Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
579/20.0T9LLE-A.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
INCUMPRIMENTO
DIREITO DE AUDIÇÃO
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A obrigação de audição pessoal do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, prevista no artigo 495.º CPP, mostra-se estabelecida para todos os casos de eventual revogação da suspensão de execução da pena.
II. Este direito de audição do condenado previamente à decisão de revogação da suspensão da execução da pena, é um reflexo do que se prevê no artigo 61.º, n.º 1, alínea b) CPP: de «ser ouvido [em qualquer fase do processo] sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete».
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 579/20.0T9LLE, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Loulé- Juiz ..., o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido em ..., a .../.../2001 e residente em ..., ... foi condenado nos autos, por sentença transitada em julgado, pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Esta pena ficou suspensa na sua execução pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova, assente num plano de reinserção social elaborado e vigiado pelos serviços da DGRSP, nos termos previstos nos artigos 53º e 54º, do Código Penal, plano vocacionado para a temática do crime perpetrado e obrigatoriedade de submeter-se e continuar o tratamento de problemática aditiva do consumo de opiáceos.
No decurso do período desta suspensão, ou seja, em 10-03-2022, 28-03-2022, 21-04-2022, 04-05-2022 e 15-07-2022, pela DGRSP foram elaborados relatórios de acompanhamento do regime de prova a que se sujeitou o arguido resultando dos mesmos, que comportamentos de agressividade, que motivaram a sua expulsão da comunidade terapêutica estarão conexionados com a sua anomalia psíquica, que fundamentou o seu internamento compulsivo por duas vezes.


O Ministério Público requereu nos autos, que fosse designada data para audição do arguido na presença dos técnicos da DGRSP que apoiam e fiscalizam as condições da suspensão, quer da DGRSP Equipa Porto Penal 5, quer da Equipa Algarve 1, em conformidade e para os efeitos do artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Tal requerimento obteve deferimento, pelo Tribunal “a quo”.

Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos foi proferido despacho que entendeu não ser de realizar audição de arguido nos termos do artigo 495º nº 2 do CPP e que tem o seguinte teor: “Dos relatórios da DGRSP juntos (10-03-2022, 28-03-2022, 21-04-2022, 04-05-2022 e 15-07-2022) resulta que os comportamentos de agressividade do condenado (um dos quais motivadores da expulsão da comunidade terapêutica) estarão conexionados com a sua anomalia psíquica, a qual, de resto, fundamentou o seu internamento compulsivo por duas vezes. Daí que, por ora, não se nos afigura estar em causa um incumprimento que se possa qualificar de culposo por parte do condenado e que justifique a sua audição para os efeitos do art. 55º ou 56º do Código Penal (que pressupõem tal culpa), tanto mais que do último relatório emerge a adesão daquele “aos diversos tratamentos”. Assim, aguardem os autos pelo próximo relatório periódico da DGRSP e decorrido 3 meses da presente data solicite nova informação ao inquérito 274/22.... sobre o estado do mesmo.
2. Salvo o devido respeito entendemos que violados os artigos 51.º a 56.º do Código Penal e o estabelecido no artigo 495.º do Código de Processo Penal.
3. O arguido AA foi condenado por sentença transitada em julgado em 07-12-2021 “pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, a contar da data do trânsito em julgado da sentença, com regime de prova, assente num plano de reinserção social elaborado e vigiado pelos serviços da DGRSP, nos termos previstos nos artigos 53º e 54º do mesmo diploma legal plano vocacionado para a temática do crime perpetrado e obrigatoriedade de submeter-se/ continuar o tratamento de problemática aditiva – consumo de opiáceos, nos termos supra expostos.”
4. Do plano de reinserção social junto aos autos em 13-01-2022 e homologado por despacho de 24-01-2022 resulta além do mais: “Condição imposta judicialmente: Obrigatoriedade de submeter-se /continuar o tratamento à problemática aditiva” Atividades: cumprir o programa terapêutico delineado na Comunidade Terapêutica Clínica do Outeiro, até alta clínica; no período posterior ao internamento em comunidade terapêutica, prosseguir com o acompanhamento na Equipa Técnica Especializada de Tratamento (ETET) do Algarve, ou outra instituição para a qual venha a ser encaminhado, em regime transitório ou ambulatório, comparecendo às consultas com a frequência que lhe for determinado pelos técnicos responsáveis pelo seu acompanhamento e executar todas as diligências (análise/ exames clínicos ou outros) que venham a ser solicitados pela instituição de tratamento, nomeadamente submetendo-se a teste de despiste de consumos de substâncias psicoactivas;
5. A DGRSP veio informar em 10-03-2022 além do mais: “Devido ao incumprimento severo das regras básicas de funcionamento da comunidade terapêutica, foi decidida a expulsão do arguido, com efeitos a partir do dia 09/03, altura que a família foi buscar o arguido à CT.”
6. O Ministério Público em 14-03-2022 promoveu, além do mais, que se designasse data para audição do arguido na presença dos técnicos da DGRSP que apoiam e fiscalizam as condições da suspensão, quer da DGRSP Equipa Porto Penal 5 (por videoconferência ou webex), quer da Equipa Algarve 1 em conformidade e para os efeitos do artigo 495º nº 2 do CPP.
7. Posteriormente o Ministério Público renovou tal promoção para agendamento da referida diligência.
8. Foram designadas nos autos datas para realização da diligência a que alude o artigo 495º nº 2 do CPP, que foram adiadas em face das informações juntas aos autos dando conta que o arguido havia sido hospitalizado.
9. Por ofício de 02-09-2022 o CHUA-DPSM veio informar que o arguido tinha alta prevista para 06-09-2022 e por ofício de 16-09-2022 na sequência do despacho de 07-09-2022 o CHUA-DPSM veio informar que o arguido teve alta no dia 06-09-2022.
10. Em 21-09-2022 foi proferido o despacho de que ora se recorre.
11. Salvo o devido respeito é nosso entendimento que atenta a gravidade dos factos em causa nos autos não é adequado que os autos aguardem a remessa do “próximo relatório periódico da DGRSP”.
12. Aliás, neste momento não consta do processo qualquer informação referente ao encaminhamento que foi dado ao arguido após a alta hospital, não constando do processo qualquer informação sobre o estado de saúde actual do condenado, desconhecendo os autos o seu actual paradeiro e bem assim se o mesmo está a efectuar algum tratamento.
13. Salvo o devido respeito não podia o tribunal proferir decisão onde conclui pela inexistência de culpa do arguido apenas com base nos elementos que alude no despacho e sem proceder em conformidade com o disposto no artigo 495º nº 1 do CPP, designadamente procedendo à audição do condenado e dos técnicos e sem recolher outros elementos de prova, nomeadamente, elementos clínicos.
14. Não consta dos autos elementos que permitam em nosso entender concluir com certeza que o arguido não agiu com culpa como concluiu o tribunal no douto despacho de que se recorre, tanto mais que o arguido foi julgado e condenado como imputável.
15. É nosso entendimento que se mostra essencial, antes de mais, proceder à audição do condenado na presença dos técnicos da DGRSP para se aferir de eventual incumprimento e bem assim para concluir se tal incumprimento é culposo.
16. Aliás em face dos elementos constantes dos autos até se vislumbra que após a realização de tal diligência e em face do que resultar da mesma, se mostre necessário a realização de outras diligências de prova, designadamente, no que toca à junção de elementos clínicos e/ou audição da vítima, com vista a aferir de eventual incumprimento e bem assim para concluir se tal incumprimento é culposo.
17. Acresce que a diligência em causa e ao contrário do que consta do despacho recorrido não tem apenas como única finalidade que o tribunal adopte alguma das opções previstas nos artigos 55º e 56º do CP.
18. A diligência destina-se também e tal como decorre do artigo 495º do CPP, desde logo a aferir eventual necessidade de modificação dos deveres impostos em conformidade com o disposto no artigo 51º nº 3 do CP que refere “Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento”.
Face a todo o exposto, e salvo melhor opinião deverá dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho de 21-09-2022 que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos em conformidade com o disposto no artigo 495º, nº 2, do CPP, nomeadamente, designando data para audição do condenado na presença dos técnicos da DGRSP do Porto e de Faro que têm apoiado e fiscalizado o cumprimento das condições da suspensão.
Contudo, V. Exas, farão, como sempre, Justiça.

Neste Tribunal da Relação de Évora..., a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto.
Procedeu-se a exame preliminar.
Cumpridos os vistos legais, foi realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:
- Impugnação do despacho proferido que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos em conformidade com o disposto no artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal.

2 - Apreciando e decidindo:

Do despacho recorrido, resulta:
“Dos relatórios da DGRSP juntos (10-03-2022, 28-03-2022, 21-04-2022, 04-05- 2022 e 15-07-2022) resulta que os comportamentos de agressividade do condenado (um dos quais motivadores da expulsão da comunidade terapêutica) estarão conexionados com a sua anomalia psíquica, a qual, de resto, fundamentou o seu internamento compulsivo por duas vezes.
Daí que, por ora, não se nos afigura estar em causa um incumprimento que se possa qualificar de culposo por parte do condenado e que justifique a sua audição para os efeitos do art. 55º ou 56º do Código Penal (que pressupõem tal culpa), tanto mais que do último relatório emerge a adesão daquele aos diversos tratamentos.
Assim, aguardem os autos pelo próximo relatório periódico da DGRSP e decorrido 3 meses da presente data solicite nova informação ao inquérito 274/22.... sobre o estado do mesmo.
Notifique e comunique à DGRSP”.

Apreciando:
Resulta do disposto no artigo 495º, do Código de Processo Penal, quanto à falta de cumprimento das condições de suspensão, que:
(…)
2 - O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.
(…)
A obrigação de audição pessoal do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão mostra-se estabelecida para todos os casos de eventual revogação da suspensão de execução da pena, resultando tal obrigação do próprio texto da lei.
A existência do direito de audição do condenado previamente à decisão de revogação da suspensão da execução da pena, desde logo considerando o disposto no artigo 61º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, que prevê o direito do arguido, em especial e em qualquer fase do processo, de “ser ouvido sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete”, onde se inclui, obviamente, a citada decisão, por significar a supressão da sua liberdade.
Do despacho recorrido não resulta o concreto fundamento da sua prolacção, pois não especifica desde logo quais os concretos comportamentos do condenado, não concretiza porque estão os mesmos relacionados com a sua anomalia psíquica e, não esclarece de forma perceptível porque não constituem um incumprimento culposo.
Ou seja, o despacho prolatado não contém, para além da mera enunciação, qualquer fundamento concreto para a não audição do condenado, nos termos promovidos pelo Ministério Público, sendo certo que objectivamente se trata de uma situação de algum melindre e concreta perigosidade, de que o tribunal não se pode de todo alhear, sob pena de mais tarde poder vir a lamentar tal falta intervenção atempada.
Assim, impõe-se sempre tentar ouvir pessoalmente o arguido para se aferir da eventual violação culposa das condições a que a suspensão da execução da pena foi subordinada ou modificação dessas mesmas condições face alteração dos seus pressupostos de aplicação.
Deverá sempre e mais ainda neste tipo de situações concretas, existir proximidade do tribunal que suspende a execução da pena e, o cumprimento das condições a que a suspensão da execução da pena foi subordinada, atento o teor dos relatórios técnicos juntos aos autos, que relatam incumprimentos do condenado, relacionados inclusive, com a condenação dos presentes autos.
Por tudo o exposto e sem necessidade de outros considerandos, procede o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos em conformidade com o disposto no artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto nos artigos 51º, nº 3, 55º e 56º, do Código Penal.

Sem custas, pela qualidade do recorrente, artigo 522º, do Código de Processo Penal e a procedência do recurso.


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação ... em:

- Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos em conformidade com o disposto no artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto nos artigos 51º, nº 3, 55º e 56º, do Código Penal.

Sem custas, pela qualidade do recorrente, artigo 522º, do Código de Processo Penal e a procedência do recurso.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 10-01-2023
Fernando Paiva Gomes M. Pina (Relator) Beatriz Marques Borges (Adjunta) João F. R. Carrola (Adjunto)