamente expectante que tornasse a própria condução insuportável ou mesmo insustentável”.

4º Ou seja, entendeu o tribunal que não é exigível a qualquer condutor prever quer comportamentos culposos quer a ocorrência de situações objectivamente inesperadas.

5º Porém, não se está perante uma situação inesperada, nem culposa da vítima, não ficou provado a invasão brusca, apressada e inopinada da hemifaixa de rodagem, por onde a arguida circulava com o seu veículo.

6º Não se tendo também apurado, que a vítima tivesse iniciado a travessia de forma brusca e surpreendente que tivesse impossibilitado a arguida de qualquer reacção, nomeadamente a de imobilizar o veículo.

7º Muito antes pelo contrário, a vítima antes de atravessar a via, caminhava pelo passeio, no sentido Paço dos Negros/Almeirim, pelo seu lado direito, vinda da Igreja de S. José, à esquerda da arguida uma vez que esta seguia sentido Almeirim/Paço dos Negros.

8º Mais ficou provado, que no passeio onde DF caminhava, o mesmo é ladeado por lugares de estacionamento, sendo certo que, naquele momento não existiam quaisquer veículos estacionados, nem quaisquer outros obstáculos, inexistindo assim qualquer barreira física que obstruísse a visibilidade da arguida e a impedisse de ver a vítima.

9º A boa visibilidade do local resulta ainda da prova feita de que o mesmo configura uma recta, é dotado de luz pública e de que o tempo estava bom.

10º Pelo que foram também nestas circunstâncias dadas como provadas, que DF atravessou a via, fora da passadeira para peões, no sentido da esquerda para a direita, atento sentido de marcha da arguida, e que em nosso critério não consubstancia uma conduta negligente, nem foi isso que deu causa ao acidente.

11º Por consequência, a nosso ver, a origem do mesmo ficou a dever-se à conduta negligente da arguida, violação do dever de cuidado e de redução da velocidade do veículo, falta de atenção e de destreza na condução do seu veículo automóvel.

12º Atento o sentido de marcha da arguida, a 2 metros do início do traço que marca o início da passagem para peões, existe o sinal de informação H7, passagem para peões, que tem como finalidade informar da proximidade da passadeira para peões e dos cuidados a ter ante a aproximação da mesma, nomeadamente o de reduzir a velocidade.

13º Naquele concreto lugar (ao aproximar-se da passadeira) era exigido à arguida, observar o especial cuidado e dever de reduzir a velocidade, precisamente para que se apercebesse da presença de peões (arts.25º nº1 a) e 103º nº 2 do CE), porque na sequência lógica dos comportamentos exigíveis por estas normas, não era a de apenas parar caso se apercebesse da presença de peões na passadeira, o primeiro comportamento exigível a qualquer condutor é o de moderar e reduzir a velocidade.

14º Apesar da DF ter atravessado fora da passadeira e após a mesma, a arguida atentos os factos supra descritos, não podia deixar de se ter apercebido da sua presença e se não se apercebeu, isso só pode ser explicado por incapacidade visual da arguida motivada por doença, ou por estar a olhar para qualquer outra direcção que não fosse em frente, de tal forma que só se deu conta da vítima quando estava praticamente em cima dela.

15º Por outro lado, tendo a vítima sido embatida quando estava a terminar a travessia da via, cerca de 1-2m do passeio atento o sentido de marcha da arguida, de onde vinha não existiam quaisquer veículos estacionados nem quaisquer outros obstáculos, estando visível e ao alcance do campo de visão da arguida durante tempo e espaço suficientes para poder ser vista pela arguida, ter esta realizado as manobras expectáveis a um condutor atento, diligente e de normal destreza, de forma a ter sido evitado o acidente.

16º Porque resulta das regras da experiência comum que um veículo automóvel à velocidade de 40Km/hora percorre 11,11m/segundo e que as pessoas caminham à velocidade de cerca 3-4Km/hora percorrendo cerca de 1m por segundo, e apenas 1 segundo pode fazer toda a diferença, assim o comportamento humano permita uma reacção.

17º Um veículo utilitário como a da arguida (Ford Fócus), circulando à velocidade de 40Km/hora, com tempo seco, ainda que conduzido de forma desatenta, com piso no estado de usado e com pneus e suspensão em bom estado, nestas condições o tempo de reacção é de 1.48s, durante o qual o veículo percorre uma distância de 16m, a distância de travagem do veículo até à sua imobilização são 8m; Assim, o veículo precisava de 25m para se imobilizar totalmente, acessível e consultável em (Peões, atropelamentos e reconstituição de acidentes – Instituto de Engenharia Mecânica do IST (www.dem.ist.utl.pt/acidentes/para/seguranca/html).

18º A conclusão de que arguida não podia deixar de se ter apercebido da presença da DF, não pode deixar de sair também reforçada com factos instrumentais apurados com a produção de prova, entre os quais se salientam os seguintes:

- Circular a arguida com as luzes de cruzamento/médios permitindo, estas luzes ver quaisquer objectos ou obstáculos existentes na via até à distância de 30 metros;

- Conhecer a arguida bem o local por ser o caminho percorrido nas suas deslocações diárias;

- A posição da carteira da vítima (3,20m) após a linha transversal da passadeira, e da vítima na via de trânsito (14,9m) após a passadeira.

- A vítima ter sido embatida com a parte direita do veículo da arguida 1,20m após a passadeira junto ao passeio do lado direito

19º O arrazoado pelo tribunal “ad quo” na motivação sobre a matéria de facto (fls. 658) acerca da conclusão de como a arguida não podia ter visto a DF nem prever que a mesma ali se encontrasse, não é suportável pelos factos referidos, não convence, nem sequer é precisa na sua indicação (…a roupa escura que trajava) é diverso do ponto 13. dos factos provados (13. DF trajava saia de cor escura), para além de que briga e entra em contradição com os factos considerados provados de 1 a 14.

20º Mas se houve intenção de a emendar e reforçar através do afirmado no parágrafo seguinte, então é caso para dizer, que a emenda saiu pior que o soneto, ora sufragar-se tal entendimento, no depoimento duma testemunha que circulava no seu veículo, na rectaguarda do veículo da arguida a cerca de trinta ou 40 metros, e que por isso também não viu DF a atravessar a faixa de rodagem – isso não constitui um reforço, mas antes o seu contrário atentando contra a lógica das coisas e regras da experiência comum, quanto mais longe está o observador do ponto menos o observador o vê, e quantas mais as barreiras e os obstáculos existirem entre o observador e o ponto menores serão as possibilidades de o ver (nosso sublinhado para melhor precisão dos factos).

21º Mas a matéria das emendas, perplexidades e contradições não se ficou por aí, atentemos no afirmado no último parágrafo de fls. 658, na parte em que se refere à inexistência de elementos probatórios nos autos que permitissem concluir acerca da não moderação da velocidade por parte da arguida de forma a imobilizar a tempo a sua viatura e evitar o embate e se remete para as suas declarações, quando a fls.654, se consignou acerca das mesmas (…Efectivamente quando viu a vítima esta não estava na passadeira e já “estava em cima dela”, razão pela qual não reduziu a velocidade quando chegou junto à passadeira, tendo o embate ocorrido a cerca de 1,20 metros de distância desta).

22º Por último, mas não menos importante, e ainda na parte final do mesmo parágrafo foi feita a extraordinária conclusão, de que a obrigatoriedade de cedência de passagem só se impunha caso a arguida, caso tivesse visto DF, o que não resultava provado – ora esta afirmação não pode deixar de se retirar o seguinte corolário:

- a arguida só tinha o dever ceder a passagem e isso só se lhe impunha caso tivesse visto DF, então não a tendo visto podia avançar e atropela-la como atropelou.

23º Do que se discorreu nas anteriores sínteses somos forçados a concluir a arguida deveria ter reduzido a velocidade, parado e cedido a passagem à vítima, tal como o teria de fazer se a mesma tivesse efectuado a travessia da via na passadeira, e não cerca de 1-2m após a mesma, atento o sentido de marcha da arguida, não tendo reduzido a velocidade não se apercebeu da vítima, não imobilizou o veículo que conduzia o que fez com que embatesse na vítima quando esta estava a terminar a travessia da via.

24º O tribunal ao ter decidido a matéria de facto nos termos em que o fez errou na apreciação da prova e entrou e em contradição, tendo em conta os factos dados como provados nos pontos de 1 a 9. e dado como não provados os constantes nos pontos II e V, 9. (…quando DF estava a terminar aquela travessia, a arguida, que nunca se apercebeu da presença daquela, não imobilizou o veículo que conduzia…), a arguida atenta a referida factualidade dada como provada, não podia deixar de ser apercebido, nem tinha como deixar de se ter apercebido, da presença da vítima atentas as regras da experiência comum e da lógica das coisas da vida.

25º Por consequência do afirmado na antecedente conclusão, os factos constantes nos números II e V dos factos não provados não deveriam ter sido julgados como não provados, pois foi precisamente pela desatenção ao tráfego rodoviário e de não ter agido com a diligência a que estava obrigada e de que era capaz, que a arguida não se apercebeu da presença da vítima e acabou por nela embater.

26º Na fundamentação da sentença verificou-se contradição insanável entre os factos dados como não provados constantes nos números II e V e os factos dado como provados constantes nos números 1 a 14 e ainda entre decisão e a fundamentação probatória da matéria de facto e da matéria de direito (porque a ilicitude da arguida e contribuição desta para o processo causal derivou precisamente da violação dos deveres de moderar especialmente a velocidade e de a reduzir, artigos 24º, 25º e 103º do Código da Estrada).

27º A matéria de facto considerada como provada que serviu de base à decisão tomada foi a constante nos pontos nºs 7, 12, 13, e 14 dos factos provados, o que foi manifestamente insuficiente e com tal lacuna no apuramento da matéria de facto não se poderia ter decidido de Direito como se decidiu.

28º Assim, atento o vertido nas antecedentes conclusões leva-nos a concluir que a sentença recorrida padece dos vícios a que alude o art. 410º, nº2 do CPP.

29º Este é assim antes de mais, um caso de falta de culpa, ante a falta de culpa ou da falta de prova da culpa da vítima, não se apurou se fez o atravessamento sem prudência, sem se assegurar previamente da presença do automóvel na via, da distância que a separava do automóvel no início da travessia e a velocidade a que este circularia, se o podia fazer sem perigo de acidente e se o fez ou não rapidamente.

30º Aqui chegados, importa vincar que apesar de a vítima ter atravessado em local em que não o devia fazer, não é menos certo afirmar, que a arguida não estava dispensada dos deveres de cuidado, atenção e respeito pelas regras, nomeadamente de velocidade, tanto mais que se encontrava em local em que lhe era imposto específicos deveres de conduta estradal, encontrava-se no interior duma localidade e onde estava sinalizada a travessia de peões.

31º Ainda que se tivesse verificado a infracção da vítima, ao nº3 do art.101ºdo CE, essa infracção não constituí por si só, causa adequada do atropelamento nem se verificou o nexo de causalidade entre o atravessamento ilícito e a morte, ou seja, sempre faltaria o último pressuposto da responsabilidade civil para a imputação da mesma à vítima.

32º Por outro lado, admitindo que falhou a prova dos especiais deveres de cuidado, nomeadamente de redução da velocidade ante a aproximação da travessia para peões, apesar da existente sinalização da mesma, a falta de atenção, incapacidade de reação e falta de destreza da condutora perante o peão, que não surgiu de forma brusca, repentina e inopinada e também da falta de uma intervenção causal da vítima, então resta-nos o risco da circulação automóvel.

33º Na falta da prova da culpa da condutora do automóvel e arguida no atropelamento da vítima, o atropelamento não pode deixar de ser imputado ao risco do veículo automóvel, atento o disposto no artigo 503º do CC, atendendo que também a infracção da vítima não foi causa adequada do resultado por falta do nexo de causalidade entre o atravessamento e a morte da própria vítima, neste mesmo sentido (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2008 acessível em www.dgsi.pt) e ainda em sentido próximo (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/2011 acessível em www.dgsi.pt) (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2011 acessível em www.dgsi.pt).

34º Nos sobreditos termos, entendem os recorrentes que na douta sentença foram violados os artigos 24º, 25º, 101º e 103º do Código da Estrada e os artigos 483º, 503º, 506º e 570º do Código Civil.»

8 – O recurso foi admitido, por despacho de 7 de Outubro de 2013.

9 – O Dg.º Magistrado do Ministério Público em primeira instância respondeu ao recurso, propugnando pela confirmação do julgado.

Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«a) Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art.º 377º, n.º 1, do C. P. Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual;

b) Não tendo os demandantes / recorrentes requerido a sua constituição como assistentes, vedado lhes estará a possibilidade de poderem ver alterada a matéria de facto fixada na douta sentença nos termos que pretendem e que constituem o fundamento do recurso em causa;

c) Ao colocar-se em causa a decisão recorrida nos moldes em que é feita, para além de não ter fundamento quantum satis, é colocar em causa a convicção do tribunal, a qual, como se sabe, é intocável desde que devidamente fundamentada, motivada e objectivável em termos tais que permitam conhecer, sindicar e compreender o iter da sua formação;

d) A não impugnação especificada da decisão proferida sobre matéria de facto, nos termos e amplitude registados no art.º 412º, n.º 3, als. a), b) e c), do C. P. Penal, importará que se tenha esta por adquirida / inalterada, a não ser que se verifique algum dos vícios a que alude o art.º 410º, n.º 2, als. a), b) e c), do mesmo diploma legal, o que não será, manifestamente, o caso;

e) De resto, os recorrentes não deixam de aceitar, ainda que veladamente, que a prova será insuficiente para a condenação quando, no item 33 das suas conclusões, expressamente, fazem saber (sic), que “Na falta da prova da condutora do automóvel e arguida no atropelamento da vítima, o atropelamento não pode deixar de ser imputado ao risco do veículo automóvel, atento o disposto no art.º 503º do CC…”;

f) No mais, não terá ocorrido qualquer violação legal»

10 – A MAPFRE respondeu ao recurso, sem extractar conclusões da respectiva minuta, propugnando pela confirmação do julgado.

11 – Atenta a questão prévia suscitada pelo Dg.º respondente e o teor das conclusões da motivação, o objecto do recurso reporta-se à matéria (i) da legitimidade recursiva dos recorrentes/demandantes civis, e (ii) dos vícios da sentença revidenda.


II

12 – O Mm.º Juiz do Tribunal a quo julgou a matéria de facto nos seguintes termos:

«A.1) FACTOS PROVADOS

Com interesse, para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1. No dia 4 de Outubro de 2011, cerca das 20h45m, a arguida conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula (….), na Rua (….), em Fazendas de Almeirim, área desta comarca, no sentido Almeirim/Paço dos Negros.

2. O local configura uma recta, é dotado de luz pública, o pavimento é betuminoso, estava seco e o tempo estava bom.

3. A faixa de rodagem tem a largura total de 6 metros, e é composta por duas vias, uma em cada sentido de marcha, cada uma com a largura de 3 metros.

4. No sentido de marcha Almeirim/Paço dos Negros, a faixa de rodagem é ladeada por residências e, no sentido oposto, é ladeada por lugares de estacionamento, uns a seguir aos outros.

5. O local é, ainda, dotado do sinal de informação H7, que informa a existência de uma passagem de peões, sinal esse localizado a cerca de 2 metros do início do traço que delimita o início da referida passagem de peões, no lado direito, atento o sentido de marcha da arguida.

6. Nas circunstâncias de dia, hora e local acima referidos, DF caminhava pelo passeio, no sentido Paço dos Negros/Almeirim, pelo seu lado direito, vinda da Igreja de S. José em direcção à sua residência, sita na Rua (....), em Fazendas de Almeirim.

7. DF atravessou a via, fora da passadeira de peões, no sentido da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha da arguida.

8. O passeio onde DF caminhava é ladeado por lugares de estacionamento, sendo certo que, naquele momento, não existiam quaisquer veículos estacionados, nem quaisquer outros obstáculos.

9. Não obstante, quando DF estava a terminar aquela travessia, a arguida, que nunca se apercebeu da presença daquela, não imobilizou o veículo que conduzia, o que fez com que embatesse com a parte lateral direita do veículo por si conduzido em DF, projectando-a na direcção do capot, junto à óptica do lado direito, estilhaçando o pára-brisas do lado direito, vindo DF a imobilizar-se no solo, em decúbito lateral esquerdo.

10. A arguida só veio a imobilizar o veículo por si conduzido mais à frente.

11. DF sofreu lesões traumáticas crâneo-meningo-encefálicas, que determinaram a sua morte.

12. O local do embate é pouco iluminado.

13. DF trajava saia de cor escura.

14. A arguida circulava a menos de 50km/h.

Mais se provou que:

15. A arguida está reformada e aufere € 300,00 de pensão de reforma.

16. A arguida vendeu a farmácia da qual era proprietária pela quantia de € 200.000,00.

17. A arguida reside com o marido em casa adquirida através de empréstimo para a habitação.

18. Do certificado do registo criminal da arguida não constam antecedentes criminais.

Mais de provou quanto ao pedido de indemnização civil:

19. Por óbito de DF sucederam-lhe, como seus únicos e universais herdeiros, FAR, viúvo, e AFR e MOFR, filhos.

20. DF era beneficiária da Segurança Social n.º (…..).

21. A arguida conduzia o veículo automóvel no seu interesse e mantinha a direcção efectiva do mesmo.

22. O proprietário do veículo de matrícula (…..) transferiu a responsabilidade civil pelos danos emergentes da respectiva circulação a terceiros para a Companhia de Seguros MAPFRE SEGUROS GERAIS, SA, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…..).

23. Após o embate objecto dos autos, DF foi transportada para o Hospital Distrital de Santarém onde foi declarado o seu óbito, às 23 horas e 27 minutos.

24. DF tinha 79 anos à data do acidente mas era pessoa activa e dinâmica.

25. O casamento de DF e FAR durava há mais de 50 anos.

26. O falecimento de DF provocou no seu marido e filhos dor, consternação, angústia e tristeza.

27. DF ocupava-se da limpeza da casa e do tratamento das roupas de casa e do seu uso pessoal e do marido.

28. DF confeccionava as refeições, para si e para o marido e também para os filhos, nora, genro e netos e suportava os respectivos custos.

29. DF tomava conta da horta, que servia para a alimentação do agregado familiar.

30. Após o falecimento de DF, os filhos, nora e genro passaram a cuidar da casa onde o viúvo reside, a tratar da suas roupas e a preparar as suas refeições.

31. FAR ficou fragilizado, incapaz de tomar conta dos negócios sozinho.

32. FAR não quer estar em casa sozinho.

33. O estado de saúde de FAR agravou-se.

34. FAR está ansioso e sempre a falar da morte da esposa.

35. FAR telefona à filha frequentemente quando esta não está em sua casa.

36. A filha de FAR passa todas as manhãs em casa do pai e faz-lhe o almoço.

37. O filho de FAR dorme todas as noites em casa do pai.

38. A esposa do filho AFR, depois do trabalho, passa pela casa de FAR e faz-lhe o jantar e depois regressa a casa sozinha.

39. As tarefas domésticas e o tratamento da roupa de FAR são repartidos pela sua filha e nora.

40. Os filhos de FAR não podem estar muito tempo longe de casa do pai e não podem ausentar-se de férias.

41. DF auferia anualmente pensão de reforma de € 4.278,36.

Mais se provou quanto ao pedido de reembolso das prestações da Segurança Social:

42. O Instituto da Segurança Social, IP, no período compreendido entre Novembro de 2011 e Junho de 2013 pagou subsídio por morte e pensões de sobrevivência ao viúvo de DF – FAR – no valor de € 2.515,32 e € 3.466,68, respectivamente.

A.2) FACTOS NÃO PROVADOS

Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa, designadamente que:

Quanto à acusação pública:

I. Por ser necessário atravessar a via, DF abeirou-se da passagem de peões ali existente, parou e, depois de se certificar que não transitavam veículos em ambos os sentidos, atravessou a via.

II. A arguida estava desatenta ao tráfego rodoviário.

III. O veículo que vinha atrás da arguida buzinou.

IV. A arguida previu que, ao não imobilizar o veículo por si conduzido no espaço livre à sua frente, pudesse vir a embater em peões que atravessassem a passadeira, não se conformando com o resultado.

V. O acidente ocorreu, pois, em virtude de a arguida não ter agido com a diligência e consideração a que estava obrigada e de que era capaz, relativamente ao tráfego rodoviário, nomeadamente com desrespeito pelas regras relativas à cedência de passagem aos peões, deveres esses inerentes ao exercício da condução automóvel.

VI. Ainda assim, não se absteve de actuar.

Quanto ao pedido de indemnização civil:

A demais matéria factual alegada referente unicamente ao objecto do pedido de indemnização civil e que não consta dos factos provados foi considerada não provada, por falta de prova.

A.3.) MOTIVAÇÃO DE FACTO

(…….)

13 – O Dg.º Magistrado do Ministério Público em primeira instância suscita a questão da legitimidade dos demandantes civis para interporem o presente recurso, sublinhando, muito em síntese, que, não se tendo constituído assistentes nos autos, os peticionantes e recorrentes não podem, pela via recursiva, ver alterada a matéria de facto fixada no Tribunal a quo.

14 – Dispõe o artigo 71.º, do Código de Processo Penal, (princípio da adesão), que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

15 – Nos termos do disposto no artigo 74.º, do CPP, (i) o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente, (ii) a intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes, vale dizer, designadamente [artigo 69.º n.º 2 alínea c), do CPP], interpor recurso das decisões que os afectem, tendo, em consonância, e nos termos prevenidos no disposto no artigo 401.º n.º 1 alínea c), legitimidade para recorrer das decisões contra si proferidas.

16 – Vale por dizer que, ainda que a lei confira aos demandantes civis (lesados, não constituídos assistentes) legitimidade para interpor o recurso sub inde, tal faculdade é confinada à parcela da decisão contra si proferida, tal seja, ao segmento atinente à decretada absolvição do pedido de indemnização civil que formularam, carecendo os mesmos de legitimidade para recorrer da decisão no âmbito da matéria penal ou que tenha incidência penal.

17 – Ora, nos casos, como o presente, em que a base de facto da decisão atinente ao apuramento da responsabilidade penal (acção, ilicitude, culpa) coincide com aquela respeitante ao apuramento da responsabilidade civil (responsabilidade, dano e nexo causal entre acção e dano), o demandante civil dispõe de legitimidade, perante a abulia do Ministério Público e do arguido (inactivos perante o deciso), para sindicar toda a decisão levada, na instância, sobre a matéria de facto, incluindo a materialidade (reflexamente) criminal, sem comprimir, insuportavelmente, o caso julgado penal formado relativamente àqueles, conformados, sujeitos processuais?

18 – A questão da legitimidade dos (meros) demandantes civis para sindicar a matéria de facto sedimentada em primeira instância, pretextando que o Tribunal ad quem, em suprimento (seja pela via da impugnação da matéria de facto seja, como é o caso, pela via da invocação dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal), julgue provados factos que, na instância se julgaram não provados, integradores da responsabilidade civil do arguido mas, coincidentemente, da respectiva responsabilidade criminal, não tem tido solução unívoca na jurisprudência.

19 – Neste particular, e recenseando tão-apenas os acórdãos mais recentes e significativos, decidiu-se, no sentido da ilegitimidade: - no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-04-2003 (Processo 03P619), disponível, como os mais citandos, em www.dgsi.pt: (i) o demandante civil, não constituído assistente, carece de legitimidade para recorrer da decisão penal que, por «arrastamento», traz a improcedência do pedido civil; (ii) não resulta da lei essa faculdade de recurso nem do sistema, na medida em que o papel do demandante civil, que não é assistente, se subordina, como regra, às posições tomadas pelos outros sujeitos processuais, salvo na parte da decisão contra si directamente proferida; - no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-03-2004 (Processo 03P1801): (iii) … o demandante civil não tem legitimidade para recorrer da matéria penal, visando apenas a condenação do arguido…; - no acórdão, do Tribunal da Relação de Évora, de 22-06-2004 (Processo 975/04-1): (i) não se constituindo assistente, não pode a demandante civil recorrer da matéria de facto e pretender que o tribunal dê como provados os factos integradores dos crimes pelos quais o arguido foi absolvido (e que fundamentavam o pedido de indemnização que deduziu), por carecer de legitimidade para tal; (ii) a limitação do recurso prevista no artigo 403.º n.º 1 do CPP supõe a possibilidade de autonomizar a parte da decisão de que se recorre da restante, de modo a que não se verifiquem contradições ou incompatibilidade de decisões; - no acórdão, do Tribunal da Relação de Évora, de 24-01-2006 (Processo2461/05-1): (i) ao recorrente, intervindo na simples veste de demandado, falece o pressuposto de legitimidade processual para atacar os aspectos penais da condenação, pois a lei não coloca ao alcance das suas prerrogativas processuais o ataque – ao menos o ataque frontal – ao decidido em sede estritamente penal da sentença recorrida, com a qual o arguido se conformou; (ii) essa prerrogativa está reservada exclusivamente ao Ministério Público, aos assistentes e ao arguido condenado; (iii) ao demandado apenas assiste o direito de impugnar por via do recurso o segmento da sentença contra si proferida, que é, obviamente, a matéria relativa à indemnização civil – sua responsabilidade, prejuízos decorrentes do facto ilícito e quantum indemnizatório; - no acórdão, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06-03-2006 (Processo 1563/05-1): (vi) … quando o recurso civil tenha implícito o recurso em matéria penal, o recorrente, para ser parte legítima, terá de ter a dupla qualidade de parte civil e de assistente, pois que o artigo 401.º do CPP não consente outra interpretação ao ter diferenciado a legitimidade para recorrer do arguido e do assistente, por um lado, e da parte civil, por outro; - no voto de vencido levado no acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05-06-2012 (Processo 1837/02.1PFLRS.L2-5): (i) nem se diga que a acção, ilicitude e culpa, sendo pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, são também questões cíveis; (ii) não o são em processo penal; (iii) só o princípio da adesão permite que o lesado venha ao processo penal pedir uma indemnização cível, cabendo-lhe apenas alegar e provar os danos e o nexo causal entre a acção e os danos; (iv) digamos que adere ao que o processo penal já cuidou para apurar a prática do crime; (v) só tem que fazer o resto do caminho; (vi) resta-lhe o que é exclusivamente cível; (vii) e se assim é, carece de legitimidade para vir discutir, em sede de recurso, as questões essencialmente penais (a acção, a culpa e a ilicitude); (viii) mas outro argumento se pode invocar em favor desta tese: a contradição que traria o provimento do recurso; - no acórdão, do Tribunal da Relação de Évora, de 07-12-2012 (Processo 141/09.9GBSTC.E1): (i) não obstante o teor do n.º 1 do artigo 377.º do CPP (…), na situação dos autos, a improcedência da acusação penal não podia deixar de arrastar consigo o pedido de indemnização civil, face à identidade dos factos em que se alicerçam [a responsabilidade penal e civil] e ao teor dos que foram julgados como provados e não provados; (ii) a lei apenas confere ao Ministério Público e ao assistente legitimidade para recorrer em matéria penal; (iii) considerando que a recorrente não detém a qualidade de assistente, está-lhe vedada a possibilidade de alterar a matéria de facto fixada na sentença recorrida, nos termos que pretende e que constituem o fundamento do recurso que interpôs: - no acórdão, do Tribunal da Relação de Évora, de 16-04-2013 (Processo 1458/10.5PAOLH.E1): (i) se as demandantes civis optaram por se não habilitar, via constituição como assistentes, à discussão paritária da matéria penal, isso tem como consequência ser intocável o objecto penal do processo.

20 – Por outro lado, no sentido da legitimidade, decidiu-se: - no acórdão, do Tribunal da Relação do Porto, de 11-07-2007 (Processo 0740032): o lesado/demandante civil que não se constituiu assistente tem legitimidade para recorrer da decisão proferida sobre a matéria de facto, abrangendo o seu recurso toda a decisão sobre essa matéria, se respeitar aos factos geradores da obrigação de indemnizar que constituam, simultaneamente, os factos ilícitos culposos tipificados como crime; - no acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05-06-2012 (Processo 1837/02.1PFLRS.L2-5) – cfr. voto de vencido, supra: (i) absolvido o arguido da acusação crime e do pedido de indemnização cível, o recurso interposto, apenas, pelo demandante cível que não se constituiu assistente, não afecta o caso julgado formado em relação à questão penal; (ii) o demandante cível que não se constituiu assistente tem legitimidade para recorrer da absolvição do pedido de indemnização cível e questionar, não apenas os pressupostos de natureza exclusivamente cível (dano e nexo causal entre a acção e o dano), mas também os pressupostos comuns à responsabilidade criminal (acção, ilicitude culpa); - no acórdão, do Tribunal da Relação do Porto, de 24-09-2014 (Processo 379/10.6TAPRD.P1): a parte civil tem legitimidade para, em sede de recurso, discutir a prova da existência do facto ilícito (portanto, dos factos que constam da acusação e que constituem o crime), a sua imputação a título de culpa ao arguido, os danos resultantes da violação e o nexo de causalidade entre os factos e os danos – mas não as questões relacionadas com os pressupostos da responsabilidade penal e da condenação; - no acórdão, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-01-2015 (Processo 247/09.4GTVIS.C1): não sendo conferida ao demandado cível a possibilidade de impugnar, por via de recurso, a vertente penal da sentença do tribunal da 1.ª instância, isso corresponde à impossibilidade, injustificada, de o mesmo contrariar, pela mesma via, a existência de todos os pressupostos do direito à indemnização.

21 – Sem qualquer desdouro para o douto argumentário trazido nestas decisões, não pode deixar de considerar-se que os demandantes civis (não constituídos assistentes), dispondo embora de legitimidade para interpor recurso sobre a matéria de facto na estrita medida em que a correspondente materialidade se constitua essencial à procedência da respectiva pretensão (de carácter civil), só dispõem de uma tal legitimidade para sindicar a decisão da matéria de facto que não perturbe a decisão de facto levada sobre a integração do tipo-de-ilícito e a culpabilidade penal.

22 – Com efeito, fazendo presentes o disposto no artigo 129.º, do Código Penal (no sentido de que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil), e o disposto, a respeito da responsabilidade por factos ilícitos, no artigo 483.º, do Código Civil (no sentido de que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação), fundado o pedido de indemnização civil na prática de factos consubstanciadores de um crime, não pode deixar de ter-se como coincidente um núcleo comum de factos – ilícitos, culposos, tipificados como crime – entre a acusação e causa de pedir da petição cível.

22 – Daí que não possa deixar de concluir-se [como decretoriamente se concluiu no acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora, de 16-04-2013 (Processo 1458/10.5PAOLH.E1), acima citado] que a impugnação dos factos julgados não provados em primeira instância sob alegação de que deviam ter sido julgados provados, no ponto em que não pode cindir-se a decisão que pertine à matéria da responsabilidade civil daquela decisão atinente à responsabilidade penal, está para fora do alcance da legitimidade impugnatória (recursiva) que a lei concede aos demandantes civis.

23 – Daí também que se não possa, nesta instância, reabrir a discussão sobre a matéria de facto, seja sob a perspectiva da verificação, ou não, de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, seja no âmbito de um, eventual, erro de julgamento.

24 – E assim, mesmo em sede de responsabilidade objectiva ou pelo risco, na medida em que, sedimentando julgado, a decisão revidenda se pronunciou, sobre a matéria, de modo incontornável:

«Importa ponderar a responsabilização pelo risco da arguida, segurada da Demandada Mapfre Seguros Gerais, SA e, consequentemente, desta última, ao abrigo dos artigos 500.º e 503.º, do Código Civil.

Porém, resulta dos factos provados que DF atravessou a via, fora da passadeira de peões, no sentido da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha da arguida; o local do embate é pouco iluminado; a vítima trajava saia de cor escura e a arguida circulava a menos de50km/h.

No caso sob apreciação julgamos que a ocorrência do acidente se deve em exclusivo à conduta negligente e mesmo temerária da vítima, causal do evento, uma vez que não observou as regras básicas de segurança a tomar em consideração no trânsito pedestre de qualquer via, numa zona mal iluminada.

Face ao exposto, inexistindo culpa da condutora do veículo com a matrícula 73-BF-93 e verificando-se culpa da lesada na produção do acidente, a responsabilidade pelo risco, prevista no artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil, extingue-se (art. 505.º e 570.º, n.º 2, do mesmo diploma legal).

Termos em que, o pedido de indemnização civil deverá ser julgado improcedente, por não provado.»

25 – Isto, na medida em que, nos termos supra, os recorrentes/demandantes civis não dispõem de legitimidade para fazer reapreciar, por via recursiva, a matéria de facto concernente à «dinâmica do acidente» (pois que tal matéria não é cindível daquela outra, concernente à responsabilidade penal da arguida), e na medida, por outro lado, em que, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo, imputando a responsabilidade pelo acidente à infortunada ofendida (sem que este Tribunal ad quem possa, pelas razões expostas, reabrir tal discussão), afastou a responsabilidade pelo risco (artigos 505.º e 570.º, do CC).

26 – Termos em que o recurso não pode lograr provimento.

27 – Impõe-se a condenação dos recorrentes nas custas, nos termos e sob os critérios prevenidos nos artigos 523.º, do CPP e 527.º, do Código de Processo Civil em vigor (que reproduz, sem alterações, o artigo 446.º, do CPC pré-vigente).


III

28 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelos demandantes civis, FAR, AFR e MOFR.

Custas pelos recorrentes.

Évora, 05 de Maio de 2015

António Manuel Clemente Lima (relator)

Alberto João Borges (adjunto)